O Codex Amiatinus 5

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Fragmentos dos códices gêmeos do Amiatinus foram encontrados

No início de setembro de 1908 Cuthbert Turner (1860-1930), de Oxford e historiador da Igreja, estava na Biblioteca da Catedral de Durham fazendo uma investigação sobre os primeiros manuscritos da Bíblia. O cônego bibliotecário, William Greenwell (1820-1918), arqueólogo e colecionador, convidou-o a jantar em sua casa. No vestíbulo de Greenwell, Turner viu, emoldurada, uma página de um grande manuscrito, escrita em unciais, e observou em meio à conversa que ela se parecia com uma página que faltava no famoso Codex Amiatinus.

Isso parece ter provocado uma reação inesperada de seu anfitrião. Greenwell asseverou que era de uma das outras duas Bíblias encomendadas por Ceolfrido, e, antesDE HAMEL, C. Manuscritos notáveis. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, 680 p. que mais investigações pudessem ser feitas, e certamente antes de Turner publicá-las, ele de imediato presenteou a folha ao Museu Britânico, onde foi recebida no início de 1909. É geralmente conhecida pelo nome de “a Folha de Greenwell”. Contém o texto em latim de III Reis 9,29-12,18.

Em retrospecto, Greenwell veio com uma história inverificável, cujos detalhes variavam, de que tinha adquirido a folha por volta de 1890 numa livraria em Newcastle, ou, em outra rememoração, numa “loja de curiosidades antigas”.

Como Newcastle fica a menos de dez quilômetros de Jarrow, essa proveniência soava plausível, conquanto seja difícil acreditar que Greenwell, um antiquário nada modesto (em nenhum dos sentidos da palavra), pudesse ter feito tão assombroso achado e esquecido de mencioná-lo a alguém durante quase vinte anos.

A provável fonte foi revelada em 1911, quando W. H. Stevenson (1858-1924), membro e bibliotecário do St John’s College, Oxford, publicou para a Comissão de Manuscritos Históricos seu catálogo de monumentos de lorde Middleton em Wollaton Hall, Nottingham, uma das grandes casas inglesas construídas na década de 1580.

Stevenson relatou ter achado nos arquivos da família Willoughby, depois nobilitada como barões de Middleton, mais dez folhas e três minúsculos fragmentos do mesmo manuscrito em uncial, usado em encadernações do século XVI. Tudo isso compreendia mais trechos de III-IV Reis.

A essa altura não havia dúvida de que esses gêmeos do Amiatinus de fato sobreviveram, numa coincidência assombrosamente afortunada, de uma ou outra das pandectas que Ceolfrido atribuiu às igrejas de Wearmouth ou Jarrow.

Em 1938, os fragmentos Willoughby foram vendidos também ao Museu Britânico por mil libras.

Mais uma folha, do Eclesiastes, foi achada por Nicholas Pickwoad recentemente, em 1982, entre os documentos imobiliários da família Bankes, em Kingston Lacy, uma propriedade do National Trust. Esse fragmento está hoje depositado por tempo indeterminado na Biblioteca Britânica.

É possível que a folha de Greenwell também fosse proveniente do arquivo de lorde Middleton, e que talvez Stevenson tenha lhe enviado essas descobertas para que o assessorasse na identificação, com uma sugestão, imprópria, de que, não oficialmente, poderia ficar com uma como agradecimento por sua ajuda.

É muito provável que todos esses fragmentos sejam resíduos de uma Bíblia que em algum momento foi de propriedade da Catedral de Worcester.

Evidência disso é que os arquivos de Willoughby também expeliram fragmentos semelhantes de um grande manuscrito de dimensões quase idênticas, contendo transcrições do século XI das escrituras de Worcester.

Sabemos que Offa, rei da Mércia de 757 a 796, tem a fama de ter dado uma grande Bíblia a Worcester, e que Wulfstan, bispo de Worcester de 1062 a 1095, deu ordem para que as escrituras da catedral fossem copiadas na “Bíblia da sacra igreja”.

No século XII alegava-se que a Bíblia de Offa havia sido redigida em Roma, o que provavelmente significava que sua escrita era uncial. Como a filha do rei Offa se casou com o rei da Nortúmbria em 792, existe a possibilidade de que uma das Bíblias de Ceolfrido tenha chegado a ele durante permutas diplomáticas entre os reinos no fim do século VIII, talvez quando Jarrow foi saqueada pelos vikings em 794.

 

Como o Codex Amiatinus chegou à abadia de San Salvatore?

Finalmente, voltemos à Abadia de San Salvatore no monte Amiata. Não sabemos como ou quando o Codex Amiatinus chegou lá. A inscrição dedicatória adulterada, de um suposto “Pedro, abade dos lombardos”, poderia representar uma doação factual, mas também pode ser uma invenção espúria para ocultar o fato embaraçoso de que o manuscrito estava num lugar diferente da destinação pretendida por Ceolfrido.

O mosteiro dá para a Via Francigena, rota de peregrinação do norte da Itália para Roma, e com certeza era um lugar de parada para viajantes. Na verdade, essa antiga estrada segue uma linha mais longa, que atravessa a Borgonha via Lausanne, pelo passo do Gran San Bernardo, para entrar na Itália acima de Aosta, e descer cruzando Pavia, Lucca, Siena, Viterbo chegando enfim a Roma.

Qualquer um, em teoria até mesmo Carlos Magno, poderia ter recolhido o manuscrito em qualquer lugar dessa rota após a morte de Ceolfrido em Langres, e poderia tê-lo deixado com os monges de San Salvatore na jornada para o sul, ou no retorno, de novo em direção ao norte.

 

O relicário encontrado na abadia de San Salvatore

Um item interessante foi encontrado em San Salvatore na década de 1960. Conforme um relato, foi descoberto oculto num buraco atrás do grande altar durante os trabalhos de reconfiguração do santuário. Isso foi publicado pela primeira vez em 1974.

O objeto é uma pequenina e primorosa caixa portátil, um relicário insular, no formato de uma pequena casa com telhado de duas águas, incrustada com um mosaico de retângulos vermelho-escuros e guarnecida com ornamentos de metal entrelaçados, inclusive florões no formato de cabeça de pássaros, muito semelhantes à ornamentação em manuscritos do Livro de Durrow e dos Evangelhos de Lindisfarne, ambos provavelmente do final do século VII.

Seria de imaginar que o relicário fosse irlandês, exceto pelo fato de incorporar granadas (prática testemunhada na Inglaterra anglo-saxã, mas ao que tudo indica não propriamente na Irlanda) e conter fragmentos de vidro colorido, exemplos dos quais sobrevivem apenas em Jarrow. A caixa tem alças de metal para que seja pendurada em cordões, possibilitando carregá-la. É perfeitamente crível atribuir-se a ela uma data contemporânea a Ceolfrido.

Christopher De Hamel (1950-)Um mosteiro numa estrada de peregrinação pode receber em qualquer momento presentes exóticos de viajantes de passagem e de visitantes agradecidos. Não existe absolutamente nenhuma conexão conhecida entre o relicário e o Codex Amiatinus, exceto a notável coincidência de que San Salvatore pudesse ter tido duas grandes obras de arte de mesma data e origem, tão longe da Nortúmbria, e uma explicação simples seria de que as duas chegaram juntas.

A comitiva de Ceolfrido devia sem dúvida levar consigo altares portáteis, cálices e relíquias de Wearmouth-Jarrow, para manter uma vida religiosa durante sua jornada.

Segundo a Vita Ceolfridi, alguns dos monges voltaram para casa após a morte de Ceolfrido, em setembro de 716. Outros continuaram sua jornada para Roma, ainda levando a Bíblia.

A rota para o sul deve ter passado pela Via Francigena. A Itália setentrional é cultivada, e é fácil viajar por seus campos. Quando se alcança a região mais selvagem entre a Toscana e a Úmbria, ela de repente fica perigosa, erma e muito montanhosa. Devia haver bandidos e lobos, e até ursos. Pode-se imaginar a delegação sem seu líder fazendo uma pausa, talvez à espera de uma época mais segura, mas de algum modo nunca deixando totalmente de se locomover. Poderiam já existir alguns estabelecimentos religiosos nas encostas do monte Amiata.

Os monges ingleses estariam morrendo um a um. Em 742, quando o mosteiro de San Salvatore é mencionado pela primeira vez, os membros mais jovens do séquito de Ceolfrido não estariam muito acima de seus quarenta e tantos anos, mas eram velhos e poucos o bastante para com júbilo optar por uma vida mais sedentária, com sua Bíblia e seu relicário.

Isso não é mais do que pura e imaginativa conjectura, mas preencheria a lacuna existente nessa assombrosa jornada de um manuscrito de 1300 anos de Weatmouth ou Jarrow até a Biblioteca Medicea Laurenziana em Florença.

O Codex Amiatinus 4

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A escrita do Codex Amiatinus

Do escriba, passemos para a escrita. O texto do Codex Amiatinus está escrito em unciais, a quintessencial “romana scriptura”, disposta em colunas duplas com linhas longas e curtas, adequadas a uma fácil leitura em voz alta, “per cola et commata”. A uncial é totalmente diferente das maiúsculas e minúsculas nativas dos livrosCodex Amiatinus - Biblioteca Medicea Laurenziana, Firenze, Italia irlandeses, conhecidas por historiadores de manuscritos como de estilo “insular”, o qual compreende todo o âmbito celta das Ilhas Britânicas.

O contraste com as unciais mediterrâneas é mais uma evidência gráfica de que as comunidades de Wearmouth e Jarrow estavam se distanciando da Irlanda e conscientemente imitando as práticas de escrita romanas.

Deve haver a possibilidade de que Bento Biscop e Ceolfrido tenham trazido consigo da Itália escribas treinados, para que ensinassem a escrita uncial aos ingleses. No fólio 86v do Codex Amiatinus no material preambular ao Levítico, há várias palavras canhestramente escritas em grego a afirmar que fora um tal de lorde Servandos quem fizera o livro. Este não é nem de longe um nome anglo-saxão, e a sentença deve ter sido copiada incompreensivelmente do exemplar por alguém que sabia latim, mas não grego.06

Embora os escribas modelassem com atenção seu trabalho segundo protótipos italianos, eles mesmos eram sem dúvida ingleses. São traídos por marcas distintivamente insulares de abreviações e outras peculiaridades que só se encontram em manuscritos em uncial que sabemos com certeza terem sido copiados na Nortúmbria.

Tem-se observado com frequência que só a partir do estilo da escrita já se pode deduzir total diferença no aspecto cultural entre Wearmouth-Jarrow, com modelo em Roma, e Lindisfarne, fundação da ilha irlandesa cerca de oitenta quilômetros ao norte, onde os manuscritos eram de hábito copiados na contrastante caligrafia insular. Na realidade, segundo um provável senso comum, essas comunidades se influenciavam reciprocamente.

Com toda a sua escrita romana, o Codex Amiatinus apresenta traços de uma prática distintamente insular nas palavras de abertura de alguns textos, usando o que se conhece como “diminuendo”, começando com uma letra grande e diminuindo o tamanho letra a letra. Exemplo disso é a abertura do Gênesis. As primeiras palavras são “In principio” (fólio 11r). O “I” é grande, com sete vezes a altura de uma letra do texto normal, o “n” não é tão grande, e o “p” é ainda menor, à medida que a escala se reduz até chegar ao tamanho da escrita normal. Essa é uma característica de manuscritos irlandeses. Os escribas do Codex Amiatinus devem ter visto isso em Lindisfarne.

Em compensação os monges de Lindisfarne derivaram seu padrão para são Mateus do Codex Grandior em Jarrow, e pequenas unciais foram usadas em seu encantador “Evangelho de São Cuteberto” do início do século VIII, hoje na Biblioteca Britânica, tão delicado e leve quanto Amiatinus é vasto e volumoso, e que aparentemente foi enterrado numa data remota junto com o corpo de são Cuteberto, sepultado em seu santuário em 698.

 

De sete a nove escribas trabalharam no Codex Amiatinus

Uma medida da ordem de grandeza do scriptorium e da rigidez de sua organização nos advém do fato de que parece que pelo menos sete e talvez até mesmo nove escribas trabalharam no Codex Amiatinus.

Algumas caligrafias são maiores que outras, e isso é muito aparente nas quebras entre os livros bíblicos. Sua incidência está claramente repartida em distintos grupos de texto. Como o demonstra o volume alceado, vários cadernos são formados por um número incomum de folhas, todos eles correspondendo aos finais dos livros: xlviii (9 folhas, fim de Crônicas, fólio 378v), lxviii (5 folhas, fim de Isaías, fólio 535v), e xc (5 folhas, fim de Tobias, fólio 708v).

Cada um deles representa também uma mudança de escriba. Um caderno com número ímpar de folhas só parece ter sido necessário quando já se tinha começado a escrever o texto seguinte. Desse modo, muitos escribas trabalhavam simultaneamente.

 

515 bezerros forneceram o material do Codex Amiatinus

Para suprir o pergaminho de manuscritos tão grandes e tão extensos quanto pandectas inteiras deve ter sido necessário dispor da pele de uma quantidade enorme de animais. Da pele de cada um se preparava não mais do que um simples par de folhas.

Para as 1030 folhas do Codex Amiatinus deve ter sido utilizada a pele de 515 bezerros. Para todas as três pandectas encomendadas por Ceolfrido, deve-se multiplicar isso por três.

Às vezes se afirma, sem evidências, que a concessão de terras a Wearmouth-Jarrow em 692 visava prover pasto suficiente a um rebanho que fora aumentado para a feitura de Bíblias.

Na realidade, a criação de alguns milhares de animais não deve ter sido anormal para uma comunidade rural grande e bem organizada durante os trinta anos do abadado de Ceolfrido, especialmente dado que o gado fornecia muitos produtos necessários além de sua pele. Isso incluía a carne para os jantares diários de muitos monges ativos e também os chifres, cola, ossos e até fertilizantes (providos por seu sangue) para a agricultura.

O Codex Amiatinus 3

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Características do Codex Amiatinus

Da mesma forma que Amiata é uma grande montanha, não há como negar que o Codex Amiatinus é um colosso. Ele tem uma espessura quase inimaginável. Cada página tem uns cinquenta centímetros de altura, mas a lombada — tente imaginar isso — tem cerca de trinta centímetros de espessura. O livro vai afinando ligeiramente até a borda lateral.

O manuscrito está encadernado numa capa muito moderna de couro de bezerro cor de bronze aplicado sobre madeira, com tiras de couro penduradas na borda inferior,Página do Codex Amiatinus - Evangelho de Marcos, capítulo 1 costuradas com fio amarelo e dotadas de fechos modernos de latão que se encaixam em pinos de metal afixados na borda superior da capa. Francamente, ele parece uma grande e cara maleta de couro italiana.

São mais de 34 quilos, ou, com a encadernação, acessórios, caixa para transporte, uma estimativa de mais de quarenta quilos.

As primeiras oito folhas são ligeiramente menores que as do resto do livro e pródigas em ornamentos.

Há aquela preciosa inscrição dedicatória, embaixo de um arco, no verso da primeira folha, com os nomes que substituíram os anteriores bem aparentes numa tinta de um marrom muito mais escuro, e nem de longe tão bem executados quanto a escrita que não foi alterada.

Na página adjacente está o soberbo e famoso retrato de Esdras, a mais antiga pintura inglesa à qual se pode atribuir qualquer data absoluta (isto é, não posterior a 716).

A maior parte do restante do enorme manuscrito, mais de 2 mil páginas, é formada por um texto austero, mas elegante, em duas colunas, geralmente com ornamentação insignificante.

Impressiona o espantoso frescor de seu estado. A maioria dos manuscritos antigos traz a marca do uso de muitos diferentes períodos, leitores, anotações em várias escritas, emendas e sinais de consultas e referências durante séculos. Afora algumas correções contemporâneas e marcações litúrgicas, provavelmente oriundas do scriptorium original na Nortúmbria, o manuscrito quase não apresenta sinais de uso. É como se tivesse sido embrulhado e jamais aberto. Talvez tenha ocorrido exatamente isso, caso os monges em San Salvatore o tenham considerado antes uma relíquia sagrada de são Gregório do que um livro de uso prático.

Os Salmos agora estão numerados numa caligrafia pós-medieval e há uma numeração discreta dos capítulos de acordo com o sistema moderno, e para mim é fácil acreditar que isso date possivelmente da época do exílio do manuscrito nos escritórios dos editores da Vulgata, em Roma, entre 1587 e 1590.

O manuscrito é construído em sua maior parte de cadernos com oito folhas cada um. Em certo momento, os estudiosos do Amiatinus especularam que seu exótico caderno preliminar poderia ter sido transferido de outro manuscrito, talvez de origem italiana, por ser tão diferente do resto do volume ou de qualquer coisa que se conhecesse em qualquer outra Bíblia medieval existente. Duas das folhas são tingidas de púrpura e uma de amarelo, típicas técnicas clássicas. No entanto, hoje se aceita em todo o mundo que essas páginas são componentes integrais, se bem que muito incomuns, do volume, feitas pelos mesmos escribas e iluminadores ingleses, usando os mesmos pigmentos da figura de Cristo em Majestade, no Novo Testamento, fólio 796v, a qual é parte inquestionável do livro, como demonstra seu alceamento.

 

A biblioteca de Cassiodoro na Vivarium

A presença dessas páginas de abertura nos leva a um outro nível de extraordinária coincidência com aquele relato segundo o qual Bento Biscop e Ceolfrido obtiveram uma “imensurável quantidade de livros” em sua visita à Itália em 679. Isso envolve uma biblioteca de livros que tinham sido reunidos por Cassiodoro (c. 485-580), cônsul na fase final do Império Romano, filósofo e autor prolífico, convertido ao cristianismo e figura gigantesca na história da erudição bíblica.

Quando se retirou de cena, Cassiodoro estabeleceu uma espécie de fundação de pesquisa monástica na Calábria, extremo sudeste da Itália, chamada Vivarium à qual ele doou sua biblioteca particular.

Além disso, nas Institutiones, seu compêndio sobre estudo teológico e secular, Cassiodoro não apenas explicou seu método para subdivisão e interpretação da Bíblia como também descreveu em detalhes como tinha incorporado esse seu sistema bíblico único a alguns de seus próprios manuscritos.

Os detalhes apresentados correspondem com tamanha exatidão ao material existente nessas primeiras folhas do Codex Amiatinus que parece ser inescapável a explicação de que são cópias diretas, e de que de algum modo naquela “imensurável quantidade de livros” obtidos em Roma deviam estar incluídos alguns dos manuscritos do próprio Cassiodoro, antes na Vivarium, agora de volta ao mercado.

Como acontece com muita frequência com bibliotecas pobremente dotadas, a Vivarium não conseguiu sobreviver muito tempo após a morte de seu fundador, e seus livros, com acerto, foram dispersos ou vendidos.

Se alguns (pelo menos) foram depois comprados por Ceolfrido, eles estariam por sua vez disponíveis como exemplos para os escribas de Wearmouth-Jarrow, na Nortúmbria. Beda, cujo conhecimento dos estudos clássicos era assombrosamente vasto, talvez tenha tido a sorte de ter acesso às aquisições feitas de uma das mais qualificadas coleções privadas de livros do final do Império Romano, e pode nem mesmo ter se dado conta de que os manuscritos em Jarrow já tinham sido do grande Cassiodoro em pessoa.

 

Cassiodoro e o Codex Grandior

Em suas Institutiones, Cassiodoro afirma possuir uma enorme pandecta com uma tradução latina da Bíblia, que ele chamou de seu “Codex Grandior”, “o manuscrito maior”. Seu texto do Antigo Testamento, ele diz, foi tirado da primeira revisão do grego por Jerônimo, e não da versão posterior da Vulgata mais recentemente traduzida do hebraico. Supõe-se que compreendia 380 folhas.

Considerando a extrema raridade, na época, de quaisquer versões abrangentes da Bíblia em um só volume em latim, esse manuscrito muito provavelmente não era outro senão aquela mesma pandecta de uma “antiga” tradução que fora trazida da Itália por Ceolfrido.

 

O Codex Grandior e o Codex Amiatinus

Cassiodoro diz que tinha inserido em seu Codex Grandior um diagrama com a planta do Templo de Jerusalém, conforme descrita em Êxodo 26. Um esboço exatamente com esses detalhes aparece numa página dupla entre as folhas de abertura do Codex Amiatinus (fólios 6v-7r). Mostra o interior do templo, o próprio Tabernáculo. No centro está o Santo dos Santos, com a Arca da Aliança. Mais adiante Cassiodoro relata (tudo isso está no livro I, capítulo 14, das Institutiones) que ele também incluíra no Codex Grandior diagramas com diferentes maneiras de dividir o texto da Bíblia de acordo com os santos Hilário, Jerônimo e Agostinho, respectivamente. É exatamente isso que encontramos nos fólios 3r, 4r e 8r de Amiatinus.

A mais famosa e estranha das páginas preliminares é o assim chamado retrato de Esdras, já mencionado, agora posto no frontispício. Ele mostra um homem aureolado em vestimentas sacerdotais judaicas sentado num banquinho, encurvado, quase de perfil, escrevendo num livro meio aberto em seu colo. Tem os pés num pedestal baixo. Espalhados a sua volta estão vários instrumentos da profissão de escriba — cálamos, compassos, penas, potes de tinta e o que provavelmente é um prato com pigmentos numa mesa em separado. Atrás dele há um armário aberto com as portas apaineladas bem escancaradas para mostrar cinco prateleiras inclinadas nas quais estão arrumados nove livros encadernados em capas ornamentadas vermelho-escuras. Os detalhes da marcenaria nos móveis e os ornamentos entalhados em torno do armário no Codex Amiatinus são extraordinariamente delicados e sofisticados. Há uma hábil tentativa de um desenho em perspectiva. O pote de tinta lança uma sombra no chão, e vale a pena notar isso só pelo fato de com frequência se dizer que não aparecem sombras na arte europeia até o século XV.

É uma cena estranha, aparentemente mostrando um autor que rascunha um texto e não um escriba que copia um. As palavras em seu livro são indicadas por rabiscos desunidos, que às vezes se alega serem na verdade notas tironianas, tipo de antiga estenografia medieval, mas decerto não passa da forma como o artista representou um texto inespecífico. No topo da página, fora da moldura da figura, há um dístico escrito em maiúsculas rústicas: “Codicibus sacris hostili clade perustis/ Esdra deo fervens hoc reparavit opus”, que significa (mais ou menos) “Tendo os Livros Sagrados sido destruídos num desastre hostil, Esdras, comprometido com Deus, restaurou esta obra”.

Isso alude à ocasião, após o exílio dos judeus na Babilônia, por volta de 457 a.C., em que Esdras foi enviado de volta a Jerusalém e descobriu que as Escrituras hebraicas tinham sido esquecidas e perdidas, e sob orientação divina ele as reconstituiu de memória. É essa legenda, bem como sua vestimenta sacerdotal do Antigo Testamento, que identifica o homem apresentado como Esdras.

Retratos preambulares de autor eram provavelmente uma característica de textos gregos desde a Antiguidade clássica.

Esdras não era propriamente um autor. Sua contribuição, se a considerarmos de modo literal, foi na preservação de textos da primeira parte do Antigo Testamento — não, é claro, toda a inteireza das Escrituras cristãs, a maior parte das quais data de muito depois da época em que ele viveu.

De muitas maneiras, um frontispício mais adequado a uma pandecta de Vulgata inteira teria sido uma imagem de São Jerônimo escrevendo, o que de fato aparece, com frequência, na abertura de muitas Bíblias medievais mais tardias.

O estilo aqui é tão mediterrâneo que deve ter sido copiado de um exemplar importado da Itália, o que também é, presumivelmente, o caso do Codex Grandior, embora Cassiodoro não mencione nele a presença de uma figura assim.

Com frequência se sugere que a pintura no Amiatinus seja na verdade uma figura, que foi mal-entendida, do próprio Cassiodoro, que como Jerônimo (e Esdras, e Ceolfrido) estava comprometido com a preservação e a transmissão da Bíblia após um período de caos. Cassiodoro viveu o saque a Roma pelos ostrogodos em 546, e seu pequeno oásis cristão na Vivarium se dedicava a manter as Escrituras em segurança durante as tormentas da barbárie e da apostasia.

Em suas Institutiones, Cassiodoro descreve não só seu Codex Grandior como também o que ele chama de “novem codices”, os nove volumes separados nos quais ele tinha dividido e copiado o texto da Bíblia. As prateleiras no armário atrás de Esdras na figura mostram exatamente isso: nove tomos bíblicos com títulos na lombada.

Nas reproduções da página esses nomes são quase impossíveis de ler, mas posicionando o manuscrito original de modo que reflita a luz, os nove títulos ficam visíveis com seu brilho contra um campo opaco — o Octateuco, Reis e Crônicas com Jó, oito livros de história, os Salmos, os livros de Salomão, os Profetas, os Evangelhos, as Epístolas e (por fim) Atos e Apocalipse.

No melhor dos casos, apenas a primeira prateleira poderia ser atribuída a Esdras na realidade histórica, mas todas as nove estavam na biblioteca da Vivarium. Faria mais sentido se o modelo para essa figura tivesse sido um retrato de Cassiodoro. É discutível que Cassiodoro tivesse encomendado um retrato de si mesmo, mas seus sucessores e bibliotecários póstumos poderiam facilmente ter inserido um frontispício hagiográfico no Codex Grandior, o favorito de seu falecido patrão.

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Uma Bíblia Vulgata é levada para Roma

Uma nova Bíblia Vulgata para cada igreja, a de Wearmouth e a de Jarrow, é um fato compreensível, conquanto impressionante, mas uma terceira cópia? Quanto a isso só podemos especular.

Talvez houvesse planos que nunca se materializaram para a criação de uma terceira casa nortumbriana, tão distinta e tão indivisível quanto a Trindade (conceito do qualCodex Amiatinus - Biblioteca Medicea Laurenziana, Firenze, Italia eles gostariam); ou talvez — e ele não seria o único no que concerne a isso — Ceolfrido se perguntasse secretamente se sua carreira não o levaria ainda mais longe, talvez como arcebispo da Cantuária com a morte de Teodoro, ou mesmo como papa, e talvez guardasse um volume de reserva para qualquer promoção que lhe fosse oferecida em outro lugar.

Mas o anônimo Vita Ceolfridi e Beda nos contam o que aconteceu depois. Com a avançada idade de 74 anos, Ceolfrido decidiu ir de novo a Roma e levar consigo a terceira pandecta, a reserva, como um presente para São Pedro, o príncipe dos apóstolos. (Era comum a prática medieval de se referir a uma igreja com o nome de seu santo padroeiro, como se ainda estivesse vivo: isso significava, é claro, a corte papal.) A implicação é que esse anúncio veio como uma surpresa para a comunidade de Wearmouth-Jarrow.

Não sabemos qual foi seu motivo, não mais do que sabia Beda. Será que Ceolfrido ainda esperava, em seu íntimo, uma nomeação em Roma, caso em que poderia precisar da Bíblia para facilitar as negociações? O papa Constantino tinha morrido em 9 de abril de 715, e provavelmente a decisão de viajar foi tomada por Ceolfrido mais ou menos quando a notícia chegou à Inglaterra. Ou teria havido em 679 algum tácito entendimento de que ele podia levar livros de Roma para a Nortúmbria em troca de transcrições posteriores? Ambas as hipóteses são possíveis.

A Vita Ceolfridi registra as palavras exatas de uma inscrição que foi inserida no início do tomo, dedicatória a São Pedro da parte de Ceolfrido, abade dos ingleses dos mais distantes confins da Terra (“extremis de finibus”).

Portanto, em junho de 716, como nos diz o relato, essa terceira pandecta, convenientemente já com a dedicatória, foi levada declive abaixo, da igreja de Jarrow para um navio no rio Don, para o Tyne e para o mar, acompanhada de Ceolfrido e um séquito de monges. Foi a primeira exportação documentada de uma obra de arte da Inglaterra.

Mas para nossa lástima, Ceolfrido morreu durante a viagem, em Langres, França central, em setembro, e isso, por mais de mil anos, representou o fim da história.

 

O Codex Amiatinus na abadia de San Salvatore

Há um famoso manuscrito antigo da Bíblia na Itália conhecido como Codex Amiatinus. Era um antigo tesouro do mosteiro de San Salvatore, no monte Amiata, no sul da Toscana, de onde tirou seu nome. Está registrado na lista das relíquias da abadia, datada de 1036, que o descreve como sendo o Antigo e o Novo Testamento “escritos pela mão do abençoado papa Gregório”. Essa atribuição a são Gregório, o Grande (c. 540-604), não era desarrazoada, uma vez que fora escrito em unciais italianizadas, muito parecidas com as do Livro dos Evangelhos de Santo Agostinho, e nunca se duvidou de que tinha sido feito na Itália.

Ele abre com uma dedicatória de página inteira, na qual o livro é presenteado ao mosteiro do Salvador (Salvator) por um certo Pedro, abade dos lombardos, “dos mais distantes confins da Terra”. Mesmo hoje em dia, os toscanos consideram todos os lombardos pessoas de um reino alienígena que fica além das mais afastadas fronteiras da civilização (e vice-versa), e essa inscrição de redação estranha foi aceita com satisfação em San Salvatore em seu valor nominal.

O livro é o mais antigo manuscrito completo sobrevivente da Vulgata e ainda é a principal referência para o estabelecimento do texto da Bíblia latina.

Constantin Tischendorf editou o texto em latim do Novo Testamento no Codex Amiatinus em 1854. Ele anunciou que tinha havido pequenas alterações na dedicatória inserida, e que os nomes de Pedro, abade dos lombardos, e do mosteiro ao qual era dedicado pareciam ter sido escritos cobrindo rasuras.

Trinta anos depois, o epigrafista Giovanni Battista de Rossi (1822-94) por fim decifrou os nomes que estavam por trás e revelou que o manuscrito tinha sido originalmente dedicado a São Pedro por um chamado Ceolfrido, “abade dos ingleses”.

Logo depois, um professor de teologia em Cambridge, F. J. A. Hort (1828-92), relembrou que essas palavras batiam com a transcrição na Vita Ceolfridi e se constatou pela primeira vez que devia ser na realidade a pandecta de Wearmouth-Jarrow, da qual se perdera a pista desde que deixara a Nortúmbria, em 716.

Quando estourou a notícia, em fevereiro de 1887, ela causou sensação, especialmente na Grã-Bretanha. Foi uma década excitante de descobertas bíblicas no Oriente Médio e em Oxirrinco, no Egito, mas poucos anúncios tinham sido tão inesperados quanto a revelação de que a mais antiga cópia completa da Bíblia latina fora na verdade feita na Inglaterra.

Em 1890, H. J. White, mais tarde deão da Igreja de Cristo, em Oxford, disse, com um toque de exagero patriótico, que ela era “talvez o mais belo livro no mundo”.

 

A abadia de San Salvatore

O mosteiro de San Salvatore não fica no cume, mas num platô na encosta leste do monte Amiata, na Toscana, Itália. Em torno dele há uma cidade medieval, e o conjunto é conhecido como Abadia de San Salvatore, pois se desenvolveu como um adjunto à vida do mosteiro, o qual ele cerca e protege.

A história documentada da abadia remonta a 742. Ela se incorporou à Ordem Cisterciense em 1228. Consta que Carlos Magno esteve aqui em 800, em seu caminho em direção ao sul para sua coroação como imperador em Roma. O papa Pio II — Enea Silvio Piccolomini, o erudito humanista — morou aqui durante os meses de verão de 1462. É bem possível que o precioso códex tenha sido mostrado ao imperador e, com certeza, ao papa.

Como o manuscrito era (e ainda é) a referência primordial para o texto em latim da Vulgata, ele assumiu grande importância durante a Contrarreforma. Os assediados católicos do século XVI sentiam-se ameaçados pelas traduções protestantes da Bíblia, que agora eram feitas diretamente das línguas originais das Escrituras, enquanto eles só tinham os textos em latim. O Codex Amiatinus, no entanto, dava a isso uma resposta, ao que parecia, incontestável. Essa “Bíblia de são Gregório” em latim, reputada como do século VI, era substancialmente mais antiga do que qualquer manuscrito em hebraico conhecido e na época só era igualada por um em grego (no Vaticano). Era, portanto, uma grande peça de propaganda na batalha pela precedência de texto.

Em 1572, o capítulo geral dos cistercienses mandou buscá-lo, para consulta; o mesmo fizeram os conselheiros de Gregório XIII. O mosteiro recusou-se a emprestá-lo.

Mais tarde ele foi sumariamente requisitado pelo papa Sisto V, para ser usado como principal fonte na preparação de uma nova edição papal da Bíblia, e o mosteiro não teve escolha. O livro foi para Roma em 12 de julho de 1587 e foi devolvido a San Salvatore em 19 de janeiro de 1590. A Vulgata sistina, nele baseada, foi publicada em 1590 e depois revista como a monumental edição clementina de 1592, a resposta católica a Lutero; é publicada até hoje.

Assim como muitos mosteiros italianos atingidos pela política secular de modernização do Sacro Império Romano no final do século XVIII, a Abadia de San Salvatore foi extinta por completo em junho de 1782.

O Codex Amiatinus na Biblioteca Medicea Laurenziana, em Florença

A existência do Codex Amiatinus foi informada em 1789 ao grão-duque da Toscana, Pedro Leopoldo (1747-92, mais tarde imperador Leopoldo II), como tendo estado “entre as sombras e sob o pó, desconhecido como que perdido”. Ele ordenou que fosse levado do monte Amiata para Florença, primeiro sob a custódia de um seminário, e logo depois para a Biblioteca Laurenziana, onde está agora como Cod. Amiat. 1, provavelmente o mais famoso manuscrito da biblioteca.

A Biblioteca Laurenziana está entre as glórias arquitetônicas e literárias de Florença, uma das mais extasiantes cidades do mundo. Seu cerne é o acervo humanista a princípio reunido por Cosimo de’ Medici, “il Vecchio” (1389-1464), que foi suplementado sobretudo com as aquisições de seu neto Lorenzo, “o Magnífico” (1449-92).

Após a morte de Lorenzo os livros foram saqueados, vendidos e readquiridos pelos Medici, que agora viviam em Roma. Posteriormente as coleções foram devolvidas a Florença por Clemente VII (Giulio di Giuliano de’ Medici, 1478-1534), que encomendou ao próprio Michelangelo o projeto de uma biblioteca nobre para eles acima do claustro da basílica de San Lorenzo, a igreja da família Medici desde 1419. Foi completada em 1571 por Cosimo I de’ Medici (1519-74), grão-duque da Toscana e parente não consanguíneo do papa, e tinha então cerca de 3 mil manuscritos. Ela ainda mantinha algo do caráter de uma biblioteca dinástica quando o grão-duque Pedro Leopoldo ordenou que o Amiatinus fosse levado para lá do extremis finibus de seu ducado, na década de 1780.

O Codex Amiatinus 1

No começo deste ano li um livro de Christopher De Hamel, Manuscritos Notáveis. Fiquei impressionado.

Estava procurando mais informações sobre manuscritos da Vulgata. O capítulo 2 trata do Codex Amiatinus, considerado o manuscrito mais bem preservado da versão latina da Bíblia feita por Jerônimo, conhecida como Vulgata. DE HAMEL, C. Manuscritos notáveis. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, 680 p.

Publiquei no Observatório Bíblico, em 02.02.2024, um post sobre o Codex Amiatinus. Entre as obras indicadas está o livro de Christopher De Hamel. E um link para um resumo que fiz do capítulo 2.

Agora decidi colocar aqui em 5 posts o resumo, ali disponível em pdf, mas pouco visível.

O livro é: DE HAMEL, C. Manuscritos notáveis. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, 680 p. – ISBN ‎ 9788535929867. Em inglês é: Meetings with Remarkable Manuscripts: Twelve Journeys Into the Medieval World. New York: Penguin Press, 2017.

 

O Codex Amiatinus 1
O Codex Amiatinus 2
O Codex Amiatinus 3
O Codex Amiatinus 4
O Codex Amiatinus 5

 

Os mosteiros de Wearmouth-Jarrow e o abade Bento Biscop

Da Inglaterra do século VII, muito pouca coisa restou sobre o solo. Vestígios da arquitetura do período ainda podem ser vistos na extremidade oeste da igreja paroquial de São Pedro em Monk Wearmouth, no moderno condado de Tyne and Wear, extremo nordeste da Inglaterra, onde era a antiga Nortúmbria.

Há claras marcações no gramado ao sul da igreja indicando o perímetro de escavações arqueológicas recentes, mas é preciso muita imaginação para conceber isso como uma paisagem selvagem da Idade das Trevas, perto de onde o grande rio Wear desemboca no mar do Norte (nenhum dos quais se avista hoje da igreja), num terreno ofertado em 674 por Egfrido, rei da Nortúmbria, para a fundação de um grande mosteiro no modelo dos da Roma clássica tardia.

O primeiro abade e fundador dessa nova abadia do norte foi Bento Biscop (c. 628-90), um nobre local que visitou Roma nada menos que cinco vezes em sua vida. Essas experiências tiveram claramente um enorme impacto em sua percepção cultural. Ele decidiu tornar-se um monge. Em sua terceira viagem, em 669, acompanhou na volta à Inglaterra o sétimo arcebispo da Cantuária, na sucessão a Santo Agostinho, Teodoro de Tarso (602-90), a quem se credita ter instituído o ensino de grego no sul da Inglaterra. Em troca, Teodoro nomeou Bento abade efetivo do mosteiro vizinho na Cantuária, depois conhecido como Abadia de Santo Agostinho.

Quando, vários anos depois, em 674, o rei Egfrido ofereceu o terreno à margem do Wear para um mosteiro, Bento foi o candidato óbvio a ser enviado de volta à Nortúmbria. Conhecemos os detalhes disso a partir das incomparáveis histórias de Beda (c. 672-735), gênio preeminente entre os escritores anglo-saxões.

 

Bento Biscop e Ceolfrido em Roma e as Bíblias levadas para a Nortúmbria

Após estabelecer a nova casa em Wearmouth, Bento viajou de novo para Roma em 679, acompanhado pelo jovem monge Ceolfrido (c. 642-716). Os dois viajantes compraram lá, ou de algum modo obtiveram, “uma imensurável quantidade de livros de todos os tipos”, como expressou Beda, fato que terá destaque na história que se segue. Beda, que conhecia os dois, deixa implícito que foi Ceolfrido e não Bento quem adquiriu em Roma o texto da nova tradução da Bíblia (isto é, a Vulgata de Jerônimo) em três manuscritos, junto com uma vasta pandecta — ou seja, um volume abrangente — da Bíblia inteira, descrita como uma “antiga” versão das Escrituras. Esses e outros livros, bem como relíquias e objetos sacros, foram todos enviados e vieram junto com Bento e Ceolfrido para Wearmouth.

Os monges ingleses também cooptaram pessoas em Roma, inclusive um chantre chamado João, que veio para ensinar a prática de canto romana, e provavelmente artífices praticantes. As informações para visitantes no exterior da igreja em Monk Wearmouth hoje registram como as escavações no sítio revelaram vestígios de vidro e argamassa romana, técnicas que não eram conhecidas no norte da Europa naquele tempo.

Christopher De Hamel (1950-)Os livros trazidos de Roma, muito valorizados na época de Beda, há muito desapareceram, exceto (talvez) um pequeno fragmento italiano do século VI, tradução feita por Jerônimo do livro dos Macabeus para o latim, que sobreviveu por sorte, ao ser reutilizado como folha de guarda num manuscrito medieval na biblioteca da Catedral de Durham.

Em 682, o rei Egfrido deu aos monges mais terras, em Jarrow, cerca de onze quilômetros a noroeste, próximo da foz de outro grande rio nortumbriano, o Tyne. Os monges decidiram construir uma segunda igreja. O abade Bento Biscop confiou essa tarefa a Ceolfrido, que se mudou para o novo local com vinte membros do mosteiro, inclusive Beda, que era então adolescente e um monge iniciante.

Os dois estabelecimentos eram tidos como uma só comunidade, a uma distância um do outro que se podia percorrer a pé. Historiadores modernos referem-se comumente aos mosteiros gêmeos como “Wearmouth-Jarrow”, como se fossem um único local, e é costumeiro se referirem “à biblioteca” ou “ao scriptorium” de Wearmouth-Jarrow como sendo entidades indistinguíveis. Wearmouth foi dedicada a São Pedro, e Jarrow a São Paulo, os patronos conjuntos da Roma cristã.

É provável que Ceolfrido tenha transferido para Jarrow os manuscritos que ele mesmo tinha adquirido em Roma, já que Beda, claramente, continuou tendo acesso a eles, mas assim mesmo continuaram a ser propriedade conjunta de ambas as igrejas. Em 686 Ceolfrido foi nomeado abade das duas casas, e continuou a viver em Jarrow por mais trinta anos.

 

Ceolfrido encomenda três Bíblias completas

Há dois relatos do início do século VIII relacionados com a cópia de mais manuscritos bíblicos sob o patrocínio de Ceolfrido. Tendo em vista a raridade de quaisquer referências documentais à produção anglo-saxã de livros, eles merecem ser examinados com cuidado.

O primeiro refere-se a uma biografia anônima de Ceolfrido, decerto escrita por um de seus monges. Ele registra que Ceolfrido enriqueceu muito o acervo da igreja em Jarrow e que aumentou consideravelmente a coleção de livros que ele e Bento Biscop tinham trazido de Roma. O autor explica que Ceolfrido encomendou mais três Bíblias completas (ou pandectas), das quais uma foi deixada em cada igreja dos mosteiros gêmeos, de modo que quem quer que desejasse ler uma passagem de qualquer um dos testamentos poderia fazê-lo sem dificuldade. Não consta uma data certa para eles, exceto que aconteceram durante o abadado de Ceolfrido, mas esses manuscritos provavelmente tiveram início nas últimas décadas do século VII, e o trabalho deve ter continuado no início do século VIII.

Beda, que sem dúvida estava muito familiarizado com a cópia exibida na igreja de Jarrow, faz um ligeiro complemento desse relato em sua Historia abbatum. Ele descreve como Ceolfrido trouxe uma pandecta de uma “antiga” tradução da Bíblia de Roma e depois ampliou esse benefício fazendo mais três cópias dela, mas com um “novo” texto em vez do primeiro. Essa última observação é de importância. É característico de Beda ter noticiado e registrado qual tradução estava sendo usada. Os escribas sob a direção de Ceolfrido modelavam suas cópias no formato da grande pandecta que tinham recebido da Itália, mas agora eles substituíram o texto para que fosse o da mais moderna Vulgata de Jerônimo. Esse fato vai se tornar significativo na história.

A leitura massorética tiberiana da Bíblia Hebraica

Esta é uma tradução do capítulo I, The Tiberian Masoretic Tradition, do livro de KHAN, G. A Short Introduction to the Tiberian Masoretic Bible and its Reading Tradition. 2. ed. Piscataway, NJ: Gorgias Press, 2013, 156 p. – ISBN 9781463202460.

O capítulo I ocupa as páginas 1-11. As 8 notas de rodapé foram omitidas aqui, o mesmo ocorrendo com alguns elementos do texto. Os subtítulos foram acrescentadosKHAN, G. A Short Introduction to the Tiberian Masoretic Bible and its Reading Tradition. 2. ed. Piscataway, NJ: Gorgias Press, 2013, 156 p. por mim.

A intenção é oferecer aos meus alunos, e a outros potenciais leitores, uma ideia de como chegou até nós o texto da Bíblia Hebraica / Antigo Testamento mais utilizado hoje.

O livro é de uma clareza impressionante e recomendo a sua leitura completa para quem quiser ter um primeiro contato com o tema. Está disponível para download gratuito na página do autor em Academia.edu

O autor, o britânico Geoffrey Khan, é um conhecido especialista em línguas semíticas da Universidade de Cambridge, Reino Unido.

Diz o autor no prefácio:

Este livro pretende fornecer uma breve visão introdutória da tradição massorética tiberiana da Bíblia Hebraica e seus antecedentes. Foi esta tradição que produziu os grandes códices massoréticos da Idade Média, que constituem a base das modernas edições impressas da Bíblia Hebraica. A apresentação dá especial destaque à natureza multifacetada da tradição massorética. Essas camadas incluem os vários componentes do texto escrito que sobreviveu nos manuscritos massoréticos medievais, bem como a tradição de leitura que foi transmitida oralmente na Idade Média. É dada especial atenção à tradição de leitura tiberiana.

This small book is intended to provide a short introductory overview of the Tiberian Masoretic tradition of the Hebrew Bible and its background. It was this tradition that produced the great Masoretic codices of the Middle Ages, which form the basis of modern printed editions of the Hebrew Bible. The presentation gives particular prominence to the multi-layered nature of the Masoretic tradition. These layers include the various components of the written text surviving in the medieval Masoretic manuscripts as well as the reading tradition that was transmitted orally in the Middle Ages. Particular attention is given to the Tiberian reading tradition.

Diz o capítulo I:

A tradição massorética tiberiana

As edições impressas da Bíblia Hebraica atualmente em uso baseiam-se em manuscritos medievais provenientes da escola dos massoretas de Tiberíades. Os massoretas eram estudiosos que se dedicavam a preservar as tradições de escrita e leitura da Bíblia. O seu nome deriva do termo hebraico masorah ou masoret, cujo significado é “transmissão de tradições”. Os massoretas tiberianos atuaram durante vários séculos na segunda metade do primeiro milênio d.C.

As fontes medievais referem-se a diversas gerações de massoretas, alguns deles pertencentes à mesma família. A mais famosa destas famílias é a de Aharon ben Asher (século X), cujos antepassados estiveram envolvidos em atividades massoréticas durante cinco gerações. Os massoretas continuaram o trabalho dos soferim (“escribas”) dos períodos talmúdico e do Segundo Templo, que também estavam ocupados com a transmissão correta do texto bíblico.

Os massoretas tiberianos desenvolveram o que pode ser chamado de tradição massorética tiberiana. Este foi um corpo de tradição que gradualmente tomou forma ao longo de dois ou três séculos e continuou a crescer até ser finalmente consolidado e as atividades dos massoretas cessarem no início do segundo milênio.

Durante o mesmo período existiam círculos de massoretas também na região da antiga Babilônia, atual Iraque. Entretanto, foi a tradição dos massoretas tiberianos que se tornou virtualmente a tradição massorética exclusiva no judaísmo no final da Idade Média e tem sido seguida por todas as edições impressas da Bíblia Hebraica.

A tradição massorética tiberiana está registrada em vários manuscritos medievais. A maioria deles foi escrita depois de 1100 d.C. e são cópias de manuscritos mais antigos feitos em várias comunidades judaicas.

As primeiras edições impressas são baseadas nesses manuscritos medievais tardios. A mais confiável dessas primeiras edições foi a chamada segunda Bíblia Rabínica (ou seja, o texto bíblico combinado com comentários e traduções, conhecido como Miqraʾot Gedolot) editada por Jacob ben Ḥayyim ben Adoniyahu e impressa na gráfica de Daniel Bomberg em Veneza entre 1524 e 1525. Essas primeiras Bíblias Rabínicas parecem ter sido baseadas em mais de um manuscrito. Este passou a ser considerado um textus receptus e foi usado como base para muitas edições subsequentes da Bíblia Hebraica.

Um pequeno número de manuscritos sobreviventes são registros de primeira mão da tradição massorética tiberiana. Foram escritos no Oriente Médio antes de 1100 d.C., quando os massoretas ainda estavam ativos. São, portanto, as testemunhas mais confiáveis da tradição massorética tiberiana. Todos eles vêm do fim, ou perto do fim, do período massorético, quando a tradição massorética se tornou fixa na maioria dos seus detalhes. O manuscrito datado mais antigo neste corpus foi escrito no século IX. Depois de 1100 d.C., a tradição fixa foi transmitida por gerações de escribas.

Algumas das edições modernas da Bíblia são baseadas nesses manuscritos antigos, por ex. a Biblia Hebraica a partir da terceira edição (1929–1937) em diante (cuja última edição é a Biblia Hebraica Quinta, 2004–), The Hebrew University Bible (1975–), as edições de A. Dotan (1973, revisada em 2001) e M. Breuer (1977–1982) e a edição moderna da Bíblia Rabínica de M. Cohen (conhecida como Ha-Keter, Ramat-Gan, 1992—).

 

Os oito componentes da tradição massorética tiberiana

A tradição massorética tiberiana pode ser dividida nos seguintes componentes:
1. O texto consonantal da Bíblia Hebraica
2. A diagramação do texto e a forma codicológica dos manuscritos
3. As indicações de divisões de parágrafos (conhecidas em hebraico como pisqaʾot ou parashiyyot)
4. Os sinais de acento, que indicavam a cantilena musical do texto e também a posição do acento principal de uma palavra
5. A vocalização, que indicava a pronúncia das vogais e alguns detalhes da pronúncia das consoantes na leitura do texto
6. Notas sobre o texto, escritas nas margens do manuscrito
7. Tratados massoréticos: alguns manuscritos possuem apêndices no final do texto bíblico contendo vários tratados sobre aspectos dos ensinamentos dos massoretas
8. Tradição de leitura transmitida oralmente.

Os primeiros sete desses componentes são escritos, enquanto o oitavo existia apenas oralmente.

Geoffrey Khan (1958-)A tradição de leitura transmitida oralmente foi transmitida de geração em geração durante o período massorético. Esta tradição de leitura é parcialmente representada em forma gráfica pelos sinais de acento e pelos sinais de vocalização e é descrita até certo ponto nos tratados massoréticos. Esses componentes escritos da tradição massorética, porém, não registram todos os detalhes da tradição de leitura, especialmente no que diz respeito à pronúncia das consoantes. A tradição de leitura tiberiana transmitida oralmente, portanto, deve ser tratada como um componente adicional da tradição massorética tiberiana. Esta tradição de leitura complementava o texto consonantal, mas era independente dele até certo ponto, como mostra o fato de que os sinais de vocalização às vezes refletem uma leitura diferente daquela representada pelo texto consonantal. Nesses casos, a terminologia massorética tradicional distingue entre qere (“o que é lido”) e ketiv (“o que está escrito”).

 

Componentes herdados e componentes criado pelos massoretas

É este complexo de componentes, escritos e orais, que formou a tradição massorética tiberiana. Uma distinção cuidadosa deve ser feita entre os componentes desta tradição: em alguns casos os massoretas tiveram um papel direto na sua criação, e em outros casos os componentes foram herdados de um período anterior.

Os componentes principais que foram herdados da tradição anterior incluem o texto consonantal, as divisões de parágrafos, a tradição de leitura oral e alguns dos conteúdos das notas textuais.

Os outros componentes, ou seja, os sinais de pronúncia e vocalização e a maioria das notas textuais e tratados, foram desenvolvidos pelos massoretas no período massorético.

No final do período massorético os componentes escritos da tradição massorética tiberiana tornaram-se fixos e foram transmitidos nesta forma fixa por escribas posteriores. Em contraste, o componente oral, ou seja, a tradição de leitura tiberiana, foi rapidamente esquecida e parece não ter sido transmitida muito depois do século XII.

 

As várias correntes de tradição da escola tiberiana

Os massoretas tiberianos não desenvolveram uma tradição completamente uniforme. Dentro da escola tiberiana havia várias correntes de tradição que diferiam umas das outras em pequenos detalhes. Essas diferentes correntes foram associadas aos nomes de massoretas individuais.

As diferenças que mais conhecemos foram entre Aharon ben Asher e Moshe ben Naftali, que pertencia à última geração de massoretas no século X.

Os pontos de desacordo entre estes dois massoretas estão registrados em listas no final de muitos dos primeiros manuscritos da Bíblia tiberiana. Eles foram coletados por Mishaʾel ben ʿUzziʾel em um tratado árabe conhecido como Kitāb al-Khilaf “O livro das diferenças”.

Essas diferenças são apenas em detalhes muito pequenos. Aproximadamente três quartos dizem respeito à colocação do chamado sinal gaʿya (mais tarde conhecido como meteg), que complementa os sinais de acento principalmente com o propósito de marcar o acento secundário nas palavras.

Há concordância no texto consonantal e também, em praticamente todos os casos, na vocalização e nos sinais de acento. A existência destas listas de diferenças reflete o processo de fixação e padronização da tradição massorética.

Sabemos de outras fontes sobre uma série de diferenças entre os massoretas das gerações anteriores ao século IX. Novamente, estes dizem respeito apenas a pequenos detalhes.

No encerramento do período massorético, após a geração de Aharon ben Asher, a tradição massorética tiberiana não havia se fixado na escola de um massoreta específico. Uma fonte do século XI refere-se à possibilidade de seguir a escola de Ben Asher ou a de Ben Naphtali, sem qualquer avaliação.

A escola Ben Asher finalmente tornou-se dominante somente quando foi adotada pelo influente estudioso judeu Moses Maimonides (1135-1204). Quando residia no Egito, Maimônides examinou um manuscrito com vocalização e acentos escrito pela mão de Aharon ben Asher e declarou que era o modelo que deveria ser seguido.

É provável que “O livro das diferenças” entre Ben Asher e Ben Naphtali (Kitāb al-Khilaf) tenha sido composto por Mishaʾel ben ʿUzziʾel logo após este pronunciamento de Maimônides.

 

A adoção do codex

Os manuscritos massoréticos tiberianos são códices, ou seja, livros que consistem em coleções de folhas duplas costuradas (conhecidas em fontes hebraicas como miṣḥaph <árabe muṣḥaf).

A Bíblia Hebraica começou a ser produzida em forma de codex durante o período islâmico. Os primeiros códices sobreviventes com colofões explicitamente datados foramInício do livro do Gênesis no Codex de Leningrado escritos no século X d.C. Todos eles se originam das comunidades judaicas no Oriente Médio.

Há evidências indiretas de algumas fontes rabínicas de que o codex já havia sido adotado para Bíblias hebraicas no século VIII d.C.

Antes disso a Bíblia Hebraica era sempre escrita em rolos (de pergaminho). Após a introdução do codex, os rolos continuaram a ser usados para escrever a Bíblia Hebraica. Cada tipo de manuscrito, porém, tinha uma função diferente.

Os rolos eram usados para leitura litúrgica pública nas sinagogas, enquanto os códices eram usados para fins de estudo e leitura não litúrgica.

O rolo era a antiga forma de manuscrito consagrada pela tradição litúrgica e era considerado inaceitável pelos massoretas mudar o costume de escrever o rolo, adicionando os vários componentes escritos da tradição massorética que eles desenvolveram, como vocalização, acentos e notas marginais. O codex não tinha tal tradição no Judaísmo e, portanto, os massoretas sentiram-se livres para introduzir nesses tipos de manuscrito os componentes massoréticos escritos recentemente desenvolvidos.

O desejo de colocar por escrito, na Idade Média, os muitos componentes da tradição massorética que haviam sido anteriormente transmitido oralmente foi sem dúvida uma das principais motivações para a adoção do codex neste período.

O codex estava disponível como formato de produção de livros desde o período romano. Começou a ser usado para a escrita de bíblias cristãs já no século II. Os primeiros códices datáveis do Alcorão existentes são anteriores aos códices datados da Bíblia Hebraica em cerca de dois séculos. O fato de o termo hebraico medieval para Bíblia, miṣḥaph, ser um empréstimo do árabe musṣḥaf sugere, de fato, que os judeus tomaram emprestado o formato dos muçulmanos.

Podemos dizer que o rolo litúrgico permaneceu o núcleo da tradição bíblica, enquanto o codex massorético foi concebido como auxiliar desta. Esta distinção de função entre rolos litúrgicos sem vocalização, acentos ou notas massoréticas, por um lado, e códices massoréticos, por outro, continuou nas comunidades judaicas até os dias atuais.

Ocasionalmente, na Idade Média, eram feitos acréscimos massoréticos aos rolos de pergaminho se eles, por algum motivo, se tornassem impróprios para uso litúrgico. O fato de as folhas de um codex terem sido escritas em ambos os lados, ao contrário dos pergaminhos bíblicos, e o seu formato prático geral significava que todos os 24 livros da Bíblia podiam ser encadernados num único volume, como é o caso do Codex de Aleppo e do Codex de Leningrado.

O formato de rolo, menos prático, significava que os livros da Bíblia tinham de ser divididos em uma série de rolos separados. Em muitos casos, porém, os códices consistiam apenas em seções da Bíblia, seguindo as três divisões principais do Pentateuco (Torá), Profetas (Neviʾim) e Escritos (Ketuvim), ou até unidades menores.

Muitos deles estão entre aqueles que deveriam ser classificados como “manuscritos populares”.

Os rolos geralmente diferiam dos códices massoréticos não apenas na falta de vocalização, acentos e notas massoréticas, mas também na adição de traços ornamentais chamados taggin (‘coroas’) às letras hebraicas shin, ʿayin, ṭet, nun, zayin, gimel e ṣade.

A tarefa de escrever códices era geralmente dividida entre dois escribas especializados. A cópia do texto consonantal era confiada a um escriba conhecido como sopher, que também escrevia rolos. A vocalização, os acentos e as notas massoréticas, por outro lado, eram geralmente acrescentados por um escriba conhecido como naqdan (vocalizador) ou por um massoreta. Isto reflete o fato de que a tradição de transmissão do texto consonantal e a tradição de transmissão dos componentes massoréticos não estavam completamente integradas.

Até agora fizemos uma distinção entre os manuscritos da Bíblia Hebraica escritos em rolos e os escritos em códices massoréticos, e também entre os primeiros códices tiberianos datáveis de antes de 1100 e códices posteriores.

 

Os vários tipos de códices

No período inicial, coincidindo ou próximo à época em que os massoretas estavam ativos, podemos distinguir entre vários tipos de códices da Bíblia Hebraica.

O tipo de codex mencionado na discussão anterior é o que pode ser chamado de codex “modelo”, que foi cuidadosamente escrito e preservou com precisão os componentes escritos da tradição massorética tiberiana. Tais manuscritos geralmente estavam em posse de uma comunidade, como mostram seus colofões, e eram mantidos em local público de estudo e culto para consulta e cópia (para produzir tanto códices quanto rolos). Referências a vários códices modelo e suas leituras são encontradas nas notas massoréticas, por exemplo, Codex Muggah, Codex Hilleli, Codex Zambuqi e Codex Yerushalmi. Às vezes, manuscritos escritos com precisão também contêm o texto de um targum aramaico.

Além destes modelos de códices massoréticos, existiam numerosos códices bíblicos chamados “populares”, que geralmente estavam na posse de particulares. Estes não foram escritos com tanta precisão como os códices modelo e geralmente não incluíam todos os componentes escritos da tradição massorética tiberiana. Freqüentemente, eles não contêm acentos ou notas massoréticas, mas apenas vocalização, e isso pode divergir do sistema tiberiano padrão de vocalização em vários detalhes.

Uma característica notável de alguns códices populares é que eles adaptam o texto consonantal escrito para fazê-lo corresponder mais de perto à tradição de leitura. Um caso extremo disso é representado por um corpus de manuscritos da Bíblia Hebraica que contém uma transcrição árabe da tradição de leitura. Estes foram usados por alguns judeus caraítas.

Alguns manuscritos bíblicos populares não passam de memorandos da tradição de leitura, na medida em que são escritos em uma forma taquigráfica conhecida como serugin. Nestes textos, a primeira palavra de um versículo é escrita por extenso, seguida por uma única letra de cada uma das outras palavras importantes do versículo.

Alguns manuscritos bíblicos populares eram acompanhados de um targum aramaico ou de uma tradução e comentário em árabe.

Mas nem todos os manuscritos populares foram necessariamente escritos de forma descuidada. A característica crucial de sua produção era que os escribas se sentiam menos limitados pela tradição do que pela cópia dos manuscritos modelo. Muitos deles se distinguem dos manuscritos modelo também por suas dimensões menores.

Havia, portanto, três classes de manuscritos da Bíblia Hebraica no início da Idade Média: (1) rolos de pergaminhos usados para leitura pública na liturgia; (2) modelos de códices massoréticos, cujo objetivo era preservar toda a tradição bíblica, tanto a tradição escrita como a tradição de leitura; (3) manuscritos populares que auxiliavam as pessoas na leitura do texto.

Vamos descrever aqui brevemente dois dos modelos de códices massoréticos tiberianos sobreviventes que passaram a ser considerados entre os mais importantes e foram usados ​​em edições críticas modernas, ou seja. o Codex de Aleppo (século X d.C.) e o Codex de Leningrado (datado de 1009 d.C.).

Ambos os manuscritos são originários do Oriente Médio, assim como a grande maioria dos primeiros códices. Os primeiros manuscritos orientais começaram a chamar a atenção dos estudiosos no século XIX, principalmente devido à coleção de manuscritos orientais reunida por Abraham Firkovitch (1787-1874), a maioria dos quais foram vendidos para o que hoje é a Biblioteca Nacional da Rússia em São Petersburgo.

Um avanço importante foi também a descoberta da Genizah do Cairo no final do século XIX, que continha muitos fragmentos dos primeiros manuscritos bíblicos orientais, a maioria dos quais estão agora na posse da Biblioteca da Universidade de Cambridge, Reino Unido.

Os primeiros códices sobreviventes escritos na Europa datam do século XII. Todos os códices medievais refletem uma tradição massorética basicamente uniforme, embora não haja dois manuscritos completamente idênticos. As diferenças às vezes são resultado de erros dos escribas e outras vezes devido a um sistema ligeiramente diferente de marcação de vocalização ou acentos.

 

O Codex de Aleppo

No cólofon deste manuscrito afirma-se que o massoreta Aharon ben Asher (século X d.C.) acrescentou a vocalização, os acentos e as notas massoréticas. Isto é confirmado pela comparação com as declarações relativas à tradição de Ben Asher no ‘Livro das diferenças’ (Kitāb al-Khilaf) de Mishaʾel ben ʿUzziʾel.Js 1,1 no Codex de Aleppo

Na verdade, acredita-se que seja o manuscrito que Maimônides examinou quando declarou que a tradição de Ben Asher era superior à de outros massoretas. Deveria ser considerada, portanto, como a edição autorizada na tradição judaica. Quando Maimônides viu o manuscrito, ele estava guardado no Egito, possivelmente na sinagoga Ben-Ezra em Fusṭāṭ, que mais tarde se tornou famosa por sua genizah [a Genizah do Cairo]. A partir do final da Idade Média, porém, foi mantido em Aleppo.

Em 1948 a sinagoga onde estava guardado em Aleppo foi incendiada e apenas cerca de três quartos do manuscrito original foram preservados. As porções sobreviventes são agora mantidas em Jerusalém, na biblioteca do Instituto Ben-Zvi.

Foi publicado em uma edição fac-símile por Goshen-Gottstein (1976). Este manuscrito forma a base de uma série de edições israelenses da Bíblia Hebraica, incluindo a Bíblia da Universidade Hebraica (Goshen-Gottstein 1975), a edição de M. Breuer (Jerusalém 1977-1982, reeditada em 1996-1998 com inclusão de novas informações sobre as divisões da parashah) e a moderna Bíblia Rabínica (Ha-Keter) editada por M. Cohen (1992–).

 

O Codex de Leningrado

O cólofon do manuscrito afirma que foi escrito em 1009 e posteriormente corrigido “de acordo com os textos mais exatos de Ben Asher”. Não foi, portanto, o trabalho original de uma autoridade massorética, ao contrário do Codex de Aleppo, que foi produzido diretamente pelo massoreta Aharon ben Asher.

O Codex de Leningrado difere ligeiramente do Codex de Aleppo em alguns pequenos detalhes. O manuscrito foi preservado em sua totalidade e contém o texto completo da Bíblia. Paul Kahle fez disso a base da terceira edição da Bíblia Hebraica (Stuttgart 1929-1937) e tem sido usado em todas as edições subsequentes. É também a base da edição da Bíblia Hebraica de A. Dotan (Tel-Aviv 1976)

 

Os sistemas babilônico, palestino e tiberiano-palestino

Na Idade Média, os manuscritos da Bíblia Hebraica também foram escritos com sistemas de vocalização e acentuação que diferiam daqueles da tradição massorética tiberiana.

Alguns desses sistemas são adaptações do sistema tiberiano, como o sistema tiberiano-palestino. Outros sistemas usam diferentes conjuntos de sinais. Estes incluem os sistemas de vocalização palestinos e babilônicos, encontrados em numerosos manuscritos da Idade Média. Não há uniformidade entre os sistemas palestino e o babilônico e é possível identificar uma série de subsistemas.

No final da Idade Média esses sistemas foram quase completamente suplantados nos manuscritos pela tradição massorética tiberiana padrão. Uma questão importante é: qual era o seu estatuto em relação à tradição tiberiana na Idade Média?

Tanto quanto pode ser estabelecido, eles exibem uma convergência com o sistema tiberiano no decurso do seu desenvolvimento. As primeiras formas dos sistemas de vocalização palestino e babilônico têm muitas características que são independentes do sistema tiberiano, mas gradualmente a tradição tiberiana exerceu sua influência e, de fato, alguns manuscritos são pouco mais do que transcrições da tradição tiberiana em sinais vocálicos babilônicos ou palestinos.

O Codex de Leningrado

O Codex de Leningrado está na Biblioteca Nacional da Rússia, em São Petersburgo.

Embora a cidade tenha mudado seu nome de Leningrado para São Petersburgo, o livro ainda é chamado de Codex de Leningrado (B 19A). É o manuscrito completo mais antigo da Bíblia Hebraica do mundo.

(…)

O Codex de Leningrado, ou L, para abreviar, pode ser datado por volta de 1008 a 1010 d.C. Como o próprio nome indica, é um livro com páginas, ou folhas, e não umO Codex de Leningrado (1008 d.C.) - Biblioteca Nacional da Rússia, São Petersburgo pergaminho. Já no primeiro século d. C. os estudiosos cristãos começaram a transmitir suas obras sagradas em Codex, em vez de pergaminhos, e no século terceiro o Codex era o padrão. No mundo judaico, contudo, o Codex só foi adotado por volta do século sétimo.

(…)

O Codex de Leningrado possui dois colofões. De uma palavra grega κολοφών que significa “cume”, “topo”, “final”, cólofon é uma inscrição que contém o título, o nome do escriba ou impressor e a data e local da composição [ou seja, o cólofon trazia as informações agora fornecidas na página de rosto de uma publicação]. O Codex de Leningrado tem um cólofon no início e outro no final (fólio [ou folha] 1a e fólio 491b).

L também é a mais antiga Bíblia Hebraica completa com sinais indicando vogais. O hebraico geralmente é escrito apenas com consoantes. Infelizmente, isto frequentemente deixa espaço para ambiguidade e incerteza; muitas vezes são possíveis várias vogais diferentes e, portanto, várias leituras alternativas.

Para remediar esta situação, vários sistemas de sinais vocálicos subscritos e sobrescritos foram criados por diferentes escolas na Palestina por volta do século X. O sistema mais conhecido, e o que prevaleceu, foi concebido em Tiberíades pelos massoretas, ou escribas, associados à família Ben Asher. Esses escribas também anotavam seus textos com notas marginais – na parte superior, inferior e nas laterais da página. As notas de L são quase tão importantes quanto o seu texto.

O texto preparado por esses massoretas é conhecido como Texto Massorético. Permanece até hoje o texto padrão da Bíblia Hebraica.

O escriba que escreveu o Codex de Leningrado identificou-se nos dois colofões e no centro de uma estrela em uma das requintadas páginas decoradas do manuscrito (fólio 474a). Ele é Shemu’el ben Ya’aqov, ou Samuel, filho de Jacó.

No primeiro cólofon, o escriba nos conta que o manuscrito foi escrito no Cairo (medinat misrayim, que significa capital do Egito). O homem que encomendou o manuscrito também é identificado — quatro vezes, na verdade — como Mevorak ha-Kohen ben-Netan’el. Mevorak significa o Abençoado. Ele é sacerdote (ou descendente de um – o nome judaico “Kohen” denota uma família sacerdotal), filho de Natanael.

A data do manuscrito é dada de cinco maneiras diferentes: 4.770 anos desde a criação do mundo, 1.444 anos desde o exílio do rei Joaquim (586 a.C.), 1.319 anos desde o “domínio grego” (a era selêucida, começando em 309 a.C.), 940 anos desde a destruição romana do Segundo Templo (70 d.C.) e 399 anos desde a Hégira (a fuga de Maomé de Meca para Medina para escapar da perseguição em 622 d.C.).

Quando convertemos estas datas para o nosso calendário, surgem datas ligeiramente diferentes: de 1008 a 1010.

Uma nota no final do primeiro cólofon nos diz que o manuscrito foi comprado em 1489 pelo chefe de uma yeshiva, ou academia rabínica (não sabemos nada sobre o manuscrito entre 1010 e 1489). São fornecidos o nome do comprador e o nome da yeshiva. Três meses após esta compra, foi doado à sinagoga caraíta de Damasco, como aprendemos em outra nota do primeiro cólofon. Como o nome do comprador é o mesmo do doador – é traduzido tanto em judaico-árabe (Ishaq ibn Musa) quanto em hebraico (Yishaq ben-Moshe ben-Eliyahu ben-Alula) – o Codex provavelmente chegou a Damasco pelo época em que foi comprado em 1489.

Assim como nada sabemos sobre as peregrinações do manuscrito de 1010 a 1489, nada sabemos sobre ele depois disso, até que foi adquirido em meados do século XIX por um dos grandes heróis-bandidos da história dos manuscritos: Abraham Firkovich.

Firkovich era caraíta, e isso é importante para a nossa história. Os caraítas aparentemente se originaram na Babilônia e romperam com o judaísmo rabínico por volta de 760 d.C. A principal diferença doutrinária entre os rabanitas e os caraítas era que estes últimos rejeitavam a chamada Lei Oral incorporada no Talmud, sustentando que somente a Bíblia deveria ser seu guia.

Como tantas vezes acontece com os irmãos, a hostilidade entre os caraítas e os rabanitas era muitas vezes intensa. No entanto, até ao final do século XVIII, ambos se consideravam judeus e consideravam até as suas polêmicas mais destemperadas como assuntos judaicos internos.

Codex de Leningrado - Início do livro do GênesisEm 1795, porém, a Rússia conquistou a Crimeia, que abrigava uma grande comunidade caraíta. Os russos logo aliviaram os caraítas do duplo imposto cobrado dos judeus. Os caraítas também foram autorizados a adquirir terras, ao contrário dos judeus não-caraítas. Em 1827, os caraítas foram isentos do temido recrutamento militar, novamente ao contrário dos judeus. Para melhorar ainda mais a sua situação política, os caraítas começaram a impressionar o governo com as suas diferenças fundamentais em relação aos judeus, isto é, aos rabanitas.

Finalmente, em 1840, os caraítas foram colocados em pé de igualdade legal com os muçulmanos, um avanço significativo. Nessa época, os caraítas eram ricos proprietários de terras; seus primos de classe baixa, os judeus rabanitas, eram em grande parte vendedores ambulantes e artesãos.

É neste contexto histórico que devemos compreender Abraham Firkovich. Ele nasceu em 1786 em Lutsk (Luck), Polônia, centro das comunidades caraítas na Lituânia. Embora tenha escrito uma autobiografia, sabemos muito pouco sobre seus primeiros anos – principalmente que ele era o hazzan, ou cantor, em uma sinagoga caraíta em Lutsk.

Ele viajou durante vários anos pelas regiões do sudoeste da Rússia, zeloso em seu esforço para descobrir as origens dos caraítas. Ele estava determinado a provar que eles descendiam de um grupo antigo de judaítas que migraram para a Crimeia após o exílio babilônico (século VI a.C.) – e, portanto, muito antes da Era Comum e muito antes do advento do Judaísmo Rabínico. Se isto fosse verdade, teria fornecido a base para melhorias ainda maiores no status dos caraítas.

Em fevereiro de 1839, Firkovich escreveu uma carta ao seu patrono, Simhah Bobowich, o chefe hakham (homem sábio) dos caraítas russos, na qual reconhecia que os caraítas se separaram dos rabanitas por volta de 640 d.C .(esta data é um pouco anterior). “Assim”, escreveu ele, “teríamos sido participantes do assassinato de Jesus, o que não é bom para nós”.

Firkovich esperava provar que os caraítas estavam na Crimeia muito antes dos judeus, mesmo antes da época de Jesus, extraindo evidências de manuscritos antigos, que ele começou a coletar no início de sua vida. (Ironicamente, recentes descobertas arqueológicas indicam que os judeus podem ter vivido na Crimeia pelo menos já no primeiro século d.C.)

Em 1822 ele fez sua primeira viagem a Jerusalém para coletar manuscritos. Em 1830 fez uma segunda viagem à Palestina, desta vez acompanhado por Bobowich. De 1831 a 1832, Firkovich viveu em Istambul, mas logo retornou à Crimeia para servir a comunidade caraíta em Eupatória, que foi a maior comunidade caraíta da Rússia durante o século 19 e a residência do principal hakham caraíta da Rússia.

Então, em 1839, Firkovich viajou em busca de novas aquisições, desta vez encomendadas pelo governador-geral da Crimeia. Ele até realizou algumas escavações arqueológicas nas montanhas do Cáucaso, bem como na Crimeia, em busca dos primeiros caraítas. Ele encontrou algumas lápides caraítas, mas evidentemente falsificou datas para provar seu caso. Na carta a Bobowich citada anteriormente, ele mencionou quão benéfico seria tal descoberta: “Se, no entanto, pudéssemos encontrar uma pedra [túmulo] do ano 4300 [após a criação], então os cristãos nos dariam muita honra e louvor.”

Não há dúvida de que Firkovich era um especialista em reconhecer e avaliar manuscritos antigos e que possuía uma vasta coleção.

Em 1859, ele se ofereceu para vender o que ficou conhecido como a Primeira Coleção de Manuscritos Firkovich à Biblioteca Imperial de São Petersburgo por 25.000 rublos de prata. Esta oferta foi finalmente aceita, com a condição de que a coleção fosse aumentada por alguns manuscritos que Firkovich havia doado anteriormente à Sociedade de História e Antiguidades de Odessa. Em 1862, esta estipulação foi acordada. Aparentemente, o Codex de Leningrado fazia parte da coleção da Sociedade de Odessa.

Firkovich fez outra viagem mais extensa ao Oriente Médio, de 1863 a 1865, onde reuniu uma coleção ainda maior de manuscritos.

Ele passou os últimos anos de sua vida em Chufut-Kale, na Crimeia, e morreu lá aos 87 anos, em 7 de junho de 1874. Durante esses anos, Firkovich viveu em uma casa magnífica e era conhecido como líder caraíta e empresário de sucesso. Ele até mandou fazer seu retrato: um homem próspero e patriarcal, envolto em uma capa cara e ostentando uma barba branca esvoaçante, senta-se severamente ereto; o cajado que ele carrega pode lembrar o bíblico Abraão, homônimo de Firkovich, o pastor-guardião de seu rebanho.

Mas esse grande velho também era um pouco canalha. Vários estudiosos questionaram a autenticidade de alguns itens de sua coleção. Alguns manuscritos sãoJames A. Sanders (1927-2020) falsificações e outros contêm emendas e interpolações forjadas – parte do esforço de Firkovich para estabelecer o assentamento precoce dos caraítas na Crimeia. Felizmente, as falsificações constituem uma parte pequena e identificável da gigantesca coleção. Aparentemente, ele também mudou as datas de algumas lápides que supostamente provavam a antiguidade dos caraítas na Crimeia; infelizmente, ninguém sabe onde estão essas lápides hoje. Ainda assim, apesar dos seus esforços para estabelecer uma data antiga para os registos – ou, como disse um eminente estudioso, para os “karaizar” – não há qualquer contestação quanto ao fato de ele ter conseguido adquirir a maior coleção de manuscritos hebraicos jamais reunida até esse ponto.

Desde 1988 os estudiosos ocidentais têm tido acesso contínuo e cooperativo à Biblioteca Nacional Russa em São Petersburgo, antiga Biblioteca Pública Estadual Saltykov-Shchedrin e antes disso conhecida simplesmente como Biblioteca Imperial. Uma equipe de Israel, liderada pelo professor Malachi Beit-Arie, professor de codicologia e paleografia na Universidade Hebraica de Jerusalém, está microfilmando praticamente toda a coleção, aparentemente a maior do mundo. Existem mais de 15.000 manuscritos hebraicos somente nas coleções de Firkovich, que são estimados em cerca de 600.000 fólios (1.200.000 páginas). Beit-Arie prevê que serão necessárias gerações para que tal coleção seja avaliada de forma abrangente.

“Na minha opinião”, escreve Beit-Arie, “as coleções de Firkovich contêm muitas centenas de manuscritos ou restos consideráveis ​de Codex (principalmente bíblicos) produzidos nos séculos X e XI. Para compreender plenamente o extraordinário significado desta quantidade, é preciso compará-la com os provavelmente não mais de 30 manuscritos hebraicos daquele período, mantidos em todas as bibliotecas do mundo!”

Firkovich classificou o Codex de Leningrado como a mais importante de suas aquisições, um elogio nada pequeno considerando a extensão e a qualidade de suas coleções. No entanto, nem na sua autobiografia, Livro das Pedras Memoriais (Sefer Avnei Zikkaron), nem nas suas cartas existentes ele nos diz onde, quando ou sob que circunstâncias adquiriu o Codex de Leningrado; ele nem sequer discute este Codex. Ele o trouxe para a Sociedade de História e Antiguidades de Odessa, entretanto. Talvez tenha sido por isso que a Biblioteca Imperial de São Petersburgo insistiu que as doações de Firkovich à Sociedade de Odessa fossem incluídas na compra da Primeira Coleção de Firkovich.

Uma questão intrigante permanece: como o Codex de Leningrado foi escrito no Cairo? Embora esta parte da história do Codex seja tão incerta quanto o seu paradeiro depois de ter sido copiado em 1010, e novamente depois de ter sido comprado e doado à sinagoga de Damasco em 1489, há indícios intrigantes. Se estivermos certos, poderemos até aprender algo sobre os Manuscritos do Mar Morto.

Por volta de 800 d.C. alguns manuscritos hebraicos foram descobertos perto de Jericó. De acordo com uma carta escrita por Timóteo I (726-819 d.C.), o patriarca nestoriano de Selecia, ao arcebispo de Elam, um cão caçador árabe perseguiu um animal até uma gruta perto do Mar Morto. Quando o caçador foi procurar seu cachorro, encontrou “uma gruta na rocha e nela muitos livros”. O caçador levou então o seu saque para Jerusalém, onde pelo menos alguns dos manuscritos foram identificados como livros da Bíblia escritos em hebraico.

Com toda a probabilidade, estes manuscritos vieram do mesmo conjunto de grutas em que os Manuscritos do Mar Morto foram encontrados em circunstâncias semelhantes em 1947 e durante a década seguinte.

No século IX Jerusalém tornou-se o centro espiritual dos caraítas, e vários estudiosos caraítas se estabeleceram lá. Na verdade, os caraítas daquela época eram muito mais influentes em questões espirituais do que os rabanitas de Jerusalém. Os estudiosos caraítas estavam interessados ​em olhar além dos ensinamentos orais das autoridades rabínicas codificados na Mishná e desenvolvidos no Talmud; eles esperavam encontrar o próprio texto bíblico original. Assim, estudaram avidamente antigos manuscritos bíblicos e devem ter ficado intensamente entusiasmados com os textos mencionados por Timóteo I.

À medida que o caraísmo se espalhou, os seus adeptos foram encontrados não apenas em Jerusalém e Constantinopla, mas também, em grande número, no Egito. Lá eles rastrearam seus ancestrais até o remanescente de judeus que fugiram para o Egito com o profeta Jeremias após a destruição de Judá pela Babilônia em 586 a.C. ( Jeremias 43, 4-7 ). A maioria dos manuscritos caraítas nas bibliotecas de Paris e São Petersburgo vem do Egito. No Cairo, os caraítas residiam perto do Nilo, perto de Fostat (Antigo Cairo).

Tendo estabelecido uma ligação entre os manuscritos hebraicos bíblicos encontrados em cavernas perto de Jericó por volta de 800 d.C. e os caraítas no Egito (através dos caraítas de Jerusalém que teriam examinado os textos antigos), vamos ver se conseguimos estreitar o vínculo.

Há uma sinagoga no Cairo Antigo, conhecida como Sinagoga Ben Ezra, que é famosa por sua célebre genizah, um depósito para documentos sagrados desgastados. Por alguma razão, na Sinagoga Ben Ezra, todos os tipos de documentos, não apenas documentos sagrados, foram jogados no que ficou conhecido como Genizah do Cairo; estes documentos aí permaneceram durante séculos, até à sua descoberta no final do século XIX. Na verdade, algumas das primeiras compras de Firkovich provavelmente vieram do Genizah do Cairo.

Em 1897, um estudioso da Universidade de Cambridge chamado Solomon Schechter encontrou dois documentos estranhos no Genizah do Cairo que publicou em 1910 sob o título “Fragmentos de uma Obra Sadoquita”. Eles tinham afinidades com documentos caraítas, e muitos sugeriram que os fragmentos de Schechter eram de fato caraítas. Schechter, no entanto, acreditava que eram cópias de uma obra muito mais antiga composta antes da destruição romana de Jerusalém em 70 d.C. Ele observou, por exemplo, que o hebraico dos fragmentos, ao contrário do hebraico usado pelos rabinos depois de 70 d.C., se assemelha muito ao hebraico dos livros mais recentes da Bíblia.

A conjectura de Schechter mostrou-se espantosamente correta quando diversas cópias da mesma obra surgiram entre os Manuscritos do Mar Morto.

Mas como é que esta obra, agora conhecida como Documento de Damasco, foi de Qumran, onde os Manuscritos do Mar Morto estavam escondidos, até a Genizah do Cairo? Provavelmente estava entre os documentos encontrados por volta de 800 d.C. e levados para Jerusalém. Lá teria sido estudado por estudiosos caraítas, que certamente teriam admirado o sacerdócio sadoquita, especialmente sua rejeição ao sacerdócio de Jerusalém, e os regulamentos estritos do Documento de Damasco relativos à comunidade da Nova Aliança, muito semelhantes à rejeição caraíta da doutrina do judaísmo rabínico. O documento foi, sem dúvida, copiado repetidas vezes pelos caraítas, e duas cópias finalmente chegaram à Genizah do Cairo, para serem descobertas em 1897.

Esta suposição é apoiada por outra estranha conexão manuscrita. O interesse de Schechter na Genizah do Cairo foi desencadeado por algumas folhas de uma cópia hebraica do Livro do Eclesiástico (Sirácida) que veio da Genizah do Cairo. Antes dessa época, apenas cópias gregas do Sirácida haviam sido encontradas, e era incerto se o original estava escrito em hebraico ou em grego (resposta: hebraico). Fragmentos hebraicos do Sirácida também foram posteriormente encontrados entre os Manuscritos do Mar Morto. Aparentemente, uma cópia hebraica do Sirácida estava entre as descobertas de cerca de 800 d.C., e cópias delas chegaram à Genizah do Cairo.

Astrid B. Beck (1943-)Portanto, uma trilha caraíta da Palestina ao Cairo não é tão difícil de imaginar. Como isso nos ajuda a explicar por que o Codex de Leningrado foi encomendado e escrito no Cairo?

Assim como o Documento de Damasco e o Sirácida hebraico chegaram de Jerusalém ao Egito como resultado do interesse acadêmico caraíta, o mesmo aconteceu, muito provavelmente, com cópias da recensão rabínica da Bíblia Hebraica criada no século X em Tiberíades, no sudoeste do país, costa do Mar da Galileia.

Como já observamos, no século X, os escribas conhecidos como massoretas acrescentaram vogais e acentos ao texto consonantal hebraico, padronizando-o e comentando seu trabalho em notas marginais. Obviamente isto foi de grande importância para os caraítas.

Cópias deste novo texto sem dúvida circularam rapidamente e algumas foram levadas para o Cairo para servir às necessidades da comunidade caraíta local. Lá, Shemu’el ben Ya’aqov provavelmente fez uma cópia de um dos manuscritos autorizados preparados pelo próprio Aarão ben Moisés ben Asher em Tiberíades. Eventualmente, como vimos, esta cópia chegou a Damasco. Firkovich o adquiriu em uma de suas viagens mais distantes, talvez até em Damasco.

Existe apenas um outro manuscrito ao qual o Codex de Leningrado pode ser comparado: o Codex de Aleppo. Tanto o Codex de Aleppo como o Codex de Leningrado preservam o texto da escola de massoretas de Ben Asher. O Codex de Aleppo, no entanto, é ainda mais antigo, datando de cerca de 935 d.C. De 1478 a 1947, esteve instalado na Sinagoga Mustaribah, em Aleppo – daí o seu nome. Há uma tradição de que Maimônides, o grande filósofo judeu e estudioso da Bíblia do século XII, viu o Codex de Aleppo, pois se refere a ele como o codex autorizado para o estudo textual.

Em 2 de dezembro de 1947, quatro dias depois de as Nações Unidas aprovarem uma resolução para dividir a Palestina, criando assim o Estado de Israel, multidões árabes em Aleppo (e em outros lugares da Síria) iniciaram um ataque violento contra judeus sírios e suas propriedades. Entre os alvos estava a Sinagoga Mustaribah, um marco desde o século IV. Miraculosamente, porém, 294 das 380 folhas do Codex de Aleppo foram recuperadas. Na sequência elas foram transferidas para Israel e agora são propriedade da Fundação Yitzchak Ben-Zvi em Jerusalém.

Mas mesmo antes do desastre de 1947, o Codex de Aleppo era em grande parte inacessível aos estudiosos.

Na década de 1920 o grande crítico textual alemão Paul Kahle quis usar o Codex de Aleppo como texto base para a terceira edição da Bíblia Hebraica (BH).

BH é a edição crítica da Bíblia Hebraica usada por estudiosos de todo o mundo desde que a primeira edição foi publicada em 1905. É também a base textual a partir da qual foram feitas a maioria das traduções, para qualquer orientação religiosa. As duas primeiras edições usaram o texto tradicional da Bíblia rabínica, impressa na Itália no início do século XVI. Desde então, tornou-se claro que tanto o Codex de Aleppo como o Codex de Leningrado são testemunhas superiores.

Kahle sabia que o Codex de Aleppo era mais antigo e provavelmente ainda mais autêntico que o Codex de Leningrado. Infelizmente, porém, ele não conseguiu persuadir os funcionários da sinagoga em Aleppo nem sequer a permitir-lhe estudá-lo na sinagoga, muito menos emprestá-lo ou fotografá-lo.

Por outro lado, em 1926 Kahle foi autorizado a levar o Codex de Leningrado para Leipzig. Lá, seu aluno, Gottfried Quell, preparou copiosas notas para Rudolf Kittel — o ilustre editor das duas primeiras edições de BH — que então preparava uma terceira edição.

Assim, o Codex de Leningrado tornou-se o texto base da terceira edição de BH (1937), chamada pelos estudiosos de BHK (Biblia Hebraica Kittel).

O Codex de Leningrado é também o texto base da quarta edição da BH (1976/7), conhecida como BHS, Biblia Hebraica Stuttgartensia. Esse é o texto agora usado em todo o mundo para estudo acadêmico e tradução.

A quinta edição da BH, referida como BHQ (Biblia Hebraica Quinta), que está atualmente sendo preparada por uma equipe internacional de estudiosos, também usa como base o Codex de Leningrado. Sua publicação começou em 2004.

Embora o Codex de Leningrado tenha sido fotografado e microfilmado, a maioria das fotografias e filmes originais desapareceram e as cópias restantes são menos que satisfatórias. Até mesmo algumas consoantes hebraicas não são claras nessas cópias, e as minúsculas notas marginais são em sua maioria ilegíveis. Claramente, um novo conjunto de fotografias era necessário.

Após negociações cuidadosas e politicamente sensíveis, a equipe da Ancient Biblical Manuscript Center (ABMC), de Claremont, Califórnia, recebeu permissão para viajar em maio/junho de 1990 para Leningrado (agora São Petersburgo novamente) para fazer o tedioso trabalho de filmar todas as 982 páginas do Codex de Leningrado, incluindo notas finais e páginas com gravuras, em filme colorido e preto e branco. Cópias das novas fotografias foram fornecidas aos estudiosos que preparam a quinta edição da Bíblia Hebraica. Uma edição fac-símile do Codex de Leningrado foi publicada em 1998.

Com as novas fotografias do Codex de Leningrado, a BHQ incluirá, pela primeira vez, todas as notas marginais (masorot) da Bíblia Hebraica completa mais antiga do mundo.

Compreender o valor desses masorot requer um pouco de compreensão de alguma história acadêmica.

As notas massoréticas preservam as primeiras tradições orais sobre como o texto escrito deve ser lido. Até recentemente, estas notas eram consideradas secundárias em relação ao próprio texto consonantal. Este princípio remonta pelo menos até Martinho Lutero. No início do século 16, Lutero foi confrontado com discrepâncias nos vários textos da Bíblia Hebraica que estavam disponíveis para ele. Ele era extremamente cético em relação ao que considerava inovações massoréticas adicionadas às consoantes do texto hebraico. Os estudos modernos do Antigo Testamento têm seguido essa visão desde então – até o período pós-moderno, que começa em meados do século XX.

Agora o paradigma da crítica textual mudou, como pode ser visto claramente na BHQ, Vemos agora a tradição de leitura – isto é, a contribuição dos massoretas – tão autêntica quanto as letras (consoantes).

Assim, as novas fotografias do Codex de Leningrado, tal como publicadas na edição fac-símile e incorporadas na quinta edição da Bíblia Hebraica , estão, pela primeira vez, disponibilizando todas as riquezas da tradição incorporadas neste famoso manuscrito a todos os que se dedicam aos estudos bíblicos.

Fonte: James A. Sanders, Astrid Beck, The Leningrad Codex: Rediscovering the oldest complete Hebrew Bible. Bible Review, Volume 13, Number 4, August 1997.

O texto original do artigo, em inglês, pode ser baixado clicando aqui.

Sobre os autores: James A. Sanders (1927-2020) e Astrid B. Beck (1943-).

Veja imagens do Codex de Leningrado clicando aqui e aqui.

O estudo dos fragmentos de manuscritos da Bíblia Hebraica

O estudo da Bíblia, como de qualquer outro texto antigo, baseia-se em manuscritos que registram várias etapas de sua transmissão textual.

Quando os fundadores da abordagem crítica do texto bíblico hebraico – Benjamin Kennicott (1718-1783) em Oxford e Giovanni Bernardo de Rossi (1742-1831) na Itália – reuniram suas respectivas comparações de manuscritos, as mais antigas testemunhas do texto que eles possuíam eram do século XII d.C.

Desde as publicações deles no final do século XVIII, o estudo da Bíblia Hebraica beneficiou-se felizmente da descoberta de manuscritos importantes até entãoATTIA, E.; PERROT, A. (eds.) The Hebrew Bible Manuscripts: A Millennium. Leiden: Brill, 2022 desconhecidos.

A primeira grande descoberta foi A Genizah do Cairo, termo que abrange cerca de 300 mil fragmentos de uma variedade de escritos literários e documentais, mantidos hoje em setenta e duas coleções diferentes em todo o mundo, que foram recuperados por estudiosos, viajantes e antiquários da genizah da sinagoga Ben Ezra em Fustat, de outras sinagogas e do cemitério judaico de Basâtîn no Cairo Antigo.

A partir de 1947, os altamente fragmentados Manuscritos do Mar Morto foram descobertos em cavernas em wadis e nos penhascos do lado ocidental do Mar Morto e do deserto da Judeia, bem como nas antigas fortalezas de Masada e Hircânia.

Finalmente, nos últimos trinta anos, uma busca sistemática em bibliotecas e arquivos recuperou milhares de manuscritos hebraicos reciclados como matéria-prima nas encadernações de outros livros e arquivos notariais; estas descobertas são referidas como “Genizah Europeia” ou, como diremos neste artigo, como Livros dentro de Livros.

Uma grande proporção de cada corpus contém textos bíblicos e relacionados à Bíblia (traduções, antologias e textos litúrgicos compostos de trechos bíblicos, reescritas, glossários etc.) que mapeiam grandes áreas de sua história: os primeiros manuscritos judeus conhecidos do século IV a.C. ao século II d. C na Judeia / Palestina para os Manuscritos do Mar Morto, os primeiros manuscritos medievais conhecidos, principalmente das comunidades orientais e norte-africanas na Genizah do Cairo, e a variedade de Bíblias medievais posteriores no corpus “Livros dentro de Livros”.

Cada um destes grandes corpora tem as suas características distintivas e coloca desafios científicos específicos: as versões, por vezes muito diferentes, do texto representado nos Manuscritos do Mar Morto, que mudaram radicalmente a nossa avaliação da história redacional versus história de transmissão de alguns livros bíblicos, a história do cânon, a fluidez do texto e as principais famílias de textos medievais (Massorética, LXX, Samaritana); as duas grandes revoluções na produção de livros judaicos que ocorreram no início do período medieval: a adoção do formato de códice para manuscritos bíblicos e a introdução de sinais gráficos para registrar a pronúncia da Bíblia e seu aparato escriba e textual (Massorá).

Os três corpora, no entanto, partilham uma característica comum: são todos compostos por fragmentos e este estado de conservação necessita de um conjunto de métodos de análise diferentes daqueles utilizados para descrever e estudar unidades codicológicas mais completas.

Em particular, os principais desafios em todos os casos são a reconstrução das unidades maiores – sejam pergaminhos ou folhas de códice, cadernos, livros ou partes de livros – a partir de peças dispersas para decifrar a sua escrita (que é muitas vezes ilegível), identificar os seus conteúdos textuais (que quase nunca contêm título ou mesmo cabeçalho ou incipit identificável de seção), identificar os escribas, caracterizar o registro da escrita e possível Sitz im Leben e, por fim, propor uma data e, no caso da Genizah do Cairo e “Livros dentro de livros”, área geográfica onde o manuscrito foi copiado (informação que quase nunca aparece nos próprios fragmentos porque os colofões finais raramente são preservados).

Apesar da semelhança dos desafios, os estudiosos que trabalham em Qumran e os que trabalham em fragmentos medievais raramente se encontram. Essa falta de diálogo é causada pela história das disciplinas, cada uma delas seguindo um caminho independente devido à complexidade e massa de material. Cada lote exigiu seus próprios métodos e conhecimento contextual necessário para compreender os resultados.

O presente encontro visa fortalecer o diálogo entre os dois grupos no que diz respeito aos manuscritos bíblicos. Em vez de discutir questões gerais de história e afinidades religiosas, concentrar-nos-emos nos estudos de manuscritos e nas suas diferentes aplicações em Qumran e na investigação medieval.

Neste artigo introdutório, gostaríamos de propor uma breve visão geral das questões e métodos utilizados no estudo dos respectivos corpora fragmentários, a fim de avaliar o seu possível uso através das fronteiras disciplinares das tradições acadêmicas dos qumranólogos versus as tradições acadêmicas dos medievalistas. Tomaremos como ponto de encontro a metodologia do estudo da materialidade dos manuscritos e não a contribuição dos fragmentos para o estudo do texto.

Alguns dados apresentados pelos autores na p. 377:

1. Número total de fragmentos nos 3 corpora:
Manuscritos de Qumran: entre 15 e 20 mil fragmentos de cerca de 1.000 manuscritos
Manuscritos do Mar Morto além de Qumran: fragmentos de cerca de 1000 manuscritos
Genizah do Cairo: cerca de 300.000 fragmentos pertencentes a 30-40 mil unidades originaisJudith Olszowy-Schlanger (1967-), França
Livros dentro de Livros: cerca de 15.000 fragmentos já identificados na Europa, Israel e EUA

2. Número de manuscritos com textos bíblicos:
Manuscritos de Qumran: de 170 a 200
Manuscritos do Mar Morto além de Qumran: cerca de 30
Genizah do Cairo: cerca de 50 mil
Livros dentro de Livros: cerca de 4 mil

Fonte: OLSZOWY-SCHLANGER, J.; BEN EZRA, D. S. Qumran, the Dead Sea Scrolls, Cairo Genizah, and Books within Books: Towards a Comparative Study of the Manuscript Fragments of the Hebrew Bible. In: ATTIA, E.; PERROT, A. (eds.) The Hebrew Bible Manuscripts: A Millennium. Leiden: Brill, 2022, p. 374-376.

* As 5 notas de rodapé deste início de capítulo foram omitidas.

Judith Olszowy-Schlanger is professor of Hebrew and Judaeo-Arabic Palaeography and Manuscript Studies at the Ecole Pratique des Hautes Etude, PSL, Paris, President of the Oxford Centre for Hebrew and Jewish Studies and Professorial fellow of Corpus Christi College, Oxford University.

Daniel Stökl Ben Ezra is Professor of Ancient Hebrew and Aramaic at the EPHE, PSL-University in Paris. He works on Dead Sea Scrolls, Early Rabbinic literature, Jewish-Christian relations and Computational and Digital Humanities.

 

The study of the Bible, like any other ancient text, is based on manuscripts recording various stages of its textual transmission.

When the founders of the critical approach to the Hebrew biblical text—Benjamin Kennicott (1718–1783) in Oxford1 and Giovanni Bernardo de Rossi (1742–1831) in Italy—put together their respective collations of manuscripts, the most ancient witnesses of the text they possessed dated from not earlier than the twelfth century ce. Since their work in the late eighteenth century the study of the Hebrew Bible has fortunately benefitted from the discovery of major hitherto unknown manuscript
sources.

The first major discovery was the “Cairo Genizah,” the term which covers some 300,000 fragments of a variety of literary and documentary writings, kept today in seventy-two different collections across the world, which were recovered by scholars, travelers, and antique dealers from the Genizah of the Ben Ezra synagogue in Fustat, from other synagogues, and from the Jewish cemetery of Basâtîn in Old Cairo.

From 1947 the highly fragmentary Dead Sea Scrolls were discovered in caves in wadis and the cliffs on the Western side of the Dead Sea and the Judean Desert, as well as in the former fortresses Masada and Hyrkania.

Finally, in the past thirty years a systematic search in libraries and archives has recovered thousands of Hebrew manuscripts recycled as raw material in the bindings of other books and notarial files; these findings are referred to as the “European Genizah” or, as we will do in this paper, as “Books within Books” (the title of an international project and a website containing a catalogue of the fragments).

Daniel Stökl Ben Ezra (1970-), AlemanhaA large proportion of each corpus contains Bible and Bible-related texts (translations, anthologies, and liturgical texts composed of biblical excerpts, rewritings, glossaries, etc.) which chart large areas of its history: the earliest known Judean manuscripts from the fourth century bce to the second century ce in Judea/Palestine for the Dead Sea Scrolls, the earliest known medieval manuscripts mostly from the Oriental and North African communities in the Cairo Genizah, and the variety of later medieval Bibles in the “Books within Books” corpus.

Each of these major corpora has its distinctive characteristics and poses specific scientific challenges: the sometimes vastly different versions of the text represented in the Dead Sea Scrolls which have radically changed our evaluation of the redactional versus transmission history of some biblical books, the history of the canon, the fluidity of the text, and the major medieval text families (Masoretic, lxx, Samaritan); the two major revolutions in Jewish book making which occurred in the early medieval period: the adoption of the codex format for biblical manuscripts and the introduction of graphic signs to record the pronunciation of the Bible and its scribal and textual apparatus (Masorah).

The three corpora, however, share one main feature: they are all composed of fragments and this state of conservation necessitates an array of methods of analysis which differ from those used to describe and study more complete codicological units.

In particular, the main challenges in all cases are a reconstruction of the larger units—be it scrolls, sheets or codex leaves, quires, books or parts of books—from scattered pieces to decipher their writing (which is often illegible), identify their textual contents (which almost never contain a title or even an identifiable heading or incipit of a section), identify the scribal hands, characterize the script register and possible Sitz im Leben, and, finally, propose a date and, in the case of the Cairo Genizah and “Books within Books,” a geographical area where the manuscript was copied (information which almost never appears in the fragments themselves because the final colophons are only rarely preserved).

Despite the similarity of challenges, scholars working on Qumran and those working on medieval fragments rarely meet. This lack of dialogue is caused by the history of the disciplines, each of which followed an independent path due to the complexity and mass of material. Each lot required its own methods and contextual knowledge necessary to understand the findings.

The present meeting aims to strengthen the dialogue between the two circles with regard to biblical manuscripts. Rather than discussing general questions of history and religious affinities, we will focus on manuscript studies and their different applications in Qumran and medieval research.

In this introductory paper we would like to propose a brief overview of the issues and methods used in the study of the respective fragmentary corpora in order to assess their possible use across the disciplinary boundaries of Qumranologists’ versus medievalists’ scholarly traditions. We will take as a meeting point the methodology of the study of the manuscripts’ materiality rather than the fragments’ contribution to the study of the text.

O Codex Amiatinus

O Codex Amiatinus é considerado o manuscrito mais bem preservado da versão latina da Bíblia feita por Jerônimo, conhecida como Vulgata.

Foi produzido por volta de 700 no nordeste da Inglaterra, no mosteiro de Wearmouth-Jarrow, no Reino da Nortúmbria, e levado para a Itália como um presente para oCodex Amiatinus - Biblioteca Medicea Laurenziana, Firenze, Italia Papa Gregório II em 716.

O Codex Amiatinus é uma das três bíblias em um só volume então feitas em Wearmouth–Jarrow e a única que sobreviveu integralmente.

Tem o nome do local onde foi encontrado nos tempos modernos, monte Amiata, na Toscana, Itália, na Abadia de San Salvatore. Desde 1786 é mantido em Firenze na Biblioteca Medicea Laurenziana.

É considerado como o manuscrito que fornece a representação sobrevivente mais confiável do texto da Vulgata de Jerônimo para os livros do Novo Testamento e a maior parte do Antigo Testamento.

Veja imagens do Codex Amiatinus.

Recomendo algumas leituras para quem quiser conhecer melhor o Codex Amiatinus:

ARREGUI, M. O. El “Codex Amiatinus”: El manuscrito más antiguo de la Vulgata. ArtyHum, 49, 2018, p. 35-51. Disponível, em espanhol, em Academia.edu.

CASTALDI, L. Il Codex Amiatinus. The City and The Book, Florence, 2001. Disponível em italiano e inglês.

DE HAMEL, C. Manuscritos notáveis. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, 680 p. Capítulo 2: O Codex Amiatinus. Leia um resumo do capítulo clicando aqui.

DHWTY El Códice Amiatino: Se utilizaron las pieles de 500 terneros para crear esta Biblia medieval. Post publicado em Ancient Origins, em 29 de dezembro de 2023.

HOUGHTON, H. A. G. The Latin New Testament: A Guide to its Early History, Texts, and Manuscripts. Oxford: Oxford University Press, 2016, 304 p. Disponível para download gratuito em pdf. Página do Codex Amiatinus - Evangelho de Marcos, capítulo 1

HOUGHTON. H. A. G. (ed.) The Oxford Handbook of the Latin Bible. Oxford, Oxford University Press, 2023, 536 p.

MARSDEN, R.; MATTER, E. A. (eds.) The New Cambridge History of the Bible. Vol. 2: From 600 to 1450. Cambridge: Cambridge University Press, 2012, 1068 p. Capítulo 4: The Latin Bible, c. 600 to c. 900.

MEYVAERT, P. Bede, Cassiodorus, and the Codex Amiatinus. Speculum 71, 1996, p. 827-883.

PEARSE, R. Searching for the Vulgate: one genuine text and two “fakes”. Post publicado em Roger Pearse, em 27 de janeiro de 2020.

STOPPACCI, P. La lunga storia del Codex Amiatinus, s/d. Disponível, em italiano, em Academia.edu.

Uma parábola, dois filhos, três leituras: Mt 21,28-32

De repente, meus alunos encontraram duas versões da parábola dos dois filhos de Mt 21, 28-32. Examinamos a questão na sala de aula. Descobrimos que há três leituras possíveis para esta parábola.

:. Diz o texto da Bíblia de Jerusalém (São Paulo: Paulus, 2002):Bíblia de Jerusalém e Bíblia do Peregrino

28“Que vos parece? Um homem tinha dois filhos. Dirigindo-se ao primeiro, disse: ‘Filho, vai trabalhar hoje na vinha’. 29Ele respondeu: ‘Não quero’; mas depois, pego pelo remorso, foi. 30Dirigindo-se ao segundo, disse a mesma coisa. Este respondeu: ‘Eu irei, senhor’; mas não foi. 31Qual dos dois realizou a vontade do pai?” Responderam-lhe: “O primeiro”. Então Jesus lhes disse: “Em verdade vos digo que os publicanos e as prostitutas vos precederão no Reino de Deus. 32Pois João veio a vós, num caminho de justiça, e não crestes nele. Os publicanos e as prostitutas creram nele. Vós, porém, vendo isso nem sequer tivestes remorso para crer nele.

:. Diz o texto da Bíblia do Peregrino (São Paulo: Paulus, 2002):

28 Que vos parece? Um homem tinha dois filhos. Dirigiu-se ao primeiro: Filho, vai hoje trabalhar na minha vinha.

29Repondeu-lhe: Sim, senhor. Mas não foi. 30Depois foi dizer o mesmo ao segundo. Este respondeu: Não quero. Mas logo se arrependeu e foi. 31Qual dos dois cumpriu a vontade de seu pai?

Dizem-lhe:

– O último.

E Jesus lhes diz:

-Eu vos asseguro que os coletores e as prostitutas entrarão antes de vós no reino de Deus. 32Porque veio João, ensinando o caminho da honradez, e não crestes nele, ao passo que os coletores e as prostitutas creram. E vós, mesmo depois de ver isso, não vos arrependestes nem crestes nele.

Nos versículos 29 e 30 a ordem das repostas está invertida nos dois textos:

Bíblia de Jerusalém: o primeiro filho disse não, mas foi; o segundo filho disse sim, mas não foi. Quem realizou a vontade do pai? O primeiro.

Bíblia do Peregrino: o primeiro filho disse sim, mas não foi; o segundo filho disse não, mas foi. Quem realizou a vontade do pai? O último.

 

Explica Bruce M. Metzger em A Textual Commentary on the Greek New Testament. Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft/United Bible Societies, 2. ed., 2006:

METZGER, B. M. A Textual Commentary on the Greek New Testament. Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft/United Bible Societies, 2. ed., 2006A transmissão textual da parábola dos dois filhos é muito confusa.

O filho que recusa, mas que depois obedece, é mencionado em primeiro ou em segundo lugar?

Qual dos dois filhos os judeus pretendiam afirmar ter cumprido a ordem do pai e que palavra eles usaram em sua resposta à pergunta de Jesus (πρῶτος ou ἔσχατος ou ὕστερος ou δεύτερος)?

Existem três formas principais de texto:

(a) De acordo com א [Sinaiticus] C* [Ephraemi Rescriptus] K W Δ II itc.q vg syrc.p.h al, o primeiro filho diz “não”, mas depois se arrepende e vai. O segundo filho diz “sim”, mas não faz nada. Qual deles fez a vontade do pai? Resposta: ὁ πρῶτος [o primeiro].

(b) De acordo com D [Bezae Cantabrigiensis] ita.b.d.e.ff2.h.l syrs al, o primeiro filho diz “não”, mas depois se arrepende e vai. O segundo filho diz “sim”, mas não faz nada. Qual deles fez a vontade do pai? Resposta: ὁ ἔσχατος [o último].

(c) De acordo com B [Vaticanus] Θ, f13 700 syrpal arm geo al, o primeiro filho diz “sim”, mas não faz nada. O segundo diz “não”, mas depois se arrepende e vai. Qual deles fez a vontade do pai? Resposta: ὁ ὕστερος (B) [o último], ou ὁ ἔσχατος (© [12 700 arm) [o último], ou ὁ δεύτερος (4 273) [o segundo], ou ὁ πρῶτος (geo*) [o primeiro].

Como (b) é a mais difícil das três formas de texto, vários estudiosos (Lachmann, Merx, Wellhausen, Hirsch) pensaram que ela deve ser preferida, explicando as outras duas como correções inseridas pelos copistas para dar maior coerência ao texto.

Mas (b) não é apenas difícil, é absurda – o filho que diz “sim”, mas não faz nada, é quem obedece à vontade do pai?

Jerônimo, que conhecia, em sua época, manuscritos que continham respostas absurdas, sugeriu que, por meio da perversidade, os judeus deram intencionalmente uma resposta absurda, a fim de estragar o sentido da parábola.

Mas esta explicação requer a suposição adicional de que os judeus não só reconheceram que a parábola era dirigida contra eles próprios, mas escolheram dar uma resposta absurda em vez de simplesmente permanecerem em silêncio.

Como tais explicações atribuem aos judeus, ou a Mateus, motivos psicológicos rebuscados ou literários, excessivamente sutis, o Comitê julgou que a origem da leitura (b) se deve a copistas que, ou cometeram um erro de transcrição, ou que foram motivados por tendências antifarisaicas (ou seja, visto que Jesus caracterizou os fariseus como aqueles que dizem, mas não praticam, eles devem ser representados como aprovadores do filho que disse “eu vou” e não foi).

Deste modo, ficamos com as leituras (a) e (c), sendo a leitura (a), mais provavelmente, a original.

Não só os testemunhos que apoiam (a) são ligeiramente melhores do que aqueles que leem (c), mas haveria uma tendência natural para transpor a ordem de (a) para a de (c) porque:

(1) poderia argumentar-se que se o primeiro filho obedecesse, não havia razão para convocar o segundo

(2) era natural identificar o filho desobediente com os judeus em geral ou com os principais sacerdotes e anciãos (v. 23) e o filho obediente com os gentios ou com os cobradores de impostos e as prostitutas (v. 31) – e de acordo com qualquer uma das linhas de interpretação, o filho obediente deveria vir por último na sequência cronológica.

Também pode ser observado que a inferioridade da forma (c) é demonstrada pela grande diversidade de leituras no final da parábola.

 

B. M. Metzger classifica os textos analisados nesta obra com as letras A, B, C e D entre colchetes. Este texto da parábola dos dois filhos está classificado como {C}.Bruce Manning Metzger (1914 - 2007)

O que significa isso?

{A} significa que o texto é confiável

{B} significa que o texto é quase certo

{C} indica que o Comitê** teve dificuldades para decidir qual variante deveria aparecer no texto

{D} que raramente aparece, indica que o Comitê teve muitas dificuldades para chegar a uma decisão.

** O Comitê responsável pela edição de The Greek New Testament, Fourth Revised Edition. Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft/United Bible Societies, 1994 era composto por Barbara Aland, Kurt Aland, Johannes Karavidopoulos, Carlo M. Martini e Bruce M. Metzger.

 

Roger L. Omanson, Variantes textuais do Novo Testamento: Análise e avaliação do Aparato Crítico de “O Novo Testamento Grego” . Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 2010, que é uma versão simplificada do comentário de Bruce M. Metzger, diz:

Nesses três versículos [Mt 21,29-31], há muitas diferenças entre os manuscritos, sendo que as principais delas são as seguintes:

(1) Em alguns manuscritos, o primeiro filho diz “Não”, mas depois se arrepende e vai trabalhar na vinha. O segundo filho diz “Sim”, mas não vai trabalhar. A pergunta que é feita é esta: “Qual dos dois fez a vontade do pai”? A resposta é: “o primeiro”.

Esta leitura, adotada por quase todas as traduções, tem tudo para ser original, pelas seguintes razões:

(a) Faz sentido que, no momento em que o primeiro filho disse “não”, o pai tenha pedido ao segundo filho para que fosse.

(b) Essa leitura tem um apoio de manuscritos levemente superior ao das outras variantes.

(2) Em alguns outros manuscritos, o primeiro filho diz “sim”, mas depois se recusa a ir trabalhar na vinha. O segundo filho diz “não”, mas posteriormente se arrepende e vai trabalhar. “Qual dos dois fez a vontade do pai”? Esses manuscritos têm as seguintes respostas diferentes: “O último” (ὁ ὕστερος), “O último” (ὁ ἔσχατος), “O segundo” (ὁ δεύτερος), e “O primeiro”‬ (ὁ πρῶτος).

OMANSON, R. L. Variantes textuais do Novo Testamento: Análise e avaliação do Aparato Crítico de "O Novo Testamento Grego" . Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 2010. Entretanto, esta leitura não faz tanto sentido quanto a anterior, apresentada acima (a leitura 1). Se o primeiro filho disse “sim”, não haveria por que o pai solicitar ao segundo filho que fosse trabalhar.

Provavelmente, esta leitura reflete o esforço dos copistas para fazer com que a ordem cronológica, no texto, coincidisse com os acontecimentos históricos.

Em outras palavras, o primeiro filho é visto com o representante dos judeus em geral, ou, mais diretamente, dos principais sacerdotes e anciãos (v. 23) e o segundo filho é visto como sendo os gentios ou os cobradores de impostos e as prostitutas (v. 31).

(3) Em alguns outros manuscritos, o primeiro filho diz “não”, mas depois se arrepende e vai trabalhar na vinha. O segundo filho diz “sim”, mas não vai trabalhar. “Qual dos dois fez a vontade do pai”? A resposta é: “o último”.

Alguns intérpretes entendem que, por ser a mais difícil, esta leitura é a original, e que os copistas teriam alterado o texto para as formulações que aparecem em (1) e (2).

Entretanto, esta leitura é tão difícil que, no contexto, não faz sentido nenhum.

 

Bibliografia

Centro para o estudo dos manuscritos do Novo Testamento. Post publicado no Observatório Bíblico em 22.03.2006.

KONINGS, J. Traduções bíblicas católicas no Brasil (2000-2015). Revista Pistis & Praxis, 8(1), p. 89–102, 2016.

Lista de manuscritos unciais do Novo Testamento – Wikipedia.

METZGER, B. M. A Textual Commentary on the Greek New Testament. Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft/United Bible Societies, 2. ed., 2006 [existe uma versão em espanhol].

OMANSON, R. L. Variantes textuais do Novo Testamento: Análise e avaliação do Aparato Crítico de “O Novo Testamento Grego” . Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 2010.