A queda de Cabul

Derrota no Afeganistão

Por Tariq Ali

A tomada de Cabul pelo Talibã em 15 de agosto de 2021 é uma grande derrota política e ideológica para o Império Americano. Os helicópteros lotados que transportavam funcionários da Embaixada dos Estados Unidos para o aeroporto de Cabul lembravam surpreendentemente as cenas em Saigon – agora Cidade Ho Chi Minh – em abril de 1975. A velocidade com que as forças do Talibã invadiram o país foi impressionante; sua perspicácia estratégica notável. Uma ofensiva de uma semana terminou triunfantemente em Cabul. O exército afegão de 300.000 homens desmoronou. Muitos se recusaram a lutar. Na verdade, milhares deles foram para o Talibã, que imediatamente exigiu a rendição incondicional do governo fantoche. O presidente Ashraf Ghani, um dos favoritos da mídia americana, fugiu do país e buscou refúgio em Omã. A bandeira do emirado revivido está agora tremulando sobre seu palácio presidencial. Em alguns aspectos, a analogia mais próxima não é Saigon, mas o Sudão do século XIX, quando as forças do Mahdi invadiram Cartum e martirizaram o general Gordon. William Morris comemorou a vitória do Mahdi como um revés para o Império Britânico. Ainda assim, enquanto os insurgentes sudaneses mataram uma guarnição inteira, Cabul mudou de mãos com pouco derramamento de sangue. O Talibã nem mesmo tentou tomar a embaixada dos EUA, muito menos mirar no pessoal norte-americano.

O vigésimo aniversário da “Guerra ao Terror” terminou, assim, em uma derrota previsível e prevista para os EUA, a Otan e outros que embarcaram na onda. No entanto,O Afeganistão - G1: infográfico elaborado em 17/08/2021 se considerarmos as políticas do Talibã – tenho sido um crítico severo por muitos anos – sua conquista não pode ser negada. Em um período em que os EUA destruíram um país árabe após o outro, não surgiu nenhuma resistência que pudesse desafiar os ocupantes. Essa derrota pode muito bem ser um ponto de inflexão. É por isso que os políticos europeus estão reclamando. Eles apoiaram os EUA incondicionalmente no Afeganistão e também sofreram uma humilhação, tanto quanto a Grã-Bretanha.

Biden ficou sem escolha. Os Estados Unidos anunciaram que se retirariam do Afeganistão em setembro de 2021 sem cumprir nenhum de seus objetivos “liberacionistas”: liberdade e democracia, direitos iguais para as mulheres e a destruição do Talibã. Embora possa estar invicto militarmente, as lágrimas derramadas por liberais amargurados confirmam a extensão mais profunda de sua perda. A maioria deles – Frederick Kagan no New York Times, Gideon Rachman no Financial Times – acredita que a retirada deveria ter sido adiada para manter o Talibã sob controle. Mas Biden estava simplesmente ratificando o processo de paz iniciado por Trump, com o apoio do Pentágono, que viu um acordo alcançado em fevereiro de 2020 na presença dos EUA, Talibã, Índia, China e Paquistão. O sistema de segurança norte-americano sabia que a invasão havia falhado: o Talibã não poderia ser subjugado, não importa quanto tempo permanecesse. A noção de que a retirada precipitada de Biden de alguma forma fortaleceu os militantes é bobagem.

O fato é que, ao longo de vinte anos, os Estados Unidos não conseguiram construir nada que pudesse resgatar sua missão. A Zona Verde brilhantemente iluminada sempre foi cercada por uma escuridão que os seus moradores não podiam compreender. Em um dos países mais pobres do mundo, bilhões eram gastos anualmente no ar-condicionado dos quartéis que abrigavam soldados e oficiais norte-americanos, enquanto comida e roupas eram regularmente transportadas de bases no Catar, Arábia Saudita e Kuwait. Não foi surpresa que uma enorme favela crescesse nas periferias de Cabul, enquanto os pobres se reuniam para procurar o que quer que fosse nas latas de lixo. Os baixos salários pagos aos serviços de segurança afegãos não conseguiram convencê-los a lutar contra seus compatriotas. O exército, formado ao longo de duas décadas, foi infiltrado em um estágio inicial por apoiadores do Talibã, que receberam treinamento gratuito no uso de equipamento militar moderno e atuaram como espiões da resistência afegã.

Esta foi a realidade miserável da “intervenção humanitária”. Embora haja crédito onde o crédito é devido: o país testemunhou um enorme aumento nas exportações. Durante os anos do Talibã, a produção de ópio foi rigorosamente monitorada. Desde a invasão dos Estados Unidos, ele aumentou dramaticamente e agora representa 90% do mercado global de heroína – fazendo com que se pergunte se esse conflito prolongado deve ser visto, pelo menos parcialmente, como uma nova guerra do ópio. Trilhões de dólares foram feitos em lucros e divididos entre os setores afegãos que serviram à ocupação. Os oficiais ocidentais foram generosamente pagos para permitir o comércio. Um em cada dez jovens afegãos agora é viciado em ópio. Os números das forças da Otan não estão disponíveis.

Quanto ao status das mulheres, nada mudou muito. Houve pouco progresso social fora da Zona Verde infestada de ONGs. Uma das principais feministas do país no exílio observou que as mulheres afegãs tinham três inimigos: a ocupação ocidental, o Talibã e a Aliança do Norte. Com a saída dos Estados Unidos, disse ela, eles terão dois. (No momento em que este artigo foi escrito, isso talvez possa ser alterado para um, já que os avanços do Talibã no norte eliminaram as principais facções da Aliança antes de Cabul ser capturada).

Apesar dos repetidos pedidos de jornalistas e ativistas, nenhum número confiável foi divulgado sobre a indústria do trabalho sexual que cresceu para servir aos exércitos de ocupação. Tampouco há estatísticas confiáveis de estupro – embora os soldados norte-americanos usem frequentemente violência sexual contra “suspeitos de terrorismo”, estuprem civis afegãos e deem luz verde ao abuso infantil por milícias aliadas. Durante a guerra civil iugoslava, a prostituição se multiplicou e a região tornou-se um centro de tráfico sexual. O envolvimento da ONU neste negócio lucrativo foi bem documentado. No Afeganistão, os detalhes completos ainda não foram revelados.

Mais de 775.000 soldados norte-americanos lutaram no Afeganistão desde 2001. Destes, 2.448 foram mortos, junto com quase 4.000 contratados norte-americanos. Aproximadamente 20.589 ficaram feridos em ação, de acordo com o Departamento de Defesa. Os números de baixas afegãs são difíceis de calcular, uma vez que as “mortes de inimigos” que incluem civis não são contadas. Carl Conetta, do Projeto de Alternativas de Defesa, estimou que pelo menos 4.200–4.500 civis foram mortos em meados de janeiro de 2002 como consequência do ataque dos EUA, tanto diretamente como vítimas da campanha de bombardeio aéreo e indiretamente na crise humanitária que se seguiu. Em 2021, a Associated Press informava que 47.245 civis morreram por causa da ocupação. Ativistas de direitos civis afegãos deram um total mais alto, insistindo que 100.000 afegãos (muitos deles não combatentes) morreram e três vezes esse número ficaram feridos.

Em 2019, o Washington Post publicou um relatório interno de 2.000 páginas encomendado pelo governo federal dos EUA para anatomizar os fracassos de sua guerra mais longa: “The Afeghanistan Papers”. Foi baseado em uma série de entrevistas com generais dos EUA (aposentados e em serviço), conselheiros políticos, diplomatas, trabalhadores humanitários e assim por diante. A avaliação combinada deles foi condenatória. O general Douglas Lute, o “czar da guerra afegã” sob Bush e Obama, confessou que “não tínhamos uma compreensão fundamental do Afeganistão – não sabíamos o que estávamos fazendo… Não tínhamos a menor noção do que estávamos assumindo… Se o povo americano soubesse a magnitude dessa disfunção.” Outra testemunha, Jeffrey Eggers, um militar das forças especiais da Marinha aposentado e funcionário da Casa Branca no governo de Bush e Obama, destacou o grande desperdício de recursos: “O que recebemos por este esforço de 1 trilhão de dólares? Valia 1 trilhão de dólares?… Depois da morte de Osama bin Laden, eu disse que Osama provavelmente estava rindo em sua sepultura, considerando o quanto gastamos no Afeganistão.” E ele poderia ter acrescentado: “E nós ainda perdemos.”

Quem era o inimigo? O Talibã, Paquistão, todos os afegãos? Um veterano soldado americano estava convencido de que pelo menos um terço da polícia afegã era viciada em drogas e outra parte considerável era de apoiadores do Talibã. Isso representou um grande problema para os soldados americanos, conforme testemunhou um chefe não identificado das Forças Especiais em 2017: “Eles pensaram que eu iria até eles com um mapa para mostrar onde vivem os mocinhos e os bandidos… Foram necessárias várias conversas para eles entenderem que eu não tinha essa informação em minhas mãos. No início, eles ficavam perguntando: ‘Mas quem são os bandidos, onde estão eles?’”.

Donald Rumsfeld expressou o mesmo sentimento em 2003: “Não tenho visibilidade de quem são os bandidos no Afeganistão ou no Iraque”, escreveu ele. “Eu li todos os informes e parece que sabemos muito, mas, na verdade, quando você pressiona, descobre que não temos nada que possa ser acionado. Lamentavelmente, somos deficientes em informação humana.” A incapacidade de distinguir entre um amigo e um inimigo é um problema sério – não apenas no nível schmittiano, mas prático. Se você não consegue dizer a diferença entre aliados e adversários depois de um ataque IED [Nota: improvised explosive device = artefato explosivo improvisado ou bomba caseira] em um mercado urbano lotado, você responde atacando a todos e criando mais inimigos no processo.

O coronel Christopher Kolenda, conselheiro de três generais, apontou outro problema com a missão dos Estados Unidos. “A corrupção foi galopante desde o início”, disse ele; o governo Karzai foi “autoorganizado em uma cleptocracia”. Isso minou a estratégia pós-2002 de construir um Estado que pudesse sobreviver à ocupação. “A corrupção mesquinha é como o câncer de pele, existem maneiras de lidar com isso e provavelmente você ficará bem. A corrupção dentro dos ministérios, de nível superior, é como o câncer de cólon; é pior, mas se você perceber a tempo, provavelmente está tudo bem. A cleptocracia, entretanto, é como um câncer no cérebro; é fatal.” Claro, o Estado do Paquistão – onde a cleptocracia está incorporada em todos os níveis – sobreviveu por décadas. Mas as coisas não foram tão fáceis no Afeganistão, onde os esforços de construção da nação foram liderados por um exército de ocupação e o governo central tinha escasso apoio popular.

O que dizer dos relatórios falsos de que o Talibã foi derrotado para nunca mais voltar? Uma figura importante do Conselho de Segurança Nacional refletiu sobre as mentiras difundidas por seus colegas: “Foram as explicações deles. Por exemplo, os ataques [do Talibã] estão piorando? ‘Isso porque há mais alvos para eles atirarem, então mais ataques são um falso indicador de instabilidade.’ Então, três meses depois, os ataques ainda estão piorando? ‘É porque o Talibã está ficando desesperado, então é na verdade um indicador de que estamos vencendo’… E isso continuou e continuou por duas razões, para fazer com que todos os envolvidos parecessem bem e para fazer parecer que as tropas e os recursos estavam tendo o tipo de efeito em que removê-los causaria a deterioração do país.”

Tudo isso era um segredo aberto nas chancelarias e nos ministérios da defesa da Otan na Europa. Em outubro de 2014, o secretário de Defesa britânico Michael Fallon admitiu que “Erros foram cometidos militarmente, erros foram cometidos pelos políticos da época e isso remonta a 10, 13 anos… Não vamos enviar tropas de combate de volta ao Afeganistão, sob quaisquer circunstâncias.” Quatro anos depois, a primeira-ministra Theresa May realocou as tropas britânicas para o Afeganistão, dobrando seus combatentes “para ajudar a enfrentar a frágil situação de segurança”. Agora a mídia do Reino Unido está ecoando o Ministério das Relações Exteriores e criticando Biden por ter feito o movimento errado na hora errada, com o chefe das Forças Armadas britânicas, Sir Nick Carter, sugerindo que uma nova invasão poderia ser necessária. Defensores conservadores, nostálgicos coloniais, jornalistas fantoches e bajuladores de Blair estão fazendo fila para pedir uma presença britânica permanente no estado dilacerado pela guerra.

O que é surpreendente é que nem o General Carter nem seus substitutos parecem ter reconhecido a escala da crise enfrentada pela máquina de guerra dos EUA, conforme estabelecido em “The Afghanistan Papers”. Enquanto os planejadores militares norte-americanos lentamente despertam para a realidade, seus colegas britânicos ainda se apegam a uma imagem fantasiosa do Afeganistão. Alguns argumentam que a retirada colocará em risco a segurança da Europa, com o reagrupamento da Al-Qaeda sob o novo emirado islâmico. Mas essas previsões são falsas. Os EUA e o Reino Unido passaram anos armando e ajudando a Al-Qaeda na Síria, como fizeram na Bósnia e na Líbia. Esse fomento do medo só pode funcionar em um pântano de ignorância. Para o público britânico, pelo menos, não parece ter funcionado. A história às vezes imprime verdades urgentes em um país por meio de uma demonstração vívida de fatos ou de uma exposição das elites. A retirada atual provavelmente será um desses momentos. Os britânicos, já hostis à Guerra ao Terror, poderiam endurecer em sua oposição a futuras conquistas militares.

Tariq Ali (nascido em 1943)O que o futuro guarda? Replicando o modelo desenvolvido para o Iraque e a Síria, os EUA anunciaram uma unidade militar especial permanente, composta por 2.500 soldados, a ser estacionada em uma base do Kuwait, pronta para voar para o Afeganistão e bombardear, matar e mutilar caso seja necessário. Enquanto isso, uma delegação poderosa do Talibã visitou a China em julho passado, prometendo que seu país nunca mais seria usado como plataforma de lançamento para ataques a outros estados. Discussões cordiais foram mantidas com o Ministro das Relações Exteriores da China, supostamente cobrindo relações comerciais e econômicas. A cúpula relembrou encontros semelhantes entre mujahidin afegãos e líderes ocidentais durante a década de 1980: os primeiros aparecendo com seus trajes wahabitas e cortes de barba regulamentares contra o cenário espetacular da Casa Branca ou o número 10 de Downing Street [Nota: Residência do Primeiro Ministro Britânico]. Mas agora, com a Otan em retirada, os principais atores são China, Rússia, Irã e Paquistão (que sem dúvida forneceu assistência estratégica ao Talibã, e para quem este é um grande triunfo político-militar). Nenhum deles deseja uma nova guerra civil, em total contraste com os EUA e seus aliados após a retirada soviética. As estreitas relações da China com Teerã e Moscou podem permitir que trabalhe no sentido de assegurar alguma paz frágil para os cidadãos deste país traumatizado, auxiliado pela contínua influência russa no norte.

Muita ênfase foi dada à idade média da população no Afeganistão: 18 anos, em uma população de 40 milhões. Por si só, isso não significa nada. Mas há esperança de que os jovens afegãos se esforcem por uma vida melhor após o conflito de quarenta anos. Para as mulheres afegãs, a luta não acabou, mesmo que apenas um inimigo permaneça. Na Grã-Bretanha e em outros lugares, todos aqueles que querem continuar lutando devem mudar seu foco para os refugiados que logo estarão batendo à porta da Otan. No mínimo, refúgio é o que o Ocidente deve a eles: uma pequena reparação por uma guerra desnecessária.

Tariq Ali (Lahore, 21 de outubro de 1943) é um escritor, jornalista e historiador britânico de origem paquistanesa. Escreve periodicamente para o jornal britânico The Guardian, para a revista New Left Review, CounterPunch, a London Review of Books e SinPermiso.

Fonte: Blog da Boitempo – 16/08/2021. Publicado originalmente, em inglês, em Sidecar, blog da New Left Review, em 16 de agosto 2021. A tradução é de Valerio Arcary.

 

Debacle in Afghanistan – Sidecar: 16 August 2021

The fall of Kabul to the Taliban on 15 August 2021 is a major political and ideological defeat for the American Empire. The crowded helicopters carrying US Embassy staff to Kabul airport were startlingly reminiscent of the scenes in Saigon – now Ho Chi Minh City – in April 1975. The speed with which Taliban forces stormed the country was astonishing; their strategic acumen remarkable. A week-long offensive ended triumphantly in Kabul. The 300,000-strong Afghan army crumbled. Many refused to fight. In fact, thousands of them went over to the Taliban, who immediately demanded the unconditional surrender of the puppet government. President Ashraf Ghani, a favourite of the US media, fled the country and sought refuge in Oman. The flag of the revived Emirate is now fluttering over his Presidential palace. In some respects, the closest analogy is not Saigon but nineteenth-century Sudan, when the forces of the Mahdi swept into Khartoum and martyred General Gordon. William Morris celebrated the Mahdi’s victory as a setback for the British Empire. Yet while the Sudanese insurgents killed an entire garrison, Kabul changed hands with little bloodshed. The Taliban did not even attempt to take the US embassy, let alone target American personnel.

The twentieth anniversary of the ‘War on Terror’ thus ended in predictable and predicted defeat for the US, NATO and others who clambered on the bandwagon. However one regards the Taliban’s policies – I have been a stern critic for many years – their achievement cannot be denied. In a period when the US has wrecked one Arab country after another, no resistance that could challenge the occupiers ever emerged. This defeat may well be a turning point. That is why European politicians are whinging. They backed the US unconditionally in Afghanistan, and they too have suffered a humiliation – none more so than Britain… (Read more)

O papel da Bíblia no conflito Israel-Palestina

SANDFORD, M. J. (ed.) The Bible, Zionism, and Palestine: The Bible’s Role in Conflict and Liberation in Israel-Palestine. Dunedin, New Zealand: Relegere Academic Press, 2016 – ISBN 9780473332808.

Ebook em pdf. Gratuito. Faça o download.

 

The Bible, Zionism, and Palestine: The Bible's Role in Conflict and Liberation in Israel-Palestine

Contributors evaluate the divisive and liberatory influences and effects of the Bible on Zionism and Palestine-Israel and, conversely, the practice of biblical interpretation in a Post-Nakba world.

Tensão no Oriente Médio continua

Leia um artigo esclarecedor:

A Turquia está ferrada – e a culpa é toda dos americanos

Em meio às crescentes tensões entre Turquia e Rússia sobre a situação na Síria, um fato importante se perdeu. É que não foi a Rússia quem criou os atuais problemas da Turquia, foram os Estados Unidos.

O problema mais crucial com que a moderna Turquia tem se defrontado é a questão curda. Trata-se de um problema crônico que ameaça a integridade da Turquia e que é percebido pela elite turca como o maior problema de segurança do país. As políticas turcas para a Síria são determinadas pela questão curda mais do que por qualquer outra coisa. O abandono da assim chamada política de problema zero com os vizinhos que Erdogan e seu governo costumavam promover, o que foi uma surpresa para muitos, está diretamente relacionada à questão curda e aos acontecimentos no Iraque após a desastrosa invasão americana (continua).

Fonte: Brasil 247 – 08.03.2016

O original, em inglês:

Turkey is screwed. And it’s all US fault – By Arras – The Saker – February 22, 2016

by Arras

Amid rising tensions between Turkey and Russia over the situation in Syria, one important fact got lost. It’s not Russia that caused the current Turkish problems. It was the USA.

The most fundamental problem modern Turkey is facing is the Kurdish question. It’s a chronic problem, which threatens the integrity of Turkey and the Turkish elite perceives it as the largest security treat the country is facing. Turkish policies in Syria are determined by the Kurdish issue more than anything else. The change from the so called policy of zero problems with neighbors, which Erdogan and his government used to promote, came as a surprise to many and is directly related to the Kurdish issue and the events in Iraq after the disastrous US invasion.

O EI está mesmo destruindo artefatos assírios?

O terrível do terrorismo é que ele ocupa as mentes. Nas guerras e guerrilhas precisa-se ocupar o espaço físico para efetivamente triunfar. No terror não. Basta ocupar as mentes, distorcer o imaginário e introjetar medo (Leonardo Boff).

Primeiro, a notícia:

Estado Islâmico destrói estátuas milenares da civilização assíria no Iraque – Opera Mundi 26/02/2015

O EI (Estado Islâmico) divulgou, nesta quinta-feira (26/02), um vídeo em que integrantes do grupo jihadista aparecem destruindo diversas estátuas e esculturas com mais de três mil anos com marretas (…)  O material era parte do patrimônio cultural da civilização assíria, que habitou o norte do Iraque e da Síria desde o século X a.C. (…) As estátuas destruídas são parte da coleção do museu de Mossul, capital da província de Nínive e que é controlada pelo EI desde junho de 2014.

 

Em seguida, por recomendação de Charles E. Jones, na lista ANE-2, uma análise do episódio:

For a good preliminary analysis of today’s video of the destruction in Mosul Museum and Nineveh have a look at Sam Hardy’s Conflict Antiquities: Islamic State has toppled, sledgehammered and jackhammered (drilled out) artefacts in Mosul Museum and at Nineveh.

Um trecho do texto diz:

There is no doubt that the Islamic State is profiting from the illicit trade in antiquities. Although the criminals have destroyed some ancient artefacts (whether complete objects or fragmentary reconstructions), they have also destroyed a lot [some] of modern reproductions – as is visible, for example, around 00h03m58s. [The reinforcing steel (“rebar”) is the “skeleton” that connects fragments in reproductions.] All this video really shows is that they are willing to destroy things that they can’t ship out and sell off.

O que parece estar acontecendo é a destruição de material que eles não conseguem vender. Seriam reproduções modernas das antigas peças assírias… É bem provável que o Estado Islâmico esteja mesmo é lucrando muito com o mercado ilegal de artefatos arqueológicos da Mesopotâmia.

Infelizmente a destruição de preciosos artefatos e sítios arqueológicos assírios pelo Estado Islâmico está se tornando rotina. Clique aqui.

Há quem tenha medo que o medo acabe

Para fabricar armas, é preciso fabricar inimigos. Para produzir inimigos, é imperioso sustentar fantasmas. Os fantasmas vão morrer apenas quando morrer o medo, mas há quem tenha medo que o medo acabe.

 

Guerra sem fim no Oriente Médio

De certa forma, pode-se argumentar que não houve uma série de guerras no Oriente Médio durante esse período de 40 anos, mas sim uma única e longa guerra

Vocês sabem qual pais é um grande produtor de petróleo, vizinho de um membro da Otan, onde há militantes muito bem armados com histórico de práticas de execução, extorsão e decapitação de pessoas? Nesse país também está em marcha uma sistemática campanha contra repórteres, além de milhares de pessoas escravizadas, tráfico de mulheres e uma série de ações de intimidação nas comunidades nativas. Quem pensou na Síria, Iraque e no grupo Isis errou, pois estamos falando do México. Além disso, os cartéis mexicanos não só já realizaram ataques e assassinatos dentro dos EUA, mas já mataram mais cidadãos norte-americanos dentro dos próprios EUA do que os atentados terroristas no dia 11 de Setembro.

Apesar de tudo isso, é o Isis que representa “um claro e real perigo “para os EUA, de acordo com general Martin Dempsey, chefe do Estado-maior, que acrescentou ser necessário formar uma coalizão internacional para enfrentá-los. O secretário de Defesa Chuck Hagel afirmou ainda que o Isis representa uma ameaça superior à de grupos como a al-Qaeda, e acredita que combatentes estrangeiros com passaportes ocidentais poderiam realizar ataques em qualquer lugar do mundo.

De acordo com uma pesquisa realizada pelo Washington Post-ABC News no mês de outubro, 90% dos norte-americanos avaliaram o Isis como uma séria ameaça aos interesses vitais dos EUA. Esse estado de espírito foi muito bem orquestrado pelo governo e mídia. Uma pesquisa realizada pela FAIR (o grupo de verificação da mídia nacional) sobre os principais programas de debates, mesas-redondas e entrevistas na TV entre os dias 7 a 21 de setembro (quando teve inicio exposição dos vídeos de decapitações) avaliou que, do total de 205 fontes que apareceram em programas discutindo opções militares na Síria e no Iraque, apenas seis dessas pessoas expressaram oposição à intervenção militar dos EUA. Listas de convidados foram constituídas, em sua grande maioria por funcionários e ex-funcionários da Casa Branca, bem como por oficiais militares ligados ao Pentágono. (No Debate and the New War).

Essa percepção de que o Isis representa uma “ameaça existencial” permitiu, por sua vez, que o presidente Barack Obama solicitasse ao Congresso o montante de 5,6 bilhões de dólares para o inicio de uma nova guerra liderada pelos EUA no Iraque e na Síria. Assim, a Síria poderá tornar-se o 14º país islâmico que as forças dos EUA já invadiram, ocuparam ou bombardearam, e em que os soldados norte-americanos mataram ou foram mortos desde 1980. São eles: Irã (1980, 1987-1988), Líbia (1981, 1986, 1989, 2011), Líbano (1983), Kuwait (1991), Iraque (1991-2011, 2014-), Somália (1992-1993, 2007-), Bósnia (1995), Arábia Saudita (1991, 1996), Afeganistão (1998, 2001-), Sudão (1998), Kosovo (1999), Iêmen (2000, 2002-), Paquistão (2004-).

Como se sabe, em todas essas operações militares ocorre, previamente ou posteriormente, a montagem de uma enorme infraestrutura de guerra. As estimativas de gastos giram em torno de 10 trilhões de dólares ao longo das últimas quatro décadas com o argumento de combater ameaças e promover estabilidade no Grande Oriente Médio (America’s Bases of War in the Greater Middle East. From Carter to the Islamic State 35 Years of Building Bases and Sowing Disaster By David Vine Global Research, November 17, 2014).

À medida que os EUA se tornam, cada vez mais, uma sociedade multicultural e plural, torna-se cada vez mais difícil moldar um consenso sobre questões que envolvam ações militares internacionais, exceto nas circunstâncias em que se configura a iminência de uma ameaça externa poderosa (real ou virtual). Nas últimas décadas, os policymakers e a mídia em geral nos EUA têm trabalhado para convencer a opinião publica de que supostas intencionalidades de determinados atores são uma ameaça real, independente de suas capacidades militares, e assim passaram a construir modelos explicativos sobre as causas da guerra. No nível coletivo, processos de percepção são compartilhados e comunicados para criar um estado de espírito coletivo de medo. Neste sentido, as ameaças são socialmente construídas por meio de articulações, públicas e privadas, entre especialistas, líderes políticos e militares. Por exemplo, quase não se fala de onde procede, nem muito menos quais são, os recursos e as reais capacidades militares do Isis, mas são repetidos à exaustão os vídeos de execuções e decapitações para impactar emocionalmente o público.

Como lembra o poeta Mia Couto, para fabricar armas, é preciso fabricar inimigos. Para produzir inimigos, é imperioso sustentar fantasmas. O que requer a construção e manutenção de enorme aparato de militares, jornalistas, acadêmicos que nos ensinam que, para enfrentarmos as ameaças globais, precisamos de mais exércitos, mais serviços secretos e a suspensão de direitos. (https://www.youtube.com/watch?v=jACccaTogxE).

Sem dúvida que tudo isso faz parte da cultura do medo que sempre existiu nos EUA, é verdade, mas que se tornou onipresente e absoluto após o 11 de Setembro. Em maio de 2004, o procurador-geral dos EUA, John Ashcroft, alertou que terroristas poderiam “atacar em qualquer lugar, a qualquer momento, e com praticamente qualquer arma”, sem, contudo, especificar sobre quem estava falando e quais eram as reais capacidades desse suposto grupo terrorista. Quando perguntaram ao então secretário de Defesa do governo Bush, Donald Rumsfeld, o que constituiria a vitória na guerra contra o terrorismo após os atentados do dia 11 de Setembro, ele respondeu que dever-se-ia convencer a opinião publica de que seria uma longa batalha. Não foi outra coisa o que disse, recentemente, uma das pessoas mais influentes em questões militares nos EUA, Leon Panetta, que já teve os cargos de chefe de Gabinete da Casa Branca na administração Clinton, diretor da CIA e secretário de Defesa na administração Obama. Em entrevista para oUSA Today advertiu que os norte-americanos precisam se preparar para uma “espécie de guerra dos 30 anos”, que deveria se estender além do Isis, incluindo as ameaças emergentes na Nigéria, Somália, Iêmen, Líbia e em outros lugares.

De certa forma, pode-se argumentar que não houve uma série de guerras no Grande Oriente Médio durante esse período de 40 anos, mas sim uma única e longa guerra, uma guerra sem fim. Supondo que o Estado islâmico seja derrotado, algo bastante provável, podemos ter certeza que de as campanhas militares seguiram seu curso. Assim como até pouco tempo atrás a Al Qaeda era a maior ameaça nunca vista anteriormente, novas ameaças, tão ou mais poderosas que o Isis, serão construídas e, provavelmente, teremos o 15º pais islâmico a ser atacado, ou o retorno para algum campo de batalha de uma guerra considerada inacabada.

Podemos vislumbrar, ainda que remotamente, que essas guerras acabem algum dia? Para responder a uma questão como essa, só recorrendo à genialidade de Mia Couto. Os fantasmas vão morrer apenas quando morrer o medo, mas há quem tenha medo que o medo acabe. E não se iludam, são pessoas poderosas que colocam à sua disposição todos os recursos que possuem para que o medo permaneça.

Reginaldo Nasser é professor do curso de Relações Internacionais da PUC-SP e do programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp e PUC-SP).

Fonte: Reginaldo Nasser: Forum/Carta Maior: 26/11/2014

Leia Mais:
Israel e Palestina: uma guerra sem fim – Por Bruno Fabricio Alcebino da Silva – Brasil de Fato: 09 de Outubro de 2023

O retorno dos jihadistas

Como a ‘Guerra ao Terror’ criou o grupo terrorista mais poderoso do mundo – Patrick Cockburn: TomDispatch, em Opera Mundi 25/08/2014

Há elementos extraordinários na política atual dos Estados Unidos em relação ao Iraque e à Síria que estão atraindo uma atenção surpreendentemente baixa. No Iraque, os EUA estão perpetrando ataques aéreos e mandando conselheiros e treinadores para ajudarem a conter o avanço do Estado Islâmico do Iraque e do Levante (mais conhecido como Estado Islâmico) na capital curda, Arbil. Os EUA presumidamente fariam o mesmo se o EI cercasse ou atacasse Bagdá. Mas, na Síria, a política de Washington é exatamente oposta: há muitos opositores do EI no governo sírio e curdos sírios em seus enclaves do norte. Ambos estão sendo atacados pelo EI, que já tomou cerca de um terço do país, incluindo a maior parte de suas instalações de óleo e gás.

Mas a política dos EUA, da Europa Ocidental e do Golfo Pérsico é derrubar o presidente Bashar al-Assad, que vem a ser a política do EI e de outros jihadis na Síria. E se Assad cair, o EI será o beneficiário, já que será questão de vencer ou absorver o resto da oposição armada síria. Há uma falsa ideia em Washington e outros lugares de que existe uma oposição “moderada” síria sendo ajudada pelos EUA, pelo Qatar, pela Turquia e pelos sauditas. É, apesar disso, fraca e está enfraquecendo a cada dia. Logo o califado pode se estender da fronteira iraniana até o Mediterrâneo e a única força que pode possivelmente impedir que isso aconteça é o exército sírio.

A realidade da política dos EUA é apoiar o governo do Iraque, mas não a Síria, contra o EI. Mas uma razão para o grupo ter sido capaz de se tornar tão forte no Iraque é que ele pode extrair seus recursos e combatentes da Síria. Nem tudo o que deu errado no Iraque foi culpa do primeiro-ministro Nouri al-Maliki, como agora se tornou o consenso político e midiático no Ocidente. Os políticos iraquianos têm me dito nos últimos dois anos que o apoio estrangeiro à revolta sunita na Síria inevitavelmente desestabilizaria o país deles também. Isso agora aconteceu.

Ao continuar com essas políticas contraditórias em dois países, os EUA garantiram que o EI pudesse fortalecer seus combatentes no Iraque por meio da Síria e vice-versa. Até agora, Washington teve sucesso em não levar a culpa pelo crescimento do EI e em colocar toda a culpa no governo iraquiano. Na verdade, criou uma situação na qual o EI pode sobreviver e pode inclusive prosperar (continua).

Massacrar palestinos não dá Ibope

Em cinco de semanas de conflito, aprovação de Netanyahu caiu de 82% para 38% em Israel – Redação: Opera Mundi 26/08/2014

Após quase 50 dias da ofensiva israelense contra a Faixa de Gaza, uma pesquisa de opinião divulgada na noite desta segunda-feira (25/08) mostra que apenas 38% da população de Israel está satisfeita com o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, enquanto 50% desaprovam a conduta do premiê. A consulta realizada pela emissora local Channel 2 News evidencia uma sensível queda nos índices de aprovação do premiê; pesquisa semelhante feita quatro dias antes, em 21 de agosto, mostrava Netanyahu com 55% de aprovação. Três semanas atrás, em 5 de agosto, o índice era de 63%. Em 23 de julho, apenas cinco dias após o Exército israelense ter invadido o território palestino por terra, o chefe de governo aparecia com 82% de aprovação.

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Sobre a radicalização da sociedade israelense

Guerra em Gaza amplia clima de ódio e deixa democracia israelense em escombros –  Guila Flint: Opera Mundi 11/08/2014

A ofensiva israelense à Faixa de Gaza deixou o enclave palestino em escombros e também causou danos inestimáveis à liberdade de expressão e à coexistência entre judeus e árabes dentro de Israel. Em meio às tentativas de prolongar o cessar-fogo, intermediadas pelo Egito, já se pode fazer um balanço da destruição causada durante a chamada “Operação Margem Protetora”. Em Gaza os estragos são visíveis: bairros inteiros transformaram-se em montanhas de escombros, cerca de 1.900 pessoas morreram e mais de 100 mil perderam suas casas. Em Israel a destruição não é tão óbvia, mas sim permeia a sociedade e deixa o país, que se considera “a única democracia do Oriente Médio”, com sérios questionamentos sobre o futuro. “Já não se pode mais levar crianças às manifestações pacifistas em Tel Aviv”, afirmou um manifestante, depois que ativistas de organizações pela paz foram espancados por gangues de extrema-direita no centro da maior cidade de Israel. A observação expressa o clima de medo que se criou quando a maioria dos cidadãos se alinhou com a posição do governo e uma minoria significativa, daqueles que são contra, vem sofrendo uma repressão sem precedentes. O veterano jornalista Gideon Levy, do Haaretz, que cobre a questão palestina há anos, recebeu tantas ameaças de morte que o jornal acabou contratando guarda-costas que o acompanham 24 horas por dia. Levy, que denunciou o massacre aos palestinos de Gaza, é taxado como “traidor” e “quinta coluna”.

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Guerra preventiva é um crime contra a humanidade

“Acredito que a ‘guerra preventiva’ é uma forma de crime contra a humanidade. Ela não será a primeira batalha de uma 3ª Guerra Mundial, mas o primeiro passo para uma espécie de guerra civil globalizada (…) É uma ameaça verdadeira contra a humanidade”, disse Paul Virilio [Paris, 1932], urbanista e filósofo francês, em entrevista à Folha em 06.04.2003.

A guerra enganadora de Israel, de 2014

Gideon Levy – Haaretz, em Carta Maior 29/07/2014

Afinal de contas, como uma guerra preventiva pode ser justificada? E como pode alguém pensar estar agindo corretamente diante do show de horrores das imagens de Gaza?

Começa como uma guerra de escolhas: uma política israelense diferente nos últimos meses teria evitado o conflito, que evoluiu para uma guerra sem sentido. Já é bastante óbvio que isso não resultará em qualquer conquista de longo prazo. Pode ainda deteriorar-se acabando em desastre, e no final, ser uma guerra de enganos – Israel mentiu para si mesmo até arruinar-se.

O primeiro engano foi o de que não havia alternativa. É verdade, quando vários foguetes caem em Israel, tornou-se o caso. Mas e os passos que levaram a eles? Foram passos para os quais houve outras opções. Não é difícil imaginar o que teria acontecido se Israel não tivesse suspendido as conversações de paz; se não tivesse lançado uma guerra total contra o Hamas na Cisjordânia, no rastro do assassinato de três adolescentes israelenses; se não tivesse deixado de realizar a transferência de recursos destinados ao pagamento de salários na Faixa de Gaza; se não tivesse se oposto ao governo de unidade palestina; se tivesse atenuado o bloqueio da Faixa de Gaza.

Os foguetes Qassam foram uma resposta às escolhas de Israel. Depois que os objetivos se acumularam, como sempre ocorre em guerras, – parar os foguetes, encontrar e destruir túneis, desmilitarizar Gaza – eles podem bem continuar a crescer, para sabe-se lá o que mais. “O silêncio será recebido com calma”. Lembram-se disso? Na sexta-feira, Israel rejeitou a proposta de cessar-fogo do Secretário de Estado John Kerry.

O segundo engano é que a ocupação da Faixa de Gaza acabou. Imagine um enclave sitiado, cujos habitantes estão aprisionados, com a maioria dos seus negócios e atividades controlados por um outro estado – da manutenção do registro populacional ao comando de sua economia, inclusive proibindo exportações e restringindo a pesca, e que voa no seu céu e ocasionalmente invade o seu território. Isso não é ocupação?

O terceiro engano é a afirmação de que as Forças de Defesa de Israel “fazem tudo o que está ao seu alcance” para evitar a morte de civis. Já passamos dos primeiros mil civis mortos, um número assustador deles de crianças, com uma vizinhança que foi destruída e 150 mil pessoas desalojadas e sem lugar para onde escapar. Tudo isso torna essa afirmação nada mais que uma piada cruel.

A afirmação de que o mundo apoia a guerra e reconhece sua justeza também é um engodo israelense. Embora seja verdade que os políticos ocidentais reiterem que Israel tem o direito de se defender, os corpos que vão se empilhando e os refugiados desesperados estão decepcionando o mundo e gerando ódio contra Israel. Finalmente, até os estadistas que apoiam Israel lhe deram as costas.

O próximo engodo é que a guerra mostrou ser “o Povo de Israel”  uma “nação maravilhosa”. Essa campanha mentirosa, intoxicante e autocongratulatória e melosa já dura há tempo. A nação se moveu para dar suporte às tropas, e assim vai. Mas além das vans cheias de doces e de caminhões com pacotes de roupas íntimas, e funerais para soldados cujas famílias vivem no exterior, que milhares de israelenses acompanharam, e das demonstrações de preocupação com os feridos, essa guerra também expôs outros comportamentos, em toda a sua feiura. Os “soldados do comitê de bem estar” que são o Povo de Israel, expuseram indiferença em relação ao sofrimento do outro lado. Nem um gesto de compaixão, nem um pingo de humanidade, nenhum choque, nenhuma empatia por sua dor. As imagens horríveis de Gaza – elas não são nada menos que horríveis – são recebidas aqui entre um bocejo e uma comemoração. Um povo que se comporta assim não merece os elogios que acumula sobre si. Quando as pessoas estão morrendo em Gaza e, em Tel Aviv as pessoas estão desinteressadas, não há razão para se ter ânimo.

Nem há causa para ânimo no incidente da campanha contra meia dúzia de pessoas que se opõem à guerra. Do gabinete de ministros e membros do parlamento, para as ruas e os caras da internet, um vento doente está soprando. Somente cidadãos obedientes. “Unidade israelense”? “A nação é uma grande família”? Isso é uma piada. Assim como é piada a cobertura midiática israelense em tempos de guerra, uma rede de propaganda cujos membros emitem notícias para si mesmos, a título de autoelogio ou exortação, para incitar e instigar, e para fechar os próprios olhos.

E a maior piada de todas, a mãe de todos os enganos: a crença na retidão de seus métodos. O slogan da “guerra justa” é repetido com tanta frequência, ad nauseam, que se começa a suspeitar que até aqueles que o entoam em alta voz começam a duvidar. Não fosse assim, não estariam gritando tão alto e não combateriam tão facilmente os poucos que tentam expressar uma opinião diferente. Afinal de contas, como uma guerra preventiva pode ser justificada? E como pode alguém pensar estar agindo corretamente diante do show de horrores das imagens de Gaza?

Talvez o chão esteja queimando também sob os pés dos membros desse coro de legitimadores da guerra. Talvez eles também tenham entendido que, quando as batalhas acabam, o quadro real se torna claro. É assim que sempre ocorre em guerras enganadoras. E é assim que a guerra de 2014 também vai se mostrar.

Tradução: Louise Antônia León

 

Israel’s war of deception 2014 – By Gideon Levy: Haaretz  27/07/2014

How can a preventable war be justified? And how can one wrap oneself in its rightness in the presence of the horror-show images from Gaza?

It began as a war of choice: A different Israeli policy in the last few months might have prevented it. It evolved into a pointless war. It’s already pretty obvious that it will not result in any long-term achievements. It could still deteriorate into a disaster, and in the end will turn out to have been… 

 

Quem é Gideon Levy?

Gideon Levy (Tel-Aviv, 1953), jornalista israelense, é membro da direção do jornal Haaretz. Crítico em relação à política do governo de Israel quanto aos territórios ocupados, Levy publica semanalmente, na sua coluna Twilight Zone, uma crônica sobre violações de direitos civis dos palestinos. Denuncia o recurso sistemático à violência por parte do governo de Israel e a manipulação da opinião pública do seu país, que desumaniza tanto o povo israelense como os seus adversários. Levy já recebeu vários prêmios por sua atuação na defesa de direitos humanos.

Gideon Levy is a Haaretz columnist and a member of the newspaper’s editorial board. Levy joined Haaretz in 1982, and spent four years as the newspaper’s deputy editor. He is the author of the weekly Twilight Zone feature, which covers the Israeli occupation in the West Bank and Gaza over the last 25 years, as well as the writer of political editorials for the newspaper. Levy was the recipient of the Euro-Med Journalist Prize for 2008; the Leipzig Freedom Prize in 2001; the Israeli Journalists’ Union Prize in 1997; and The Association of Human Rights in Israel Award for 1996. His new book, The Punishment of Gaza, has just been published by Verso Publishing House in London and New York.

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Governo de Israel perdeu a compostura

É evidente que o governo brasileiro não busca a relevância que a chancelaria israelense tem ganhado nos últimos anos. Menos ainda a relevância militar que está sendo exibida vis-à-vis populações indefesas. A irresolução da crise palestina alimenta a instabilidade no Oriente Médio e leva água ao moinho do fundamentalismo, ameaçando a paz mundial.

O que está em jogo na Faixa de Gaza – Marco Aurélio Garcia: Opera Mundi 24/07/2014

O governo brasileiro reagiu em dois momentos à crise. Na sua nota de 17 de julho “condena o lançamento de foguetes e morteiros de Gaza contra Israel” e, ao mesmo tempo, deplora “o uso desproporcional da força” por parte de Israel. Em comunicado de 23 de julho e tendo em vista a intensificação do massacre de civis, o Itamaraty considerou “inaceitável a escalada da violência entre Israel e Palestina” e, uma vez mais, condenou o “uso desproporcional da força” na Faixa de Gaza. Na esteira dessa percepção, o Brasil votou a favor da resolução do Conselho de Direitos Humanos da ONU (somente os Estados Unidos estiveram contra) que condena as “graves e sistemáticas violações dos Direitos Humanos e Direitos Fundamentais oriundas das operações militares israelenses contra o território Palestino ocupado” e convocou seu embaixador em Tel Aviv para consultas. A chancelaria de Israel afirmou que o Brasil “está escolhendo ser parte do problema em vez de integrar a solução” e, ao mesmo tempo, qualificou nosso país como “anão” ou “politicamente irrelevante”. É evidente que o governo brasileiro não busca a “relevância” que a chancelaria israelense tem ganhado nos últimos anos. Menos ainda a “relevância” militar que está sendo exibida vis-à-vis populações indefesas.

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