O Enuma Elish transcrito, traduzido e explicado

A publicação do Enuma Elish foi feita por George Smith em 1876. O texto considerado padrão hoje, com transliteração do acádico e tradução em inglês, é o de Wilfred George Lambert, publicado em 2013.

A partir de 2023, entretanto, a edição mais atualizada do Enuma Elish é a publicada pela electronic Babylonian Library (eBL). Esta edição é baseada em 116 manuscritos, 71 tabuinhas escolares e 18 fragmentos adicionais, bem como 27 manuscritos de comentários e 56 citações em outros textos, para um total de 288 fontes textuais – um número excepcional na literatura cuneiforme.

Como costuma ser o caso dos textos acádicos, o maior local único para manuscritos de Enuma Elish é a capital assíria, Nínive, que ostenta quarenta e sete manuscritos e fragmentos: a maioria deles vem dos arquivos reais, a chamada Biblioteca de Assurbanípal. Essas tabuinhas foram produzidas para a corte imperial e são obras de grande habilidade artesanal.

Em contraste, a maioria dos trinta manuscritos e sessenta e sete tabuinhas escolares da Babilônia foram escavados ilegalmente e, portanto, não podem ser identificados como sendo de um local específico, mas um grande número deles provavelmente veio da cidade de Babilônia. As numerosas tabuinhas escolares babilônicas mostram o quão central o Enuma Elish era para o sistema educacional do período. Ele frequentemente aparece em tabuinhas de trechos onde algumas linhas do são copiadas ao lado de linhas de obras como Ludlul e outros hinos a Marduk, à medida que os alunos se familiarizavam com obras canônicas da literatura cuneiforme escrevendo pequenas seções delas.

Lembro que a plataforma eBL contém edições online de livre acesso e continuamente atualizadas das principais obras da literatura cuneiforme, usando algoritmos recentemente desenvolvidos para localizar até mesmo os menores fragmentos de textos literários. Essas edições são acompanhadas por traduções em inglês e árabe, um dicionário online e lista de sinais, análises métricas eHAUBOLD, J.; HELLE, S.; JIMÉNEZ, H.; WISNOM, S. (eds.) Enuma Elish: The Babylonian Epic of Creation. London: Bloomsbury, 2024, 352 p. links para fotografias e desenhos das tabuinhas.

Sobre o Enuma Elish acaba de ser publicado um livro muito interessante:

HAUBOLD, J.; HELLE, S.; JIMÉNEZ, E.; WISNOM, S. (eds.) Enuma Elish: The Babylonian Epic of Creation. London: Bloomsbury, 2024, 352 p. – ISBN ‎ 9781350297197. Disponível online.

Este livro de acesso aberto é o primeiro de uma série inovadora que torna a literatura babilônica acessível. Ele apresenta o Enuma Elish em transcrição e tradução, com uma introdução para leitores não especialistas e ensaios de estudiosos renomados na área.

Atuando como uma introdução ao poema, o livro fornece aos leitores as ferramentas de que precisam para explorar o Enuma Elish em maior profundidade. Os ensaios cobrem informações históricas e contextuais importantes, oferecem discussões de tópicos-chave e explicações de termos técnicos, bem como sugestões de leituras adicionais relevantes. A abordagem interpretativa e reflexiva do livro, que dá atenção especial a questões de estilo poético, ressonância intertextual e significado literário e cultural, incentiva uma maior compreensão do poema como uma obra literária, ao mesmo tempo em que permanece fundamentada na filologia.

Os ensaios críticos examinam o Enuma Elish e os seguintes temas: o ritmo e o estilo do poema; suas recepções modernas, questões de gênero, maternidade e masculinidade; a ascensão de Marduk ao poder; astronomia babilônica; intertextualidade e o poema como contramito.

 

This open access book is the first in a groundbreaking series making Babylonian literature accessible. It presents Enuma Elish in transcription and translation, with an introduction for non-specialist readers and essays from leading scholars in the field.

Acting as a companion to the poem, the book provides readers with the tools they need to explore Enuma Elish in greater depth. Essays cover important historical and contextual information, offer discussions of key topics and explanations of technical terms, as well as suggestions of relevant further reading. The book’s interpretive and reflective approach, which pays special attention to questions of poetic style, intertextual resonance, and literary and cultural significance, encourages a greater understanding of the poem as a work of literature while remaining grounded in philology.

The critical essays examine Enuma Elish and the following themes: the poem’s rhythm and style; its modern receptions, issues of gender, motherhood and masculinity; Marduk’s rise to power; Babylonian astronomy; intertextuality and the poem as counter myth.

Enuma Elish and the Library of Babylonian Literature series will be an indispensable companion for anyone interested in the literature, culture and religion of ancient Assyria.

The ebook editions of this book are available open access under a CC BY-NC-ND 4.0 licence on bloomsburycollections.com. Open access was funded by LMU Munich and Princeton University.

Johannes Haubold is Professor of Classics at Princeton University, USA.

Sophus Helle is a postdoctoral researcher at Princeton University, USA. He holds a PhD in Comparative Literature from Aarhus University, Denmark.

Enrique Jiménez is Chair of Ancient Near Eastern Literatures at Ludwig-Maximilians-Universität (LMU), München, Germany.

Selena Wisnom is Lecturer in the Heritage of the Middle East at the University of Leicester, UK.

eBL: electronic Babylonian Library

O objetivo da plataforma electronic Babylonian Library (eBL) é acelerar o ritmo de reconstrução e publicação de tabuinhas cuneiformes em todo o mundo. Ao oferecer uma plataforma versátil para edição de tabuinhas e textos e para anotação de edições e fotografias, e um conjunto de ferramentas para pesquisa epigráfica, lexicográfica e historiográfica, ela visa acelerar dramaticamente o ritmo em que a documentação escrita da antiga Mesopotâmia é recuperada para o mundo moderno.

A plataforma eBL é baseada na Ludwig-Maximilians-Universität (LMU), de Munique, Alemanha e na Bayerische Akademie der Wissenschaften (BAdW) e hospedada pela Leibniz-Rechenzentrum der Bayerischen Akademie der Wissenschaften (LRZ).

Meio milhão de tabuinhas cuneiformes

Quantas tabuinhas cuneiformes da antiga Mesopotâmia os museus possuem? Onde estão?Tabuinhas da Biblioteca de Assurbanípal em exposição no Museu Britânico em 2018/19

Não há uma contagem oficial do número de tabuinhas cuneiformes da antiga Mesopotâmia mantidas por museus do mundo todo, mas os especialistas concordam que há cerca de meio milhão.

O maior acervo, de longe, está em poder do British Museum, em Londres, que possui aproximadamente 130 mil tabuinhas cuneiformes.

Em seguida, em ordem aproximadamente decrescente, estão o Museu Vorderasiatisches de Berlim, o Louvre em Paris, o Museu do Antigo Oriente em Istambul, o Museu de Bagdá e a Coleção Babilônica da Universidade de Yale, que, com 40.000 tabuinhas, tem o maior acervo nos Estados Unidos. Em segundo lugar, nos Estados Unidos, está o Museu de Arqueologia e Antropologia da Universidade da Pensilvânia.

Mas são poucos os especialistas em cuneiforme – fala-se em cerca de 500 – e assim muitos desses escritos não são lidos.

Fragmentarium

Para resolver isso, o Prof. Enrique Jiménez na Ludwig-Maximilians-Universität (LMU) de Munique, Alemanha, está utilizando, com sua equipe, técnicas avançadas de inteligência artificial (IA) para analisar e decifrar inscrições cuneiformes antigas, incluindo a Epopeia de Gilgámesh. Eles desenvolveram várias ferramentas e algoritmos para facilitar esse processo, que estão disponíveis em seus repositórios do GitHub.

Henrique JiménezÉ uma ferramenta que não existia antes, um enorme banco de dados de fragmentos. Ele pode desempenhar um papel vital na reconstrução da literatura babilônica. Apropriadamente chamado de Fragmentarium, ele foi projetado para juntar fragmentos de texto usando métodos sistemáticos e automatizados. Os especialistas esperam que o programa também seja capaz de identificar e transcrever fotos de escritas cuneiformes no futuro. Até o momento, milhares de fragmentos cuneiformes adicionais foram fotografados em colaboração com o Museu Britânico em Londres e o Museu do Iraque em Bagdá.

Este projeto utiliza tecnologias de Reconhecimento Óptico de Caracteres (OCR) e Processamento de Linguagem Natural (NLP) para ler e combinar os textos. Especificamente, usa OCR para converter os sinais cuneiformes de imagens em texto legível por máquina. A equipe do Prof. Enrique Jiménez então aplica algoritmos para detectar e combinar segmentos sobrepostos de diferentes manuscritos, auxiliando na reconstrução de textos fragmentados.

Veja no YouTube: KI Lectures an der LMU – Die Rekonstruktion altorientalischer Literatur durch den Einsatz von KI (Palestras sobre IA na LMU – A Reconstrução da Literatura do Antigo Oriente Médio através do uso de IA) – 6 de dez. de 2021.

 

The electronic Babylonian Library (eBL) Project brings together ancient Near Eastern specialists and data scientists to revolutionize the way in which the literature of Iraq in the first millennium BCE is reconstructed and analyzed. Generations of scholars have striven to explore the written culture of this period, in which literature in cuneiform script flourished to an unprecedented degree, but their efforts have been hampered by two factors: the literature’s fragmentary state of reconstruction and the lack of an electronic corpus of texts on which to perform computer-aided analyses.

The eBL project aims to overcome both challenges. First, a comprehensive electronic corpus has been compiled, and legacy raw material now largely inaccessible has been transcribed into a database of fragments (“Fragmentarium”). Secondly, a pioneering sequence alignment algorithm (“cuneiBLAST”) has been developed to query these corpora. This algorithm will propel the reconstruction of Babylonian literature forward by identifying hundreds of new pieces of text, not only in the course of the project but also in the decades to come.

In order to answer several fundamental and much-debated questions about the nature of the Babylonian poetic expression and the composition and transmission of the texts, three tools are being developed to data-mine the eBL corpus. The first will search for patterns in the spelling variants in the manuscripts, the second will find rhythmical patterns, and the third will sift the corpus for intertextual parallels. The bottom-up study of the corpus by means of these tools will decisively change our conceptions of how Babylonian literature was composed and experienced by ancient audiences (from AWOL – August 22, 2023).

Morreu o teólogo Gustavo Gutiérrez

Morreu em 22.10.2024, aos 96 anos, o teólogo peruano Gustavo Gutiérrez, considerado o pai da Teologia da Libertação.

Veja sobre Gustavo Gutiérrez:Gustavo Gutiérrez Merino (1928-2024)

Francisco e Gustavo Gutiérrez – Observatório Bíblico: 14.09.2013

O ilustre pai da Teologia da Libertação – Observatório Bíblico: 04.04.2012

Entrevista: Gustavo Gutierrez, um dos pais da TdL – Observatório Bíblico: 21.07.2008

Conheci Gustavo Gutiérrez na década de 70, em Roma, quando fez palestra para os estudantes dos Colégios Pio Brasileiro e Latino-Americano.

Voltei a reencontrá-lo em julho de 2000, em Congresso da SOTER, em Belo Horizonte, quando o tema debatido foi Teologia na América Latina: Prospectivas. Estavam presentes 234 teólogos, teólogas e cientistas da religião, dos quais 77 vieram da Argentina, Chile, Colômbia, Costa Rica, México, Peru e Uruguai, além de convidados da Áustria, Canadá, Espanha, Estados Unidos e Itália. E entre eles, Gustavo Gutiérrez, do Peru.

De sua obra tomei conhecimento em 1972, quando cursava o terceiro ano de Teologia na Universidade Gregoriana e nosso extraordinário colega de Pio Brasileiro, Alphonso Garcia Rubio, doutorando em Teologia, orientou um seminário sobre Teologia da Libertação, o tema de sua tese, para brasileiros e colegas do Colégio Pio Latino-Americano, que, à época, tinha sua sede ao lado do nosso.

No dia 22 de outubro de 1972 – o ano letivo começou em 15 de outubro – comprei o livro de Gustavo Gutiérrez, Teologia della Liberazione. Prospettive. Brescia: Queriniana, 1972, 312 p., base de nosso estudo. A edição brasileira pode ser vista aqui. E outras publicações de Gustavo Gutiérrez, aqui.

Layard e Botta em Nínive em 1842

Estes são trechos do capítulo 1, The Mounds of Nineveh, do livro de Mogens Trolle Larsen, The Conquest of Assyria: Excavations in an Antique Land, 1840-1860. New York: Routledge, [1996] 2016.

Veja uma apresentação do livro no post A escavação arqueológica da Assíria, publicado no Observatório Bíblico em 17.08.2024. O capítulo 1, The Mounds of Nineveh,LARSEN, M. T. The Conquest of Assyria: Excavations in an Antique Land, 1840-1860. New York: Routledge, [1996] 2016, 424 p. pode ser lido na íntegra, em inglês, clicando aqui. Ou, na amostra do livro, aqui.

Layard chega a Mossul

Em um dia de calor escaldante de junho de 1842, dois cavaleiros chegaram aos portões de Mossul, uma cidade provincial no Império Otomano. Eles vinham de Bagdá, no sul, por uma estrada que os levou através da terra fértil a leste do Tigre. Eles chegaram a Mossul cruzando uma ponte frágil de barcos que conectava a cidade na margem ocidental com as aldeias do outro lado do Tigre.

Um dos homens era um carteiro turco que estava a caminho de Constantinopla, a mais de dois mil quilômetros de distância, com correio imperial oficial. O outro era um jovem vestido como um bakhtiyari, uma tribo que vivia no Cuzistão, a região montanhosa do sudoeste do Irã. No entanto, um olhar mais cuidadoso logo perceberia que ele era um europeu. E, de fato, depois de ter se separado de seu companheiro de viagem, que entrou no palácio do paxá local, ele foi direto para o vice-consulado britânico, onde foi recebido como um velho amigo. Ele era o aventureiro britânico de vinte e cinco anos, Austen Henry Layard.

Layard encontra Botta

No mesmo dia, ele foi apresentado ao novo cônsul francês em Mossul, Paul-Émile Botta, de quarenta anos, e o encontro entre esses dois teve um significado muito especial, pois pode-se dizer que marcou o início da exploração arqueológica da antiga Mesopotâmia. Botta e Layard estavam destinados a se tornarem os descobridores da antiga Assíria.

O que levou Botta e Layard a este lugar esquecido por Deus? O encontro deles foi acidental, nenhum deles conhecia o outro antes de se conhecerem em Mossul, mas descobriram que tinham interesses em comum. Layard estava a caminho de Constantinopla levando correspondência oficial britânica, mas como seu companheiro tinha negócios a tratar com o Paxá, eles tiveram que ficar na cidade por alguns dias. Isso deu a Layard a oportunidade de conhecer Botta, que era o cônsul francês recentemente nomeado em Mossul.

Botta e Layard em Nuniya

Eles não estavam realmente interessados em Mossul, mas olhavam com fascínio para os montes que estavam localizados do outro lado do rio, na margem oriental do Tigre. Uma série de enormes muralhas circundam uma área retangular de alguns quilômetros de comprimento e largura, e neste recinto ficavam alguns montes bem grandes. Os moradores locais chamavam toda a área de ‘Nuniya’, e acreditava-se que ali estava Nínive, a antiga capital assíria.

Hoje, esse nome provavelmente significa pouco para a maioria das pessoas, mas no século XIX ele ressoaria na mente de qualquer europeu razoavelmente educado, que conheceria as histórias sobre esta cidade do Antigo Testamento e de uma série de lendas contadas por autores clássicos. Nínive tinha sido o centro de um dos maiores e mais importantes impérios do mundo antigo, cujo poder, segundo a tradição, cobria todo o antigo Oriente Médio, incluindo a Palestina e o Egito. Era também, no entanto, um império que não havia deixado nenhum vestígio concreto para trás. A Assíria havia desaparecido, deixando nada além de mitos e lendas.

Exceto que havia esses vastos montes perto de Mossul, que, de acordo com a lenda local, cobriam as ruínas da cidade antiga. Essa tradição era de fato conhecida pelos eruditos da Europa , aqueles poucos que tinham ouvido falar do lugar, mas nunca foi uma informação que tivesse sido vista como particularmente importante ou interessante.

Layard já tinha visto os montes alguns anos antes, quando estava a caminho do sul em direção a Bagdá, e ele tinha ficado “profundamente comovido por sua grandeza desolada e solitária”. Ele agora revisitou Nínive na companhia de Botta e ouviu com excitação e ciúmes que o francês havia sido colocado em Mossul com o propósito de iniciar escavações na cidade antiga.

Nínive na Bíblia Hebraica

Botta e Layard vagavam pelos grandes montes próximos a Mossul envolvidos em especulações. O que estava escondido no chão sob seus pés? Esta era realmente a Nínive mencionada no Antigo Testamento? Lá a cidade aparece como a poderosa capital dos assírios, de onde seu império era governado, lar de reis como Tiglat-Pileser III, Salmanasar, Senaquerib e Assaradon*.

No Livro de Jonas [ca. 450 a.C.] lemos que Nínive era uma grande cidade, com uma população estimada em mais de cem mil habitantes.

Como capital dos assírios que atormentaram Judá e Israel, Nínive naturalmente não foi mencionada de forma positiva na Bíblia Hebraica. O profeta Naum [ca. 612 a.C.] canta um hino de puro êxtase pela destruição final de Nínive, na sua visão, uma cidade manchada de sangue, mergulhada em enganos, cheia de pilhagens, nunca vazia de presas.

Muitas outras passagens no Antigo Testamento expressam o mesmo ódio insondável aos assírios e sua enorme capital, pois foi daqui que começaram as campanhas intermináveis que acabaram por esmagar Israel e enviar os israelitas para o exílio em outras províncias do império assírio.

Xenofonte passou por lá em 401-400 a.C.

Como todos os europeus razoavelmente bem-educados, Botta e Layard conheciam os clássicos gregos e romanos. Eles sabiam que o primeiro relato das ruínas assírias foi dado pelo general grego Xenofonte, que liderou dez mil mercenários para a Babilônia e de volta nos anos 401-400 a.C.

Paul Émile Botta (1802-1870)Seu exército acampou uma noite em sua viagem de volta perto do Tigre em uma ruína que ele chama de “Larissa”, que deve ser o monte agora conhecido como Nimrud, um lugar que ocupa um papel central neste livro. Xenofonte pensou que esta “grande cidade deserta” havia sido construída pelos medos e pelo povo iraniano. No dia seguinte, o exército chegou a outra ruína que, Xenofonte descreveu como “uma grande fortificação indefesa perto de uma cidade chamada Méspila”. Este nome deve ser uma versão estranha de ‘Mossul’ e as ruínas que ele descreveu devem ser as mesmas que ocuparam Botta e Layard.

Xenofonte pode dar essa descrição seca e factual, mas ele nem sabe o nome do local. No entanto, ele esteve aqui apenas duzentos anos após a queda de Nínive, que aconteceu em 612 a.C., quando uma força combinada de medos e babilônios assaltou suas muralhas e destruiu a cidade. Parece que no curto espaço de tempo Nínive foi esquecida e que, embora as ruínas em si dificilmente pudessem ser esquecidas, os nomes antigos dessas cidades, para não falar de sua história, desapareceram da memória comum.

Benjamim de Tudela: 1173

Um visitante da Europa, o rabino Benjamim de Tudela, passou por lá em 1173 e viu as ruínas de Nínive – “agora bastante decrépitas” – e mais alguns as visitaram depois dele, como Riccoldo da Monte di Croce (1290), Leonhard Rauwolf (entre 1573 e 1576), Anthony Sherley (1599), John Cartwright (1601), Pietro della Valle (1616-25) e J. B. Tavernier (1644).

Carsten Niebuhr: 1766

Em março de 1766, cerca de setenta e cinco anos antes de Botta e Layard se encontrarem em Mossul, Carsten Niebuhr passou alguns dias aqui em seu caminho para casa da desastrosa expedição dinamarquesa à Arábia Félix. Sabemos que Botta leu o grande relato desta viagem publicado por Niebuhr, mas não está claro se Layard ouviu falar dele.

Niebuhr fornece um mapa de Mossul que mostra uma área que ele chama de Nínive do outro lado do rio. Ele assinalou os dois grandes montes: o menor ao sul é mostrado como uma vila moderna, que leva o nome de ‘Nuniya’, enquanto o maior ao norte é chamado de ‘Kalla Nuniya’, ou seja, ‘o Castelo de Nínive’. Niebuhr diz que havia uma vila localizada também neste monte e era chamada de ‘Koindsjug’. Este é obviamente o mesmo nome que é dado atualmente ao monte como tal, ‘Kuyunjik’, sob o qual ele aparece na literatura arqueológica.

As longas linhas de fortificações, as vastas muralhas da antiga Nínive, não podem ser encontradas no mapa de Niebuhr. Elas circundam toda a área e foram a única característica notada por Xenofonte, mas Niebuhr simplesmente não as viu quando atravessou a área a caminho de Mossul. Ele provavelmente os considerou inicialmente como colinas naturais e, como nunca teve oportunidade de medi-los cuidadosamente, naturalmente teve que ignorá-los em seu mapa. Como um filho do Iluminismo, ele não podia simplesmente inventar ou adivinhar e desenhar algumas linhas onde eles poderiam ter estado.

Ele dá uma visão especial da vila que ele chama de Nuniya, que ele diz ter sido construída ao redor de uma mesquita que, de acordo com a tradição judaica e muçulmana, continha o túmulo do profeta Jonas. Esta é outra memória da antiga Nínive, é claro, pois Jonas fora enviado por Deus a Nínive para alertar seus habitantes a abandonarem suas vidas pecaminosas.

Claudius Rich: 1820

O desenho e o mapa de Niebuhr, embora não muito corretos ou esteticamente agradáveis, foi um grande avanço, mas o estudo real do local começou com Claudius Rich que era o “Residente” em Bagdá, onde representava os interesses da grande Companhia das Índias Orientais no início do século XIX.

Em 1820 , ele fez medições cuidadosas de toda Nínive e produziu um mapa notavelmente preciso no relatório que foi publicado em 1836, após sua morte. Aqui encontramos os principais montes e as fortificações, muros que cercam uma área enorme e que são facilmente rastreáveis na paisagem. Encontramos os dois montes agora chamados Kuyunjik e Nebbi Yunus, isto é, o nome árabe para o monte sul, que significa “o Profeta Jonas”.

Rich conta que lhe disseram que os habitantes locais haviam, alguns anos antes, encontrado “um imenso baixo-relevo, representando homens e animais, cobrindo uma pedra cinza da altura de dois homens”. Ele também diz que “toda a cidade de Mossul saiu para vê-lo, e em poucos dias ele estava cortado ou quebrado em pedaços”.

Em Nebbi Yunus, ele viu grandes blocos de pedra com inscrições em algumas casas, alguns deles aparentemente ainda em seus lugares originais. Um deles, um pedaço de uma laje de alabastro com escrita cuneiforme, estava localizado na cozinha de uma casa miserável, e parecia ser parte da parede em uma pequena passagem que dizem continuar bem para dentro do monte. Algumas pessoas cavaram nele no ano passado, mas como ele passava por baixo das casas e eles estavam preocupados em não miná-las, eles o encheram novamente com entulho e apenas a parte da passagem que estava completamente aberta, e que faz parte da cozinha, pode agora ser vista.

Rich passou muitos anos em Bagdá e visitou ruínas em todo o país que hoje é o Iraque, fazendo medições e coletando achados. Ele já havia publicado um livreto contendo suas medições das ruínas da Babilônia. Ele conseguiu reunir uma pequena coleção de antiguidades do país, e após sua morte isso foi vendido ao Museu Britânico por sua viúva. Ali as antiguidades foram exibidas em uma caixa de vidro como um dos poucos testemunhos concretos da existência das culturas antigas na Assíria e na Babilônia. Layard tinha visto a coleção no museu, e sabemos que a publicação do livro de Rich teve um papel na decisão tomada pelas autoridades francesas de enviar Botta a Mossul para escavar Nínive.

Um pouco se sabia sobre a antiga Assíria

Assim, um pouco se sabia sobre a antiga Assíria, mas a caixa de vidro no Museu Britânico não conseguiu preparar ninguém para a realidade de Mossul. A desolação total de Nínive, e das outras ruínas antigas em toda a Mesopotâmia, as havia condenado ao silêncio, mesmo na já extensa literatura europeia preocupada com as ruínas do antigo Oriente Médio. Simplesmente não havia nada para ver aqui, apenas montes cobertos de grama, e nenhum vestígio que pudesse evocar memórias de grandeza passada. Em Nínive o visitante precisava de uma imaginação muito viva para evocar imagens de esplendor e beleza dos montes silenciosos e estranhamente anônimos.

Layard vagou entre colinas cobertas de grama e campos de milho cercados por longas fileiras de muros desmoronados, imaginando se eram realmente os restos de Nínive. E se fossem, o que então estava escondido no subsolo? Aqui devem estar os palácios gloriosos do rei assírio e os templos de seus deuses, e talvez fosse possível descobrir um pouco de tudo isso, encontrando evidências concretas de um passado que havia deixado tão poucos vestígios que parecia pertencer ao reino do mito e não do fato.

Uma tarefa gigantesca

A tarefa contemplada por Botta e Layard era muito mais complicada do que eles poderiam imaginar. A arqueologia de campo estava em sua mais tenra infância na Europa, e é obviamente uma proposta muito mais simples enfrentar um túmulo da Idade do Bronze do que começar em um monte que cobre as ruínas de uma cidade inteira.

A diferença em tamanho por si só é impressionante: Kuyunjik tem cerca de 15 m de altura e quase um quilômetro de comprimento, e Nebbi Yunus não é muito menor. Toda a área cercada pelos muros de Nínive tem cerca de 2,5 km de largura e cerca de 5 km de comprimento. Escavar um monte como Kuyunjik em sua totalidade usando técnicas adequadas de registro e escavação é uma tarefa que exigiria séculos para uma força de trabalho substancial. No entanto, eles estavam sonhando com uma descoberta total da cidade antiga.

No sul da Itália, um tipo de escavação já havia sido conduzida por um longo tempo nos sítios de Pompeia e Herculano, e é provável que Botta e Layard vissem sua tarefa como comparável ao trabalho realizado lá. No entanto, as duas cidades romanas estavam cobertas por lava e cinzas em chamas que as selaram em uma espécie de distorção temporal. Escavá-las era simplesmente uma questão de remover a cobertura, revelando as ruínas por baixo.

Os montes assírios constituíam um tipo de desafio bem diferente, pois um sítio como Kuyunjik é o resultado da atividade de milênios. As pessoas viviam aqui praticamente desde sempre, e o monte contém os restos de construções em um padrão complexo, situados uns sobre os outros, ruínas de vilas, cidades, templos e palácios, que se seguiram durante um período de tempo que, neste caso em particular, abrange pelo menos sete mil anos. Às vezes, casas individuais eram derrubadas, as paredes eram empurradas para que uma nova casa pudesse ser construída no local. Em outras ocasiões, todo o assentamento foi destruído e reassentado depois de um tempo. O resultado de todos esses atos e eventos individuais é a criação de uma espécie de bolo insano em camadas construído por um chef confeiteiro louco.

Mas quem pode ver isso, andando por esses montes gramados? Na verdade, havia indicadores, pois algumas aldeias ainda podiam ser encontradas no topo de alguns dos montes antigos. Em alguns casos, cidades inteiras ainda estavam empoleiradas em um monte, dando uma indicação de como elas tinham sido acumuladas – enquanto, ao mesmo tempo, obviamente impediam os arqueólogos de fazerem suas tarefas.

No entanto, é razoável sustentar que Botta e Layard realmente não podiam saber que quebra-cabeça complexo e intrincado estava escondido sob seus pés. Botta já havia começado sua tarefa arqueológica antes da chegada de Layard e havia se dado conta das dificuldades de sua empreitada, embora os primeiros problemas que ele enfrentou não fossem realmente de natureza arqueológica.

Botta investiga Nebbi Yunus

Ele havia colocado alguns trabalhadores em Nebbi Yunus para investigar as antigas fundações de pedra que, como Rich havia visto, regularmente aparecia embaixo deAusten Henry Layard (1817-1894) casas modernas , mas ele teve que desistir desse trabalho por causa da oposição violenta tanto do Paxá quanto dos líderes religiosos locais, que temiam que suas atividades pudessem violar ou destruir a mesquita sagrada com o túmulo do profeta Jonas. Essa oposição motivada religiosamente se tornaria um verdadeiro pesadelo para ambos os homens nos anos que se seguiram.

Quando ele começou suas atividades arqueológicas, Botta tinha pouco para prosseguir. As investigações de Rich ajudaram, é claro, e seu relato deixou claro que ruínas de fato existiam aqui, então havia razão para confiar na visão tradicional de que esta era Nínive. Mas o que exatamente ele deveria procurar? Havia muitas histórias sobre pedras com imagens e escritas estranhas, mas onde elas estavam? Quando Layard chegou a Mossul, Botta não conseguiu mostrar resultados de seus esforços até então.

Tendo sido forçado a abandonar Nebbi Yunus, ele pareceu hesitante ao enfrentar o desafio de Kuyunjik, então se concentrou por algum tempo em coletar antiguidades e reunir informações sobre onde descobertas haviam sido feitas anteriormente. Mesmo neste campo, seus resultados foram modestos, e ele estava convencido de que muito poucas descobertas tinham de fato sido feitas nas proximidades de Mossul. Ele concluiu que Rich havia coletado a maioria das antiguidades que tinham sido descobertas aqui.

Em sua visita anterior à área, Layard ficou especialmente fascinado por um enorme monte conhecido como Nimrud, que ficava perto do Tigre, ao sul de Mossul. Ele parou aqui e sonhou em descobrir os palácios do passado que ele estava convencido de que estavam escondidos aqui. Desde aquela visita, ele viu muitas outras ruínas na Babilônia ao sul e nas montanhas iranianas, e teve várias oportunidades de falar com pessoas profundamente interessadas no passado do país. Portanto, ele tinha muito a dizer a Botta e parece provável que o entusiasmo do jovem inglês ajudou a manter as atividades de Botta vivas.

A breve visita de três dias tornou-se o início de uma amizade pessoal entre dois homens que obviamente se admiravam e respeitavam. O relacionamento deles era livre tanto da rivalidade pessoal quanto nacionalista-chauvinista que viria a marcar o trabalho dos arqueólogos na antiga Mesopotâmia durante os anos que se seguiram.

Layard foi para Constantinopla – onde permaneceu como membro da equipe do embaixador. Enquanto ele mergulhava em novas aventuras na capital turca, Botta continuou suas atividades infrutíferas e regularmente escrevia a Layard sobre seu trabalho. Ele, por sua vez, tentou encorajar Botta a continuar e sugeriu que ele tentasse sua sorte em Nimrud.

Botta investiga Kuyunjik

Em dezembro de 1842, meio ano após a visita de Layard, Botta finalmente colocou um grupo de trabalhadores em Kuyunjik , onde eles cavaram algumas trincheiras, mas mesmo aqui ele não teve sorte. Somos informados de que ele não encontrou nada, o que significa que ele só encontrou coisas que não significavam nada para ele: cacos de cerâmica, fragmentos de pedra, tijolos, às vezes com inscrições. Era impossível reconhecer um plano ou qualquer construção na perturbação caótica de
edifícios que outrora coroaram este local.

Cacos de cerâmica, o mais importante grupo de achados para o arqueólogo moderno, nada diziam para Botta ou seus trabalhadores. Eles tinham que encontrar algo monumental para simplesmente se tornarem cientes de que havia algo para encontrar e, para começar, Nínive não ofereceu nada útil. Portanto , ele tinha pouco a contar em suas cartas a Layard.

Botta escava Khorsabad

Foi somente em abril do ano seguinte, 1843, que ele pôde escrever algo verdadeiramente positivo sobre suas atividades. Porém, por outro lado, era uma mensagem sensacional que ele pôde enviar: ele finalmente havia descoberto a antiga Assíria!

Já quando seus trabalhadores começaram a escavar em Kuyunjik, ele recebeu a visita de um homem que veio de uma vila chamada Khorsabad. Ele explicou que este assentamento, a cerca de 25 km de Mossul, foi construído no topo de um monte e que pedras com figuras e inscrições foram descobertas ali em várias ocasiões. Botta recebia muitas dessas visitas e ouvia histórias que sempre acabavam sendo pura imaginação, então ele não levou a sério o homem de Khorsabad. Em março, após meses de trabalho infrutífero em Kuyunjik, ele ficou tão frustrado que ele decidiu descobrir se havia alguma realidade por trás da história.

Ele enviou uma equipe de trabalhadores para Khorsabad, onde eles deveriam cavar alguns buracos, e três dias depois ele recebeu uma mensagem dizendo que eles haviam encontrado relevos e inscrições. Mesmo assim, Botta estava cético e enviou um de seus funcionários para fazer um desenho de uma dessas inscrições, e foi somente quando ele retornou com algo que parecia genuíno que Botta finalmente decidiu mudar suas operações para Khorsabad.

Em 5 de abril, ele pôde enviar uma carta a Paris na qual anunciava que tinha descoberto ‘as ruínas de um monumento que é notável tanto pelo número como a natureza das esculturas que o adornam’. Triunfantemente ele pôde concluir: ‘Acredito ser o primeiro a descobrir esculturas que podem ser consideradas pertencentes à época em que Nínive ainda estava florescendo’.

Esta mensagem, que Botta enviou a Paris através de Constantinopla, onde Layard a leu com entusiasmo, tornou-se o início de uma fase agitada de descobertas com escavações em vários montes por todo o país. Uma civilização que havia desaparecido subitamente emergiu do solo.

* A Assíria teve 4 capitais:

1. Assur: capital da Assíria desde o II milênio a.C. e cidade de grande importância religiosa ao longo de toda a sua história
2. Kalhu (Nimrud), escolhida como capital por Assurnasírpal (reinou de 883 a 859 a.C.)
3. Dur-Sharrukkin (Khorsabad), construída por Sargão II a partir de 713 a.C.
4. Nínive, escolhida como capital por Senaquerib (reinou de 705 a 681 a.C.)

Algumas referências**

BOTTA, P. E. M. Botta’s Letters on the Discoveries at Nineveh. London: Forgotten Books, 2018.

GUINSBURG, J. O Itinerário de Benjamim de Tudela. São Paulo: Perspectiva, 2017.

LAYARD, A. H. Autobiography and Letters from his childhood until his appointment as H.M. Ambassador at Madrid. London: Forgotten Books, 2019.

NIEBUHR, C. Travels Through Arabia and Other Countries in the East. Norderstedt: Hansebooks, 2018.

RICH, C. J. Narrative of a Residence in Koordistan, and On the Site of Ancient Nineveh, 2 vols. Legare Street Press, 2022-2023.

XENOFONTE A retirada dos dez mil. Lisboa: Bertrand Editora, 2014.

**Estas obras antigas podem, em geral, ser acessadas gratuitamente na internet. Tente aqui.

Vida e feitos de Alexandre Magno

OGDEN, D. (ed.) The Cambridge Companion to Alexander the Great. Cambridge: Cambridge University Press, 2024, 612 p. – ISBN 9781108840996.

Qual personagem da antiguidade cativou a imaginação das pessoas ao longo dos séculos tanto quanto Alexandre Magno? Em menos de uma década, ele criou um impérioOGDEN, D. (ed.) The Cambridge Companion to Alexander the Great. Cambridge: Cambridge University Press, 2024, 612 p. que se estendia por grande parte do antigo Oriente Médio até a Índia, o que levou a cultura grega a se tornar dominante em grande parte desta região por um milênio.

Neste livro uma equipe internacional de especialistas explica claramente a vida e a carreira de uma das figuras mais significativas da história mundial. Eles introduzem temas-chave de sua campanha, bem como descrevem aspectos de sua corte e governo e exploram as naturezas muito diferentes de seus engajamentos com os vários povos que ele encontrou e suas respostas a ele.

O leitor também é apresentado às principais fontes, incluindo os historiadores fragmentários mais importantes, especialmente Ptolomeu, Aristóbulo e Clitarco, com suas diferentes perspectivas. O livro termina considerando como a imagem de Alexandre foi manipulada na própria antiguidade.

Daniel Ogden é professor de História Antiga na Universidade de Exeter, Reino Unido. Veja suas publicações.

 

Has any ancient figure captivated the imagination of people over the centuries so much as Alexander the Great? In less than a decade he created an empire stretching across much of the Near East as far as India, which led to Greek culture becoming dominant in much of this region for a millennium.

Here, an international team of experts clearly explains the life and career of one of the most significant figures in world history. They introduce key themes of his campaign as well as describing aspects of his court and government and exploring the very different natures of his engagements with the various peoples he encountered and their responses to him.

Daniel Ogden (1963-)The reader is also introduced to the key sources, including the more important fragmentary historians, especially Ptolemy, Aristobulus and Clitarchus, with their different perspectives. The book closes by considering how Alexander’s image was manipulated in antiquity itself.

Daniel Ogden is Professor of Ancient History at the University of Exeter. His previous publications include: Polygamy, Prostitutes and Death: The Hellenistic Dynasties (1999; 2nd ed., 2023); (ed.) The Hellenistic World: New Perspectives (2002); (co-ed. with Elizabeth Carney) Philip and Alexander: Father and Son, Lives and Afterlives (2010); Alexander the Great: Myth, Genesis and Sexuality (2011); and The Legend of Seleucus (Cambridge, 2017)

Assíria e Egito na Palestina na época de Josias

NA’AMAN, N. Josiah and the Kingdom of Judah. In: GRABBE, L. L. (ed.) Good Kings and Bad Kings: The Kingdom of Judah in the Seventh Century BCE. London: T&T Clark, 2005, p. 189-247.

Vou transcrever aqui três trechos do capítulo de Nadav Na’aman sobre “Josias e o reino de Judá”.Nadav Na'aman (1939-)

Sobre o livro, confira minha postagem Bons e maus reis: Judá no século sétimo.

Para conhecer melhor o assunto, recomendo a leitura de três posts:
1. Reforma atribuída a Josias teria sido proposta só no pós-exílio. É uma tradução do capítulo escrito por Philip R. Davies no mesmo livro. Publicado no Observatório Bíblico em 25.09.2024
2. As reformas de Ezequias e Josias podem não ter acontecido, sobre um texto de Juha Pakkala, publicado no Observatório Bíblico em 18.09.2024
3. Uma leitura crítica da reforma de Josias – Publicado no Observatório Bíblico em 17.04.2022

As referências bibliográficas e as notas de rodapé do texto de Nadav Na’aman foram omitidas, mas são numerosas. Podem ser consultadas no texto original, em inglês, que está disponível, gratuitamente, em Academia.edu. Clique aqui.

 

O fator egípcio

Sabemos que o faraó Psamético I ascendeu ao trono do Egito com o apoio da Assíria, que o ajudou a frustrar a tentativa de retomada do Egito pelos governantes da dinastia núbia (Vigésima Quinta) e se esforçou para manter seu status sênior entre os príncipes do Delta.

Em 656 a.C., Psamético I conseguiu unir todo o Egito sob seu governo e destronar seus concorrentes entre os príncipes do Delta. Nem fontes egípcias nem clássicas atestam qualquer rivalidade entre a Assíria e o Egito.

Apenas uma vez o Egito é mencionado nas fontes assírias posteriores: o rei Giges da Lídia é acusado de ter “enviado suas tropas para ajudar Tushamilki/Pishamilki, rei do Egito, que havia se livrado do meu jugo”. O dito apoio militar não passa de um envio de mercenários da Lídia para o Egito, o que está de acordo com o relato de Heródoto (11,152) de que Psamético I alistou a ajuda de mercenários jônios e cários, e com a menção em Jeremias (46,9) de “homens de Lud” no exército egípcio.

O início das hostilidades entre Giges e a Assíria deve, ao que parece, ser datado em meados da década de 650 – que é aparentemente quando Psamético I se libertou do jugo assírio.

As fontes assírias, egípcias e gregas não nos dizem nada sobre as relações hostis entre a Assíria e o Egito; parece que a retirada assíria ocorreu após a conclusão de um acordo com Psamético I, protegido da Assíria que se tornou aliado.

O próximo testemunho que chegou até nós sobre as relações entre a Assíria e o Egito é de um período posterior: em 616 a.C., o exército egípcio foi enviado para ajudar o rei Sin-shar-ishkun da Assíria, então em guerra com o exército babilônico.

Duas questões surgem agora: Quando os egípcios entraram na Ásia e quando o Egito se tornou tão próximo da Assíria a ponto de estar disposto a enviar seu exército para ajudar seu aliado gravemente sitiado?

Essas questões não têm respostas inequívocas. Ao que parece, a entrada egípcia na Ásia não foi uma conquista forçada, mas parte de uma retirada assíria por acordo, com o Egito (gradual ou rapidamente) tomando o lugar da Assíria nas áreas desocupadas. Parece que a aliança entre os dois poderes se tornou especialmente próxima durante o reinado de Sin-shar-ishkun, depois que ele esmagou a rebelião de seu general (fim do ano 623 a.C.), e ele estava disposto a pagar um alto preço territorial no oeste para superar o severo perigo que o ameaçava e a seu reino no sul e leste.

A aliança renovada entre a Assíria e o Egito pode, portanto, ter sido concluída no final da década de 620; isso, por sua vez, significaria que somente então a Assíria recuou (e o Egito entrou) nos territórios além do Eufrates.

Heródoto afirma que Psamético I sitiou Ashdod (Azoto) por 29 anos antes de finalmente tomar a cidade (11.157).

Tadmor tentou interpretar esta passagem como significando que o cerco ocorreu, e a cidade caiu, em 635 a.C., o vigésimo nono ano do reinado de Psamético I. Ele então concluiu que a Assíria havia recuado da costa da Filisteia antes mesmo de 635 a.C.

Esta suposição, no entanto, não é compatível com o significado da declaração de Heródoto (‘De todas as cidades, aquela Azoto, até onde sabemos, resistiu por mais tempo diante do cerco’ 35); aqueles estudiosos que ligaram os 29 anos mencionados neste contexto com o comentário anterior de Heródoto (1,106) sobre os 28 anos de governo cita na Ásia parecem estar corretos.

Parece que os ’29 anos de cerco’ surgiram da especulação cronológica da parte de Heródoto: de acordo com seus cálculos, o cerco começou quando Psamético I partiu para encontrar os citas na costa da Filisteia e os persuadiu a recuar (I, I 05), e terminou imediatamente após a derrota cita pelos medos 28 anos depois, pondo fim ao seu governo na Ásia. Parece que esta não é uma data que permita uma datação cronológica exata. Aparentemente, Heródoto apenas desejava afirmar que Asdode foi conquistada após a derrota cita por Ciaxares, ou seja, no final do século VII a.C.

Para concluir, parece que nenhum elemento colocou em risco o controle assírio da Síria e da Palestina antes da morte de Assurbanípal e da eclosão da revolta na Babilônia, na década de 620, e que o governo assírio continuou até aquela época na Palestina também.

Embora o Egito possa ter alcançado uma posição na costa dos filisteus em algum período anterior, isso não pode ser efetivamente provado. Nem sabemos se o Egito foi forçado a conquistar alguns dos lugares evacuados pela Assíria, pois pode muito bem ter havido resistência (como a de Ashdod) ou mesmo revoltas no estágio crítico da mudança de soberania.

Em princípio, a retirada assíria foi implementada em coordenação com o Egito, que poderia, de todos os pontos de vista possíveis, ser considerado uma espécie de “estado sucessor” para os territórios desocupados pela Assíria.

Do que pode ser concluído que Josias foi um vassalo da Assíria durante a primeira metade de seu reinado, e que, mesmo depois de se libertar do jugo assírio, ele se tornou (pelo menos nominalmente) um vassalo do Egito.

No entanto, o Egito estava amarrado a obrigações naquela época, tanto porque tinha que garantir seu controle da costa e das rotas de transporte marítimo que haviam caído em suas mãos, quanto por causa de seu compromisso de ajudar a Assíria em troca dos territórios que havia obtido a oeste do Eufrates.

Nem devemos esquecer o padrão de governo egípcio que data do período do Novo Império, quando a ênfase principal era colocada no controle dos distritos do vale e da costa, enquanto as áreas montanhosas eram consideradas de importância secundária.

Este estado de coisas deu a Josias considerável liberdade de ação nas regiões internas do país, e não há dúvidas de que ele explorou essa liberdade para reunir forças, unificar e cristalizar seu reino (a reforma do culto desempenhou um papel importante nessas tendências) e, até certo ponto, até mesmo expandir suas fronteiras.

Na minha opinião, a submissão do reino à Assíria durante a primeira metade do reinado de Josias, e a subordinação formal ao Egito durante a segunda metade, explicam a maneira como o autor do livro dos Reis apresentou a relação do Reino de Judá com a Assíria e o Egito.

De acordo com a descrição naquele livro, Judá se libertou do jugo assírio após a campanha de Senaquerib, e não se tornou um vassalo egípcio até depois da morte de Josias.

Esta apresentação extraordinária, tão diferente da realidade histórica do século VII a.C., é (entre outros motivos) destinada a mascarar o fato de que Josias, o mestre de lealdade incomparável a Deus e seus preceitos (2 Rs 23,25), foi subordinado a governantes estrangeiros durante a maior parte de seus dias – uma subordinação percebida na perspectiva deuteronomista como inadequada para o rei justo.

Ao selecionar apenas material específico, o autor foi capaz de apresentar uma imagem diferente do passado, retratando Josias como tendo agido independentemente de ditames estrangeiros durante todo o seu governo e tendo sido capaz de implementar as reformas necessárias sem a intervenção de um elemento estrangeiro.

 

As circunstâncias da morte de Josias

Nas discussões sobre a relação entre o reino de Judá e o Egito, um papel importante é ocupado pela morte de Josias perto de Meguido em 609 a.C.

Uma grande quantidade de literatura foi escrita sobre este assunto, com a principal diferença de opinião centrada na questão de dar crédito à versão relatada em 2 Crônicas 35,20-24, apesar de seu desvio drástico daquela dada em 2 Reis 23,29-30.

Em 609 a.C., o faraó Necao II (610-595 a.C.) lançou uma campanha para o norte da Síria, em um esforço para ajudar seu aliado Assur-uballit II, que estava cercado pelos babilônios e medos e prestes a perder seu último ponto de apoio na Mesopotâmia ocidental.

GRABBE, L. L. (ed.) Good Kings and Bad Kings: The Kingdom of Judah in the Seventh Century BCE. London: T&T Clark, 2005Muitos estudiosos tendem a aceitar a hipótese de que, em seu caminho para o norte com seu exército, Necao II passou pela Palestina e encontrou Josias perto de Meguido.

Neste contexto, deixe-me colocar uma questão até agora não suficientemente discutida: Por que o faraó e seu exército tiveram que passar pela Palestina em seu caminho para o norte da Síria? Por que Necao II não adotou as táticas dos reis egípcios na época do Reino Novo, que frequentemente navegavam até a costa libanesa e lançavam campanhas de lá, via Nahr el-Kebir (Eleutheros), para o Orontes?

Desta forma, Necao II poderia ter ido por mar até a costa libanesa e partido de lá por terra, por meio de sua base militar em Ribla no Orontes, para o norte da Síria, encurtando o tempo de viagem e evitando esgotar suas forças em uma extenuante marcha forçada da fronteira egípcia para o campo de batalha perto do Eufrates.

Neste contexto, notamos que o Egito controlou a Fenícia durante os anos anteriores à campanha de 609 a.C. Um indicativo do controle do Egito sobre a costa libanesa naquela época é uma estela datada do quinquagésimo segundo ano de Psamético I (612 a.C.), que registra o enterro de um Ápis e menciona o imposto pago pelos reis fenícios ao Egito e a nomeação de um inspetor egípcio sobre eles. Uma estela de Psamético I foi descoberta em Arwad; um fragmento de uma inscrição, talvez datada do reinado daquele rei, foi encontrada em Tiro; e uma estela de Necao II foi encontrada em Sídon. A inscrição de Nabucodonosor de Wadi Brisa menciona “o inimigo maligno”, sem dúvida o rei do Egito, que controlava as montanhas do Líbano até sua expulsão pelo governante babilônico.

Parece-me que a razão pela qual Necao II escolheu viajar pela Palestina está na transferência de poder que ocorreu no Egito não muito antes.

Psamético I morreu entre julho e setembro de 610 a.C., e 609 foi o segundo ano de reinado de seu sucessor, Necao II. W. Helck (Die Beziehungen Agyptens zu Vorderasien im3. and 2. Jahrtausend v. Chron. Wiesbaden: Otto Harrassowitz, 1971) destacou que os oficiais egípcios costumavam fazer um juramento de fidelidade ao faraó reinante; quando o rei morria, o juramento se tornava inválido, e os oficiais tinham que fazer um juramento ao seu sucessor.

Em vista desse fato, Helck levantou a hipótese de que durante o período do Reino Novo os reis cananeus também tinham que jurar fidelidade a cada novo governante, e deu isso como explicação para campanhas feitas por vários reis egípcios a Canaã.

No primeiro ano de seu governo Necao II aparentemente veio à Palestina em 609 a.C. por esse mesmo motivo: para administrar um juramento de fidelidade a seus vassalos, cujo juramento anterior havia se tornado inválido com a morte de seu pai.

Não há, então, necessidade de assumir que todo o exército egípcio passou pela Palestina a caminho do norte. É até provável que Necao II tenha chegado à Palestina por mar a caminho da costa libanesa, e tenha parado lá apenas brevemente.

Além disso, pode-se perguntar se ele não aproveitou a oportunidade para alistar um exército dentre seus vassalos e adicioná-los à força expedicionária egípcia em seu caminho para o norte. Deve-se lembrar que, em vários momentos durante o tempo do Reino Novo, forças auxiliares foram alistadas dentre os vassalos, a fim de auxiliar o exército egípcio em suas guerras. Este também pode ter sido o caso em 609 a.C.: os vassalos de Necao podem ter recebido ordens de enviar unidades do exército para ajudar na campanha para o norte.

É contra esse pano de fundo que devemos reexaminar a descrição bíblica dos eventos de 609 a.C.

Deixe-me primeiro citar a passagem de 2 Reis 23,29: ‘Em seus dias, o faraó Necao, rei do Egito, subiu ao rei da Assíria até o rio Eufrates. O rei Josias foi encontrá-lo; e o faraó Necao o matou em Meguido, quando o viu’.

O versículo abre com a palavra bymyw (‘em seus dias’) – uma fórmula de abertura editorial típica que introduz um relato cronístico (cf. 1 Reis 16,34; 2 Reis 8,20; 24,1).

O relato que se segue não dá a menor sugestão de uma batalha. Portanto, é possível que Josias tenha se reportado ao governante egípcio, seu senhor, em Meguido, para lhe fazer um juramento de fidelidade e que, na situação crítica da iminente primeira campanha do novo governante ao norte, Josias tenha sido suspeito ou acusado de deslealdade e morto no local.

Imediatamente depois, Necao II continuou sua campanha para o norte, e Joacaz, filho de Josias, foi coroado em Judá (2 Rs 23,30).

No entanto, embora tenha falhado em sua campanha contra a Babilônia e tenha sido forçado a recuar da Mesopotâmia, Necao II ainda estava no controle absoluto de Judá: ele foi capaz de prender o governante judaíta que apareceu diante dele em Ribla para fazer um juramento de fidelidade e obter a permissão de Necao para governar em Judá; de coroar outro governante (Joaquim) de acordo com sua própria escolha; e de impor um imposto pesado sobre o reino (2 Rs 23,31-35).

Durante a implementação dessas medidas, Necao II permaneceu em Ribla, na Síria, e, até onde sei, não precisou de meios militares para impor sua vontade.

Isso é suficiente para confirmar a conclusão de que, já nos dias de Josias, Judá era pelo menos formalmente subordinado ao Egito, e que o assassinato de Josias tinha a intenção de intimidar os judaítas a obedecerem as instruções do governante egípcio.

Josias talvez tenha tentado mudar o status quo e se rebelar contra o Egito? Ele aproveitou a transferência de poder e a situação crucial de 609 a.C. para atacar o novo governante quando ele passou pela Palestina?

Esta é a conjectura feita por vários estudiosos, que rejeitaram a evidência dada em Reis e preferiram o relato detalhado em 2 Crônicas 35,20-24.58. Não analisarei esse relato problemático, a ampla gama de opiniões expressas a respeito dele ou os complexos problemas historiográficos que ele levanta.

Parece-me que toda a descrição nada mais é do que uma interpretação especulativa e abrangente dada pelo autor de Crônicas à breve e pouco esclarecedora descrição de Reis, em uma tentativa de adaptá-la à sua própria doutrina especial de retribuição, ao mesmo tempo em que integra descrições das mortes de dois governantes – Acab, rei de Israel (1 Reis 22,29-36), e Ocozias, rei de Judá (2 Reis 9,27-28) – que ele encontrou em sua fonte, o livro de Reis.

É importante enfatizar que a suposição de uma batalha perto de Meguido levanta uma série de dificuldades.

Por que o governante de um pequeno reino escolheria lutar contra o governante de uma grande potência em batalha em campo aberto, em circunstâncias que dariam ao exército maior e mais forte todas as vantagens possíveis? Por que ele se posicionaria em um lugar tão longe de seu reino, o que não lhe dava nenhuma vantagem? Além disso, se Josias era um governante tão forte a ponto de ousar se apresentar para a batalha em campo aberto contra o rei do Egito, por que seu reino se rendeu incondicionalmente tão logo após sua morte, permitindo que Necao II assumisse o controle absoluto? Por que o rei Joacaz de Judá não confiou em suas fortalezas e seu exército, naqueles distritos onde o exército egípcio era obviamente fraco e onde ele poderia ter desfrutado de uma vantagem significativa sobre seu rival – especialmente porque o rei do Egito tinha acabado de falhar em sua campanha e estava sendo duramente pressionado pelos babilônios? Por que ele se reportou, por vontade própria, à distante Ribla, embora pudesse facilmente ter adivinhado a reação do rei do Egito (cf. Jr 22,10-12)?

Em vista dessas considerações, parece preferível adotar o breve e despretensioso testemunho do livro dos Reis, em vez da descrição detalhada e colorida do livro das Crônicas, e assumir que Necao II matou Josias quando ele apareceu diante dele, talvez para fazer um juramento de fidelidade.

O pano de fundo para esse feito é desconhecido, e qualquer hipótese possível a esse respeito (insatisfação com a independência demonstrada pelo rei de Judá e evidenciada por suas reformas; sua atividade em Samaria, fora das fronteiras de seu reino; sua recusa em enviar um exército para auxiliar o rei do Egito em sua campanha) permanecerá sem comprovação.

 

Josias na historiografia e na realidade histórica

O retrato do reinado de Josias, conforme refletido nesta discussão [Josiah and the Kingdom of Judah], está muito distante da descrição daqueles anos, conforme refletido no livro dos Reis, e não menos distante do esboço de sua época apresentada na historiografia moderna.

Em contraste total com a realidade histórica, o autor do livro dos Reis apresentou a revolta de Ezequias contra a Assíria como um sucesso impressionante, e a campanha assíria em Judá como tendo terminado em fracasso e na retirada do governante assírio, após a intervenção dramática do Deus de Israel.

Para reforçar essa imagem da revolta como um sucesso, o autor omitiu qualquer menção à Assíria daquele ponto em diante: qualquer um que lesse a história de Manassés, Amon e Josias no livro dos Reis, e não encontrasse ali nenhuma sugestão da dominação assíria, teria que concluir – em vista da sequência interna de eventos do livro dos Reis – que Judá caiu sob o jugo da Assíria no reinado de Acaz e foi libertado durante o de Ezequias.

Dessa forma, o autor do livro dos Reis evitou ter que descrever a realidade externa nos dias de Josias – uma realidade na qual Judá foi subordinado a um grande poder por muitos anos e, após a retirada desse poder, tornou-se subordinado (pelo menos nominalmente) a outro. Uma realidade muito fora de sintonia com a imagem do rei justo.

Em vez disso, o autor se concentrou em assuntos internos e descreveu em grandes detalhes a implementação das reformas, pelas quais todos os cultos estrangeiros foram erradicados, deixando apenas a adoração sagrada do Deus de Israel, centralizada no Templo em Jerusalém.

Somente no relato da morte de Josias, e mesmo assim com pressa deliberada, o autor fez alguma referência aos assuntos estrangeiros de Judá.

Daquele ponto em diante, os grande poderes e a política externa assumem um papel central em sua obra. De acordo com a descrição do livro dos Reis, Judá foi subordinado ao Egito durante o reinado de um rei pecador (Joacaz), assim como havia se tornado submisso à Assíria sob outro rei pecador (Acaz), e havia conquistado sua liberdade sob um rei justo (Ezequias).

Nem deveríamos nos surpreender que todos os últimos reis de Judá, que foram dominados por potências estrangeiras (primeiro o Egito, depois a Babilônia), foram descritos no livro dos Reis como tendo feito “o que era mau aos olhos do Senhor”, uma frase que pode não representar o estado real das coisas em seu tempo.

As lacunas no livro dos Reis foram preenchidas pelas obras de vários estudiosos; as múltiplas nuances dessas obras foram repetidamente apontadas no curso desta discussão.

Muitos estudiosos presumiram que Josias libertou seu reino do jugo assírio nos estágios iniciais de seu reinado, desfrutou de muitos anos de governo independente e expandiu seu reino sobre vastas áreas. Alguns chegaram a assumir que ele controlava a maior parte do território israelita e até mesmo atribuíram a ele a tendência de restaurar o reino de Davi à sua antiga glória.

Em contraste com isso, tentei mostrar que Josias foi submisso à Assíria durante a primeira parte de seu reinado, e que, após a retirada assíria, o Egito entrou imediatamente em cena e assumiu os territórios da Assíria e, em uma extensão não insignificante, seu status.

A ideia de facções rivais pró-assírias e pró-egípcias operando em Judá na época de Josias parece, na minha opinião, estar divorciada da realidade e baseada em uma analogia errônea com o estado de coisas em um período posterior, quando a Babilônia e o Egito estavam lutando pelo controle da Palestina.

Na época de Josias, a Assíria e o Egito eram aliados, não rivais. Consequentemente, pode ser possível falar de círculos nacionalistas clamando por ousadia política, em oposição a círculos mais conservadores que, à luz das lições aprendidas com a campanha de Senaquerib, defendiam o compromisso com as grandes potências e a contenção de medidas que pudessem colocar em risco o bem-estar do reino; mas certamente não é correto falar de orientações opostas entre Assíria e Egito.

Não sabemos se o Egito firmou ou não uma posição na costa filisteia antes mesmo da retirada assíria da Palestina. Em todo caso, a principal mudança no estado de coisas na área ocorreu somente depois que a Assíria falhou em seus esforços para suprimir a revolta babilônica, que começou em 626 a.C., e após a eclosão da guerra civil em 623 a.C.

Após esses desenvolvimentos, a Assíria recuou de Eber-Nāri (‘Além do Rio’) e entregou esses territórios ao Egito em troca de ajuda militar. Nos anos subsequentes, o Egito se ocupou em reforçar seu status nas regiões evacuadas e deu assistência militar à Assíria. Portanto, Judá desfrutou de uma medida considerável de independência, apesar de ser formalmente subordinado ao Egito.

Josias aproveitou essa situação para implementar reformas abrangentes em seu reino, focadas na extirpação de cultos “estrangeiros” e na concentração da adoração no Templo em Jerusalém. Nisso, ele foi auxiliado pelo despertar da consciência nacionalista em círculos extensos por todo o reino, embora outros círculos oposicionistas sem dúvida tenham feito tudo o que estava ao seu alcance para impedir a implementação das reformas.

Algum tempo depois, o reino de Josias expandiu-se para o norte; ele capturou Betel, o centro de culto que tinha sido o grande rival de Jerusalém durante os dias do reino de Judá, destruiu o local de adoração e anexou a área ao seu reino.

Ele também pode ter estendido seu governo para Samaria, fora do alcance dos interesses políticos imediatos do Egito, no qual não havia um corpo bem formado para assumir o controle e concentrar o poder independente após a retirada assíria.

A extensão da atividade de Josias na antiga província assíria de Samaria não é conhecida. No entanto, ele certamente não ousou anexar toda a região, em vista da esperada resposta egípcia a tal feito, e por causa das grandes dificuldades previstas na tentativa de assimilar sua população em seu reino.

Ao longo de sua história, Israel e Judá foram dois reinos diferentes, e após sua conquista, Samaria se tornou uma província assíria. Sua anexação teria sido considerada um ato de agressão e a assimilação de sua vasta população provavelmente estava além do poder do pequeno reino de Judá.

Josias não conseguiu se expandir para o oeste, devido ao perigo de conflito com o Egito, bem como ao crescimento e fortalecimento de seu vizinho Ekron, que se tornou uma espécie de estado-tampão entre a área costeira e o reino de Judá.

A extensão do reino de Judá no tempo de Josias é refletida nas listas de cidades de Judá e Benjamim no livro de Josué. Essas listas, seu significado e data, constituíram um ponto de partida para as discussões na segunda parte deste estudo.

As informações à nossa disposição sobre a época de Josias, extraídas das descrições dos livros de Reis e Crônicas, são surpreendentemente limitadas e não nos permitem determinar a extensão de seu reino, muito menos sua força e poder econômico.

A datação das listas de cidades no tempo de Josias e a integração da data com os dados arqueológicos sobre a extensão do assentamento, sua força e implantação em Judá no sétimo século a.C. fornecem o ponto de apoio tão vital para nossa discussão.

A combinação de informações textuais e arqueológicas nos permite afirmar que, em todos os assuntos relacionados à extensão de suas fronteiras, sua força de assentamento e poder econômico, o reino de Josias era consideravelmente mais fraco do que o reino que existia no século VIII a.C.

Os resultados destrutivos da campanha de Senaquerib permaneceram evidentes mesmo nos últimos anos do reinado de Josias, quase um século após o fim da campanha. De fato, não poucos locais que foram destruídos em 70 l a.C. e seus habitantes exilados ainda estavam instáveis.

O período da pax Assyriaca permitiu que Judá se recuperasse gradualmente, restaurasse alguns de seus assentamentos e fortalecesse sua economia. Mas não apenas Judá desfrutou de um período de tranquilidade e prosperidade nessa época. O mesmo aconteceu com seus vizinhos orientais e ocidentais, cuja expansão exerceria considerável influência no destino de Judá nos últimos estágios de sua existência.

Josias desfrutou de um período prolongado de paz durante seu governo; após a retirada assíria, ele tomou medidas enérgicas para a estabilização de seu reino, e talvez também para sua expansão para o norte. Não há dúvidas de que essas ações foram acompanhadas por uma explosão de entusiasmo popular e o despertar de ambições nacionalistas, juntamente com esperanças de expansão e prosperidade.

Na realidade, no entanto, as coisas eram diferentes: o Egito fortaleceu sua presença na região, e a atividade de Josias dentro de seu reino e além de sua fronteira norte irritou a grande potência.

Os detalhes das ocorrências não podem ser precisamente reconstruídos, nem podemos afirmar por que Necao II decidiu se livrar de Josias quando este apareceu diante dele em Meguido. Em qualquer caso, a morte de Josias esfriou as esperanças recentemente despertadas, e a intervenção egípcia nos assuntos internos do reino de Judá se tornou um fato estabelecido.

Teria sido possível esperar grandes coisas de Josias, se ele não tivesse sido morto antes do tempo?

Não podemos reconstruir eventos históricos que não ocorreram de fato; qualquer discussão sobre o que poderia ter sido é necessariamente hipotética. Pode-se, no entanto, ver que as esperanças de grande expansão e glória não poderiam ter sido realizadas nas condições prevalecentes no final do século VII a.C.

Em poucos anos, a Babilônia tomaria o lugar da Assíria e do Egito como o poder governante na área, e as tentativas dos reis de Judá de implementar uma política independente levaram Judá diretamente à destruição e ao exílio.

Parece que muitos estudiosos foram enganados pela falsa semelhança entre o reinado de Josias e a descrição bíblica dos dias da monarquia unida [sob Davi e Salomão]. Ao enfatizar as esperanças e anseios baseados no suposto passado distante, eles conseguiram reconstruir uma realidade concreta na qual essas esperanças e anseios foram alcançados de fato.

É importante lembrar que o período em que Josias viveu e agiu foi diferente em todas as características daquele de seus antepassados, pois suas mãos estavam constantemente atadas e sua capacidade de realizar suas ambições era limitada. Consequentemente, não há base para comparar as realizações alcançadas em seus dias com a realidade anterior.

Minhas conclusões históricas estão de acordo com a falta de material descritivo sobre conquistas e expansões na Palestina sob Josias – uma falta que tem intrigado e deixado perplexos muitos estudiosos, e tem gerado muitas e variadas explicações.

Até mesmo o argumento em favor de uma “conspiração do silêncio”, supostamente formada sobre a morte de Josias, parece infundado para mim. Aqueles que leem a descrição entusiástica e pró-Josias no livro dos Reis ficarão naturalmente surpresos com o destino do rei justo; aqueles que apresentam um quadro histórico que enfatiza as grandes realizações de Josias em contraste com a fraqueza de seus sucessores não ficarão menos surpresos com a quase ausência de qualquer reflexão sobre sua morte nas palavras de escribas e profetas ativos na época.

De fato, o argumento da “conspiração do silêncio” acima mencionado é baseado principalmente na suposição de que a morte do rei foi um evento fatídico na história do reino de Judá, e que lançou o reino de imensas alturas para abissais profundezas.

A apresentação aqui de um quadro histórico diferente olha esse “silêncio” de seus contemporâneos sob uma luz diferente.

A tristeza pela morte repentina do rei foi certamente pesada, e o sentimento de crise imediata certamente não foi menos agudo. No entanto, é duvidoso que esse episódio tenha alterado drasticamente o curso dos eventos; e qualquer um que observasse o evento de uma perspectiva um pouco posterior pode nem mesmo tê-lo percebido como fatídico.

Parece que a impressão causada nos contemporâneos pelo assassinato de Josias foi menos profunda do que a assumida pelos estudiosos modernos e, por essa razão, foi tão esporadicamente mencionada em obras que apareceram depois da época de Josias.

O autor do livro dos Reis enfatizou o escopo das ações de Josias nos campos da religião e do culto, o que lhe rendeu uma avaliação favorável sem precedentes (provavelmente feita por um editor posterior):

‘Não houve antes dele rei algum que se tivesse voltado, como ele, para Iahweh, de todo o seu coração de toda a sua alma e com toda a sua força, em toda a fidelidade à Lei de Moisés; nem depois dele houve algum que se lhe pudesse comparar’ (2 Rs 23,25).

Estudando a história de Josias de uma perspectiva histórica geral, parece que essa avaliação é aceitável.

Embora suas modestas realizações políticas e territoriais tenham sido eliminadas por sua morte, suas ações nas áreas da religião e do culto permaneceram gravadas nos corações de seus apoiadores dentre os membros da escola deuteronomista por gerações, e exerceram considerável influência no desenvolvimento do judaísmo durante o exílio babilônico e o período pós-exílico.

Bons reis e maus reis: Judá no século sétimo

Publiquei no post anterior um capítulo de GRABBE, L. L. (ed.) Good Kings and Bad Kings: The Kingdom of Judah in the Seventh Century BCE. London: T&T Clark, 2005, 384 p. – ISBN 9780567082725.

Este livro é resultado do sétimo encontro do Seminário Europeu de Metodologia Histórica, ocorrido em 2002. Este encontro tratou do reino de Judá do século VII a.C., e, em especial, do reinado de Josias. Coloco aqui o sumário do volume e uma lista dos colaboradores.GRABBE, L. L. (ed.) Good Kings and Bad Kings: The Kingdom of Judah in the Seventh Century BCE. London: T&T Clark, 2005, 384 p.

Parte I: Introdução

Lester L. Grabbe – Introdução

 

Parte II: Artigos

Rainer Albertz – Por que uma reforma como a de Josias deve ter acontecido

Ehud Ben Zvi – Josias e os livros proféticos: algumas observações

Philip R. Davies – Josias e o livro da lei

Lester L. Grabbe – O reino de Judá da invasão de Senaquerib à queda de Jerusalém: se nós tivéssemos apenas a Bíblia…

Christof Hardmeier – O rei Josias no clímax da história deuteronômica (2 Rs 22-23) e o documento pré-deuteronômico de uma reforma de culto no local de residência (23,4-15): crítica de fontes, reconstrução de pré-estágios literários e a teologia da história em 2 Reis 22-23

Ernst Axel Knauf – Os gloriosos dias de Manassés

Nadav Na’aman – Josias e o reino de Judá

Francesca Stavrakopoulou – Manassés na lista negra

Marvin A. Sweeney – O rei Manassés de Judá e o problema da teodiceia na História Deuteronomista

Christoph Uehlinger – Houve uma reforma do culto sob o rei Josias? O caso de um mínimo bem fundado

David A. Warburton – A importância da arqueologia do século sétimo

 

Part III: Conclusões

Lester L. Grabbe – Reflexões sobre a discussão

 

Onde estavam os colaboradores em 2005? Nos links há informações atualizadas sobre eles.

Rainer Albertz, Professor de Antigo Testamento na Westfilische Wilhelms-Universitat in Miinster, Alemanha.

Ehud Ben Zvi, Professor de História e Estudos Religiosos na Universidade de Alberta, Canadá.

Philip R. Davies, Professor de Estudos Bíblicos na Universidade de Sheffield, Reino Unido.

Lester L. Grabbe, Professor de Bíblia Hebraica e Judaísmo Primitivo na Universidade de Hull, Reino Unido.

Christof Hardmeier, Professor de Antigo Testamento na Universidade de Greifswald, Alemanha.

Ernst Axel Knauf, Professor de Bíblia Hebraica e Arqueologia Bíblica na Universidade de Berna, Suíça.

Nadav Na’aman, Professor de História Bíblica no Departamento de História Judaica na Universidade de Tel Aviv, Israel.

Francesca Stavrakopoulou, Bolsista de Teologia na Universidade de Oxford, Reino Unido.

Marvin A. Sweeney, Professor de Bíblia Hebraica na Escola Claremont de Teologia e Professor de Religião na Claremont Graduate University, Estados Unidos.

Christoph Uehlinger, Professor de História das Religiões na Universidade de Zurique, Suíça.

David A. Warburton, Pesquisador Bolsista na Universidade de Aarhus, Dinamarca.

Reforma atribuída a Josias teria sido proposta só no pós-exílio

A verdadeira reforma, de fato, ocorreu quase dois séculos depois de Josias. Mas, como frequentemente acontece, a história foi reescrita para dar a essa reforma a autenticação necessária. O século V a.C. fornece um contexto plausível tanto para a “descoberta” do livro do Deuteronômio quanto para a história da reforma de Josias. 

Esta é a proposta de Philip R. Davies, da Universidade de Sheffield, Reino Unido, no texto “Josias e o Livro da Lei” que pode ser lido a seguir.

O texto é: DAVIES, P. R. Josiah and the Law Book. In: GRABBE, L. L. (ed.) Good Kings and Bad Kings: The Kingdom of Judah in the Seventh Century BCE. London: T&T Clark, 2005, p. 65-77. Este livro é resultado do sétimo encontro, ocorrido em 2002, do Seminário Europeu de Metodologia Histórica.

Observo que neste mesmo volume, nas páginas 27-46, Rainer Albertz, da Westfälische Wilhelms-Universität de Münster, Alemanha, se contrapõe a Philip R. Davies com o texto “Why a Reform Like Josiah’s Must Have Happened” [Por que uma reforma como a de Josias deve ter acontecido].

Ele diz, no final de seu texto: “Philip Davies deve ser elogiado por não apenas negar a reforma josiânica e deslocar o livro de Deuteronômio para um período posterior, mas também por tentar dar razões para uma datação no século V a.C. Mas, na minha opinião, a evidência dada por ele é bem menos convincente do que a da hipótese tradicional” [da existência de uma reforma de Josias no século VII a.C.].

As ambições de Josias

As várias questões históricas em torno de Josias foram muito bem abordadas em outras partes deste volume, e minha própria contribuição é concebida amplamente como metodológica, na qual me envolverei com dois dos meus colegas no Seminário [Nadav Na’aman e Rainer Albertz].

Meu ponto de partida é o estudo de Nadav Na’aman sobre a política do reino de Judá sob Josias (Na’aman 1992), que oferece uma crítica muito boa da pesquisa sobre o reinado de Josias, resumida como segue.Philip R. Davies (1945-2018)

A primeira parte do estudo de Na’aman argumenta que as listas de cidades de Judá e Benjamim em Josué 15 e 18 refletem, apesar de algum aprimoramento editorial, a situação em Judá no século VII a.C.

A segunda parte lida com a cronologia do declínio do poder assírio, muitas vezes pensado como tendo ocorrido repentinamente na parte inicial do reinado de Josias, levando a uma política de expansão judaica sobre o território adjacente. Na’aman mostra que esse cenário proposto é improvável. Pelo contrário, os assírios parecem ter cedido o controle sobre a Palestina de uma forma mais ou menos ordenada ao Egito, de modo que o rei judaíta teve pouca ou nenhuma oportunidade para o exercício da independência política. Em suma, não havia vácuo de poder.

Em conexão com a morte de Josias, Na’aman argumenta que Necao II marchou pela Palestina (em vez de levar seu exército para um porto fenício, o procedimento mais usual) não para lutar contra a Babilônia, mas para receber o juramento de lealdade dos reis locais que precisava ser renovado na ascensão de um novo faraó soberano. Observando que nada é dito em 2 Reis sobre uma batalha do faraó contra Josias, Na’aman deduz que Josias não morreu em batalha, mas por assassinato ou execução por algum motivo, possivelmente uma suspeita de deslealdade por parte de Necao II. Assim, a visita de Josias a Meguido pode ter sido em resposta a uma convocação para jurar lealdade pessoalmente diante do novo faraó.

O que pode ter provocado a execução de Josias? Embora Na’aman admita que o controle efetivo da Palestina passou para o Egito à medida que o poder assírio declinava, Josias pode, no entanto, ter desfrutado (ou sentido que tinha) alguma liberdade para unificar e cristalizar (1992: 41) seu reino, enquanto os esforços dos egípcios estavam, como de costume, concentrados nos distritos costeiros e nos vales. Apenas uma expansão limitada de fronteiras, no entanto, poderia ter sido sequer contemplada, muito menos alcançada; nenhum grande projeto para ganhos territoriais extensos.

Esta reconstrução dá sentido a uma morte que, de outra forma, como Miller e Hayes (1986: 402) observam, permanece um mistério. Enquanto 2 Reis 23,29 possivelmente sugere confronto militar, o confronto militar não é explicitamente mencionado. O relato da morte de Josias é vago, até mesmo misterioso e talvez isto seja deliberado. De qualquer forma, a sugestão de uma derrota militar permite que 2 Crônicas 35,20-24 mostre o rei piedoso morrendo de ferimentos de batalha em Jerusalém, por sua vez encorajando a maioria dos estudiosos modernos a concluir que Josias foi para a batalha, embora os deixe confusos sobre os motivos de tal empreendimento suicida.

Mesmo que Na’aman não esteja correto sobre a maneira como Josias morreu, sua análise da situação política é bem fundamentada nas evidências. A expansão frequentemente afirmada de Judá sob Josias não ocorreu, e não poderia ocorrer. Declarações tais como “Ele [Josias] tentou restaurar o reino ou império de Davi em todos os detalhes” (Cross 1973: 283 ) Na’aman descarta como construídas sobre falsos fundamentos: não há, ele diz (1992: 44), fundamentos para a suposição de que Josias tentou conquistar todo o norte e impor suas reformas em todo o território da Palestina, uma conclusão já antecipada por alguns historiadores anteriores.

Permanece, no entanto, alguma evidência epigráfica aparente em contrário nas cartas de Arad e Mesad Hashavyahu. Os óstraca de Arad 1-18, datados do reinado de Josias ou seu sucessor, pertencem a uma coleção enviada a Eliashib, um comandante militar, e a maioria dá instruções para o fornecimento de tropas. No entanto, essas instruções não são necessariamente evidências do ressurgimento militar judaíta ou da refortificação judaíta de Arad. Sob a jurisdição egípcia, Josias teria tido permissão, ou foi obrigado, a assumir a responsabilidade de fornecer guarnições e trabalhadores agrícolas em áreas adjacentes, seguindo a prática refletida muito antes na correspondência de Tel el-Amarna. A evidência desses óstraca é inteiramente consistente com a prática egípcia conhecida durante seus períodos de governo sobre a Palestina e não contradiz a reconstrução de Na’aman.

A conclusão dos argumentos de Na’aman é que “a imagem do reinado de Josias, como refletida nesta discussão, está muito distante da descrição daqueles anos como refletida no livro dos Reis, e não menos distante do esboço de seu período apresentado na historiografia moderna”( Na’aman 1992: 55 ).

Isso aponta para um estado de coisas não desconhecido. Um retrato bíblico enganoso ainda mais distorcido pelas especulações da pesquisa bíblica, neste caso, a tese de um período áureo de reconstrução josiânica. Esse retrato tem que ser redesenhado — mas não apenas em relação à ambição ou realização territorial, mas também para outros aspectos de seu reinado. A apresentação de Josias em 2 Reis é, então, enganosa, e estudiosos modernos frequentemente têm ampliado a distorção (…)

A reforma de Josias

Agora, desejo pegar o bastão de Na’aman e correr um pouco mais com ele. O relato da reforma de Josias também pertence à idealização evidente em relação à sua ambição territorial? Na pesquisa moderna, a política assumida por Josias de expandir um Judá recém independente para um território anteriormente do reino de Israel é fundada, afinal, no relato de sua reforma religiosa. Ou, ao contrário, a reforma é comumente explicada como parte de suas medidas para sinalizar ou consolidar sua independência política.

Mas se essa independência nunca poderia ter sido alcançada, admitindo apenas, na melhor das hipóteses, uma modesta aquisição de território além da fronteira judaíta, então a explicação moderna dada para a reforma de Josias não se sustenta. De fato, ficamos confusos quanto ao que se pretendia alcançar. Reformas religiosas no início do reinado de um rei não são incomuns: elas servem para recomendar o novo monarca a seus súditos e à divindade. Mas essa reforma só foi empreendida quando seu reinado já estava bem adiantado.

O relato em 2 Reis não retrata de fato Josias como expandindo seu território. O relato toma o controle sobre o antigo reino de Israel como garantido, convenientemente apagando (do tempo de Ezequias em diante) qualquer indício de dominação assíria.

Na’aman sugeriu que Josias não poderia ter sido retratado como subserviente à Assíria porque ele era um rei justo, como Ezequias antes dele. Isso é plausível, e tanto Ezequias (2 Reis 18) quanto Josias são creditados com uma reforma religiosa. Mas, de acordo com o esquema de 2 Reis, qualquer bom rei seguindo um rei mau teria que empreender uma reforma religiosa e a liberdade da influência assíria é necessária para tornar isso plausível. Dada essa premissa teológica, não é realmente fácil de afirmar que algum rei realmente tenha cumprido o requisito deuteronomista.

A realidade histórica da resistência de Ezequias, como debatido em um seminário anterior (Grabbe [ed.] 2003), é que ele perdeu a maior parte de seu território e pagou Senaquerib com uma grande fortuna. O simples fato de Jerusalém não ter sido tomada e de o rei assírio ter partido permitiu que Ezequias recebesse o posto de rei justo.

O caso de Josias é mais interessante. O que o qualificou para o mesmo status? Foi sua morte heroica? Ou foi, de fato, algum ato aparentemente piedoso? Josias foi creditado com uma reforma porque seu status a exigia, ou seu status foi motivado por algum ato deuteronomisticamente aprovado que ele realizou? Tentarei chegar a uma resposta, mesmo que provisória.

A história da reforma se divide em três episódios: a descoberta e verificação do livro da lei, seguida pela aliança (2 Rs 22,3-23,3); a destruição de objetos e lugares de culto (2 Rs 23,4-20); e um terceiro episódio (2 Rs 23,21-24), compreendendo a celebração da Páscoa e a remoção de certas práticas religiosas, com referência, mais uma vez, ao livro da lei.

Não está claro se o segundo episódio está intrinsecamente conectado ao primeiro. A estrutura literária de 2 Reis 22-23 permanece em disputa e há uma possibilidade de que o tema do livro da lei tenha sido inserido em uma narrativa de reforma ou uma narrativa de reforma tenha sido desenvolvida após uma história da descoberta de um livro da lei (ver Lohfink 1985).

Também deve ser notado que as atividades de reforma de Josias são confinadas a Judá e seus arredores, especialmente Betel, com exceção de um único breve aviso sobre o território de Samaria (2 Reis 23,19).

Que outras evidências temos para ambos? Deveríamos começar (como muitos estudiosos anteriores) buscando alusões a uma reforma ou ecos dela (ou ausência de ambos), em outros textos bíblicos. Portanto, a natureza do próprio livro de leis requer análise.

O impacto da reforma de Josias

Parece haver pouca ou nenhuma sugestão de qualquer reforma em outra literatura bíblica que possa ser atribuída ao período, por exemplo, os livros de Jeremias ou Sofonias. Albertz (1994: 200) aponta para Jr 8,7-8, sugerindo uma lei escrita nas mãos dos sacerdotes. Mas este texto não menciona nenhuma reforma. Ele também menciona Jr 22,15; 31,2-6 e 44,18 como oferecendo algum suporte para a ideia de um clima de reforma. Mas não há nenhuma indicação clara ou direta no livro do profeta Jeremias, que estava em Jerusalém naquela época, de que uma grande reforma religiosa tenha ocorrido.

Sweeney (2001: 129-313) analisou mais recentemente uma gama mais ampla de textos proféticos (Sofonias, Naum, Jeremias, Isaías, Oseias, Amós, Miqueias e Habacuque), concluindo que os profetas que eram contemporâneos de Josias abordaram ativamente aspectos de seu programa de reforma e frequentemente apontam para aspectos que não são evidentes no relato deuteronomista de seu reinado (p. 310).

O espaço não permite, infelizmente, uma avaliação detalhada da longa discussão de Sweeney. Mas aqueles textos que ele cita em apoio à centralidade de Jerusalém dificilmente indicam inequivocamente o tempo de Josias em vez de um período posterior. Vários textos parecem se referir a aspectos da reforma não mencionados em 2 Reis, enquanto outros textos parecem fornecer legitimação para a reforma, incluindo a reunificação dos reinos divididos, mas não necessariamente pressupõem isso.

Tendo avaliado as evidências e argumentos de Sweeney, não encontrei nenhuma referência convincente a uma reforma como descrita em 2 Reis 22-23, e muito pouco que sugira qualquer reforma religiosa neste momento, com uma exceção importante, à qual retornarei em breve e que não envolve um livro de leis.

Eu sustento, então, que não temos nenhum texto que, na ausência de 2 Reis 22-23, nos levaria a sugerir uma reforma religiosa. Isso deve ser exigido de qualquer corroboração independente. Alguns textos poderiam se referir a tal coisa, se tivesse acontecido, mas não implicam que tenha acontecido. Em suma, os argumentos de Sweeney dependem da suposição de que houve uma reforma, e não fornecem evidências adequadas de que houve uma. Tal ausência é significativa, se não conclusiva.

Esta conclusão nos leva, então, à questão do livro da lei. Como é bem sabido, De Wette pode ser creditado por ter nos legado a percepção de que o livro da lei de Josias era o livro do Deuteronômio, ou alguma forma dele. Esta identificação, feita em 1805, forneceu a ele uma chave importante para separar a lei das origens mosaicas do judaísmo e, assim, desenvolver uma reconstrução crítica da história da religião de Israel e Judá. Vale, no entanto, lembrar que De Wette considerava D como a última das fontes do Pentateuco, e que sua identificação do livro da lei com o Deuteronômio não foi universalmente aceita até hoje.

No entanto, não é preciso ser um gênio para ver que a identificação do Deuteronômio com o livro da lei josiânica é precisamente o que o autor de 2 Reis 22 pretende. A linguagem e a ideologia de 2 Reis são deuteronomistas, e mesmo antes da teoria de Martin Noth sobre a História Deuteronomista, em 1943, poder-se-ia perceber que qualquer relato deuteronomista da descoberta de um livro de leis apresentaria esse livro de leis como o Deuteronômio, em vez de, digamos, o Levítico ou o Código da Aliança do Êxodo.

O escritor da história do livro de leis deseja deixar claro que nos dias dos reis de Judá, o rolo do Deuteronômio, que havia sido perdido temporariamente, foi recuperado e usado como base para uma reforma religiosa, e com a autoridade total de um rei davídico, nada menos.

O comentário de Albertz de que só foi possível avaliar a reforma cultual de Josias com mais precisão quando a identidade do livro de leis que forneceu sua base foi estabelecida (1994: 198-99) erra o ponto. Sabemos qual era o livro de leis da história: mas não sabemos se a história de sua descoberta (ou alguma racionalização moderna, como uma apresentação deliberada do manuscrito logo após a composição) é verdadeira.

Nossa pergunta agora é: É provável uma origem do século VII a.C., ou talvez anterior, para Deuteronômio? É plausível um livro de leis da época josiânica?

Datando o livro da lei

O método de datação do Deuteronômio tem que prosseguir inteiramente com base em evidências internas, interpretadas à luz do pouco que sabemos da história de Judá, sua sociedade e sua religião, durante todo o período em que o Deuteronômio pode ter sido escrito, o que inclui o período monárquico, o período exílico e o período pós-exílico. Ao perguntar sobre a data do Deuteronômio, não estou tentando reabrir um debate: esse debate nunca parou. Obviamente, um breve artigo de discussão não pode cobrir a gama de temas e tópicos do Deuteronômio que precisariam ser abordados para chegar a uma teoria sólida. O seguinte representa uma pequena seleção dos tópicos mais significativos.

Antes de começar, é importante aceitar que muitas partes do livro podem ter se originado em um momento diferente da coleção de leis em si. A primeira introdução (1,1- 4,40 ) e os capítulos finais (27-34) são geralmente vistos como decorrentes de um processo de edição subsequente. Portanto, não devemos procurar datar o presumido livro de leis com base em qualquer material nesses capítulos. Também excluirei a segunda introdução em 4,44-11,32 e me concentrarei apenas no material legal, Dt 12-26.

Neste material jurídico essencial (por conveniência, o tratarei como um documento), encontramos um esboço de uma sociedade que reflete algumas circunstâncias históricas, mas que é essencialmente utópica e, em algumas partes, impraticável. Seu caráter utópico é expresso por meio de um cenário fictício do passado, no qual a utopia continua sendo uma possibilidade futura: quando Israel entrar na terra que Iahweh, seu Deus, está lhe dando como posse (Dt 12,1.9.10.20.29;13,13 etc.) .

A questão-chave para sua datação é: Qual é o propósito desse documento e em que tipo de contexto histórico e social sua definição de Israel teria algum significado ou impacto? Essas questões serão consideradas (muito brevemente) com relação à definição de Israel, as nações, a aliança, o papel e a função do rei e a centralização do culto.

A definição de “Israel”

No núcleo legal do Deuteronômio, Israel designa uma sociedade, e seus membros são chamados de “filhos de Israel” (benē yisrā’ēl). Em que consiste esse Israel não é especificado em muitos detalhes. A dupla menção da tribo de Levi pode indicar uma estrutura tribal para o todo, mas nenhuma outra tribo, ou conjunto de tribos, é mencionada, nem uma estrutura tribal tem qualquer papel organizacional. A menção repetida da terra implica uma dimensão territorial para Israel, e a aquisição desta terra é por conquista militar (Dt 19,1; 20,16). As leis relativas ao rei (Dt 17) também implicam um estado territorial. No entanto, o papel do monarca é de fato virtualmente cerimonial.

O Israel do Deuteronômio dificilmente é histórico. No período monárquico, existiam dois reinos, um chamado Judá e o outro às vezes conhecido como Israel. Os resultados da arqueologia recente da Idade do Ferro na Palestina central sugerem fortemente que as áreas mais tarde representadas pelos dois reinos passaram por assentamentos separados. A alegação bíblica de que eles foram unidos sob Davi e Salomão (e alguns anos sob Roboão) é igualmente sem qualquer suporte arqueológico e, de fato, há fortes indicações do contrário (veja Finkelstein e Silberman 2001 para uma visão geral e reconstrução arqueológica).

A noção de que Israel adquiriu a terra por meio da conquista e aniquilação dos ocupantes anteriores também é utópica. De fato, a apresentação de Israel como vindo de fora da terra contradiz as evidências arqueológicas, que não podem revelar nenhum elemento populacional não indígena na Palestina central nos séculos anteriores ao estabelecimento dos dois reinos (os filisteus não se estabeleceram nas terras altas).

Mas as utopias têm uma função. Não adianta descartá-las como ficção, como se isso resolvesse a questão mais importante. Em que contexto histórico um Israel tão utópico (algo maior que Judá) tem um papel? A noção de que Josias desejava reunir Judá e o antigo reino de Israel já foi discutida. É altamente improvável, mas um Israel previamente unido também é improvável. No próprio reino de Israel, antes de 722 a.C., tal ambição poderia ser alimentada e, de fato, muitos estudiosos consideraram o Deuteronômio um documento originalmente israelita, talvez trazido para o sul após a destruição de Samaria. Mas, além de outras considerações que excluem isso, tal teoria não explica a descoberta e adoção deste documento em Judá no final do século VII a.C. Como e com que efeito o Judá de Josias poderia ser representado neste Israel? De fato, mesmo que a origem do Deuteronômio estivesse no reino de Israel, com base em que Judá se chamaria a si mesmo com este nome?

As “nações”

A seção legal do Deuteronômio se refere aos cananeus uma vez, em Dt 20, 17 (Canaã ocorre apenas uma vez em todo o livro, em Dt 32,49). Mas há muitas referências às “nações”, que se enquadram em duas categorias. Em Dt 14,2;15,6;17,4;18,9.14;26,19 a frase se refere a todas as outras nações, indiferenciadas. Israel deve ser bem distinto destas, criando a dicotomia Israel/nações que ainda persiste em nosso uso moderno do termo gentios. A segunda categoria são “as nações que você expulsará”: estas são caracterizadas como (a) ocupando a terra que foi prometida a Israel e da qual ele tomará posse, e (b) praticando costumes religiosos que são abomináveis a Iahweh e que Israel não deve imitar.

Vamos nos concentrar nas nações despossuídas. Elas são especificadas como sete em Dt 7,1 e 20,17 (gergeseus está faltando, talvez acidentalmente, em 20,17) e devem ser destruídas, junto com sua cultura. Que tipo de contexto social e político dá origem a essa noção de duas nações de culturas completamente diferentes no mesmo espaço, uma indígena, a outra imigrante? Essa é uma realidade histórica ou, novamente, utópica?

Que nação e cultura são sinônimos é um princípio importante em Deuteronômio, pois o próprio Israel é definido por sua cultura, especificamente sua religião determinada pela aliança. Cananeu é cananeu, poderíamos dizer. E o mesmo podemos dizer de Israel.

Embora se possa argumentar que existia alguma diferença cultural entre elementos populacionais na Palestina da Idade do Ferro — por exemplo, entre fazendeiros das terras altas e aqueles que viviam sob um regime de cidade-estado — a animosidade gritante em relação às nações cananeias que o Deuteronômio revela provavelmente não pertence à história da Idade do Ferro, porque o reino de Israel (se não Judá) era evidentemente composto de vários elementos populacionais, entre os quais havia um conjunto amplamente compartilhado de práticas religiosas.

A perseguição religiosa, e mais ainda o genocídio, conforme ordenado por Deuteronômio, se traduz em guerra civil, que os monarcas e as elites governantes em geral não buscam provocar. Certamente, a religião pode ser usada para promover sentimentos e práticas chauvinistas, que podem ajudar um monarca, mas o remédio do Deuteronômio seria desastroso para um estado monárquico. Mesmo se traduzirmos as nações de Canaã em inimigas do culto real, a ideologia do Deuteronômio parece excessivamente entusiasmada. O que, precisamente, um chamado para declarar guerra aos cananeus alcançaria, mesmo supondo que alguém pudesse identificar de maneira inequívoca um cananeu?

A guerra do Deuteronômio não é, está claro, física ou mesmo militar, mas ideológica: os autores do documento não pretendem que os cananeus sejam exterminados. Mas a questão pode muito bem ser a propriedade legítima da terra, a filiação a Israel, a adoração adequada da divindade. E pode envolver conflito entre populações indígenas e imigrantes. Tal contexto pode ser postulado na história de Judá. Mas não para o século VII a.C.

A “aliança”

Garbini (2003: 65) afirma que a noção de uma aliança entre a divindade e o povo é bastante surpreendente. Ele afirma que: “Para todos os povos do Oriente Próximo, uma aliança entre um deus e seu povo simplesmente não fazia sentido: a aliança dizia respeito apenas ao rei e seu deus dinástico e o rei era legítimo apenas por causa desse relacionamento direto com o deus. Era por meio dela que o rei podia garantir a prosperidade de seu povo e legitimar sua própria função. Isso fica claro até mesmo no texto bíblico, onde está escrito, exatamente sobre Josias: E o rei ficou em pé junto a uma coluna e fez uma aliança (wayyikrot ‘et ha-b‘rit) diante de Iahweh (2 Rs 23,3). A questão nunca foi colocada, por que este livro, que supostamente guiou os passos do piedoso Josias, não contém nenhuma menção a ritos de aliança ou pilares desse tipo. Diz-se, além disso, que a mesma cerimônia foi celebrada na época de Salomão, como fica claro na narrativa de 1 Reis 8, apesar de todas as ampliações deuteronomistas. Ao consagrar o templo, Salomão fez uma aliança (8,23) com Iahweh, deus da dinastia (8,25), invocando sua proteção sobre o povo, especialmente nos momentos difíceis da guerra e da fome”.

Este ponto pode, no entanto, ser colocado de forma mais positiva, como foi feito por Geller em um ensaio sobre o papel do Deuteronômio na história do monoteísmo (Geller 2000: 300). Ele descreve o Deuteronômio como “um tipo radicalmente novo de associação de indivíduos … Israel é, na formulação deuteronômica da aliança, em última análise, cada israelita”. (Este fenômeno, do vínculo direto entre o deus e cada indivíduo, é, naturalmente, fortalecido retoricamente pelo uso do singular “tu” em grandes seções do livro). Geller observa ainda a negação da responsabilidade coletiva pelos pecados em Deuteronômio 34. Deuteronômio marca o início de uma definição pessoal da religião israelita — pode-se até dizer a fonte do judaísmo. Em suma, temos aqui, como Geller sugere, um estágio no desenvolvimento da Torá em um órgão de religiosidade pessoal e não um corpo de ensinamentos sociais sustentado por uma instituição estatal (seja a monarquia ou o sacerdócio).

Como tal noção surgiu aqui pela primeira vez é uma questão intrigante. Que tipo de condições levaram ao surgimento de uma religião que era tanto social quanto individual? Mas, novamente, a questão-chave é: Como esse caráter pessoal da aliança do Deuteronômio faz sentido em um pequeno estado monárquico? Qual é o objetivo e o efeito de tal redefinição da religião? E, novamente, digo que não é suficiente simplesmente responder que Deuteronômio é utópico. É necessário sugerir um contexto no qual essa visão faça sentido, em uma comunidade que se formou, ou desejou, uma comunidade na qual a filiação implicava responsabilidades individuais, especialmente religiosas.

Weinfeld (1972: 59-157), entre outros, argumentou, em defesa de uma data josiânica para o Deuteronômio, que a forma de tratado de vassalagem assírio (exemplificada por aqueles de Esarhaddon) fornece um modelo para o Deuteronômio. Mas para ser válido, esse argumento tem que mostrar que o conhecimento de tais formas literárias desapareceu em determinado momento. Entretanto, a influência da Assíria na retórica diplomática e na literatura (assim como na imaginação) do Antigo Oriente Médio persistiu por vários séculos. Um terminus a quo no século VII a.C. para Deuteronômio não é particularmente conclusivo.

Mais pertinente, novamente, é a questão: sob quais circunstâncias um tratado de suserania inspiraria uma nova teoria da religião como um pacto entre uma divindade e uma nação, concebida tanto corporativa quanto individualmente? E sob quais circunstâncias tal conceito adquiriria valor?

O papel e a função do rei

O rei de Israel aparece em apenas dois textos no material legal do Deuteronômio. O primeiro está em Dt 17,14-20. É improvável que a ameaça de um rei estrangeiro, como alerta o texto, fosse substancial no período monárquico (os textos canonizados não relatam que isso tenha acontecido ou mesmo sido ameaçado). Mesmo sob os assírios e babilônios, havia um rei nativo no trono, mas esta é uma questão trivial.

GRABBE, L. L. (ed.) Good Kings and Bad Kings: The Kingdom of Judah in the Seventh Century BCE. London: T&T Clark, 2005A questão principal é esta: duas das principais funções de um rei (de acordo com a sociologia moderna e também com os próprios monarcas antigos) são segurança e justiça. A primeira protege o povo de ameaças externas e a última da exploração interna. Ambas contribuem para a ordem social. Sem essas funções, o papel de um rei é redundante.

A passagem citada propõe limitar seu direito de ser a fonte da justiça e de ter uma força significativa de cavalaria. Em outro lugar, o Deuteronômio prescreve as regras para a guerra (Dt 20) das quais o rei está totalmente ausente. Lá, como aqui, a autoridade é conferida exclusivamente aos sacerdotes. O rei está sujeito à lei que eles mantêm e eles, não ele, ditam seu conteúdo. O rei se torna um monarca constitucional.

A mesma questão retorna, mas com mais força: em que ponto da história de Judá tal revolução política faz sentido, mesmo como um ideal utópico? Quando o governo de um monarca judaíta pode ser substituído por um livro de leis? Não há paralelo algum no período monárquico para qualquer noção desse tipo, e de fato é uma ideia absurda para aquela época. Os antigos códigos de leis da Mesopotâmia, como o tratado de suserania assírio, sem dúvida serviram como um modelo para o livro do Deuteronômio, mas em uma reversão completa da antiga tradição pela qual o rei emite seu código de leis, como representante do deus.

Não há explicações plausíveis para que um rei aceite uma reforma que o priva dos poderes essenciais da monarquia, justiça e guerra. Sugerir que Josias era muito jovem na época e que o documento é uma tentativa dos sacerdotes de controlar o poder real é ingênuo. Os sacerdotes teriam o poder de fazer isso, contra a oposição de todos aqueles seguidores cujo privilégio dependia precisamente da preservação do poder da monarquia? A noção de que tal reforma foi instigada pelo ‘am ha-’aretz, como Albertz também sugere (Albertz 1994: 201), é contrariada pelo fato de que essas pessoas dificilmente teriam transferido autoridade sobre a guerra ou a justiça para o sacerdócio.

Em suma, a crença da maioria dos estudiosos bíblicos de que um manuscrito que priva o monarca de todos os poderes reais (e, na verdade, inviabiliza a instituição da monarquia) é um produto plausível do Judá do século VII a.C. é surpreendente e só pode ser explicada assumindo que tal estudo está tomando o fato como certo e, portanto, ignorando o absurdo ou fabricando uma racionalização implausível para ele.

Centralização do culto

Albertz corretamente descarta a ideia de Wiirthwein (1976) de que a centralização do culto em Deuteronômio indica o período exílico, afirmando que “não havia mais nenhum conflito sobre a centralização do culto no início do período pós-exílico” (1994: 199-200), com base no fato de que isto é pressuposto pelo Dêutero-Isaías e por Ezequiel. Mas ele pode não ter pensado nas situações da vida em Judá durante o período neobabilônico, quando a capital estava em Mispá. Não sabemos se Jerusalém tinha algum tipo de santuário nessa época, mas as evidências sugerem que vários santuários nas proximidades de Mispá funcionavam: Gibeon, a própria Mispá e especialmente Betel. Como e quando Jerusalém foi restabelecida como capital não está claro. O processo de construção do templo do período persa é em si obscuro, e é impensável que a mudança de capital de Mispá para Jerusalém tenha sido alcançada sem algum ressentimento, podendo se dizer o mesmo da reintegração de Jerusalém como o santuário central. De fato, a substituição de Betel por Jerusalém como o principal santuário de Judá em meados do século V a.C. explica muito sobre a tradição de Josias, como agora sugerirei.

O que Josias fez?

Quando o relato de 2 Reis sobre uma reforma josiânica é questionado em vez de assumido, parece não haver razões convincentes para pensar que um texto como o Deuteronômio (especificamente o material legal) vem dessa época. Pelo contrário, para cada tópico discutido há contextos mais plausíveis.

Não me propus aqui argumentar em detalhes para uma data do século V a.C., mas notei que todas as características discutidas se encaixam bem com tal período. O  Deuteronômio se enquadra no contexto de uma população imigrante, baseada em torno de um templo, em conflito com parte da população indígena, bem como com Samaria, e encorajada a viver e exercer seu controle por meio de uma lei escrita, interpretada pelos sacerdotes.

Mas se tal data fornece um contexto melhor para o cerne do Deuteronômio, ainda precisamos explicar a história da reforma de Josias como uma lenda posterior. Mas isso não é difícil. Aqueles elementos populacionais que alegam ser o verdadeiro Israel (contra as nações indígenas desalojadas) exigiriam necessariamente que o documento do qual sua posição dependia replicasse a situação atual: “Israel” se vendo ameaçado pelos “povos que ocupavam a terra”. Mas o documento requer uma autenticação adicional: ele precisaria ser antigo e ter sido autorizado, como fonte escrita, por um rei judaíta legítimo.

Por que Josias? Isso nos traz de volta a outra questão já levantada: Josias foi enaltecido por ter feito algo para ganhar reputação?

O elemento central da história da reforma de Josias (2 Rs 23) diz respeito à sua destruição de Betel, e este ato é ecoado em 1 Rs 12,25-13,34 (cf. 2 Rs 10,29), bem como em Êxodo 32 (ver Blenkinsopp 1998, 2003). Se Josias tivesse sido executado por alguma ofensa contra o faraó, a destruição de Betel, sinalizando o controle judaíta sobre uma área adjacente à própria Jerusalém, poderia ter constituído tal ato. Mais de um século depois, quando Jerusalém estava sendo restabelecida como o principal santuário da província persa de Judá, talvez às custas de Betel (ver Blenkinsopp 2003), tal ato facilmente teria identificado Josias como uma figura justa e fornecido o contexto para a introdução retrospectiva do Deuteronômio na história anterior de Judá.

De fato, a reforma deuteronômica de 2 Reis 22-23 deveria então ser vista, não como um evento histórico, mas como um disfarce para uma nova comunidade centrada em Jerusalém tentando impor sua definição de Israel, seu deus e sua religião, e especificamente sua lei escrita, em meio a uma população indígena idólatra.

Em suma, o século V a.C. fornece um contexto plausível tanto para a “descoberta” do livro do Deuteronômio quanto para a história da reforma de Josias. Esse caso, é claro, terá que ser discutido em mais detalhes, mas sugiro que mesmo no breve esboço dado aqui, ele oferece um relato melhor das coisas do que a ideia de uma reforma deuteronômica sob Josias.

O ataque do rei a Betel lhe rendeu uma reputação como um campeão deuteronômico, mas a verdadeira reforma ocorreu quase dois séculos depois e, como frequentemente acontece, a história foi reescrita para dar a essa reforma a autenticação necessária.

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