O êxodo, segundo De Vaux e Finkelstein – Silberman

O que se segue são duas sugestões de leitura, mostrando perspectivas diferentes. E isto é uma consequência do post anterior.

:: DE VAUX, R. Historia Antigua de Israel I. Madrid: Cristiandad, 1975 [original francês: Paris: Gabalda, 1971]

Em Ex 13,17-19 diz o Eloísta (= E) que a saída dos israelitas não foi pelo caminho que levava à região dos filisteus, mas pelo caminho do deserto do mar dos juncos. E Ex 14,15-31, alternando versículos Javista (= J) e E, descreve a passagem do mar.

Compreende-se que, ao fugir do Egito, um pequeno e fraco grupo não tome o caminho que levava diretamente do delta do Nilo ao sul da Palestina. Apesar de curto, este era poderosamente defendido pelos egípcios através de postos militares. Conservaram-se listas meticulosas, mantidas pelos guardas egípcios, de chegadas e partidas nesta fronteira [Cf. BRIEND, J. (org.) Israel e Judá: textos do Antigo Oriente Médio. 2. ed. São Paulo: Paulus, 1997, p. 36-37]. Este caminho saía de Tieru (Zilu), passava ao sul do lago Sirbonis e seguia a costa até Gaza.

Falar de filisteus é anacronismo bíblico para o tempo do êxodo, pois sabemos que este povo egeu se estabeleceu em Canaã cerca de um século mais tarde. Por outro lado, o nome “mar de Suf” foi erroneamente entendido como o atual Mar Vermelho. Quem traduziu assim foram os LXX. Trata-se na realidade de um local onde havia juncos, provavelmente papiros, já que o hebraico “suf” equivale ao egípcio”twf” (= papiro).

Há, no texto bíblico, duas apresentações do fenômeno:
. A primeira apresentação é provavelmente um texto E, embora alguns o queiram Sacerdotal (= P). Segundo esta narrativa, Moisés deve erguer seu cajado, estender a mão sobre o mar e dividi-lo em dois para que os israelitas passem a pé enxuto. Moisés assim o faz, e os israelitas passam a pé enxuto. Porém, os carros egípcios lançam-se em sua perseguição, enquanto Iahweh ordena a Moisés que estenda a sua mão para que as águas retornem e se fechem sobre os egípcios. Assim, ficam os egípcios submersos e os israelitas salvos.

. A segunda apresentação é seguramente J e se desenvolve da seguinte maneira: durante a perseguição, os israelitas acreditam que estão perdidos e se rebelam contra Moisés: ele, entretanto, manda que fiquem calmos e observem os acontecimentos (Ex 14,10-14). Então, a coluna de nuvem que os protege (símbolo de Iahweh) coloca-se entre eles e os egípcios (Ex 14,19b.20; o v. 19a é uma duplicata). Durante a noite, Iahweh faz soprar um forte vento do leste (oriental) que seca o mar (Ex 14,21). No dia seguinte, de madrugada, Iahweh, da coluna de fogo e de nuvem, semeia o pânico entre os egípcios e estraga as rodas de seus carros (Ex 14,24-25). Ao nascer o dia, as águas voltam ao seu leito e Iahweh submerge nelas os egípcios… e Israel vê os egípcios mortos na praia do mar (Ex 14,27.30).

Hoje, as duas apresentações estão de tal modo unidas, que o texto dá ao leitor desavisado a impressão de ser uma narrativa originariamente unitária.

Quanto ao que poderia ter acontecido durante uma eventual fuga de hebreus, há hoje muitas explicações.

Se o “mar” atravessado pelos hebreus era na verdade, como indicam os termos, uma laguna rasa ou um pântano, abundante em papiros, nada mais simples do que a coincidência de uma maré baixa com um vento forte para permitir a passagem de um punhado de pessoas a pé. Já os carros egípcios atolaram, impossibilitando a passagem dos perseguidores. Outro elemento interessante para a solução deste problema é o teor da segunda apresentação da passagem do mar, o texto J: não há neste texto nenhuma referência à passagem dos hebreus, mas sim à destruição dos egípcios. Nisto consiste o “milagre”, para o J. Tradição conservada em Ex 15,21;Dt 11,4;Js 24,7.

R. de Vaux, nas páginas 369-373 de sua Historia Antigua de Israel I, sugere que esta tradição javista, sublinhando a atuação de Iahweh e o aspecto bélico do relato, foi moldada, nas suas características, sobre outro episódio muito significativo para os israelitas, a passagem do Jordão, de Js 4,22-23.

:: FINKELSTEIN, I.; SILBERMAN, N. A. The Bible Unearthed. Archaeology’s New Vision of Ancient Israel and the Origin of Its Sacred Texts. New York: The Free Press, 2001, xii + 385 p. – ISBN 9780684869124 [Em português: A Bíblia desenterrada: A nova visão arqueológica do antigo Israel e das origens dos seus textos sagrados. Petrópolis: Vozes, 2018].

As citações são da edição original em inglês.

No capítulo sobre o êxodo (p. 48-71), os autores fazem quatro perguntas:
. O êxodo tem credibilidade histórica?
. A arqueologia pode ajudar a reconstruí-lo?
. É possível traçar a rota do êxodo?
. O êxodo aconteceu como descrito na Bíblia?

Após uma síntese da narrativa bíblica, Finkelstein e Silberman confirmam que as migrações de Canaã para o Egito são bem documentadas pela arqueologia e por textos da época. Para muitos habitantes de Canaã, região periodicamente sujeita a severas secas, a única saída era ir para o Egito. Pinturas e textos egípcios testemunham a presença de semitas no delta do Nilo ao longo das Idades do Bronze e do Ferro.

Por outro lado, há intrigantes paralelos entre a história bíblica de José e o êxodo e a história egípcia escrita por Maneton, sobre a invasão do Egito pelos hicsos e sua posterior expulsão após um século. “Invasão” que escavações arqueológicas recentes revelaram ter sido muito mais uma ocupação cananeia gradual e pacífica do delta do que uma operação militar. “As descobertas feitas em Tell ed-Daba [a antiga Avaris, capital dos hicsos] constituem evidência de um longo e gradual desenvolvimento da presença cananeia no delta e um controle pacífico da região”, concluem na p. 55.

Estes paralelismos entre a história bíblica de José e a história egípcia dos hicsos indicam a possibilidade do êxodo. Entretanto, duas questões permanecem: Quem eram estes imigrantes semitas? E será que a data de sua permanência no Egito [1670-1570 AEC] combina com a cronologia bíblica?

A Bíblia colocou o êxodo em torno de 1440 AEC, data que se obtém pela comparação de dados bíblicos com fontes extrabíblicas. Entretanto, esta data não coincide com a expulsão dos hicsos. Por isto, muitos estudiosos consideram-na simbólica apenas, e datam o êxodo no século XIII AEC, na época de Ramsés II, fundados em testemunhos egípcios indiretos, como a construção da cidade de Pi-Ramsés no delta, na qual trabalharam semitas, e na estela de Merneptah, filho e sucessor de Ramsés II, que fala da presença de uma entidade de nome ‘Israel’ em Canaã, no final do século XIII AEC.

Mas quem eram estes semitas presentes no Egito na construção de cidades e que ‘Israel’ é este da estela de Merneptah? Ainda não há respostas definitivas para estas perguntas. E mais: um êxodo em massa teria sido possível na época de Ramsés II?

O que se sabe é que não existe nas fontes egípcias da época menção alguma da presença de israelitas no Egito. Nem ligados aos hicsos (séculos XVII-XVI AEC), nem aos grupos cananeus mencionados nas Cartas de Tell el-Amarna (século XIV AEC), nem a uma fuga para Canaã (século XIII AEC).

Trabalhando a partir desta lógica, Finkelstein e Silberman vão concluir pela impossibilidade do êxodo no século XIII AEC. Entre outras coisas, eles alegam que, nesta época, a fronteira do Egito com Canaã era severamente controlada, como a arqueologia comprovou na década de 70; que não existe nenhum sinal de ocupação do Sinai na época de Ramsés II ou predecessores imediatos; que não existe sinal do êxodo em Kadesh-Barnea ou Ezion-Geber, nem nos outros lugares mencionados na narrativa do êxodo, como Tel Arad, Tel Hesbon ou Edom. Convém considerar, também, que as narrativas bíblicas do êxodo jamais mencionam o nome do faraó que os israelitas enfrentaram.

E concluem: “Os locais mencionados na narrativa do êxodo são reais. Alguns eram bem conhecidos e aparentemente estavam ocupados em épocas mais antigas e em épocas mais recentes – após o estabelecimento do reino de Judá, quando a narrativa bíblica foi pela primeira vez escrita. Infelizmente, para os defensores da historicidade do êxodo, estes locais estavam desocupados exatamente na época em que aparentemente eles exerceram algum papel nas andanças dos israelitas pelo deserto” (p. 64).

E é então que se verifica estarem as condições do sétimo século AEC, época da escrita, bem mais presentes na história do êxodo, do que uma realidade do século XIII AEC. E aqui Finkelstein e Silberman vão adotar a tese do egiptólogo Donald B. REDFORD, exposta no livro Egypt, Canaan, and Israel in Ancient Times. Princeton: Princeton University Press, 1992.

Falando de maneira muito simplificada, a proposta é a seguinte: a memória da invasão e expulsão dos hicsos foi incorporada em Canaã como uma memória de confronto, vitória e libertação. Israel, ao surgir de Canaã, será o herdeiro dessa memória. Quando, no século VII AEC, Psamético I, faraó do Egito e Josias, rei de Judá, tentam ocupar o espaço deixado pela Assíria na região da Palestina, e se confrontam – Josias será vencido por Necao II, filho de Psamético I -, esta memória serve de pano de fundo para a narrativa do êxodo. Êxodo impossível na época de Ramsés II, mas um paradigma de resistência na luta de Josias para reunificar o grande Israel.

Para finalizar: “A saga do êxodo de Israel do Egito não é uma verdade histórica, nem uma ficção literária. Ela é uma poderosa expressão de memória e esperança nascida em um mundo em transformação. O confronto entre Moisés e o faraó espelha o crucial confronto entre o jovem rei Josias e o recém-coroado faraó Necao. Fixar esta imagem bíblica em uma data anterior é subtrair da história seu mais profundo significado. A Páscoa se revela, assim, não como um simples evento, mas como uma experiência contínua de resistência nacional contra os poderes estabelecidos” (p.70-71).

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1 comentário em “O êxodo, segundo De Vaux e Finkelstein – Silberman”

  1. A questão é que os autores do popular livro não atentaram criticamente se as questões que colocam podem ser respondidas ou não. Já no século XV, Pelas “cartas de Amarna”, apresentam-se cidades na região de Canaã com significativa infra-estrutura. E lacunas sobre nomes de agentes de governo e associados aos governos no período hicso no Egito vão muito além de somente se tratar de hebreus.

    Depois, é a própria implicação de haver robustas fortalezas egípcias no “Caminho dos Filisteus” na rota de Gaza para investidas militares em Canaã, que força a lógica de pensar que os hebreus coerentemente foram pelo caminho sináita bem mais longo. Lógico também seria pensar que tem que ser bem improvável encontrar sinais da passagem dos hebreus por Kadesh-Barnea, Ezion-Geber, etc.. O cenário implica nisto. Também, o postulado de Finkelstein sobre a desocupação no Edom antigo é cheio de argumentos circulares e se mostra que ele tem um certo problema passional com isto nas declarações públicas.

    E temos sim muitos novos assentamentos na região de Canaã na época pós-Ramsés II com modelos que perduraram por toda a Idade do Ferro, que se mostram adaptações dos padrões canaanitas. Teria-se então que se negar a particularidade israelita por todo o período – lembrando que diferente do que o livro "The Bible Uneathed" que dar a entender, os relatos nos materiais que temos não falam de uma conquista total mto menos destruição geral.

    E daí, no despontar justamente deste período, constata-se na região sublevações de nações contra o Egito e reações egípcias implacáveis , com um notório enfraquecimento, substancial do controle egípcio a partir da segunda metade do século XI.

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