Na semana passada li um texto de Juha Pakkala, biblista finlandês, professor de Bíblia Hebraica na Universidade de Helsinque, sobre a possibilidade das reformas de Ezequias e de Josias, reis de Judá em 716/15-699/8 e 640-609 a.C., respectivamente, não terem acontecido. Segundo o autor, é mais provável que os textos de 2 Reis 18 e 22-23 sejam invenções literárias e projeções de ideais pós-exílicos no período monárquico.
O texto pode ser acessado em Academia.edu: Why the Cult Reforms In Judah Probably Did Not Happen. Pode ser acessado, gratuitamente, também aqui.
Foi publicado em KRATZ, R. G.; SPIECKERMANN, H. (eds.) One God, One Cult, One Nation: Archaeological and Biblical Perspectives. Berlin: De Gruyter, 2010, p. 201-235.
Apresento aqui apenas a introdução e recomendo a leitura do texto completo. Especialmente para quem estuda História de Israel e Literatura Deuteronomista.
Os autores citados nas notas podem ser conferidos na bibliografia no final do texto.
As reformas de Ezequias (2 Reis 18,4) e Josias (2 Reis 22–23) tiveram impacto considerável nos estudos bíblicos. Especialmente a reforma de Josias foi amplamente entendida como um momento crucial e um ponto de virada no desenvolvimento da religião[1] de Israel[2]. Consequentemente, os relatos bíblicos foram assumidos como preservando informações históricas importantes da época de Ezequias e Josias.
Por exemplo, no século passado, Hölscher argumentou que 2 Reis 22–23 é um excelente exemplo de escrita histórica autêntica[3]. Noth assumiu que 2 Reis 23,4–20 foi retirado dos anais reais[4]. Embora a maioria dos estudiosos hoje em dia reconheça que os relatos bíblicos não são fontes históricas imparciais, geralmente se presume que os reis tomaram pelo menos algumas medidas para renovar o culto[5]. Alguns estudiosos presumem que eles purificaram o culto de elementos estrangeiros, enquanto outros argumentam que apenas a localização do culto estava em questão[6]. Há também algumas vozes críticas que questionaram totalmente a historicidade das reformas, mas elas ainda representam a minoria[7]. No entanto, é evidente que o ceticismo sobre a historicidade das reformas cresceu nas últimas décadas[8]. Deve-se acrescentar também que a historicidade da reforma de Ezequias foi desafiada com mais frequência do que a de Josias[9].
Os relatos da reforma tiveram impacto considerável nos estudos bíblicos e no estudo do antigo Israel, sua história e religião. Muitas histórias de Israel e introduções à Bíblia hebraica se referem às reformas como eventos importantes que ocorreram no final do século VIII e no final do século VII a.C.[10]. Muitos conceitos centrais ou mesmo definidores do judaísmo posterior, como centralização do culto, adoração exclusiva a Iahweh, crítica de ídolos e religião baseada na Lei, teriam sido introduzidos por um dos reis reformadores. As reformas também tiveram impacto considerável no estudo dos livros bíblicos. Por exemplo, devido às semelhanças evidentes entre o Deuteronômio e 2 Reis 22–23, a datação do Deuteronômio é frequentemente conectada com a reforma de Josias[11]. Alguns estudiosos que questionaram a historicidade da maioria dos eventos em 2 Reis 22–23 ainda conectaram o Deuteronômio com o rei Josias ou com o final do século VII a.C.[12]. O Deuteronômio seria então uma testemunha das mudanças religiosas que ocorreram durante esse período.
As reformas também influenciaram a datação da Obra Histórica Deuteronomista. Muitos estudiosos, especialmente no mundo anglo-saxônico, vincularam o desenvolvimento editorial de sua composição com as reformas. De acordo com o ‘Modelo de Dupla Redação’, uma das principais fases editoriais da composição foi escrita durante o tempo de Josias[13]. Também se tentou correlacionar dados arqueológicos com as reformas do culto. Especialmente em pesquisas anteriores, a destruição dos locais de culto em Arad Tel Berseba foi vista como um resultado ou prova das reformas do culto bíblico[14]. Também foi discutido se as estatuetas [de divindades] da Idade do Ferro de Judá mostram quaisquer sinais de destruição intencional, o que poderia então ser usado como evidência para a reforma de Josias[15]. Em discussões acadêmicas mais recentes, a diminuição dos motivos iconográficos do século VIII a.C. em diante tem sido conectada com as reformas[16].
A confiança nos textos bíblicos em questão como fontes históricas confiáveis é problemática, porque é evidente que 2 Reis 18 e 2 Reis 22–23 foram extensivamente editados. 2 Reis 23, onde toda a discussão sobre as reformas culmina, pode ser o capítulo mais editado de 1–2 Reis, se não de toda a Bíblia Hebraica, e sua complicada história editorial também é geralmente reconhecida. Um indicativo dos problemas é o fato de que as visões acadêmicas sobre seu desenvolvimento diferem em grande medida, com muito pouco consenso à vista[17]. Quase todas e quaisquer partes do capítulo foram atribuídas de forma variável ao texto básico e a vários editores posteriores ou aos anais reais. Consequentemente, o texto é, na melhor das hipóteses, uma fonte histórica problemática e, portanto, uma base pobre para reconstruções da história de Israel e teorias sobre o desenvolvimento de livros bíblicos.
Mesmo sem os problemas causados pela edição, os textos em questão foram evidentemente escritos de uma perspectiva fortemente teológica, o que significa que sua confiabilidade histórica como fonte deve ser cuidadosamente examinada. É quase impossível usá-los como tal para qualquer reconstrução histórica do período monárquico. O perfil teológico dos diferentes autores tem que ser compreendido antes mesmo de começarmos a ver por trás da teologia e possivelmente obter informações sobre eventos históricos. Seria arriscado negligenciar a análise meticulosa dos textos-fonte e assumir que, apesar dos problemas evidentes, eles de alguma forma refletem realidades históricas durante a monarquia. Tal abordagem dos textos não é incomum, mas dificilmente pode fornecer uma base histórica sólida.
Neste artigo, tentarei mostrar que os textos disponíveis não são fontes históricas tão sólidas que deveríamos usá-los como pedras angulares de teorias sobre a religião de Israel e o nascimento dos livros bíblicos. A possibilidade de que as reformas sejam projeções de ideais posteriores ao período monárquico e, portanto, não tenham qualquer base histórica também tem que ser levada em consideração ou pelo menos discutida. Algumas características podem até indicar que nunca aconteceram.
Notas
1. Neste artigo, a religião de Israel indica a religião de Judá e Israel, praticada durante a monarquia.
2. De acordo com Albertz (1994) “[a] decisão mais importante na história da religião israelita é tomada com a datação de uma parte essencial do Deuteronômio no tempo de Josias.” (199). Cf. a discussão posterior sobre esta declaração por Albertz em Davies (2007), 65–77, e Albertz (2007), 27–36.
3. Hölscher (1923), 208.
4. Noth (1967), 86. Assim também Gray (1963), 663.
5. Por exemplo, Lohfink (1987), 459–475; Collins (2007), 86, 150–151; Sweeney (2007), 402–403, 446–449, e Petry (2008), 395 n. 19. Römer (2005), 55, escreve: “A apresentação bíblica de Josias e seu reinado não pode ser tomada como um documento de evidência primária. Por outro lado, alguns indicadores sugerem, no entanto, que algumas tentativas de introduzir mudanças políticas e de culto ocorreram sob Josias.”
6. Hoffmann (1980), 269, concluiu que em quase todos os detalhes o autor de 2 Reis 22–23 apresenta uma imagem idealista da reforma, mas que os eventos têm uma base histórica na época de Josias.
7. Por exemplo, Levin (1984), 351–371; Davies (2007), 65–77.
8. Este desenvolvimento pode ser observado, por exemplo, em comentários e histórias recentes de Israel; por exemplo, Werlitz (2002), 305–311; Grabbe (2007), 204–207.
9. Para uma revisão, veja Hoffmann (1980), 151–154, onde ele mesmo assume que 2 Reis 18,4 contém uma memória de um evento histórico. Similarmente também Collins (2007), 148. Estudos anteriores assumiram que 2 Reis 18,4 contém um trecho dos anais reais, por exemplo, Benzinger (1899), 177.
10. Ver, por exemplo, Liverani (2005), 175–182; Miller/Hayes (2006), 413–414 (a historicidade da reforma de Ezequias é deixada em aberto; ver n. 28), 457–460.
11. Assim, muitos estudiosos, por exemplo, Driver (1902), xliii–lxvi; Veijola (2004), 2–3; Römer (2005), 55. Em pesquisas anteriores e já desde De Wette (1805), Dissertatio critico-exegetica, o livro encontrado no Templo (2 Reis 22,8) foi assumido como tendo sido o Deuteronômio ou sua edição inicial.
12. Assim, por exemplo, Levin (2005), 91. De acordo com Schmid (2008), 106, a argumentação sobre a relação entre 2 Reis 22–23 e o Deuteronômio corre o risco de raciocínio circular, mas ele data a versão mais antiga do Deuteronômio no século VII a.C.
13. Cf. Cross (1973), 274–289, e muitos que o seguiram. Similarmente também Lohfink (1987), 459–475. Provan (1988), 172–173, conectou a primeira edição da composição com o reinado de Ezequias.
14. Ver Aharoni (1968), 233–234; Mazar (1992), 495–498.
15.Kletter (1993), 54–56, demonstrou que não há evidências de uma destruição intencional de estatuetas [de divindades] na Judeia.
16. Ver Uehlinger (2007), 292–295.
17. Ver, por exemplo, Benzinger (1899), 189–196; Hoffmann (1980), 169–270; Würthwein (1984), 452–466; Levin (1984), 351–371; Kratz (2000), 173, 193; Hardmeier (2007), 123–163.