O assassinato de Senaquerib

ELAYI, J. Sennacherib, King of Assyria. Atlanta: SBL, 2018, 256 p. – ISBN 9780884143178.

O capítulo 6 do livro de Josette Elayi sobre Senaquerib, rei da Assíria é End of Reign (688-681). A autora trata da situação da cidade de Babilônia após sua destruição por Senaquerib em 689 a.C., da nomeação do príncipe herdeiro e dos problemas da sucessão e, finalmente, do assassinato de Senaquerib em 681 a.C.

Abaixo, trechos do capítulo 6, p. 133-152, especialmente os itens 2 e 3, sobre o problema da sucessão [6.2. Problem of Succession] e sobre o assassinato de Senaquerib [6.3. Sennacherib’s Murder].

As 104 notas de rodapé do capitulo foram omitidas, mas podem ser consultadas na obra, disponível para download gratuito no Projeto ICI da SBL. Há uma bibliografia selecionada no final do texto. Acrescentei ao texto alguns subtítulos e remodelei os parágrafos para facilitar a leitura.

As fontes sobre o período – The Royal Inscriptions of the Neo-Assyrian Period – podem ser consultadas em Oracc.

ELAYI, J. Sennacherib, King of Assyria. Atlanta: SBL, 2018, 256 p.

 

O período entre a destruição da Babilônia em 689 e a morte de Senaquerib em 681 é pouco conhecido. Há pouquíssimos textos e, em particular, nenhuma informação nas inscrições reais sobre a política externa assíria. Foi provavelmente um período de relativa paz, Pax Assyriaca, embora alguns problemas possam ter ocorrido (…) Em 688, Senaquerib tinha pouco menos de sessenta anos e provavelmente estava cansado após quinze anos de campanhas militares com poucas pausas. Como todos os seus objetivos haviam sido alcançados, sem dúvida ele queria descansar e se dedicar inteiramente às atividades que mais lhe interessavam, como construir e inovar, como mostram suas inscrições.

(…)

Nesse período de relativa paz, Senaquerib tinha uma grande preocupação: o problema de sua sucessão. Seu pai, Sargão, havia resolvido corretamente esse problema ao designá-lo príncipe herdeiro logo no início de seu reinado.

 

1. Ashur-nâdin-shumi, príncipe herdeiro

Senaquerib parece ter designado vários de seus filhos, sucessivamente, como príncipes herdeiros. Não está totalmente claro quem foi o primeiro. Logicamente, seu filho mais velho, Ashur-nâdin-shumi, que havia recebido uma casa em Assur de seu pai, deveria ter sido designado príncipe herdeiro. No entanto, em 700, Senaquerib o instalou como rei da Babilônia, e seu governo durou seis anos, até sua captura e deportação para o Elam em 694. Portanto, ele provavelmente não poderia ser rei da Babilônia e príncipe herdeiro da Assíria ao mesmo tempo.

(…)

 

2. 698: Urdu-Mullissu, príncipe herdeiro

A necessidade de resolver a questão da sucessão deve ter se tornado urgente para Senaquerib, que provavelmente fez um acordo permanente após 700.

O título mār šarri significava literalmente “filho do rei”, ou “príncipe” em geral, e também “príncipe herdeiro”. Este segundo significado era sempre o de cartas, relatórios e textos administrativos contemporâneos, enquanto os outros filhos do rei eram regularmente referidos apenas pelo nome.

Theodore Kwasman e Simo Parpola examinaram até que ponto esse uso também se aplicava a textos jurídicos. Após demonstrarem que se aplicava a textos datados dos reinados de Asaradon e Assurbanípal, eles examinaram seis textos datados de 683 a 681.

O texto 103 pertencia ao arquivo de Aplaya. Ele era o “terceiro homem” (isto é, o escudeiro de uma carruagem) de “Urdu-Mullissu, o príncipe herdeiro”. Urdu-Mullissu era o “segundo filho” (māru tardennu) de Senaquerib. Ele havia recebido uma casa de seu pai, que foi descoberta nas escavações. Ela estava situada na muralha oriental de Assur e estava em construção por volta de 700. Vários objetos religiosos foram encontrados em seu interior, juntamente com algumas inscrições, indicando que o príncipe tinha alguma função sacerdotal no templo de Assur. Um vaso de pedra com inscrição, dado a ele por Senaquerib, parece indicar que ele viveu em Assur, mas também passou algum tempo na corte real de Nínive. O texto 103 é datado da eponímia de Ilu-isseʾa, ou seja, 694, no décimo segundo dia de Tashrîtu (outubro).

O documento mais antigo do arquivo Aplaya, texto 100, referente a uma grande compra de imóveis, é datado do décimo dia de Simânu (junho) da eponímia de Shulmu-sharri, ou seja, 698. Se o nome de Urdu-Mullissu puder ser restaurado em uma lacuna, isso significaria que ele já era príncipe herdeiro naquela época, o que teria sido uma decisão lógica da parte de Senaquerib após a instalação de Ashur-nâdin-shumi como rei da Babilônia.

Dois outros textos, o número 130, datado de 696, e o número 85, datado do nono dia de Tebêtu (janeiro) de 692, mencionando o título mār šarri, também poderiam se referir a Urdu-Mullissu. O fato de Urdu-Mullissu ter feito um juramento de fidelidade a Asaradon, o novo príncipe herdeiro, não significa que ele não era o príncipe herdeiro anterior, mas que ele não tinha outra escolha a não ser fazer o juramento. Além disso, é bastante improvável que Senaquerib não tenha designado um príncipe herdeiro antes de 683, após vinte e um anos de reinado.

No entanto, quatro outros textos referentes aos condutores de carros reais, datados de 694 a 693, levantam uma dificuldade. Três deles (números 37, 39 e 40) mencionam “Samaʾ, criador de cavalos do mār šarri” como testemunha da transação, enquanto o texto 41 menciona “Samaʾ, criador de cavalos de Nergal-shumu-[…]”. É importante notar que o texto 37 (1 de outubro de 694) é praticamente contemporâneo do texto 103 (12 de outubro de 694), referindo-se a Urdu-Mullissu, o príncipe herdeiro.

Como Samaʾ foi mencionado alternadamente como “criador de cavalos do príncipe herdeiro” e “de Nergal-shumu-[ibni]” em 694 e 693, isso poderia significar que Nergal-shumu-ibni era então príncipe herdeiro da Babilônia (?), em paralelo com Urdu-Mullissu, príncipe herdeiro da Assíria, em vista do paralelo posterior de Assurbanípal e Shamash-shumu-ukîn.

Senaquerib, rei da Assíria de 705 a 681 a. C.Assim, Urdu-Mullissu foi provavelmente nomeado príncipe herdeiro da Assíria pelo menos a partir de 698.

É preciso confirmar se Nergal-shumu-ibni foi nomeado príncipe herdeiro da Babilônia em 693.

Mesmo que não tenhamos informações sobre o(s) príncipe(s) herdeiro(s) durante os anos seguintes, isso nos leva a supor que não houve mudança.

 

3. 683: Asaradon, príncipe herdeiro

Então, quando Asaradon, por sua vez, tornou-se príncipe herdeiro?

Dois textos posteriores dizem respeito a Seʾmadi, administrador da aldeia do príncipe herdeiro: o texto 109, datado de 683, e o texto 110, datado do dia dezesseis de Addaru (março) de 681, apenas doze (ou dois) dias antes da ascensão de Asaradon. O texto seguinte de Seʾmadi, número 111, datado de Tashrîtu (outubro) de 680, não menciona mais seu título de administrador da aldeia do príncipe herdeiro.

Esses textos foram interpretados da seguinte forma: o príncipe herdeiro mencionado nos dois textos datados de 683 e 681 era Asaradon, e seu título desapareceu do terceiro texto porque ele havia se tornado rei da Assíria.

Sugere-se que a nomeação de Asaradon ocorreu em Nisanu (abril) de 683 ou em 682. De acordo com os textos legais precedentes, é possível propor 683 como a data mais provável para a nomeação de Asaradon como príncipe herdeiro da Assíria, possivelmente no mês de Nisanu (abril), durante o Festival de Ano Novo no templo de Akîtu, em Assur.

No vigésimo segundo ano de Senaquerib (683), ele dedicou pessoal ao recém-construído templo de Akîtu, possivelmente em relação à nomeação de Asaradon.

Esta nomeação também pode estar relacionada com um presente dado por Senaquerib ao seu filho, pulseiras de ouro, uma coroa e colar de ouro e anéis para o braço: “Eu dei a Asaradon, meu filho, que doravante será chamado Ashur-etellu-ilâni-mukîn-apli, como um símbolo de amor. (Do) saque de Bît-Amukâni.” A inscrição não tem data, mas afirma-se que seu nome será alterado para Ashur-etellu-ilâni-mukîn-apli, “Assur, príncipe dos deuses, está estabelecendo um herdeiro”, o que significa que a doação foi feita na época de sua promoção a príncipe herdeiro. O saque de Bît-Amukâni refere-se a uma das campanhas de Senaquerib na Babilônia, a última em 689. No entanto, não há indicação da data da doação.

Uma pequena cabeça de leão de pedra de Sipar ou Nínive, dada por Senaquerib a Asaradon, também não tem data: em uma passagem danificada, ele é chamado de DUMU-šú GAL?, traduzido como “seu filho de posição sênior”, o que significaria que a doação foi oferecida após sua nomeação oficial como herdeiro designado.

Como pode ser explicada a nomeação de Asaradon como príncipe herdeiro?

Esta escolha não era óbvia, primeiro porque ele era o filho mais novo de Senaquerib e, segundo, porque ele tinha uma doença debilitante crônica, que acabou por matá-lo e que já era visível quando ele era príncipe herdeiro.

O próprio Asaradon explica a escolha de seu pai: “Sou o irmão mais novo de meus irmãos mais velhos (e) por ordem dos deuses Assur, Sîn, Shamash, Bêl e Nabû, Ishtar de Nínive e Ishtar de Arbela, (meu) pai, que me gerou, elevou-me firmemente na assembleia de meus irmãos, dizendo: ‘Este é o filho que me sucederá’. Ele questionou os deuses Shamash e Adad por adivinhação, e eles responderam com um firme ‘sim’, dizendo: ‘Ele é o seu substituto’.

Além dessa explicação religiosa, qual foi o verdadeiro motivo da escolha de Senaquerib?

A maioria dos autores considera que Naqiʾa/Zakûtu, uma de suas esposas, tinha tanta influência sobre ele que o convenceu a realizar esse ato sem precedentes.

No entanto, embora seu importante papel seja documentado durante os reinados de seu filho Asaradon e de seu neto Assurbanípal, faltam evidências para o reinado de Senaquerib. Por isso, há autores que discordam de que Naqiʾa tenha sido inteiramente responsável pela escolha de Senaquerib. Ela provavelmente apoiou a ascensão de seu filho, mas não estava representando um menor porque, em 683, Asaradon tinha cerca de trinta anos. Portanto, Naqiʾa provavelmente desempenhou um papel na decisão de Senaquerib, mas Asaradon provavelmente também o fez, o que significa que foi uma combinação de fatores que explicou a decisão do rei (…).

Asaradon parece ter tido uma dimensão “messiânica”: ele era considerado o herdeiro legítimo pelos profetas; ele havia sido criado por sua mãe divina, a deusa Mullissu. Além disso, ele tinha uma mãe humana, cujo nome Naqiʾa (“pura”, “inocente”) lembra a própria deusa sagrada: aos olhos dos profetas, ele era o rei assírio escolhido pelos deuses para derrotar as forças do mal, restaurar a ordem e salvar o país.

 

4. O conflito interno

A decisão de Senaquerib causou grande conflito interno. O mais fortemente atingido foi provavelmente Urdu-Mullissu, o segundo filho mais velho, especialmente se ele já tivesse sido príncipe herdeiro por cerca de quinze anos.

Senaquerib devia estar ciente dos problemas que sua decisão provocaria e decidiu contê-los impondo um juramento de lealdade.

Este tratado de sucessão foi encontrado nas escavações de Assur, mas seu estado é fragmentário, e é impossível dizer o quanto falta. O nome de Senaquerib é preservado, mas o nome de Asaradon está faltando: “Você protegerá [Asaradon, o príncipe herdeiro designado, e] os outros príncipes [que Senaquerib, rei da Assíria, apresentou] a você.”

Este tratado é mencionado nas inscrições de Asaradon: “Diante dos deuses Assur, Sîn, Shamash, Nabû, (e) Marduk, os deuses da Assíria, os deuses que vivem no céu e no mundo inferior, ele (Senaquerib) os fez jurar seu(s) juramento(s) solene(s) sobre a salvaguarda da minha sucessão”.

Sem dúvida, todos, incluindo Urdu-Mullissu e seus irmãos, foram obrigados a prestar juramento.

Este tratado de sucessão foi seguido pela admissão de Asaradon na casa de sucessão: “Em um mês favorável, em um dia propício, de acordo com seu comando sublime, entrei alegremente na casa de sucessão, um lugar inspirador onde a nomeação para a realeza (ocorre).”

Aparentemente, Senaquerib sentiu que poderia controlar a situação, porque não afastou seus outros filhos de Nínive. Eles permaneceram na corte de Nínive, em contato próximo com Asaradon, e lhe causaram problemas conspirando pelas suas costas, como ele relata em suas inscrições: “Rumores malignos, calúnias que começaram contra mim, (e) calúnias sobre mim contra a vontade dos deuses, e eles estavam constantemente dizendo mentiras insinceras, coisas hostis pelas minhas costas. Eles afastaram de mim o coração bem-intencionado de meu pai contra a vontade dos deuses, (mas) no fundo ele era compassivo e seus olhos estavam permanentemente fixos em meu exercício da realeza.”

De acordo com Parpola, os rumores espalhados pelos irmãos de Asaradon diziam respeito à sua doença*. A doença do rei não pôde ser mantida em segredo porque era visível e conhecida na corte de Nínive. Além disso, é possível que, durante esse período, Asaradon tenha sofrido um surto de doença que o teria impedido de reinar. De qualquer forma, quando o objetivo é desacreditar alguém, é sempre fácil espalhar todo tipo de calúnias e boatos falsos.

Seus irmãos tentaram desacreditá-lo, em particular perante Senaquerib, a fim de fazê-lo mudar de ideia. Esse período durou da nomeação de Asaradon como príncipe herdeiro e do juramento de lealdade em 683 até sua partida em Nisanu (abril) de 681.

Asaradon resistiu às calúnias de seus irmãos, provavelmente com a ajuda de sua mãe, Naqiʾa. Após um período ideal em que o futuro estava assegurado para ela e seu filho, a oposição à nomeação de Asaradon começou a ganhar força. Sem dúvida, ela se esforçava para neutralizar os relatos negativos sobre Asaradon que chegavam a Senaquerib. Em particular, ela recorreu à extispicidade, à astrologia e aos oráculos para obter sinais favoráveis. Vários oráculos foram consultados por ela e Asaradon devido à gravidade da situação e à necessidade de obter um prognóstico sobre o futuro da realeza. Bêl-ushezib, um conhecido astrólogo babilônico, enviou uma carta a Asaradon, dois meses após sua ascensão, na qual o lembrou do que havia feito para apoiá-lo anteriormente: “Contei o presságio da realeza de meu senhor Asaradon, o príncipe herdeiro, ao exorcista Dadâ e à mãe do rei.”

 

5. Asaradon foge de Nínive

No início de 681, por volta de Nisanu (abril), a conspiração contra Asaradon pela sucessão tornou-se mais grave, e a situação tornou-se muito perigosa para o príncipe
herdeiro. Ele foi obrigado a fugir de Nínive.Asaradon, rei da Assíria de 681 a 669 a.C.

A explicação que está em suas inscrições baseia-se em uma intervenção divina. Depois de refletir sobre o assunto, ele se convenceu de que seus irmãos não poderiam fazer nada contra a vontade dos deuses. Portanto, ele orou ao deus Assur, rei dos deuses, e a Marduk, o deus babilônico tirado da Babilônia, que odiava conversas traiçoeiras. Eles responderam às suas preces e salvaram sua vida para seu futuro reinado: “Por ordem dos grandes deuses, meus senhores, eles me estabeleceram em um lugar secreto (ašar niṣirti), longe das más ações, estenderam sua agradável proteção sobre mim e me mantiveram seguro para (exercer) o reinado.”

Em que condições Asaradon deixou Nínive? Foi um exílio? Teria sido uma medida protetiva tomada por Senaquerib em favor do príncipe herdeiro por motivos de segurança?

Os autores discordam sobre este ponto: Asaradon teria sido exilado ou por estar temporariamente em desfavor ou por estar ele próprio conspirando contra o pai (e, por fim, o teria matado). Essa teoria é improvável, pois Senaquerib não mudou o príncipe herdeiro, que permaneceu Asaradon, como afirma em suas inscrições.

Sua decisão de proteger o príncipe herdeiro, mandando-o embora, parece mais lógica, visto que ele não havia escolhido outro herdeiro. A remoção de Asaradon da corte de Nínive durou aproximadamente nove meses. Onde ele permaneceu durante esse longo período não é revelado nas inscrições de Asaradon. A localização deste lugar tem sido muito debatida: por exemplo, sugere-se que o príncipe herdeiro encontrou um refúgio seguro com a família em Harã.

Enquanto isso, em Nínive, a situação estava tão conturbada que a instituição tradicional do epônimo foi perturbada. Um documento assírio é datado no dia 5 de Ayyaru (maio) da “eponímia após Nabû-sharru-usur”, ou seja, em 681: essa situação de agitação pode ter impedido a nomeação do novo epônimo no momento certo.

O que aconteceu com Naqiʾa durante esse período? Com base na suposição de que ela tinha imensa influência sobre Senaquerib, alguns autores sugeriram que ela exercia um novo poder, por exemplo, como governadora da Babilônia. No entanto, essa teoria não está documentada. Também foi sugerido que Senaquerib lhe deu um novo status, mantendo-a ao seu lado em cerimônias religiosas, no contexto de sua reforma religiosa.

 

6. O assassinato de Senaquerib

A ausência de Asaradon criou um impasse para seus irmãos. Ele havia sido removido, mas a sucessão permaneceu inalterada, pois Senaquerib persistiu em sua decisão: Asaradon ainda era o príncipe herdeiro e tinha apoiadores em Nínive, em particular entre os profetas e adivinhos que proferiram vários oráculos em seu favor.

Esses apoios provavelmente levaram seus irmãos a agir. Na verdade, eles não conseguiriam nada esperando. Consequentemente, optaram pela ação. Este momento é descrito nas inscrições de Asaradon: “Depois disso, meus irmãos enlouqueceram e fizeram tudo o que desagradava aos deuses e à humanidade, e planejaram o mal, cingiram (suas) armas e, em Nínive, sem os deuses, eles se atracaram como crianças pelo (direito de) exercer a realeza.”

Senaquerib foi morto no dia 20 de Tebêtu (janeiro) de 681. A data é fornecida pelas Crônicas Babilônicas: “No vigésimo dia do mês de Tebêtu, Senaquerib, rei da Assíria, foi morto em uma rebelião. Por [vinte e quatro] anos, Senaquerib governou a Assíria.” O assassinato de Senaquerib é apenas aludido em termos velados nas inscrições de Asaradon: “Os deuses… viram os feitos dos usurpadores que agiram injustamente contra a vontade dos deuses e não os apoiaram.”

No entanto, este evento, que teve um impacto profundo e duradouro sobre o povo do antigo Oriente Médio, é registrado em inúmeras fontes, todas elas posteriores, exceto por uma carta datada de 680, possivelmente para Asaradon, e pelas Crônicas Babilônicas contemporâneas. Pode-se entender que, após a destruição da cidade de Babilônia, os babilônios não ficassem aborrecidos com a morte de Senaquerib.

Onde ele foi morto e como?

De acordo com as inscrições de Assurbanípal, ele foi morto em seu palácio em Nínive, ao lado dos colossos: “O restante do povo, vivo, junto aos colossos, entre os quais haviam abatido Senaquerib, pai do pai que me gerou — naquela época, eu abati aquele povo ali, como oferenda à sua sombra. Seus corpos desmembrados eu ofereci aos cães, porcos, lobos e águias, às aves do céu e aos peixes do abismo.” Essa ação de vingança ocorreu durante sua sexta campanha, contra os rebeldes da Babilônia, cerca de trinta anos após o assassinato de Senaquerib. Não é especificado quem eram essas pessoas responsáveis pelo assassinato do rei da Assíria: os irmãos de Asaradon ou outras pessoas envolvidas na conspiração?

Segundo a Bíblia, o assassinato ocorreu em Nínive: “Senaquerib, rei da Assíria, levantou o acampamento e partiu. Voltou para Nínive e aí permaneceu. Certo dia, estando ele a adorar no templo de Nesroc, seu deus, Adramelec e Sarasar mataram-no à espada e fugiram para a terra de Ararat. Asaradon, seu filho, reinou em seu lugar” (2Rs 19,36-37; Is 37,38). “Quando ele entrou no templo do seu deus, alguns de seus filhos o mataram à espada (2Cr 32,21).

(…)

A questão de quem foi(ram) o(s) assassino(s) de Senaquerib tem sido muito debatida.

Uma primeira consideração de bom senso é que uma conspiração contra um rei, conduzida por seu filho, geralmente não envolve mais de um príncipe, pois, se a conspiração for bem-sucedida, o novo rei seria tentado a matar seu(s) irmão(s), cúmplice(s) e potenciais rivais.

O próprio Asaradon entrou na lista de suspeitos devido ao silêncio de suas inscrições em relação às circunstâncias que levaram ao assassinato de seu pai, porque ele foi quem mais se beneficiou do crime, porque seu banimento por segurança é um fenômeno único, porque a sucessão de Asaradon durou apenas seis semanas e porque ele reverteu completamente a política de seu pai. No entanto, todos esses argumentos não são decisivos, e essa hipótese é infundada se aceitarmos que Asaradon era o príncipe herdeiro: ele não tinha interesse em matar seu pai e, além disso, estava longe de Nínive no momento de seu assassinato.

O nome do assassino não é conhecido em nenhum texto cuneiforme, e os nomes mencionados pela Bíblia e por Beroso foram obviamente corrompidos textualmente. Seguindo uma teoria antiga, esses nomes teriam sido corrupções de Ardi/Arad-Ninlil, filho de Senaquerib, conhecido de um documento legal contemporâneo.

Parpola foi o primeiro autor a identificar o assassino de Senaquerib em uma carta que tratava de uma conspiração contra o rei (…) Um grupo de habitantes da Babilônia ouviu falar da conspiração, e um deles tentou informar Senaquerib sobre ela. Esse informante se conformava a uma lei assíria que permitia aos súditos apelar ao rei como juiz supremo. Portanto, ele solicitou uma audiência com o rei e foi recebido por dois oficiais, Nabû-shuma-ishkun e Sillâ. Ele foi levado diante do suposto rei e disse: “Urdu-Mullissu, seu filho, vai matá-lo!” Infelizmente, os dois oficiais eram membros da conspiração, e o informante foi levado não a Senaquerib, mas ao próprio Urdu-Mullissu. Ele foi morto, e a tentativa de informar o rei sobre a conspiração contra ele foi frustrada.

Parpola reconsiderou os dois nomes mencionados na Bíblia: o nome Adramelec (ʾdrmlk) difere do nome assírio apenas em dois aspectos: a metátese de r e d, e a substituição de š por k no final do nome. O segundo nome bíblico, Sarasar (śrʾṣr), não é um nome, mas ironicamente significava “Deus salve o rei” (šarru-uṣur); uma hipótese especulativa alternativa é que o nome bíblico poderia ser identificado com Nabû-sharru-usur, governador de Marash/Marqasi, epônimo do ano 682 e possivelmente outro dos filhos de Senaquerib (…) Mesmo que não possa ser definitivamente provado, a teoria de Parpola sobre o não envolvimento de Asaradon na morte de seu pai é a mais provável no estado atual da documentação.

Quais foram os motivos do assassinato de Senaquerib? Os motivos variam conforme as fontes.

Quando a notícia do assassinato chegou à Babilônia e a Judá, provavelmente foi percebida como um castigo divino imposto pelos deuses por seus crimes.

De acordo com uma inscrição do rei babilônico Nabônides: “Ele (Senaquerib) planejou o mal; planejou crimes contra o país; não teve misericórdia do povo [da Babilônia]. Com más intenções, avançou sobre a Babilônia, devastou seus santuários; tornou o território irreconhecível; profanou os ritos de culto. Levou o senhor Marduk embora e o trouxe para a cidade de Assur.” Para os babilônios, Senaquerib era o rei selvagem que havia destruído Babilônia e espalhado o caos por toda a terra oito anos antes.

O assassinato de Senaquerib foi recebido pelos judeus da mesma forma que pelos babilônios, porque eles também sofreram muito nas mãos do conquistador assírio, embora vinte anos tivessem se passado entre o fim da campanha militar assíria contra Judá e o assassinato de 681. Os dois eventos são justapostos na Bíblia para criar a impressão de imediatismo e persuadir os leitores de que Iahweh sempre pune as más ações (2Rs 19,36–37). O profeta Isaías responde aos ministros de Ezequias [que foram consultá-lo por ordem do rei]: “Direis a vosso senhor: Assim fala Iahweh: Não tenhas medo das palavras que ouviste, das blasfêmias que os servos do rei da Assíria lançaram contra mim. Vou insuflar-lhe um espírito e, ao ouvir certa notícia, voltará para sua terra e farei com que pereça pela espada em sua terra” (2Rs 19,5-7).

(…)

Agora, quais foram as verdadeiras razões para o assassinato de Senaquerib?

Acima de tudo, é preciso colocá-lo no contexto mais amplo das dinastias do antigo Oriente Médio, por exemplo, na Mesopotâmia, Egito e Pérsia. Tais assassinatos, regicídio e parricídio, foram favorecidos pela ambiguidade das regras de sucessão, pela multiplicação de possíveis herdeiros legítimos, pela rivalidade entre as diferentes esposas e ramos familiares e pelas intrigas envolvendo haréns.

Urdu-Mullissu, o herdeiro legítimo, não aceitou a perspectiva de ser suplantado por Asaradon, o filho mais novo de seu pai. Quaisquer que sejam as outras possíveis razões para a escolha de Senaquerib, a influência de Naqiʾa provavelmente desempenhou um papel, e Asaradon possivelmente tinha, ou fingia ter, as mesmas opiniões políticas de seu pai. De qualquer forma, ele foi inteligente o suficiente para obter o apoio dos círculos religiosos da corte de Nínive. No entanto, havia um acordo geral contra ele: a oposição era liderada pelos outros filhos de Senaquerib, começando por Urdu-Mullissu, o segundo filho mais velho depois de Shamash-shumu-ukîn, seu falecido irmão.

O assassinato de Senaquerib ocorreu no dia 20 de Tebêtu (janeiro) de 681, e Asaradon ascendeu ao trono no dia 18 ou 28 de Addaru (março). Houve um lapso de tempo de mais de seis semanas. Asaradon estava, sem dúvida, em contato próximo com Naqiʾa e seus apoiadores e foi imediatamente informado do que havia ocorrido em Nínive. Primeiro, ele teve que retornar do local onde vivia pelos últimos nove meses e reunir seu exército e apoiadores. A maior parte do tempo foi provavelmente dedicada a esmagar a rebelião. É claramente mencionado nas Crônicas Babilônicas: “A rebelião continuou na Assíria desde o vigésimo dia do mês de Tebêtu até o segundo dia do mês de Addaru.”

Do segundo dia de Addaru, quando a rebelião foi esmagada, até o décimo oitavo ou vigésimo oitavo dia, quando ele ascendeu ao trono, deve ter havido uma boa quantidade de “limpeza” a ser feita em Nínive. A julgar pelo escopo da rebelião, os rebeldes devem ter contado com o apoio de grande parte da sociedade assíria. Provavelmente, juntaram-se a eles não apenas o partido militar da corte e as cidades que lucravam com as guerras imperiais, mas também todo o povo para quem a tradição assíria, em particular a sucessão real, era sagrada.

Josette Elayi (1943-)Por que Urdu-Mullissu não aproveitou o assassinato para tomar o poder, como planejara desde o início? Provavelmente porque teve que lutar contra seus irmãos, que também eram ambiciosos, e não conseguiu impor sua influência sobre eles.

Asaradon derrotou os rebeldes e venceu esta guerra de sucessão. Ele enfatizou o tratado de lealdade estabelecido por seu pai em 683, garantido pelos deuses: “O povo da Assíria, que havia jurado pelo tratado, um juramento vinculado pelos grandes deuses, a meu respeito, veio diante de mim e beijou meus pés.”

No entanto, a oposição foi tão forte que ele foi obrigado a abandonar os objetivos políticos de seu pai. Este poderia ter sido outro motivo para o assassinato de Senaquerib: a maioria da sociedade considerou seus esforços para adaptar a tradição à nova realidade histórica do Império Assírio como uma ofensa aos deuses, um perigo para a ordem existente.

 

* Como sabemos pela correspondência deixada pelos médicos e exorcistas reais, seus dias eram tomados por crises de febre e tontura, violentos ataques de vômito, diarreia e dores de ouvido dolorosas. Depressão e medo da morte iminente eram constantes em sua vida. Além disso, sua aparência física era afetada pelas marcas de uma erupção cutânea permanente que cobria grande parte de seu corpo, especialmente o rosto. Seja como for, em uma sociedade que via a doença como um castigo divino, um rei constantemente doente não poderia esperar encontrar simpatia e compreensão (RADNER, K. The trials of Esarhaddon: the conspiracy of 670 BC. ISIMU: Revista sobre Oriente Próximo y Egipto en la antigüedad 6 (2003), p. 169).

 

Bibliografia selecionada do capítulo 6:

Cogan, Mordechai. “Sennacherib and the Angry Gods of Babylon and Israel.” IEJ 59 (2009): 164–82.

Frahm, Eckart. “Perlen von den Rändern der Welt.” Pages 79–99 in Languages and Cultures in Contact: At the Crossroads of Civilizations in the Syro-Mesopotamian Realm. Edited by Karel Van Lerberghe and Gabriela Voet. RAI 42. Leuven: Peeters, 1999.

Frame, Grant. Rulers of Babylonia from the Second Dynasty of Isin to the End of the Assyrian Domination (1157–612 BC). Toronto: University of Toronto Press, 1995.

Leichty, Erle. “Esarhaddon’s Exile: Some Speculative History.” Pages 189–91 in Studies Presented to Robert Biggs. Edited by Martha T. Roth, Walter Farber, and Matthew W. Stolper. AS 27. Chicago: Oriental Institute of the University of Chicago, 2007.

Parpola, Simo. “The Murderer of Sennacherib.” Pages 171–82 in Death in Mesopotamia. Edited by Bendt Alster. RAI 26. Copenhagen: Akademisk, 1980.

Reade, J. E. “Was Sennacherib a Feminist?” Pages 139–45 in La femme dans le Proche-Orient antique. Edited by Jean-Marie Durand. RAI 33. Paris: ERC, 1986.

Tammuz, Oded. “Punishing a Dead Villain: The Biblical Accounts of the Murder of Sennacherib.” BN 157 (2013): 101–5.

Zawadski, Stefan. “Oriental and Greek Tradition about the Death of Sennacherib.” SAAB 4 (1990): 69–72.

A morte de Sargão II

Sargão II foi o primeiro e único rei do Império Assírio a cair no campo de batalha e não receber um enterro digno de um rei. Uma morte tão ignominiosa foi considerada uma enorme tragédia e um mau presságio. Acreditava-se que Sargão havia cometido algum pecado para que os deuses o abandonassem tão completamente.

ELAYI, J. Sargon II, King of Assyria. Atlanta: SBL, 2017, 298 p. – ISBN 9781628371772.ELAYI, J. Sargon II, King of Assyria. Atlanta: SBL, 2017, 298 p.

O capítulo 9 do livro, End of Reign [Fim do reinado] trata da inauguração de Dur-Sharrukkin (Khorsabad), a nova capital assíria construída por Sargão II a partir de 713 a.C., da morte suspeita do rei em batalha em 705 a.C. e, por último, do que foi considerado na época como o “pecado” de Sargão, que o levou a uma morte vergonhosa.

As notas de rodapé, de 49 a 85, foram omitidas (mas podem ser consultadas na obra, disponível para download gratuito no Projeto ICI da SBL).

Abaixo, trechos do capítulo 9, p. 210-217, sobre a morte e o “pecado” de Sargão II, rei da Assíria de 721 a 705 a.C.

 

As fontes sobre o fim do reinado de Sargão estão quase completamente ausentes; existem apenas quatro documentos.

O primeiro documento é a Crônica Babilônica, que está danificada nesta data, exceto pelas seguintes informações parcialmente restauradas: “[No décimo sétimo ano, Sarg]on [marchou] para Tabalu.”

O segundo é a Lista de Epônimos Assírios, que menciona, com algumas lacunas, para o ano 705, quando Nashur-bel, governador de Amidi, era epônimo: “o rei [ ] contra Gurdî, o Kulumeano; o rei foi morto; o acampamento do rei da Assíria [ ]; no dia 12 de Ab, Senaquerib [tornou-se] rei.”

O terceiro documento é um texto lacunar atribuído a Senaquerib, mencionando duas vezes a morte de Sargão: “a morte de Sargão, [meu pai, que foi morto no país inimigo] e que não foi enterrado em sua casa”; “[Sargão, meu pai] foi morto [no país inimigo e] não foi sepultado] em sua casa.”

O quarto documento é uma carta bastante danificada, relacionada à morte de um rei assírio, seguida de uma revolta; esses eventos podem ter ocorrido em Assur ou, menos provavelmente, em Nínive; o nome dos cimérios é parcialmente restaurado. A identidade do rei é incerta: Salmanasar V ou Sargão II, e o nome dos cimérios é uma restauração (…).

Uma coisa fica clara nos documentos: Sargão empreendeu uma campanha militar durante a qual foi morto.

No entanto, é difícil saber exatamente o que aconteceu, onde e, acima de tudo, por quê. Em algum lugar, aparentemente houve uma rebelião contra o jugo de Sargão, mas seria uma ameaça real ao Império Assírio? Seja qual for a causa, o rei da Assíria poderia ter enviado uma expedição militar para confrontar quem estivesse agindo contra ele, liderada por um de seus oficiais, como fez em outras ocasiões, por exemplo, contra Asdode em 711 ou contra Tiro em 709.

Mas Sargão era principalmente um rei guerreiro e não fazia campanha há vários anos. Khorsabad [a nova capital assíria*] era um lugar tranquilo, habitado por pessoas devotadas a ele e sem a oposição encontrada em Nimrud e na Babilônia, mas talvez a nova cidade fosse tranquila demais para ele, e ele estivesse entediado com tão pouco para fazer. Uma expedição militar teria sido uma distração.

O local onde Sargão foi morto tem sido debatido, assim como a identidade de seu inimigo. A Babilônia Meridional era uma proposta infundada. A hipótese da Média baseava-se numa semelhança entre Kulummâ e a cidade de Kuluman. Outra hipótese era a terra dos cimérios, KURGamir, na Transcaucásia central, baseada na restauração do nome “cimérios” nos documentos. A hipótese mais provável, adotada pela maioria dos estudiosos, com base na Crônica Babilônica, é Tabal [no sudeste da Ásia Menor].

O inimigo de Sargão que o venceu na batalha foi Gurdî (…) Quem era este “Gurdî, o Kulumeano”? Várias propostas foram feitas: ele poderia ter sido um líder tribal cimério, um governante de Til-Garimme na Anatólia, um governante tabaliano local ou o mesmo que Kurtî, rei de Atunna (…) No estado atual da documentação, é impossível fazer qualquer avanço adicional na identificação do Gurdî responsável pela morte de Sargão.

Os eventos parecem ter se desenrolado da seguinte forma: Sargão iniciou sua campanha contra Tabal por volta do início do verão de 705, com seu exército bem treinado. Embora o rei assírio não costumasse correr muitos riscos ao lutar, ele foi infelizmente morto durante a batalha contra Gurdî, o governante de Kulummâ. A partir dos documentos, sabemos apenas que ele não pôde ser enterrado em seu palácio, como era costume entre os reis assírios: isso significa que, por alguma razão desconhecida, foi impossível repatriar seu corpo. Várias hipóteses foram propostas, mas sem base suficiente: ou seu corpo não pôde ser descoberto ou havia sido cremado. Tudo o que sabemos é que Sargão foi morto antes que o acampamento assírio fosse vítima das tropas hostis.

O fato de o corpo do rei não ter sido recuperado para o sepultamento e para o culto fúnebre era considerado uma verdadeira maldição. Por exemplo, a fórmula colocada no final dos tratados internacionais era um lembrete desse imperativo. Os mortos insepultos tornavam-se um fantasma (eṭemmu) que retornava e assombrava os vivos até que uma solução fosse encontrada. Sargão foi considerado como tendo tido uma morte desonrosa. Como seu filho e sucessor, Senaquerib, reagiu?

Pode-se supor que ele tenha tentado encontrar o corpo do pai e se esforçado para vingar sua morte, talvez pela campanha de 704 contra os kulumeanos. No entanto, as inscrições de Senaquerib nunca mencionaram sua filiação, e ele não escreveu nem construiu nada em homenagem à memória de Sargão. Pode-se questionar se ele guardava rancor do pai, pois, embora fosse o príncipe herdeiro, nunca esteve associado às gloriosas campanhas de Sargão e foi obrigado a esperar dezessete anos antes de, por sua vez, tornar-se rei da Assíria.

Sargão II foi o primeiro e único rei do Império Assírio a cair no campo de batalha e não receber um enterro digno de um rei. Uma morte tão ignominiosa foi considerada uma enorme tragédia e um mau presságio. Acreditava-se que Sargão havia cometido algum pecado para que os deuses o abandonassem tão completamente.

Sua morte trágica provavelmente fortaleceu, do ponto de vista político e religioso, os oponentes de suas políticas babilônicas na Assíria. Seguidores da corrente nacionalista assíria tenderiam a acreditar que foi o “pecado” de Sargão que o levou a ser morto e não enterrado em seu palácio.

Há apenas um documento mencionando o pecado de Sargão: um texto literário complexo, com cerca de oitenta linhas no anverso e no reverso (K.4730), bastante danificado, além de um pequeno fragmento adicional (Sm.1876).

As primeiras interpretações deste texto foram baseadas em uma leitura equivocada de algumas passagens: por exemplo, não há relação com o motivo do rei insepulto em Isaías 14,4-20a, e o texto nunca menciona que o corpo de Sargão foi posteriormente recuperado após muita oposição por alguma razão desconhecida pelos sacerdotes e enterrado por Senaquerib com a pompa necessária. Segundo von Soden, o fato de a nova capital de Khorsabad ter sido abandonada imediatamente após a morte de Sargão provou que sua fundação representou o pecado de Sargão. No entanto, mesmo que a nova cidade estivesse condenada como capital assíria, ela não era desabitada, ao contrário do que foi dito; há vários atestados de um governador de Khorsabad durante os reinados de seus sucessores, por exemplo, Iddin-ahhe em 693, Nabû-belu-usur em 672 e Sharru-lu-dari em 664.

A leitura do texto K.4730 tem melhorado ao longo dos anos, permitindo progressos em sua interpretação, principalmente por Tadmor, Landsberger e Parpola [Tadmor, Hayim, Benno Landsberger, and Simo Parpola, “The Sin of Sargon and Sennacherib’s Last Will.” SAAB 3 (1989): 3–51], que verificaram as diferentes comparações e estudaram as fotografias, e por Lambert, que descobriu que o fragmento Sm.1876 pertencia à mesma tabuinha que K.4730.75.

Tabal entre os reinos neo-hititas no primeiro milênio a.C.Após uma lacuna de cerca de três linhas, Senaquerib se identificou, enfatizou sua piedade e seu desejo de se submeter à vontade dos deuses, por mais difícil que fosse. Ele contou a história de seu pai, Sargão, que, tendo ofendido os deuses de alguma forma, encontrou uma morte infame. Ele precisava determinar a natureza dessa ofensa por extispício** a fim de evitar cometer o mesmo pecado e ter o mesmo destino que Sargão.

Ele dividiu os arúspices em vários grupos, cada grupo aparentemente dando-lhe sua resposta de forma independente.

A passagem de sua investigação está danificada e foi restaurada da seguinte forma: “Será que foi porque [ele honrou] os deuses da Assíria em demasia, colocando-os] acima dos deuses da Babilônia […, e será que foi porque] ele não [cumpriu] o tratado do rei dos deuses [que Sargão, meu pai] foi morto [no país inimigo e] não foi sepultado em sua casa?”

A resposta dos arúspices foi unanimemente positiva. Pode-se entender que Sargão havia honrado seus próprios deuses às custas dos deuses da Babilônia, mas o texto não dava nenhuma ideia do tratado divino que ele violou, perturbando assim a ordem cósmica (…).

(…)

O que foi finalmente considerado como o “pecado” (hi-ṭu, l. 10’) ou os “pecados” (hi-ṭa-a-ti, l. 16’) de Sargão? Ele colocou o deus assírio Assur e outros deuses assírios, como Enlil, Nabu, Sin, Shamash e Adad, acima do deus babilônico Marduk, como pode ser visto em suas inscrições ao longo de todo o seu reinado. De acordo com este texto, a estátua inacabada de Marduk confirmaria a ideia de que Sargão honrava os deuses assírios em detrimento dos deuses da Babilônia.

(…)

Para os assírios, a enorme capital, Khorsabad, permaneceu como um testemunho da grandeza de Sargão, mas também era uma cidade amaldiçoada, um lembrete do terrível destino do rei devido ao seu pecado ou pecados incompreensíveis.

 

* A Assíria teve 4 capitais:
1. Assur: capital da Assíria desde o II milênio a.C. e cidade de grande importância religiosa ao longo de toda a sua história
2. Kalhu (Nimrud), escolhida como capital por Assurnasírpal (reinou de 883 a 859 a.C.)
3. Dur-Sharrukkin (Khorsabad), construída por Sargão II a partir de 713 a.C. (reinou de 721 a 705 a.C.)
4. Nínive, escolhida como capital por Senaquerib (reinou de 705 a 681 a.C.)

** O extispício ou hepatoscopia era o exame das entranhas, especialmente do fígado, de animais sacrificados para predizer ou adivinhar eventos futuros.

As origens de Israel: todos os links

Em ordem cronológica, do mais recente para o mais antigo.

Observatório Bíblico

As origens de Israel: todos os links – 11.04.2025

Notas sobre as origens de Israel – 05.04.2025

Após o colapso da Idade do Bronze – 27.06.2024

Novas entidades políticas surgem após o colapso da Idade do Bronze – 07.06.2024CLINE, E. H. After 1177 B.C.: The Survival of Civilizations. Princeton: Princeton University Press, 2024

Depois de 1177 a.C.: a sobrevivência das civilizações – 13.11.2023

Seca severa contribuiu para o colapso da Idade do Bronze – 18.04.2023

As origens de Israel – 09.03.2023

A arqueologia bíblica norte-americana e o sionismo – 15.02.2023

Sobre o Mês da Bíblia 2022 – 16.10.2022

Apresentação do livro de Josué – 17.09.2022

Semana Bíblica Paulinas 2022 – 26.08.2022

Mês da Bíblia 2022 na ReBiblica – 19.08.2022

Em busca de terra livre: encontros virtuais – 08.08.2022

Em busca de terra livre: uma leitura de Josué – 08.08.2022

Mês da Bíblia 2022 na Vida Pastoral – 27.07.2022

Livro de Josué: live de lançamento – 25.07.2022

O livro de Josué – 19.06.2022

O cerco de Jericó: análise de Josué 2 e 6 – 15.06.2022

Mês da Bíblia 2022, segundo o SAB – 17. 05.2022

Mês da Bíblia 2022, segundo Mesters e Orofino – 17.05.2022

Mês da Bíblia 2022: entendendo o livro de Josué – 17.05.2022

Mês da Bíblia 2022: Josué – 17.05.2022

O livro de Josué no século XX: Alt e Albright – 04.06.2021

Quem escreveu o livro de Josué? – 03.06.2021

O livro de Josué não é um relato de conquista – 23.04.2021

O mundo das origens de Israel, segundo Mario Liverani – 22.04.2021Medinet Habu: Ramsés III x Povos do Mar

A invenção da conquista, segundo Mario Liverani – 21.04.2021

O quebra-cabeças das origens de Israel – 30.03.2021

O livro de Josué na pesquisa recente – 20.01.2021

1177 a.C.: o ano em que a civilização entrou em colapso – 09.07.2019

Os filisteus e a crise da Idade do Bronze – 09.07.2019

DNA indica origem europeia dos filisteus – 06.07.2019

A História de Israel e Judá na pesquisa atual I-V – 15 a 23.10.2018

Israel Finkelstein fala sobre as origens de Israel – 07.11.2015

A História Antiga de Israel no Brasil: três opiniões – 17.10.2013

Seca, terremoto e as origens de Israel – 22.08.2013

As origens de Israel: polêmico artigo de Rainey – 27.10.2008

Estudos sobre as origens de Israel são reeditados – 28.04.2008

George Mendenhall fala sobre as origens de Israel – 06.09.2006

Sobre as origens de Israel – 15.03.2006

As origens de Israel e o governo de Davi: a polêmica continua! – 12.02.2005

KILLEBREW, A. E.; LEHMANN, G. (eds.) The Philistines and Other “Sea Peoples” in Text and Archaeology. Atlanta: Society of Biblical Literature, 2013.

 

Ayrton’s Biblical Page

As origens de Israel – Item 2 da “História de Israel”, publicado em 2023

Leitura sociológica da Bíblia – Artigo publicado em 2022

A história de Israel e Judá na pesquisa atual – Artigo publicado em 2018

A história de Israel no debate atual – Artigo publicado em 2001

Pode uma ‘História de Israel’ ser escrita? – Artigo publicado em 2001

Leitura socioantropológica da Bíblia Hebraica – Artigo publicado em 1999

Resenha de FINKELSTEIN, I.; SILBERMAN, N. A. The Bible Unearthed: Archaeology’s New Vision of Ancient Israel and the Origin of Its Sacred Texts. New York: The Free Press, 2001

Resenha de GRABBE, Lester L. (ed.) Can a ‘History of Israel’ Be Written? Sheffield: Sheffield Academic Press, 1997, [London: T T Clark, 2005]

Resenha de DAVIES, P. R. In Search of ‘Ancient Israel’. Sheffield: Sheffield Academic Press [1992], 1995, [2. ed.  2015]

Notas sobre as origens de Israel

GUEVARA LLAGUNO, M. J. Aproximación a la historia de los orígenes de Israel: Notas de la presentación de un estado de la cuestión. Estella (Navarra): Verbo Divino, 2021, 256 p. – ISBN 9788490737392.GUEVARA LLAGUNO, M. J. Aproximación a la historia de los orígenes de Israel: Notas de la presentación de un estado de la cuestión. Estella (Navarra): Verbo Divino, 2021, 256 p.

Em 1988, um estudo sobre as origens de Israel chamou a questão de “enigma histórico” (José Luis Sicre, «Los orígenes de Israel. Cinco respuestas a un enigma histórico», Estudios Bíblicos 46 (1988) 421-455). Trinta anos depois, a questão continua a suscitar inúmeros debates, discussões e hipóteses na tentativa de esclarecer em que ponto da história do antigo Levante é possível identificar uma entidade política, mesmo embrionária, que apresente substancialmente características de identificação que lhe permitam ser reconhecida como Israel. O livro nos aproxima do debate atual sobre a questão, exibindo informações do trabalho de muitos arqueólogos e historiadores nos últimos 25-30 anos.

Miren Junkal Guevara Llaguno (Bilbao 1966), formada em Direito e doutora em Teologia, é professora do Departamento de Teologia da Universidade Loyola Andaluzia, Espanha, e leciona Pentateuco e Livros Históricos. Suas duas principais áreas de pesquisa são: Bíblia e cultura; e contexto histórico dos relatos do Antigo Testamento.

 

En 1988, un estudio en torno al origen de Israel calificó la cuestión de “enigma histórico”. Treinta años después, el asunto sigue planteando númerosos debates, discusiones e hipótesis para tratar de esclarecer en qué momento de la historia del Levante antiguo es posible identificar una entidad política, aunque sea embrionaria, que muestre sustancialmente unos rasgos identitarios que permitan reconocerla como Israel. El libro nos acerca al estado actual de la cuestión, desplegando la información que proviene del trabajo de muchos arqueólogos e historiadores en los últimos 25-30 años.

Miren Junkal Guevara Llaguno (Bilbao 1966), licenciada en Derecho y doctora en Teología, es catedrática del Departamento de Teología de la Universidad Loyola Andalucía, España, docente de Pentateuco y Libros Históricos. Sus dos áreas de investigación principales son: Biblia y cultura; y trasfondo histórico de los relatos del Antiguo Testamento.

História de Israel II 2025

Este curso de História de Israel II compreende 2 horas semanais, com duração de um semestre, o segundo dos oito semestres do curso de Teologia. Os alunos recebem os roteiros de todas as minhas disciplinas do ano em curso nos formatos pdf e html. Os sistemas de avaliação e aprendizagem seguem as normas da Faculdade e são, dentro do espaço permitido, combinados com os alunos no começo do curso.

I. Ementa
O exílio babilônico. A época persa e as conquistas de Alexandre. Os Ptolomeus governam a Palestina. Os Selêucidas: a helenização da Palestina. Os Macabeus I: a resistência. Os Macabeus II: a independência. O domínio romano: da intervenção de Pompeu à revolta de Bar-Kosibah.

II. Objetivos
Oferece ao aluno um quadro coerente da História de Israel e discute as tendências atuais da pesquisa na área. Constrói uma base de conhecimentos histórico-sociais necessários ao aluno para que possa situar no seu contexto a literatura bíblica veterotestamentária produzida no período.

III. Conteúdo Programático
1. O exílio babilônico

2. O judaísmo pós-exílico

2.1. O domínio persa

2.2. O domínio grego

2.3. O domínio romano

IV. Bibliografia
Básica
FINKELSTEIN, I. ; SILBERMAN, N. A. A Bíblia desenterrada: a nova visão arqueológica do antigo Israel e das origens dos seus textos sagrados. Petrópolis: Vozes, 2018.

LIVERANI, M. Para além da Bíblia: história antiga de Israel. São Paulo: Loyola/Paulus, 2008.

MAZZINGHI, L. História de Israel das origens ao período romano. Petrópolis: Vozes, 2017.

Complementar
DA SILVA, A. J. História de Israel. Disponível na Ayrton’s Biblical Page. Última atualização: 11.01.2025.

GERSTENBERGER, E. S. Israel no tempo dos persas: séculos V e IV antes de Cristo. São Paulo: Loyola, 2014.

HORSLEY, R. A. Arqueologia, história e sociedade na Galileia: o contexto social de Jesus e dos Rabis. São Paulo: Paulus, 2000 [2a. reimpressão: 2017].

KIPPENBERG, H. G. Religião e formação de classes na antiga Judeia: estudo sociorreligioso sobre a relação entre tradição e evolução social. São Paulo: Paulus, 1997. Resumo publicado em Estudos Bíblicos, Petrópolis, n. 120, p. 413-434, 2013 e disponível na Ayrton’s Biblical Page. Última atualização: 12.02.2021.

STEGEMANN, W. Jesus e seu tempo. São Leopoldo: Sinodal/EST, 2013.

A Judeia sob os domínios grego e romano

DESILVA, D. A. Judea under Greek and Roman Rule. New York: Oxford University Press, 2024, 216 p. – ISBN 9780190263249.

Este volume fornece uma reconstrução da história da Judeia e das regiões vizinhas de 334 a.C., quando as conquistas de Alexandre em direção ao leste trouxeram aDESILVA, D. A. Judea under Greek and Roman Rule. New York: Oxford University Press, 2024, 216 p. Judeia para o império grego, até 135 d.C., quando Adriano refundou Jerusalém como Aelia Capitolina e baniu os judeus dos limites da cidade — um período formativo tanto para o judaísmo inicial quanto para o movimento cristão. Esta história se desenrola em um cenário de política internacional que demarcou os desenvolvimentos dentro da Judeia, incluindo guerras entre os impérios selêucida e ptolomaico pelo controle da Palestina, guerras internas que levaram ao declínio do império selêucida e a expansão e consolidação para o leste do domínio romano.

Judea under Greek and Roman Rule se concentra na reforma helenizante que precipitou a Revolta dos Macabeus, o estabelecimento de um reino independente sob a Dinastia Asmoneia, o governo de Herodes e a transição para o governo romano, as circunstâncias que precipitaram duas revoltas devastadoras contra a dominação romana e as respostas construtivas (literárias e práticas) dentro do judaísmo a ambas as revoltas e às suas consequências.

David A. deSilva é Professor de Novo Testamento e de Grego no Ashland Theological Seminary, Ohio, USA.

This volume provides a reconstruction of the history of Judea and its neighboring regions from 334 BCE, when Alexander’s eastward conquests brought Judea into the Greek empire, through 135 CE, when Hadrian re-founded Jerusalem as Aelia Capitolina and banished Jews from the city limits — a formative period both for early Judaism and the Christian movement. This history unfolds against a backdrop of international politics that constrained developments within Judea, including wars between the Seleucid and Ptolemaic empires for control of Palestine, internal wars that led to the decline of the Seleucid empire, and the eastward expansion and consolidation of Roman rule.

Judea under Greek and Roman Rule focuses on the Hellenizing Reform that precipitated the Maccabean Revolt, the establishment of an independent kingdom under the Hasmonean Dynasty, the rule of Herod and transition to Roman rule, the circumstances that precipitated two devastating revolts against Roman domination, and constructive responses (both literary and practical) within Judaism to both revolts and the consequences.

David deSilva (Ph.D., Emory University) is Trustees’ Distinguished Professor of New Testament and Greek at Ashland Theological Seminary, Ohio, USA.

História de Israel I 2025

Este curso de História de Israel I compreende 2 horas semanais, com duração de um semestre, o primeiro dos oito semestres do curso de Teologia. Os alunos recebem os roteiros de todas as minhas disciplinas do ano em curso nos formatos pdf e html. Os sistemas de avaliação e aprendizagem seguem as normas da Faculdade e são, dentro do espaço permitido, combinados com os alunos no começo do curso.

I. Ementa
Noções de geografia do Antigo Oriente Médio. As origens de Israel: as principais tentativas de explicação. A monarquia tributária israelita: os governos de Saul, Davi, Salomão, o reino de Judá e o reino de Israel.

II. Objetivos
Oferece ao aluno um quadro coerente da História de Israel e discute as tendências atuais da pesquisa na área. Constrói uma base de conhecimentos histórico-sociais necessários ao aluno para que possa situar no seu contexto a literatura bíblica veterotestamentária produzida no período.

III. Conteúdo Programático
1. Noções de geografia do Antigo Oriente Médio

2. As origens de Israel

3. A monarquia tributária israelita

3.1. Os governos de Saul, Davi e Salomão

3.2. O reino de Israel

3.3. O reino de Judá

IV. Bibliografia
Básica
FINKELSTEIN, I. ; SILBERMAN, N. A. A Bíblia desenterrada: a nova visão arqueológica do antigo Israel e das origens dos seus textos sagrados. Petrópolis: Vozes, 2018.

LIVERANI, M. Para além da Bíblia: história antiga de Israel. São Paulo: Loyola/Paulus, 2008.

MAZZINGHI, L. História de Israel das origens ao período romano. Petrópolis: Vozes, 2017.

Complementar
DA SILVA, A. J. História de Israel. Disponível na Ayrton’s Biblical Page. Última atualização: 11.01.2025.

DONNER, H. História de Israel e dos povos vizinhos. 2v. 7. ed. São Leopoldo: Sinodal/EST, 2017.

FINKELSTEIN, I. O reino esquecido: arqueologia e história de Israel Norte. São Paulo: Paulus, 2015.

GOTTWALD, N. K. As tribos de Iahweh: uma sociologia da religião de Israel liberto, 1250-1050 a.C. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2004.

NAKANOSE, S.; DIETRICH, L. J. (orgs.) Uma história de Israel: leitura crítica da Bíblia e arqueologia. São Paulo: Paulus, 2022.

Assíria

Todas as postagens sobre a Assíria publicadas no Observatório Bíblico. Em ordem cronológica, da mais recente à mais antiga:

:: O assassinato de Senaquerib – 09.06.2025

:: A morte de Sargão II – 04.06.2025

:: Desolação encontra desolação – 31.01.2025

:: A descoberta da Assíria por Layard e a Bíblia – 25.01.2025

:: Fontes textuais para o Akitu durante o Primeiro Milênio a.C. – 21.11.2024Senaquerib, rei da Assíria de 705 a 681 a.C.

:: Layard e Botta em Nínive em 1842 – 17.10.2024

:: Assíria e Egito na Palestina na época de Josias – 03.10.2024

:: A escavação arqueológica da Assíria – 17.08.2024

:: O império assírio: ascensão e queda – 11.06.2024

:: Tiglat-Pileser I, rei da Assíria de 1115 a 1076 a.C. – 18.05.2024

:: Notas sobre o começo da arqueologia na Mesopotâmia – 20.03.2024

:: Como ser um assiriólogo? – 28.06.2023

:: Eles criam uma solidão e a chamam de paz: o domínio assírio na Palestina – 16.03.2022

:: As campanhas militares de Tiglat-Pileser III na Síria e na Palestina – 13.03.2022

:: A imperialização da Assíria: uma abordagem arqueológica – 16.02.2022

:: Projeto Biblioteca de Assurbanípal – 03.02.2022

:: Revisitando o legado de Layard – 16.03.2021

:: A tomada de Laquis por Senaquerib em 701 a.C. – 3 — 27.04.2020Assurbanípal, rei da Assíria (668-627 a.C.)

:: A tomada de Laquis por Senaquerib em 701 a.C. – 2 — 27.04.2020

:: A tomada de Laquis por Senaquerib em 701 a.C. – 1 — 27.04.2020

:: Um retrato de Senaquerib, rei da Assíria – 16.04.2020

:: O cerco de Jerusalém por Senaquerib em 701 a.C. – 11.04.2020

:: As inscrições reais do período neoassírio – 07.04.2020

:: A invasão de Judá por Senaquerib: as fontes – 28.03.2020

:: Senaquerib, rei da Assíria – 14.03.2020

:: Eu sou Assurbanípal: exposição no Museu Britânico – 04.02.2019

:: Ensaios sobre a Assíria – 02.01.2018

:: Sargão II, rei da Assíria – 13.10.2017Os relevos de Laquis no British Museum, Londres

:: Religião e ideologia na Assíria – 13.06.2017

:: Assíria: a pré-história do imperialismo – 08.06.2017

:: O EI e a destruição do patrimônio arqueológico na Síria e no Iraque – 05.09.2015

:: A invasão de Judá por Senaquerib em 701 a.C. – 22.03.2015

:: O EI está mesmo destruindo artefatos assírios? – 27.02.2015

:: Ezequias e os espiões da Assíria – 01.02.2007

:: As campanhas de Tiglat-Pileser III contra Damasco e Samaria entre 734 e 732 a.C. – 21.06.2006

Fontes textuais para o Akitu durante o Primeiro Milênio a.C.

O capítulo 3 do livro Of Priests and Kings: The Babylonian New Year Festival in the Last Age of Cuneiform Culture, de Céline Debourse, trata das fontes textuais para o Festival do Ano Novo Babilônico, o Akitu, durante o Primeiro Milênio a.C. Transcrevo aqui alguns trechos.

O período neoassírio

A primeira evidência que se relaciona diretamente com o Festival do Ano Novo Babilônico deriva, talvez surpreendentemente, de um contexto assírio. É em fontes assíriasDEBOURSE, C. Of Priests and Kings: The Babylonian New Year Festival in the Last Age of Cuneiform Culture. Leiden: Brill, 2022, 524 p. que encontramos pela primeira vez o rei levando Marduk pela mão para a procissão Akitu. No entanto, a maioria das fontes é sobre a tradição Akitu no próprio território assírio, cujo desenvolvimento ocorreu em grande escala e em alta velocidade. No entanto, mesmo que a maioria das fontes neoassírias relacione práticas assírias em vez de babilônicas, muitas vezes presume-se que os elementos mais importantes do festival foram emprestados da versão babilônica do Akitu. Em um sentido mais geral, a evidência neoassíria demonstra a importância do Akitu na sociedade babilônica já no oitavo século a.C.

Resumo
As fontes neoassírias são as primeiras a lançar alguma luz sobre o Festival do Ano Novo Babilônico durante o primeiro milênio a.C. Elas mostram a importância do festival no mundo babilônico, não apenas pela disposição dos assírios em participar dele (no caso de Tiglat-Pileser III e Sargão II), mas também por sua ânsia em adotar o conceito e integrá-lo em sua própria ideologia. Além disso, a interrupção forçada do festival na Babilônia causada pela remoção de Marduk durante o reinado de Senaquerib também mostra o poder ideológico que o Akitu detinha na Babilônia. No entanto, as fontes assírias devem ser abordadas com muito cuidado quando se trata de reconstruir o festival babilônico. Embora esteja claro que os estudiosos assírios tomaram a tradição babilônica como modelo, eles a remodelaram para se adequar ao contexto assírio no qual foi inserida.

No entanto, algumas características gerais do Festival do Ano Novo Babilônico podem ser discernidas nesses textos, sem a necessidade de adaptá-los a partir de fontes posteriores. O material de origem neoassírio menciona apenas o festival Akitu da Babilônia e não registra nada sobre outras cidades babilônicas onde o festival pode ter ocorrido. Isso mostra como o festival nesta cidade era de particular importância. O fato de que os festivais Akitu eram observados em diferentes cidades assírias provavelmente também é modelado a partir de uma tradição babilônica existente.

Também deve ser notado que já nessa época tanto Marduk quanto Nabú são os protagonistas divinos do festival na Babilônia. A importância de Nabú no Festival do Ano Novo Babilônico já estava estabelecida nessa época. Além disso, os registros deixam claro que a procissão dos deuses ao templo Akitu era a característica mais distintiva do Festival do Ano Novo: quase todas as fontes se concentram neste evento. Em relação ao Festival do Ano Novo Babilônico, o uso da frase “tomando Bel pela mão” é prevalente para se referir à procissão.

Por fim, não apenas o conteúdo das fontes, mas também sua natureza demonstra o lugar importante que o Festival do Ano Novo da Babilônia ocupava na sociedade e cultura babilônicas já no início do período sargônida. A escolha dos reis assírios para participar do festival babilônico é um dos indicadores disso, mostrando que eles usaram o Festival do Ano Novo como uma ferramenta para estabelecer pacificamente seu governo na Babilônia.

Não há dúvida de que havia uma forte tradição Akitu na Babilônia já no século VIII a.C., permitindo que os assírios a usassem dessa forma, mas os detalhes dela permanecem envoltos em escuridão. O festival acontecia anualmente? Os reis participavam? Quão importante era o festival para a legitimação real? Até que mais evidências venham à tona, essas questões devem permanecer sem resposta.

O período neobabilônico e o período persa inicial

Durante o período neobabilônico, o festival Akitu na Babilônia permaneceu como uma ferramenta para a legitimação real, como pode ser observado não apenas nas inscrições reais, mas também na tradição historiográfica emergente. Enquanto o festival na Babilônia era celebrado no Ano Novo e exaltava o rei, o deus nacional Marduk e o império babilônico, os documentos administrativos de outras cidades santuário mostram a observância de festivais Akitu locais em outros momentos do ano que giravam em torno da divindade padroeira local. Como tal, a continuidade — em termos gerais — com a tradição Akitu neoassíria pode ser observada independentemente das diferenças no material de origem. Em contraste, a mudança ocorreu de forma marcante com a chegada dos persas em 539 a.C. Esses novos governantes não parecem ter participado ou investido no festival. Apesar desse desinteresse real no Akitu, os registros administrativos mostram que os sacerdotes conseguiram manter alguns aspectos tradicionais do Festival do Ano Novo, como a jornada de Nabú de Borsipa para a Babilônia, mas somente até o reinado de Dario I.

Há cinco grupos de fontes que dão informações sobre o Festival do Ano Novo no longo século VI a.C.: inscrições reais, textos administrativos, crônicas, textos histórico-literários e composições de culto. Eles mostram como o Akitu era um fenômeno que não estava restrito aos templos, mas estava profundamente enraizado na cultura, na erudição e na ideologia real da Babilônia.

Resumo
O número de testemunhos em diferentes tipos de texto mostra como o Festival do Ano Novo Babilônico era parte integrante da vida religiosa, cultural e social da Babilônia durante o longo século VI a.C. Os textos se referem ao Akitu como um conceito tão bem definido na mentalidade babilônica que não precisa ser especificado por escrito e, portanto, as fontes não são muito indicativas para os detalhes da performance de culto, rituais e organização do festival. Em vez disso, a documentação neobabilônica pode ser melhor usada para estudar como o Festival era usado e percebido na sociedade babilônica.

Primeiro, na Babilônia, Akitu funciona praticamente como um sinônimo para “Festival de Ano Novo”. Em um significado secundário, a palavra se refere ao templo Akitu, embora nesses casos isso seja frequentemente especificado referindo-se ao edifício como bīt akīti. No contexto de outras cidades, Akitu perde sua conexão com o Ano Novo.

Segundo, a documentação é amplamente a favor do festival Akitu da Babilônia. Embora a administração dos templos locais forneça alguns vislumbres dos calendários de culto locais, incluindo um festival Akitu local, em inscrições públicas e círculos acadêmicos o conceito de Akitu estava inextricavelmente ligado à Babilônia. No entanto, o papel de Borsipa não deve ser negligenciado. A importância da cidade-irmã da Babilônia é refletida na parte proeminente atribuída a Marduk e Nabú no festival, outro elemento característico do Festival do Ano Novo Babilônico nessa época.

Terceiro, as fontes falam claramente que o Festival do Ano Novo estava associado ao rei e à realeza. Não é apenas um tópico recorrente nas inscrições reais, mas também está ligado à realeza nas Crônicas. Vários detalhes permanecem obscuros, no entanto. O silêncio das fontes em relação à participação anual do rei no festival pode ser considerado um argumento a favor dessa ideia? Qual período foi definidor para essa tradição de envolvimento real no Akitu e as Crônicas podem ser usadas como fontes confiáveis ​​para responder a essa pergunta?

Quarto, as diferentes fontes estão quase todas preocupadas com o mesmo evento: procissões Akitu, seja a jornada de Nabú entre Borsipa e Babilônia ou as procissões de e para o templo Akitu. Claramente, esse era o aspecto mais importante do festival, o que pode ser explicado de muitas maneiras: pode ser o ato simbólico/ritual mais crucial; pode estar conectado à natureza perigosa de trazer os deuses para fora de seus templos, enfatizando assim a conclusão bem-sucedida desse esforço; ou pode ser simplesmente a natureza pública e festiva da procissão; e provavelmente foi a combinação de todos os elementos que fez disso o evento característico do Festival do Ano Novo.

Nabônides foi o último rei da Babilônia a mencionar o Akitu em suas inscrições. As Crônicas terminam, no máximo, com a chegada dos persas. E embora o material administrativo referente ao Akitu continue até o reinado do rei persa Dario I, é perceptível que a mudança havia se instalado de forma irreversível. Há um silêncio completo de 484 a.C. em diante e somente quando os Selêucidas estabeleceram firmemente seu reinado na Babilônia é que temos notícia novamente do Festival do Ano Novo Babilônico.

A Babilônia helenística

As ideias atuais sobre o Akitu também são baseadas em fontes que datam do período helenístico. Muitos estudiosos modernos subscrevem a ideia de que o Akitu continuou a ser realizado durante todo o período helenístico, seja como um renascimento de tradições antigas ou como uma continuidade ininterrupta do período neobabilônico até os períodos persa e helenístico. Além disso, é comumente assumido que o Akitu manteve seu formato de doze dias e incluiu a procissão dos deuses de e para o templo Akitu. Também é amplamente aceito que os reis Selêucidas participaram do festival da mesma forma que seus predecessores neobabilônicos.

Eságil: templo de Marduk em Babilônia. Pergamonmuseum, BerlinNo entanto, a natureza e o escopo do material de origem deste período são notavelmente diferentes dos de períodos anteriores. Nenhuma fonte emana do rei e, em vez disso, o material deriva de um contexto puramente sacerdotal. Além disso, novos gêneros são adotados e desenvolvidos, mais notavelmente os Diários Astronômicos e as Crônicas. Além disso, os diferentes tipos de fontes fornecem insights muito diferentes sobre o Akitu, em contraste com a documentação anterior, que coloca uma ênfase pesada na procissão e no papel do rei no festival.

Resumo
Em resumo, a documentação referente ao Akitu babilônico no período helenístico difere muito daquela de períodos anteriores, tanto no tipo de fontes disponíveis quanto no que elas relatam. A questão é se isso se deve a meras mudanças documentais ou a diferenças reais no culto. Por exemplo: não é nenhuma surpresa que não haja fontes helenísticas que derivem do rei, como foi o caso nos períodos neoassírio e neobabilônico, porque não havia mais um rei nativo da Babilônia.

Um aspecto notável é a discrepância entre registros contemporâneos e aquelas fontes que relatam eventos do passado. Atente-se para o fato de que nenhuma das fontes contemporâneas atesta a procissão Akitu com exceção de um documento do período parta que o faz parecer um evento bastante pequeno e banal. O que é relatado nesses textos é principalmente limitado a oferendas e outras atividades rituais que ocorreram no Eságil e dentro do é.ud.1kam. Em contraste, a procissão ainda é o tópico central nos relatos Akitu nas Crônicas históricas, que também são as únicas fontes que se referem ao evento com terminologia conhecida da documentação pré-persa.

Também a função atribuída ao rei é diferente na documentação contemporânea, por um lado, e nos relatos históricos, por outro. Enquanto o rei é apresentado como a força motriz por trás dos festivais Akitu do passado, na Babilônia helenística ele parece desempenhar um papel bastante distante e passivo, deixando a iniciativa com o sacerdócio local. Especificamente, isso também distingue as Crônicas históricas de textos anteriores, pois elas apresentam o sumo sacerdote como um agente proeminente no festival. À luz disso, é notável que alguns dos textos rituais incluam o rei como um participante do Festival. Isso levanta a questão da função desses textos em um contexto no qual o governante estava ausente.

Considerações finais e perspectiva

A pesquisa de fontes deixa claro que não podemos manter nossas ideias convencionais sobre a continuidade do Akitu e nem podemos falar de algo como “o” Akitu. Em nenhum momento no tempo podemos reconstruir a estrutura básica e os princípios do festival celebrado na Babilônia no Ano Novo com base apenas em fontes contemporâneas. Além disso, uma série de diferenças são discerníveis no material disponível, não apenas entre as fontes neoassírias e neobabilônicas, mas ainda mais fortes entre o material neobabilônico e o babilônico tardio. Claramente, o Akitu mudou ao longo do tempo e foi fortemente influenciado por seu contexto histórico, apesar da natureza inerentemente conservadora do ritual.

Uma coisa é inegavelmente verdadeira: o Akitu ou Festival do Ano Novo Babilônico foi uma parte integral e constante da cultura cuneiforme durante todo o primeiro milênio a.C., como pode ser verificado em textos cuneiformes que datam do período neoassírio ao parta. Não apenas muitas fontes atestam a observação cultual do Ano Novo e a realização do festival Akitu, tanto na Assíria quanto na Babilônia, mas o Akitu também se tornou parte da memória cultural dessas sociedades. Em contraste, a apresentação real assumiu formas distintas em diferentes cenários, embora muitas vezes não se possa dizer muito sobre o que exatamente aconteceu. Portanto, deve-se distinguir entre uma noção abstrata do Festival do Ano Novo e o festival que foi realmente realizado. De certa forma, os antigos mesopotâmicos fizeram o mesmo, como fica claro na adoção do festival pelos sargônidas. Isso se torna especialmente visível nas fontes do período helenístico, quando há uma clara discrepância entre o que aprendemos sobre o Ano Novo a partir de fontes contemporâneas, por um lado, e de composições cultuais e historiográficas, por outro.

As semelhanças entre o material neoassírio e neobabilônico são múltiplas. Muitas das fontes emanam do rei (ou pelo menos do círculo de estudiosos ao seu redor) e também aquelas poucas que derivam de um contexto diferente mostram o envolvimento do rei no festival. Além disso, é claro que se deve distinguir entre o festival Akitu da capital e aqueles de outras cidades. Enquanto o último serviu a um propósito local de elevar o deus principal do panteão local, o primeiro tinha um objetivo nacional: celebrar o chefe do panteão nacional, marcar o Ano Novo e reafirmar o rei como governante do império. Dentro dessa imagem, o foco permaneceu na Babilônia, a sede final do festival Akitu e da realeza mesopotâmica. Enquanto as evidências antes dessa época são pequenas (para dizer o mínimo), é inegável que a partir dos sargônidas o festival Akitu se tornou um fator crucial na ideologia real. Isso continuou sob os reis neobabilônicos. Isso explica a alta concentração de referências à procissão: esse era o momento em que todos podiam ver o vínculo entre o deus e o rei sendo restabelecido. Não havia prova mais forte da legitimidade de um rei do que essa.

Enquanto durante a primeira metade do primeiro milênio a.C. a ideia do Akitu, por um lado, e sua performance real, por outro, parecem ter permanecido bem próximas uma da outra, elas parecem ser duas coisas distintas no período helenístico. O dado seguinte pode ilustrar isso: um dos principais propósitos do festival era apresentar o rei como um governante aprovado pelos deuses; portanto, os reis participavam dele, patrocinavam e garantiam que ele pudesse ser celebrado – tudo isso pode ser lido nas fontes neoassírias e neobabilônicas. No entanto, nas fontes helenísticas, os textos contemporâneos raramente mencionam o envolvimento real, enquanto o discurso acadêmico e cultual continuou a apresentar o Akitu como um festival para legitimação real. Como tal, há uma sensação de incongruência no material de origem helenística que não encontramos nos textos anteriores.

Como foi mostrado neste capítulo, um grande número de fontes está disponível para estudar o Festival do Ano Novo Babilônico ao longo do primeiro milênio a.C. No entanto, um grupo de textos é de extrema importância para nossa compreensão do festival, uma vez que eles dão um relato detalhado dos eventos que aconteciam antes da procissão dos deuses. Esses textos rituais são geralmente considerados como tendo se originado na primeira metade do primeiro milênio a.C., embora todos os manuscritos conhecidos datem do período helenístico. Supõe-se que eles foram usados ​​no culto e que os rituais que eles contêm foram realizados exatamente como é descrito. O problema é que os textos do Festival do Ano Novo, como costumamos chamar os textos deste corpus, nunca foram submetidos a um exame minucioso, o que significa que falhamos em compreender sua função e permanecemos no escuro sobre seu contexto de criação. Nos capítulos seguintes, os textos do Festival do Ano Novo da Babilônia serão estudados extensivamente, a fim de entender melhor seu propósito, contexto de criação e relação com outras fontes para o Akitu no primeiro milênio a.C.

Fontes online:

1. Oracc – The Open Richly Annotated Cuneiform Corpus

2. As inscrições reais do período neoassírio – Post publicado no Observatório Bíblico em 07.04.2020

The Royal Inscriptions of the Neo-Assyrian Period (RINAP)

3. Inscrições reais de Babilônia – Post publicado no Observatório Bíblico em 20.12.2017

The Royal Inscriptions of Babylonia online (RIBo) Project

 

Chapter 3
Textual Sources for the Babylonian New Year Festival During the First Millennium BCE

In this chapter, I will re-evaluate the sources that are commonly used to study the NYF celebrated at Babylon in the first millennium BCE.

3.1 The Neo-Assyrian Period

The first evidence that directly relates to the Babylonian NYF stems, perhaps surprisingly, from an Assyrian context. It is in Assyrian sources that we first encounter the king taking Marduk by the hand for the akītu-procession. Nevertheless, the majority of the sources are about the akītu-tradition in the Assyrian heartland itself, the development of which took place on a grand scale and at high speed. Yet, even if most NA sources relate Assyrian practices rather than Babylonian, it is often presumed that the most important elements in the festival were borrowed from the Babylonian version of the akītu. In a more general sense, the Neo-Assyrian evidence demonstrates the importance of the NYF in Babylonian society already in the eighth century BCE.

3.1.4 Summary
The Neo-Assyrian sources are the first to shed some light on the Babylonian NYF during the first millennium BCE. They show the importance of the festival in theMarduk e seu dragão Babylonian world, not only through the Assyrians’ willingness to participate in it (in the case of Tiglath-Pileser III and Sargon), but also because of their eagerness to adopt the concept and integrate it into their own ideology. Moreover, the forced disruption of the festival in Babylon caused by the removal of Marduk also shows the ideological power the NYF held in Babylonia. The Assyrian sources should be approached very carefully when it comes to reconstructing the Babylonian festival, however. Even though it is clear that Assyrian scholars took the Babylonian tradition as a model, they reshaped it to fit the Assyrian context into which it was inserted.

Nevertheless, a few general characteristics of the Babylonian NYF can be discerned in these texts, without needing to retrofit them from later sources. The Neo-Assyrian source material mentions only the akītu-festival of Babylon and does not record anything about other Babylonian cities where the festival might have taken place. This shows how the festival in this city was of particular importance. The fact that akītu-festivals were observed in different Assyrian cities is probably also modeled after an existing Babylonian tradition. It should also be noted that already at this time both Marduk and Nabû are the divine protagonists of the festival at Babylon. The importance of Nabû in the Babylonian NYF was thus already established at this time. Aside from that, the records make clear that the procession of gods to the akītu-temple was the most distinctive characteristic of the NYF: almost all the sources focus on this event. In relation to the Babylonian NYF, the use of the phrase “taking Bēl by the hand” is prevalent to refer to the procession. Lastly, not only the content of the sources, but also their nature demonstrates the important place the NYF of Babylon held in Babylonian society and culture already at the onset of the Sargonid period. The choice of Assyrian kings to participate in the Babylonian festival is one of the indicators of this, showing that they used the NYF as a tool to peacefully establish their rule in Babylonia. There is no doubt that there was a strong akītu-tradition in Babylon already in the eighth century BCE, allowing the Assyrians to use it in that way, but the details of it remain shrouded in darkness. Did the festival happen on a yearly basis? Did kings participate? How important was the festival for royal legitimation? Until more evidence comes to light, those questions must remain unanswered.

3.2 The Neo-Babylonian and Early Persian Period

During the Neo-Babylonian period the akītu-festival at Babylon remained a tool for royal legitimation as can be observed not only in the royal inscriptions, but also in the emergent historiographical tradition. While the festival at Babylon was celebrated at the New Year and exalted the king, the national god Marduk and the Babylonian empire, the administrative documents of other temple cities show the observance of local akītu-festivals at other moments in the year that revolved around the local patron deity. As such, continuity—in broad terms—with the Neo-Assyrian akītu-tradition can be observed regardless of the differences in the source material. In contrast, change markedly set in with the arrival of the Persians in 539 BCE. These new rulers do not seem to have participated or invested in the festival. Despite this royal disinterest in the NYF, the administrative records show that the priesthoods managed to uphold some traditional aspects of the NYF, such as the journey of Nabû from Borsippa to Babylon, but only until the reign of Darius I.

There are five groups of sources that give information about the NYF in the Long Sixth Century: royal inscriptions, administrative texts, chronicles, historical-literary texts, and cultic compositions. They show how the NYF was a phenomenon that was not restricted to the temples but was deeply embedded in Babylonian culture, scholarship and royal ideology.

Summary
The number of attestations in different text types shows how the Babylonian NYF was an integral part of Babylonian religious, cultural, and social life during the Long Sixth Century. The texts refer to the NYF as a concept so well defined in Babylonian mentality that it need not be specified in writing and, thus, the sources are not very indicative for the details of the cultic performance, rituals, and organization of the festival. Instead, the Neo-Babylonian documentation can best be used to study how the NYF was used and perceived in Babylonian society.

First, in Babylon akītu functions practically as a synonym for “New Year Festival” and it often occurs together with zagmukku and rēš šatti. In a secondary meaning, the word refers to the akītu-temple, although in those cases this is often specified by referring to the building as the bīt akīti. In the context of other cities, akītu loses its connection to the New Year.

Second, the documentation is largely in favor of the akītu-festival of Babylon. Although the local temples’ administration provides some glimpses into local cultic calendars, including a local akītu-festival, in public inscriptions and scholarly circles the concept of akītu was inextricably linked to Babylon. However, the role of Borsippa should not be neglected. The importance of Babylon’s sister-city is reflected in the prominent part assigned to both Marduk and Nabû in the festival, another characteristic element of the Babylonian NYF at this time.

Third, it speaks clearly from the sources that the NYF was associated with the king and kingship. Not only is it a recurrent topic in royal inscriptions, it is also linked with kingship in the chronicles. Several details remain unclear, however. Can the silence of the sources regarding the yearly participation of the king in the festival be considered an argument in favor of that idea? Which period was defining for this tradition of royal involvement in the NYF and can the chronicles be used as reliable sources to answer that question?

Fourth, the different sources are almost all concerned with the same event: the akītu-processions, be it the journey of Nabû between Borsippa and Babylon or the processions to and from the akītu-temple. Clearly this was the most important aspect of the festival, which can be explained in many ways: it may be the most crucial symbolic/ritual act; it may be connected to the dangerous nature of bringing the gods out of their temples, thus emphasizing the successful completion of that endeavor; or it may simply be the procession’s public and festive nature; and probably it was the combination of all elements that made this into the characteristic event of the NYF.

Nabonidus was the last king in Babylon to mention the akītu-festival in his inscriptions; the chronicles end, at the latest, with the arrival of the Persians; and although the administrative material regarding the NYF continues until the reign of the Persian king Darius I, it is noticeable that change had irreversibly set in. A complete silence descends from about 484 BCE onwards and not until the Seleucids had firmly established their reign in Babylonia do we learn again about the Babylonian NYF.

3.3 Hellenistic Babylon

Current ideas about the Babylonian NYF are also based on sources dating to the Hellenistic period. Many modern scholars subscribe to the idea that the NYF continued to be performed throughout the Hellenistic period, whether as a revival of ancient traditions or as an uninterrupted continuity from the Neo-Babylonian through the Persian and Hellenistic periods. Furthermore, it is commonly assumed that the NYF retained its twelve-day format and included the procession of gods to and from the akītu-temple. It is also widely accepted that Seleucid kings participated in the festival in the same vain as their Neo-Babylonian predecessors.

Céline DebourseHowever, the nature and scope of the source material from this period is remarkably different from that of earlier periods. No sources emanate from the king and instead the material stems from a purely priestly context. Moreover, new genres are adopted and developed, most conspicuously the Astronomical Diaries and Chronicles. Aside from that, the different types of sources provide very different insights into the NYF, in contrast to the earlier documentation, which places a heavy emphasis on the procession and the role of the king in the festival.

In the following, an overview is given of the sources that are generally used to prove the undisturbed continuity of the Babylonian NYF and the king’s participation in it. The focus will lie on a critical re-evaluation of this evidence, in order better to assess the question of continuity and change.

3.3.4 Summary
In summary, the documentation regarding the Babylonian NYF in the Hellenistic period differs greatly from that of earlier periods, both in the kind of sources available and in what they recount. The question is whether this is due to mere documentary changes or to actual differences in the cult. For example: it comes as no surprise that there are no Hellenistic sources that derive from the king, as was the case in the Neo-Assyrian and Neo-Babylonian periods, because there was no longer a native Babylonian king.

A remarkable aspect is the discrepancy between contemporary records and those sources that relate events from the past. A case was made for the fact that none of the contemporaneous sources attests the akītu-procession, with the exception of one Parthian-period document that makes it seem like a rather small and unremarkable event. What is related in these texts is mostly limited to offerings and other ritual activities that took place at Esagil and inside the é.ud.1kam. In contrast, the procession is still the central topic in the akītu-accounts in the historical chronicles, which are also the only sources to refer to the event with terminology known from the pre-Persian documentation.

Also the function ascribed to the king is different in the contemporary documentation on the one hand and historical accounts on the other. Whereas the king is presented as the driving force behind the akītu-festivals of the past, in Hellenistic Babylon he appears to play a rather distant and passive role, leaving the initiative with the local priesthood. Specifically, this also distinguishes the historical chronicles from earlier texts, as they do present the high priest as a prominent agent in the festival. In light of this, it is remarkable that some of the ritual texts include the king as a participant in the NYF. This raises the question of the function of those texts in a context in which the ruler was mostly absent.

3.4 Summary and Outlook
The survey of sources above makes it clear that we cannot maintain our long-standing ideas about the continuity of the Babylonian NYF nor can we speak of such a thing as “the” NYF. For no moment in time can we reconstruct the basic structure and principles of the festival celebrated in Babylon at the New Year based on contemporary sources alone. Furthermore, a number of differences are discernible in the available material, not only between the Neo-Assyrian and the Neo-Babylonian sources, but even stronger between the Neo-Babylonian and the Late Babylonian material. Clearly, the Babylonian NYF changed over time and was heavily influenced by its historical context, despite the inherently conservative nature of ritual.

One thing is undeniably true: the Babylonian akītu or NYF was an integral and constant part of cuneiform culture during the whole first millennium BCE, as it can be found in cuneiform texts dating from the Neo-Assyrian to the Parthian periods. Not only do many sources attest to the cultic observation of the New Year and the performance of the akītu-festival, in both Assyria and Babylonia, but akītu also became part of the cultural memory of those societies. In contrast, the actual performance took distinct forms in different settings, although often not much can be said about what exactly happened. Therefore, one should distinguish between an abstract notion of the NYF and the festival that was actually performed. In a way, the ancient Mesopotamians did the same, as is clear in the adoption of the festival by the Sargonids. It especially becomes visible in the sources from the Hellenistic period, when there is a clear discrepancy between what we learn about the New Year from contemporary sources on the one hand and from cultic and historiographical compositions on the other.

The similarities between the Neo-Assyrian and Neo-Babylonian material are manifold. Many of the sources emanate from the king (or at least the circle of scholars around him) and also those few that do stem from a different context show the involvement of the king in the festival. Aside from that, it is clear that one should distinguish between the akītu-festival of the capital and those of other cities. While the latter served a local purpose of elevating the main god of the local pantheon, the former had a state-wide aim: to celebrate the head of the national pantheon, to mark the New Year, and to reaffirm the king as ruler of the empire. Within that picture, the focus remained on Babylon, the ultimate seat of the akītu-festival and Mesopotamian kingship. Whereas evidence before this time is slight (to say the least), it is undeniable that from the Sargonids onwards the akītu-festival became a crucial factor in the royal ideology. This continued under the Neo-Babylonian kings. It explains the high concentration of references to the procession: this was the moment when everyone could see the bond between god and king being re-established. There was no stronger proof of a king’s legitimacy than that.

While during the first half of the first millennium BCE the idea of the NYF on the one hand and its actual performance on the other seem to have remained quite close toMesopotâmia each other, they seem to be two separate things in the Hellenistic period. The following can illustrate that: one of the main purposes of the festival was to present the king as a ruler of whom the gods approved; therefore, kings participated in it, sponsored it and made sure that it could be celebrated—all of that can be read in the Neo-Assyrian and Neo-Babylonian sources. However, in the Hellenistic sources, the contemporary texts only rarely mention royal involvement, while the scholarly and cultic discourse continued to present the NYF as a festival for royal legitimation. As such, there is a sense of incongruity in the Hellenistic source material that we do not find in the earlier texts.

As was shown in this chapter, a large number of sources are available to study the Babylonian NYF throughout the first millennium BCE. Nevertheless, one group of texts is of extreme importance for our understanding of the festival, since they give a detailed account of the events that happened before the procession of gods took place. These ritual texts are generally considered to have originated in the first half of the first millennium BCE, although all the known manuscripts date to the Hellenistic period. It is assumed that they were used in the cult and that the rituals they contain were performed exactly as is described. The problem is that the NYF texts, as we can call the texts of this corpus, have never been subjected to close scrutiny, which means that we fail to grasp their function and remain in the dark about their context of creation. In the following chapters, the NYF texts from Babylon will be studied extensively, in order better to understand their purpose, context of creation, and relation to other sources for the Babylonian NYF in the first millennium BCE.

O Akitu na última fase da cultura cuneiforme

DEBOURSE, C. Of Priests and Kings: The Babylonian New Year Festival in the Last Age of Cuneiform Culture. Leiden: Brill, 2022, 524 p. – ISBN 9789004512955.

Uma tradição de grande antiguidade era a que celebrava o início de um novo ciclo sazonal, o Festival Akitu da Mesopotâmia. Originalmente ele era celebrado duas vezesDEBOURSE, C. Of Priests and Kings: The Babylonian New Year Festival in the Last Age of Cuneiform Culture. Leiden: Brill, 2022, 524 p. por ano, marcando o início do primeiro e do sétimo mês, respectivamente, no calendário mesopotâmico. Mais tarde, o Festival Akitu evoluiu para um verdadeiro Festival de Ano Novo, cuja celebração ocorria na capital do império e contava com a participação do rei e de todos os deuses do país, enquanto versões mais locais do Festival eram realizadas em outros meses. O Festival Akitu é atestado em fontes do início do terceiro milênio a.C. até o fim da cultura cuneiforme por volta do início da era cristã. A persistência desta tradição por quase três mil anos demonstra que o Festival era um aspecto integral e essencial da cultura cuneiforme.

O Festival Akitu era de importância crucial não apenas para os antigos habitantes da Mesopotâmia, mas também é famoso nos círculos acadêmicos modernos. Não é exagero dizer que todo assiriólogo tem alguma ideia do que era o Festival, sem falar de biblistas, antropólogos, sociólogos e estudiosos de rituais e religiões que têm se envolvido com o estudo do Festival. Há cerca de vinte anos, a estudiosa de estudos rituais Catherine Bell declarou que o Akitu deve ser um dos rituais mais frequentemente analisados em toda a pesquisa acadêmica atual (BELL, C. Ritual: Perspectives and Dimensions. Oxford: Oxford University Press, 1997). Desde então os estudos sobre o tema só se multiplicaram.

Hoje, depois de quase 150 anos de pesquisa sobre o tema, temos uma ideia mais ou menos clara do que era o Festival Akitu: como, quando e onde era celebrado e qual era seu significado cultual, ideológico e teológico. Por que, então, eu me esforçaria para empreender mais um estudo sobre o tópico?

A pesquisa sobre o Festival Akitu se originou há mais de cem anos com a publicação de uma série de textos que contêm diretrizes para a realização de certos ritos no Eságil, o templo de Marduk na Babilônia, no início do ano. Esses textos chegaram aos museus da Europa na segunda metade do século dezenove em lotes de tabuinhas cuneiformes que incluíam um grande número de tabuinhas astronômicas datadas, por meio dos quais ficou claro que esses manuscritos eram originários da Babilônia helenística.

A primeira edição abrangente dos textos sobre o Akitu foi publicada em 1921 (THUREAU-DANGIN, F. Rituels accadiens. Paris: De Boccard, 1921) e continuou a ser usada até que uma reedição feita por Marc Linssen apareceu em 2004 (LINSSEN, M. J. H. The Cults of Uruk and Babylon: The Temple Ritual Texts as Evidence for Hellenistic Cult Practice. Leiden/Boston: Brill/Styx, 2004). A partir daí esses textos serviram para reconstruir grandes partes do Festival e são cruciais para a nossa compreensão do significado e propósito dele. No entanto, apesar de sua importância no estudo do Akitu, os textos são pouco compreendidos, o que levou a uma série de suposições que podem e precisam ser questionadas.

Uma primeira suposição se relaciona ao fato de que os textos sobre o Akitu são preservados apenas em manuscritos que datam do período helenístico-parta. É uma declaração frequentemente repetida que os textos rituais do templo da Babilônia Tardia são cópias de textos compostos em uma data muito anterior. No entanto, a data e o local exatos da redação desses “originais” permanecem indeterminados.

Uma segunda suposição, então, se refere às razões pelas quais tais cópias existiram neste período. É geralmente dado como certo que a existência desses textos prova a continuidade quase imperturbada da tradição cultual na Babilônia, da era neobabilônica até as eras persa e helenística. Assim, o Festival Akitu no período neobabilônico é reconstruído com base nos textos da Babilônia Tardia e, vice-versa, a evidência neobabilônica é usada para suplementar as fontes da Babilônia Tardia.

Meu objetivo neste livro é confirmar ou invalidar essas suposições.

Em primeiro lugar, é necessário obter uma melhor compreensão das fontes comumente usadas para estudar o Akitu babilônico do primeiro milênio a.C. Em outras palavras, como chegamos a esse conceito do Festival Akitu como o conhecemos hoje? Quais fontes estão por trás de quais elementos ou conceitos?

Em segundo lugar, mais atenção deve ser dada aos próprios textos do Festival Akitu para determinar como esses textos se encaixam no quadro esboçado acima. Em que contexto eles foram criados? Características de linguagem podem fixar os textos em um determinado período de tempo, mas também ideias, motivos e conceitos recorrentes podem ser úteis para recuperar a estrutura na qual os textos sobre o Akitu se originaram.

Terceiro, deve-se perguntar qual é o propósito por trás da existência dos textos sobre o Akitu e, por extensão, todo o corpus de textos rituais do templo da Babilônia Tardia. Por que e para qual finalidade esses textos foram escritos no período helenístico-parta?

As respostas a essas perguntas mudarão não apenas a maneira como pensamos sobre o Festival do Ano Novo Babilônico, mas também como vemos a última era da cultura cuneiforme (Trecho do Capítulo 1: Introdução)

Céline DebourseNa cultura cuneiforme, o Akitu era um importante ritual da realeza. A fonte mais importante para a reconstrução do Akitu é um pequeno corpus de textos rituais cuneiformes que descrevem as ações rituais e orações a serem realizadas durante os primeiros dias do ano. Esses textos foram escritos por sacerdotes babilônicos durante o período helenístico, quando a Babilônia estava sob domínio estrangeiro. Por que esses textos rituais delineando um ritual da realeza foram criados em uma época em que a Babilônia era governada por governantes estrangeiros, que tinham pouco interesse nas tradições religiosas babilônicas? Por que escrever rituais?

Céline Debourse mostra como esses textos do Festival de Ano Novo são mais programáticos do que instrucionais, pois dão forma a um novo paradigma ritual no qual os sacerdotes babilônicos, não os reis, são a autoridade central do culto.

Este livro se originou como uma tese de doutorado escrita entre 2016 e 2020 na Universidade de Viena, Áustria, sob a supervisão do Prof. Michael Jursa. Um resumo do livro, em francês, pode ser lido em Abstracta Iranica, volume 45 | 2023.

Céline Debourse é assirióloga e Professora no Departamento de Línguas e Civilizações do Antigo Oriente Médio da Universidade de Harvard, USA.

 

One of the most ancient and also longest attested traditions that celebrate the start of a new seasonal cycle is the Mesopotamian akītu-festival. Originally, it was celebrated twice a year, marking the beginning of the first and the seventh months respectively in the Mesopotamian calendar. Later on, the akītu-festival evolved into a true New Year Festival (NYF), the celebration of which took place in the capital of the empire and involved the participation of the king and all the gods of the land, while more local versions of the festival may have been observed in other months. The akītu-festival is attested in sources from the early third millennium BCE to the end of cuneiform culture around the beginning of the Common Era. The endurance of this tradition for almost three thousand years demonstrates that the festival was an integral and essential aspect of cuneiform culture.

The akītu-festival was of crucial importance not only to ancient Mesopotamians, it is also famous in modern scholarly circles. It is no exaggeration to claim that every Assyriologist has some conception of the festival, and also biblicists, anthropologists, sociologists and scholars of ritual and religion have been involved in the study of the festival. Some twenty years ago, the scholar of ritual studies, Catherine Bell, stated that “it may be one of the most frequently analyzed rituals in all scholarship,” [BELL, C. Ritual: Perspectives and Dimensions. Oxford: Oxford University Press, 1997] and since then studies on the topic have only multiplied. Today, after almost 150 years of research on the topic, we are left with a more or less fixed and delimited idea of what the akītu-festival was; how, when and where it was celebrated; and what its cultic, ideological, and theological meaning was. Why, then, would I endeavor to undertake yet another study on the topic?

Research on the akītu-festival originated more than a hundred years ago with the publication of a number of texts that contain guidelines for the performance of certain rites in Esagil at the beginning of the year. These NYF texts reached the western European museums in the second half of the 19th century in batches of tablets that included a high number of dated astronomical tablets, by means of which it became clear that these manuscripts stemmed from Hellenistic Babylon. The first comprehensive edition of the NYF texts followed in 1921[THUREAU-DANGIN, F. Rituels accadiens. Paris: De Boccard, 1921] and continued to be used until a re-edition by M. Linssen appeared in 2004 [LINSSEN, M. J. H. The Cults of Uruk and Babylon: The Temple Ritual Texts as Evidence for Hellenistic Cult Practice. Leiden/Boston: Brill/Styx, 2004]. Subsequently, these NYF texts have served to reconstruct large portions of the festival and they are crucial for our understanding of the meaning and purpose of it. Yet, despite their importance in the study of the NYF, in essence the NYF texts are poorly understood, which has led to a number of assumptions that can and need to be questioned.

A first assumption relates to the fact that the NYF texts are preserved only in manuscripts that date to the Hellenistic-Parthian period. It is an often-repeated statement that the Late Babylonian temple ritual texts are copies of texts composed at a much earlier date. The exact date and place of redaction of those “originals” remain undetermined, however. A second assumption, then, refers to the reasons why such copies existed in this period. It is generally taken for granted that the existence of these texts proves the quasi-undisturbed continuity of the cultic tradition in Babylonia from the Neo-Babylonian into the Persian and Hellenistic ages. Thus, the NYF in the Neo-Babylonian period is reconstructed on the basis of the Late Babylonian NYF texts and, vice-versa, Neo-Babylonian evidence is used to supplement the Late Babylonian sources.

My aim in this book is either to confirm or to invalidate these assumptions. First, it is necessary to gain a better understanding of the sources commonly used to study the Babylonian NYF in the first millennium BCE. In other words, how did we arrive at this concept of the akītu-festival as we know it today? Which sources lie behind which elements or concepts? Second, more attention should be paid to the NYF texts themselves in order to determine how these texts fit into the picture sketched above. In which context were these texts created? Matters of language may fix the texts in a certain timeframe, but also recurrent ideas, motifs and concepts may prove helpful to recover the framework in which the NYF texts originated. Third, it should be asked what the purposes of and reasons behind the existence of the NYF texts and, by extension, the whole corpus of Late Babylonian temple ritual texts are. Why and for what purpose were these manuscripts written down in the Hellenistic-Parthian period? The answers to those questions will change not only the way we think about the Babylonian New Year Festival, but also how we see the last age of cuneiform culture (From Chapter 1: Introduction).