O Evangelho, o homem, a religião. Artigo de Enzo Bianchi
Artigo do monge fundador e prior da Comunidade Monástica de Bose, na Itália, Enzo Bianchi, publicado no jornal La Stampa em 03/04/2009 e reproduzido por IHU On-Line de 04/04/2009.
Na situação atual, muitos esperam um cristianismo vivido segundo o paradigma da religião forte e encarnado em minorias ativas e eficazes, capazes de assegurar identidades e visibilidades que se impõem, porque pensadas em uma estratégia defensiva e de concorrência. Para mim, considero que apenas vivendo a diferença cristã na companhia dos homens pode-se introduzir uma dinâmica que abale a indiferença à fé cristã e às suas exigências próprias também a muitos falsos católicos.
Acredito que, em vista de uma recuperação do primado da fé, da espera pelas coisas últimas e por uma arte da comunicação autêntica, ainda são indispensáveis a leitura e o conhecimento do Evangelho entre aqueles que compõem a comunidade cristã.
De fato, se é verdade que o cristianismo não é uma religião do Livro, é também verdade que só o Evangelho permite o conhecimento de Jesus Cristo, centro e coração do cristianismo. “A ignorância das Escrituras é ignorância de Cristo”, afirmava São Girolamo, retomado não por acaso pelo Concílio Vaticano II.
Que figura de cristão pode emergir sem um conhecimento direto de Jesus Cristo e da sua humanidade exemplar como a que pode vir da leitura e da familiaridade com os Evangelhos? Como um cristianismo em que o Evangelho não inspira a vida, a esperança e a linguagem dos fiéis conseguirá não se tornar ritual, devocional e se reduzir a um fato cultural ou social, ou até mesmo um fenômeno folclórico ou supersticioso? Só com a leitura pessoal e direta da Bíblia – e, em primeiro lugar, dos Evangelhos – o cristão pode nutrir a sua fé e robustecer a sua capacidade de testemunhá-la.
Nesse sentido, seria portanto desejável um percurso de sério aprofundamento na comunidade cristã que leve em consideração, em síntese, duas exigências. A primeira é a de colocar o acento no Evangelho, sobre o texto que o Concílio quis e soube devolver nas mãos dos católicos na sua inteireza e riqueza depois de séculos de exílio da Escritura da catequese e da pregação: alguns se admiram, outros lamentam frente ao dado que nem um quinto dos italianos afirma ter lido os quatro Evangelhos.
Como é possível, sem conhecer o Evangelho, conhecer Jesus Cristo e senti-lo como Senhor? Como se pode compreender a sua humanidade exemplar para nós, homens, o ser feito homem de Deus “para nos ensinar a viver como homens neste mundo”, segundo a expressão de São Paulo? Como perceber que o objetivo da humanização de Deus é a autêntica humanização do homem?
A segunda exigência é a escuta da humanidade de hoje, homens e mulheres: uma escuta que deve ocorrer por meio da emergência da dimensão antropológica. Sim, ao manter juntos o Evangelho e o homem, a fé e a dimensão antropológica, está em jogo o futuro da fé cristã. Se houve e se há um fracasso, é o da transmissão, da “tradição” da fé, mas o antídoto consiste apenas no restabelecer o primado do Evangelho e da escuta do humano.
Em um período em que tudo é colocado em discussão – a concepção da relação com o próprio corpo, com o outro sexo, com o sofrimento, com o tempo, com a natureza… – é preciso elaborar respostas de sabedoria que digam o que é o ser humano e como ele pode se humanizar por meio de uma qualidade de vida pessoal e de convivência.
A religião precisa do exercício da razão para não cair em formas paganizadoras, mágicas ou supersticiosas, mas também precisa que esse exercício racional ocorra não sem os outros, mas com os outros, todos habitantes da mesma pólis. Juntos, cristãos e não cristãos, devemos nos colocar a questão antropológica: o que é o homem? Para onde ele vai? Como pode viver em uma sociedade que luta contra a barbárie e em favor da humanização?
Das respostas que cada um souber dar, obtendo-as do próprio patrimônio espiritual, depende certamente o nosso futuro, mas também, já hoje, a qualidade da nossa vida pessoal e da convivência civil.
Bastante interessante o artigo do monge Enzo Bianchi. Penso, entretanto, humildemente, que muitas almas e organizações religiosas ditas “cristãs” não estão aptas ainda a compreender o Evangelho, nem mesmo a exprimir o Cristo. Isso porque somente a leitura não estimula grandemente a prática da “palavra”, mas fica quase sempre estagnada somente no “ouvir”. Resumindo, não empreendem o amor verdadeiro ao próximo, nem a si mesmos sabem se amar. O amor é estar em Deus, e Deus estar em nós (cf. 1 João, 4:16). A verdade realiza a liberdade (cf. João, 8:32). A tarefa deve ser voltada, então, para que se crie a atmosfera da promoção do amor e do conhecimento da verdade.
Meditando sobre o artigo, e sobre a verdade, vejo uma passagem pertinente de Jesus (Mateus 10:34-36):
“Não julgueis que vim trazer a paz à terra. Vim trazer não a paz, mas a espada. Eu vim trazer a divisão entre o filho e o pai, entre a filha e a mãe, entre a nora e a sogra, e os inimigos do homem serão as pessoas de sua própria casa.”
Essa passagem da divisão não é original, sabe a maioria de nós. É inspirada de Miqueias, 7:6. A pessoa cristã, no sentido bíblico do termo, permite que Jesus traga a espada à terra. Também permite que Jesus promova a divisão entre o filho e o pai e entre os outros familiares citados. Sem essa divisão, não há paz verdadeira e conhecimento da face original de Deus, ou a Verdade.
Sem essa divisão, o amor também não é perfeito. Essa sentença respeita às coisas da consciência. Claro que ao senso razoável os dizeres de Jesus configuram uma alegoria.
O apóstolo Paulo diz de outro modo (1 Coríntios, 7:34):
“A mesma diferença existe com a mulher solteira ou a virgem. Aquela que não é casada cuida das coisas do Senhor, para ser santa no corpo e no espírito; mas a casada cuida das coisas do mundo, procurando agradar ao marido.”
Também Paulo usa de alegoria, uma convenção mística que permeia toda a Bíblia, presente também em escrituras de outras tradições não bíblicas, nestas, muitas vezes, sem o aparato simbólico.
A Bíblia é muito mais e acima de um Jesus histórico para uma parte das pessoas. Nem há para estas um Jesus histórico, pois para elas os Evangelhos dizem somente sobre o conhecimento do Espírito. Por isso Jesus nasce em Belém e é Nazareno. Não há contradição alguma.
Os “carnais” sucumbem à esfera secular, circunscrevendo-se à perspectiva da lógica histórica-secular. Então Jesus é, ou de Belém, ou de Nazaré. Jesus não pode somar as duas pátrias. Ficam em infindáveis controvérsias. O “carnal”, o não-iniciado no conhecimento direto do Espírito (Deus), tem guia da sua hermenêutica, quase sempre, por imposição inconsciente de tradições assumidas, sequestrada por “wishful thinking” (vontade de crer).
Só a mente “espiritual”, tomada no sentido bíblico, rompe o “daltonismo” e distingue outra coloração, outro plano de significação para as escrituras. E tanto quanto mais amadurecida a consciência, ela goza de liberdade para se desembaraçar da tradição histórica, seja indivíduo interna a ela ou externa, vendo de uma perspectiva mais neutra. Essa perspectiva neutra surge quando há o “julgamento do mundo”, em face do ser humano. Esclarece Paulo (1 Coríntios, 6:2):
“Não sabeis que os santos julgarão o mundo? E, se o mundo há de ser julgado por vós, seríeis indignos de julgar os processos de mínima importância?”
Avançando, sem o Jesus que traz a espada à terra, não há também o Budismo autêntico, o Vedanta autêntico, o Sufismo autêntico, e outras tradições espirituais autênticas, que estão acima das ideologias e facções históricas, pois todos propõem o conhecimento do “Eu Sou”. Quem se depara com o “Eu Sou” conhece a Liberdade.
Há no Decálogo o “não matarás”, isto é, não odiar o próximo, mas sim amá-lo. (1 João, 3:15 – “Quem odeia seu irmão é assassino…”). A Torá e os Profetas, que Jesus vem para cumprir e não ab-rogar (cf. Mateus 5:17), não diz respeito a um “Deus” externo ao ser humano. O “homem” apedrejado na Torá (Pentateuco) também não é ser humano. Não há contradição alguma entre o mandamento da “lapidação” com o de “não matarás”. A “lapidação” é a aproximação da alma a Deus, pois é a extinção da concepção falsa em nossa alma. O tema é místico.
É própria da mente “carnal” entender Deus como um Outro, por isso se diz, comumente: “Morreu uma boa pessoa. Irá, então, se juntar a Deus”. Portanto, para tal consciência, consequentemente, a leitura natural do “Deus” do mal denominado “Antigo Testamento” é de entidade distinta do ser humano. Esse “Deus” é caprichoso, exigente, que sobrecarrega o homem com mandamentos até execráveis. Uns o aceitam dessa forma, outros o abominam, dependendo da consciência. Todavia, ambos empreendem uma leitura ainda equivocada, entendendo Deus e ser humano entes distintos, como pano de fundo. Há o paralelismo da dicotomia entre “Deus” e “homem” do texto bíblico com o fracionamento vivido da consciência “carnal” entre Deus e ser humano. Só com o deparar com o “Eu Sou” se começa a compreender minimamente o cosmo bíblico, tanto dos mal denominados “Antigo Testamento” como do “Novo Testamento”.
As recentes leituras e descobertas da historiografia, da arqueologia, por exemplo, não põem em xeque a narrativa bíblica, mas sim à leitura da teologia histórica-secular, da hermenêutica mítica-literal “religiosa”. A leitura mística permanece incólume, pois pertence a outro plano, o da consciência humana, no nível transpessoal.
Com este texto pretendo encerrar qualquer outro comentário sobre a teologia bíblica neste sítio, salvo convocação. Não sou pregador, embora pareça, e seja, desgraçadamente, assim mesmo nas mensagens minhas. Perdoem-me o longo texto, que é o último.
Só queria expor, não de forma acabada, nem foi meditada, saiu a redação de forma estabanada, incompleta – tentando-me cingir ao monge Enzo Bianchi – uma posição em que Cristo é defendido, não como uma personagem histórica, mas como personagem espiritual, ou Verdade. Sendo Verdade (cf. João 4:6), nenhuma escritura no plano histórico pode reivindicá-la para si.
Naturalmente os “carnais” se escandalizarão, pois há o fermento do facciosismo que logra ainda na alma. Não houve ainda o “julgamento do mundo” em seus corações. Cristo, ou Verdade, não pode ser dividido (cf. 1Coríntios 1:12-13). Ele é Vida para todos que de coração sincero, praticam o amor sem facciosismo, sem fingimento para com o próximo. E tais pessoas se encontram em todos os cantos do mundo, seja sob denominações diversas, tradições diversas, ou não pertencentes a qualquer grupo ou denominação. O coração puro é o templo de Deus.