A imagem de Deus no jardim do Éden

Estou estudando nestes dias, com os alunos do Primeiro Ano de Teologia do CEARP, na disciplina Pentateuco, os textos da criação em Gn 1 e 2.

Em Gn 1,26-27 lemos que Deus criou o homem e a mulher à sua imagem (ṣelem) e semelhança (dəmût).

Em Gn 2,4b-3,24 vemos homem e mulher criados por Iahweh Deus e instalados em um jardim, em Éden, e, na sequência, dele expulsos.

Gn 1,26-27:

  1,26 וַיֹּאמֶר אֱלֹהִים נַעֲשֶׂה אָדָם בְּצַלְמֵנוּ כִּדְמוּתֵנוּ וְיִרְדּוּ בִדְגַת הַיָּם וּבְעֹוף הַשָּׁמַיִם וּבַבְּהֵמָה וּבְכָל־הָאָרֶץ וּבְכָל־הָרֶמֶשׂ הָרֹמֵשׂ עַל־הָאָרֶץ׃

  1,27  וַיִּבְרָא אֱלֹהִים אֶת־הָאָדָם בְּצַלְמֹו בְּצֶלֶם אֱלֹהִים בָּרָא אֹתֹו זָכָר וּנְקֵבָה בָּרָא אֹתָם׃

O que isto quer dizer?

Por outro lado, na antiga Mesopotâmia, a criação, animação e instalação de uma estátua divina em seu templo era uma tarefa complexa que exigia um conjunto habilidoso de artesãos e sacerdotes. Os materiais usados para fabricar a imagem e os espaços rituais em que a atividade criativa se desenrolava tinham que ser preparados e purificados de acordo com diretrizes rígidas e confidenciais.

Depois que a imagem era criada, ela tinha que ser “trazida à vida” por meio de encantamentos e rituais apropriados, vestida, adornada com as insígnias apropriadas, instalada em seu templo e alimentada com sua primeira refeição antes que pudesse ser eficaz.

Os rituais que descrevem esses procedimentos e os encantamentos que os acompanham são conhecidos coletivamente pelos títulos babilônicos de mīs pî (“lavagem da boca”) e de pīt pî (“abertura da boca”).

O ‘lavar a boca’ era essencialmente um rito de purificação que preparava o objeto/pessoa para o contato com o divino. Ele lavava as impurezas. O mīs pî era realizado não apenas em estátuas divinas, mas também no rei e sua insígnia real, estátuas reais, sacerdotes, humanos individuais e vários animais e objetos sagrados.

Em contraste, o rito de abertura da boca (pīt pî) era aparentemente reservado para objetos inanimados, como estatuetas e imagens divinas maiores com seus adornos. Era realizado para consagrar, ativar e/ou animar o objeto em preparação para uso cultual.

Quando aplicado a uma estátua divina, a abertura da boca era realizada para animar os órgãos sensoriais e membros da estátua, permitindo que ela consuma oferendas, cheire incenso e se mova livremente. Concluída a lavagem da boca e a abertura, a estátua era considerada uma manifestação viva e em pleno funcionamento do divino.

E no Egito?

A cerimônia de abertura da boca era um dos mais significativos e complexos de todos os rituais egípcios antigos. Abundantes referências textuais e representações artísticas do rito atestam sua proeminência duradoura na vida cultual egípcia desde o Reino Antigo.

O título completo da cerimônia era Realizando a Abertura da Boca na Oficina para a Estátua (tut) de N, mas também era conhecido por duas designações mais curtas, “Abertura da Boca” (wpt-r e wn-r), e “Abertura da Boca e dos Olhos”.

Em sua longa história o ritual foi usado não apenas para “animar” estátuas divinas, mas para animar uma variedade de objetos inanimados, incluindo estátuasMCDOWELL, C. L. The Image of God in the Garden of Eden: The Creation of Humankind in Genesis 2:5–3:24 in Light of the mīs pî pīt pî and wpt-r Rituals of Mesopotamia and Ancient Egypt. Winona Lake, IN: Eisenbrauns, 2015. de mortos, múmias, sarcófagos antropoides, estatuetas etc. Em cada caso, o objetivo do ritual era tornar o objeto apto para uso cultual.

Quando aplicado especificamente a estátuas e múmias, o wpt-r era realizado para (re)animar o destinatário, permitindo-lhe ver, ouvir, cheirar, respirar, mover-se e consumir oferendas de comida e bebida.

Existe uma relação entre estes rituais e os textos que falam da criação da humanidade em Gn 1 e 2?

Estou lendo um livro interessante que trata deste assunto.

MCDOWELL, C. L. The Image of God in the Garden of Eden: The Creation of Humankind in Genesis 2:5–3:24 in Light of the mīs pî pīt pî and wpt-r Rituals of Mesopotamia and Ancient Egypt. Winona Lake, IN: Eisenbrauns, 2015, 256 p. – ISBN 9781575063485.

Nas páginas 20-21 da Introdução a autora apresenta a proposta de seu estudo.

Os problemas com os quais este estudo se preocupa centram-se na criação da humanidade em Gn 1,26-27 e 2,5-3,24.

O que significa dizer que os seres humanos foram criados à imagem (ṣelem) e semelhança (dəmût) de Elohim? O que constitui a imagem de Deus, e de que maneira os humanos são semelhantes a ela?

Esta noção está presente em Gn 2,5–3,24, ou era, como comumente se supõe, uma ideia única dentro do corpus bíblico do escritor sacerdotal (Gn 1)? Além disso, qual é a relação entre essas duas narrativas? Gn 2,5–3,24 é uma continuação e comentário de Gn 1,26–27, ou Gn 1,26–27 é uma declaração posterior na qual as sutilezas em Gn 2,5–3,24 são explicitadas?

Para responder a essas perguntas, começarei com um estudo da própria história do Éden (capítulo 2). Onde a narrativa realmente começa, quais são seus limites e como ela é estruturada?

O capítulo seguinte (capítulo 3) apresentará os textos comparativos, os rituais de Lavar a Boca (mīs pî) e Abertura da Boca (pīt pî) da Mesopotâmia, e a contrapartida egípcia, a Abertura da Boca (wpt-r). Após um levantamento de fontes primárias, referências históricas e estudos anteriores, resumirei e analisarei esses textos em seus próprios termos, a fim de estabelecer como, de acordo com essas tradições, uma imagem divina foi criada, animada e instalada ritualmente. Também vou comparar o mīs pî pīt pî e o wpt-r para determinar se as semelhanças entre eles se devem a uma conexão histórica ou se são melhor explicadas tipologicamente.

O quarto capítulo discutirá o significado de ṣelem e dəmût e a presença do conceito de imago Dei em Gn 2,5–3,24. Necessariamente começará com Gn 1,26-27, onde aparecem ṣelem e dəmût, mas também incluirá um estudo desses termos na Bíblia Hebraica em geral e no livro de Gênesis especificamente.

Em seguida, considerarei o desenvolvimento desses conceitos na história do Éden, concentrando-me especificamente em aspectos selecionados de Gn 2,5–3,24 que podem refletir uma consciência das cerimônias de lavagem e/ou abertura da boca.

Estes incluem o papel do jardim como templo de Iahweh, a alimentação e possível instalação (nwḥ em Gn 2,15) do homem no templo-jardim de Iahweh, a afirmação no Sl 8,6 de que Adão e Eva foram coroados com a glória de Deus (wəkābôd wəhādār təʿaṭtərēhû), e a abertura dos olhos (wattippākaḥnāh ʿênê s̆ənêhem) em Gn 3,5.7.22, como um meio de se tornar como Elohim (kēʾlōhîm) conhecendo o “bem e o mal” (yōdə ʿê ṭôb wārāʾ).

Catherine L. McDowell Discutirei também a relação entre Gn 2,5–3,24 e as fontes comparativas, bem como a questão de porque o autor de Gn 2,5–3,24 teria aproveitado esses topoi para (re)definir sua noção de ṣelem e o relacionamento divino-humano.

Os resultados dessas duas indagações – primeiro, o significado de ṣelem e dəmût em Gn 1,26-27 e, segundo, a presença do conceito imago Dei em Gn 2,5–3,24 – exigirão uma reavaliação da relação entre esses dois textos. Este será o assunto do capítulo 5, que incluirá uma breve revisão da história crítica das fontes de ambos os relatos da criação e uma discussão de suas datas de composição, autoria e relacionamento entre si.

No sexto e último capítulo, resumirei as descobertas e discutirei as implicações de nosso estudo para o significado de ṣelem e dəmût em Gn 1,26-27 e para a compreensão geral de Gn 2,5-3,24. Também comentarei sobre a natureza das relações entre Gn 2,5–3,24, o mīs pî pīt pî e o wpt-r e como este estudo contribuiu de forma mais ampla para duas áreas significativas de investigação nos estudos bíblicos: a relevância do material antigo do Oriente Médio para a interpretação bíblica e como se aborda a tarefa comparativa.

Concluirei com sugestões para futuras linhas de pesquisa.

Catherine L. McDowell é Professora de Antigo Testamento no Seminário Teológico Gordon-Conwell em Charlotte, Carolina do Norte, EUA. Este livro é uma versão revisada de sua tese de doutorado na Universidade de Harvard, defendida em 2009.

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