Francisco: 10 anos

Algumas leituras:

:. A Opção Francisco: uma lufada de ar e virada profética. 10 anos de pontificado – Por João Vitor Santos – IHU: 13 Março 2023Francisco: 10 anos

Em 13 de março de 2013, Mario Jorge Bergoglio foi eleito papa. Francisco chega como reformador. Dez anos depois, em meio a forte oposição, como o pontífice concebe saídas para as crises em nosso tempo?

:. 10 anos de pontificado de Francisco. Alguns olhares – Por João Vitor Santos – IHU: 13 Março 2023

Em 2013, Mario Bergoglio é eleito papa. Dez anos depois, analistas ouvidos pelo IHU destacam que o maior avanço é ver a Igreja em meio ao povo, mas o desafio reside justamente em vencer as resistências internas a esse estilo de Francisco.

:. 10 anos de pontificado de Francisco: alguns olhares (2) – Por João Vitor Santos – IHU: 14 Março 2023

Ainda para marcar uma década do “papa argentino”, o IHU publica outras análises sobre as marcas e transformações da Igreja no mundo.

 

Leia Mais:
Francisco no Observatório Bíblico

Dicionário de Ciência da Religião

USARSKI, F.; TEIXEIRA, A.; PASSOS, J. D. (orgs.) Dicionário de Ciência da Religião. São Paulo: Paulus/Paulinas/Loyola, 2022, 920 p. – ISBN 9786555624847.

A Paulus Editora, em parceria com as editoras Paulinas e Loyola, apresenta ao público o “Dicionário de Ciência da Religião”, organizado pelos professores Frank Usarski,USARSKI, F.; TEIXEIRA, A.; PASSOS, J. D. (orgs.) Dicionário de Ciência da Religião. São Paulo: Paulus/Paulinas/Loyola, 2022 Alfredo Teixeira e João Décio Passos. A obra é considerada um marco epistemológico do estudo da Ciência da Religião.

O “Dicionário de Ciência da Religião” é resultado de cinco anos de trabalho que contou com a dedicação de 106 autores entre brasileiros e estrangeiros. A obra possui 920 páginas com 303 palavras e 207 verbetes, sendo o primeiro lançado na língua portuguesa.

A presente publicação traz um conjunto de verbetes que sintetizam, catalogam e instrumentalizam o estudo científico da religião. De acordo com os autores, não se trata de um dicionário das religiões, pelo contrário, é um estudo da ciência da religião que futuramente poderá ser melhorado e ampliado a cada descoberta.

Os verbetes presentes na obra foram elaborados por um grupo de estudiosos nacionais e internacionais que oferecem ao público as informações básicas sobre a história, estruturas conceituais e as aplicações acadêmicas de cada temática sistematizada. Este lançamento — considerado inédito no Brasil e Portugal —, é de grande relevância histórica na medida em que expõe um balanço geral das pesquisas e do estado da arte dos estudos da religião nos dois países.

De acordo com os autores, os tempos atuais exigem um maior conhecimento para um melhor diálogo com as diversas realidades religiosas da sociedade. Este volume é um marco no estudo científico da ciência da religião no Brasil, pois revela uma estreita ligação com a prática religiosa. Vale ressaltar que este dicionário contribui para um estudo mais aprofundado de características marcantes da religião do povo brasileiro.

Ainda segundo os organizadores, o “Dicionário de Ciência da Religião” deseja ser não somente uma ferramenta de trabalho para uma determinada área de conhecimento, mas, sobretudo, um marco epistemológico de um projeto que expressa, ao mesmo tempo, um ponto de chegada de certos domínios teóricos e metodológicos traduzíveis em conceitos distintos, maduros e úteis e um ponto de partida, no sentido de um balanço provisório que ali se apresenta, mas que pede sucessivas atualizações.

A publicação destina-se a estudantes de ciências da religião, estudantes de teologia, religiosos (as), agentes de pastorais e demais interessados no conhecimento sobre a Ciência da Religião. Em suma, o “Dicionário de Ciência da Religião” é uma contribuição histórica que irá favorecer os diversos trabalhos e apresentações sobre o tema, com base no pensamento científico de grandes estudiosos da área.

Os organizadores

João Décio Passos é graduado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (1987), e Teologia pela Pontifícia Faculdade de teologia N.S. da Assunção (1991). É mestre em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1995) e também em Teologia pelo Instituto São Paulo de Estudos Superiores (2009) além de doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2001). Livre Docente em Teologia pela PUC-SP atua como professor associado da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e professor doutor do Instituto Teológico São Paulo.

Frank Usarski é doutor em Ciência da Religião pela Universidade de Hannover, Livre-Docente em Ciência da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Professor Assistente do Programa de Estudos Pós-graduados em Ciências da Religião na mesma Universidade.

Alfredo Teixeira é professor associado da Faculdade de Teologia. Doutor em Antropologia (especialização em Antropologia Política) pelo Instituto de Ciências do Trabalho e Empresa. Mestre em Teologia Sistemática e Licenciado em Teologia pela Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa.

Um debate sobre os rumos da Igreja

Rumo a uma Igreja sem padres? Um só povo de Deus, muitos ministérios. Um debate – IHU: 06 Julho 2021

No Ocidente, está caindo o número de presbíteros, mas não está diminuindo o clericalismo. Enquanto nas paróquias tudo continua girando em torno da figura do padre, o Paola Lazzarini OrrùPapa Francisco se concentra nos ministérios instituídos reconhecendo o papel dos catequistas e abrindo às mulheres o leitorado e o acolitado. Estamos indo rumo a uma Igreja em que o único povo sacerdotal exercerá diversos ministérios, ordenados e instituídos? Será um tema do próximo Sínodo?

Falamos sobre isso neste debate em que reunimos em torno de uma mesa virtual algumas vozes autorizadas de protagonistas e especialistas:

:. Dom Erio Castellucci, 60 anos, arcebispo de Modena-Nonantola, bispo de Carpi e novo vice-presidente da Conferência Episcopal Italiana (CEI).

:. Paola Lazzarini Orrù, 45, presidente do movimento Donne per la Chiesa [Mulheres pela Igreja] e autora do livro “Non tacciano le donne in assemblea. Agire da protagoniste nella Chiesa” [Não calem as mulheres na assembleia. Agir como protagonistas na Igreja, em tradução livre] (Ed. Effatà, 2021).

:. Marco Marzano, 58 anos, professor de Sociologia da Universidade de Bérgamo, especialista em processos organizacionais e estudioso dos aspectos sociológicos do catolicismo, autor do livro “La casta dei casti. I preti, il sesso e l’amore” [A casta dos castos. Os padres, o sexo e o amor, em tradução livre] (Ed. Bompiani, 2021).

:. O Pe. Dario Vitali, 65 anos, diretor do Departamento de Teologia Dogmática da Pontifícia Universidade Gregoriana e estudioso de eclesiologia e ministérios, autor do livro “Diaconi: che fare?” [Diáconos: o que fazer?, em tradução livre] (Ed. San Paolo 2019).

A reportagem é de Giovanni Ferrò e Paola Rappellino, publicada por Jesus, de julho de 2021.

Algumas frases:

Dario VitaliDevemos ter a coragem – até mesmo correndo o risco de sermos impopulares – de reestruturar os bens que podem verdadeiramente estar a serviço do Evangelho e das pessoas, especialmente dos mais desfavorecidos, mas não devemos perder tempo e energias demais tentando conservar aquilo que, pelo contrário, não serve mais (Erio Castellucci).

Imagino uma Igreja que finalmente supere o modelo feudal, que não tenha mais na paróquia o único eixo em torno do qual se constrói toda a sua presença. Mas diria mais: uma Igreja que deve manter em mente o fato de que a presença física e territorial não é a única com a qual é preciso lidar. No lockdown, todos experimentamos uma vida comunitária e formas de ritos que foram vividos fora das paróquias, que nos colocaram em comunicação e criaram comunidades sem ter o seu eixo no pertencimento territorial. É claro que os sacramentos são os nossos “pés no chão”, que nos fazem ficar fisicamente no território. Mas existe toda uma outra dimensão da partilha, da oração, do apoio recíproco que é cada vez mais – e provavelmente em parte sempre foi – extraterritorial e também vive fora das paróquias (Paola Lazzarini Orrù).

Em síntese extrema, como estudioso, eu vejo assim: uma grande estrutura como a Igreja Católica, a mais importante, impressionante, extraordinária organização da história humana, com 2.000 anos de história, com um enraizamento enorme, não muda pelas mãos dos teólogos. A Igreja é uma estrutura de poder – do modo como nos foi transmitida até hoje – baseada em três pilares: o poder dos homens sobre as mulheres; o do clero sobre os leigos; e o de Roma sobre o resto do mundo. Essas três características são o núcleo duro que se cristalizou ao longo do tempo. A cristalização é a consequência de uma inércia estrutural que diz respeito a todas as organizações e certamente não apenas à Igreja Católica. A inércia se manifesta também na permanência de uma atitude conservadora enraizada na classe dirigente, mas também no povo. Além disso, deve-se levar em conta que a mudança seria muito custosa, a ponto de produzir um cenário altamente incerto. Em outras palavras, se sairmos do velho modelo, para onde iremos? Quem deveria promover uma mudança, portanto, deveria ser uma classe dirigente eclesiástica que decidisse que as reformas devem ser feitas de forma absoluta, a todo o custo. Mas também seriam necessárias pressões populares reformadoras, que não me parecem existir ou que, no mínimo, não são suficientes hoje (Marco Marzano).

Será decisivo abordar as questões referentes à sinodalidade. Parece-me que esse é o único caminho verdadeiro, que está realizando uma recepção do Vaticano II,Marco Marzano inserindo um debate de verdade que pode levar a uma reavaliação das posições. Deve ser posto em prática aquele processo sinodal desenhado pela constituição apostólica Episcopalis communio (2018) de Francisco, que infelizmente passou em silêncio. Fazendo o Sínodo passar de evento a processo, o papa indica três fases de um processo que realiza a participação de todos na Igreja: a consulta ao povo de Deus, o discernimento sobre as realidades que surgiram do povo de Deus e a implementação daquilo que foi decidido com base em uma escuta e em um diálogo contínuo. Portanto, acho que é possível começar a fazer perguntas de grande importância como o direito de palavra, o direito de decisão com base na corresponsabilidade, dar importância ao consenso – aquilo que na Igreja antiga era conhecido como conspiratio – para se chegar a um pensamento compartilhado e a uma prática compartilhada (…) O próximo Sínodo dos Bispos poderá ser uma grande, grandíssima oportunidade nesse sentido. Também por causa do protagonismo do Povo de Deus. Aqui tomo a liberdade de dizer que seria bom insistir no Povo de Deus, e não nos leigos, como ouço em muitos lados. Por quê? Na relação padres-leigos, jogada inevitavelmente no registro do poder, o risco é de que os leigos acabem sempre em uma posição subordinada. Prefiro insistir no Povo de Deus, em relação ao qual o ministro é sempre aquele que serve. Na minha opinião, é uma questão de grande importância, que permite introduzir o tema do sacerdócio comum como fundamento dos carismas, ministérios, vocações, uma realidade multiplicada na ordem do Espírito que pode fazer uma Igreja verdadeira e totalmente ministerial (Dario Vitali).

Verso una Chiesa senza preti?

Dom Erio CastellucciIn Occidente cala il numero dei presbiteri ma non diminuisce il clericalismo. Mentre nelle parrocchie tutto continua a ruotare attorno alla figura del prete, papa Francesco punta sui ministeri istituiti riconoscendo il ruolo dei catechisti e aprendo alle donne il lettorato e l’accolitato. Si va verso una Chiesa in cui l’unico popolo sacerdotale eserciterà diversi ministeri, ordinati e istituiti? Sarà un argomento del prossimo Sinodo? Ne dibattiamo in queste pagine con quattro pastori e studiosi: monsignor Erio Castellucci, vescovo di Modena e vicepresidente della Cei; don Dario Vitali, docente della Gregoriana; Paola Lazzarini Orrù, presidente di Donne per la Chiesa e Marco Marzano, professore di Sociologia all’Università di Bergamo.

Francisco, a pandemia e a pós-pandemia

O Papa Francisco, a pandemia e pós-pandemia: metáforas e encruzilhada – Por Wagner Fernandes de Azevedo | IHU: 25 Julho 2020

Francisco desde o início do pontificado comunica com simplicidade, utilizando-se de metáforas para falar pedagogicamente a todos sobre o projeto de Igreja que deseja construir.

Muitas vezes reiterou o sonho de uma “Igreja em Saída”, para dizer uma Igreja missionária, de acompanhamento próximo, machucada nas ruas e calcada na vida do PovoMomento extraordinário de oração em tempo de epidemia presidido pelo Papa Francisco - Adro da Basílica de São Pedro - 27 de março de 2020 de Deus. E de fato, o Papa nos últimos sete anos viajava às periferias e acolhia em sua casa, os pobres, os migrantes, os refugiados, os indígenas, as vítimas de abusos sexuais…

Expressou também, desde sua primeira encíclica, a necessidade da “cultura do encontro” contra a “cultura do descarte”. Reforçava assim uma sociedade inclusiva, de valorização e participação de todos os pobres do mundo, superando as agruras geradas por um sistema econômico financeirizado em crise.

A pandemia do coronavírus atravancou o caminho da “normalidade”, de toda a sociedade, incluindo também o papado ao “estilo Francisco”. O mundo, e a Igreja que nele está inserida, depararam-se com o desafio de se transformar e repensar. O Papa, em entrevista por videoconferência, afirmou: “Tenho esperança na humanidade. Vamos sair melhores”.

Porém, contra Francisco, a pandemia freou uma agenda de viagens e os rotineiros encontros com o público, limitando o Papa das periferias, do encontro e da Igreja em saída, à reclusão entre a paredes do Vaticano – e à comunicação on-line, com transmissão do Ângelus, Audiência Geral e das missas matinais.

Contudo, a leitura de mundo, e da Igreja, que Francisco soube fazer e divulgar em sete anos de pontificado gerou outra metáfora ainda mais pertinente no atual tempo: a Igreja como hospital de campanha. O teólogo Tomáš Halík destaca no artigo “Igrejas fechadas: um sinal de Deus?”:

“Se a Igreja deve ser um ‘hospital de campanha’, obviamente ela deve continuar oferecendo a mesma assistência sanitária, social e caritativa que ofereceu desde as origens da sua história. Mas, como qualquer bom hospital, a Igreja também deve realizar outras tarefas. Deve fazer diagnósticos (identificando os ‘sinais dos tempos’), fazer prevenção (criando um ‘sistema imunológico’, em uma sociedade em que dominam os vírus malignos do medo, do ódio, do populismo e do nacionalismo), e fazer convalescença (ultrapassando os traumas do passado com o perdão)”.

Halík compreende o fechamento das Igrejas como uma oportunidade de provar um futuro que poderia em breve acontecer. E é ao confinamento no vazio (agora forçado por uma emergência sanitária) que a metáfora da Igreja em saída faz-se antítese. Para ele, o “ser Igreja” e “ser Cristão” não é estático, imutável, e a história de Cristo e os apóstolos demonstrara isso.

“Do tesouro da tradição que nos foi confiada, queremos tirar coisas novas e velhas e fazê-las participar de um diálogo com os que buscam, um diálogo no qual possamos e devamos aprender uns com os outros. Devemos aprender a ampliar radicalmente os limites da nossa visão da Igreja. Já não nos basta abrir, magnanimamente, um ‘pátio dos gentios’. O Senhor já bateu à porta a partir ‘de dentro’ e saiu – e cabe a nós buscá-lo e segui-lo. Cristo atravessou a porta que nós havíamos trancado por medo dos outros. Pulou o muro que tínhamos erigido à nossa volta. Abriu um espaço cuja amplitude e profundidade nos dão vertigens”.

Em 21-12-2019, dias antes de o novo coronavírus ser sequenciado e meses antes de a OMS declarar pandemia, Francisco reforçava à Cúria Romana as rápidas transformações de um novo mundo:

“Estamos a viver, não simplesmente uma época de mudanças, mas uma mudança de época. Encontramo-nos, portanto, num daqueles momentos em que as mudanças já não são lineares, mas epocais; constituem opções que transformam rapidamente o modo de viver, de se relacionar, de comunicar e elaborar o pensamento, de comunicar entre as gerações humanas e de compreender e viver a fé e a ciência”

A pandemia colocou o Francisco definitivamente na encruzilhada “do velho que está morrendo e do novo que ainda não nasce”. Relembramos abaixo alguns eventos e algumas análises desse período e o futuro do pontificado.

Leia.

Cristofascismo: uma teologia do poder autoritário

Cristofascismo, uma teologia do poder autoritário: a união entre o bolsonarismo e o maquinário político sociorreligioso. Entrevista especial com Fábio Py – Por Patricia Fachin e João Vitor Santos – IHU: 01.07.2020

O modelo de governança do presidente Bolsonaro é sustentado pelo fundamentalismo religioso, diz o teólogo.

O uso da linguagem cristã, a apropriação do cristianismo e o aceno que o presidente Bolsonaro faz a determinados grupos religiosos, especialmente aos evangélicos e aos católicos conservadores que formam a sua base eleitoral, indicam uma novidade em relação a outros momentos em que chefes de Estado e líderes religiosos estiveram lado a lado. O traço distintivo desta relação é que “o bolsonarismo se constrói a partir e junto às máquinas sociorreligiosas” e o “maquinário político sociorreligioso de Edir Macedo, Silas Malafaia, R. R. Soares e Valdomiro Santiago” está voltado às demandas do bolsonarismo, diz o teólogo Fábio Py à IHU On-Line. A partir dessas relações, o presidente instituiu o que Py vem chamando de “cristofascismo”, uma “forma de governança baseada no fundamentalismo que pratica o ódio aos diferentes”.

Fábio Py é doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio e professor do Programa de Pós-Graduação em Políticas Sociais da Universidade Estadual do Norte Fluminense – UENF. Py é autor de Pandemia cristofascista (São Paulo: Editora Recriar, 2020). O livro online está disponível aqui.

Transcrevo, a seguir, trechos da entrevista.

 

IHU On-Line – Em que consiste a ideia de cristofascismo? Quais as bases teóricas desse conceito e de que forma o cristofascismo tem se manifestado na conjuntura brasileira?

Fábio Py – Li textos da Dorothee Solle pela indicação nas aulas da querida professora Maria Clara Bingemer (PUC-RIO). Quando Bolsonaro começou a falar em “Deus acima de todos”, percebi a linha de discursos de traços autoritários que estavam sendo proferidos por ele. E, com a expressão acima, ele está se apropriando do cristianismo, tal como se teceu na época do nazismo. Inspirei-me nos textos de Dorothee Solle, uma teóloga que escreveu nos anos 1970 e 1980, lembrando como era na época do nazismo, ao descrever os fenômenos neonazistas nos EUA, quando lecionou na Universidade de Columbia, em Nova York. Contudo, ela é uma teóloga mística e não estava tão preocupada com as descrições. As minhas pesquisas estão mais preocupadas em descrever, a partir da Ciência Política, Ciências Sociais e História, a apropriação que Bolsonaro faz da teologia evangélica fundamentalista expressa pelo texto bíblico: “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”. Ora, deve-se lembrar que esse fragmento bíblico é simbólico, pois é o jargão das igrejas protestantes de evangelização no Brasil e nas Américas.

Os evangélicos do sul dos EUA, que são ligados historicamente aos grandes latifúndios e ao racismo e vieram evangelizar o Brasil, usam esse texto há muitos anos. As igrejas batistas e metodistas, chamadas de protestantes tradicionais, também usam esse texto. Assim, quando Bolsonaro faz uso do texto bíblico, ele está dialogando com o setor, sinalizando que está alicerçado num conjunto de práticas e ações políticas do cristianismo ao longo da história do Brasil e do mundo.

Nessa linha, o cristofascismo seria a apropriação de uma teologia fundamentalista pelo governo autoritário, que tem práticas de desprezo pelos pobres, de defesa da família idealizada cristã, de contrariedade em relação às políticas de esquerda e em relação aos setores ditos minoritários. Deve-se ressaltar, novamente, que Bolsonaro está apoiado sobre uma lógica fundamentalista (evangélica) que tem como sua base social e hermenêutica de argumentação a ideia de família.

Há todo um discurso de acoplamento e de relacionamento do governo atual com o fundamentalismo brasileiro. Isto seria o cristofascismo: a partir da plataforma cristã, da linguagem cristã e da forma discursiva cristã, se constrói uma governança dos corpos e das vidas que está baseada desde ações para se instituir um dia de jejum, até disparar elementos cristãos nas redes sociais para recuperar a base social que estava sendo perdida. Então, cristofascismo seria uma forma de governança baseada no fundamentalismo que pratica o ódio aos diferentes, às minorias e aos pobres. É uma guerra cultural. Ou, como Michael Löwy afirma, está se praticando no Brasil uma “guerra dos deuses” contra as demais divindades afro, indígenas e do cristianismo ecumênico, que aceita as outras tradições em diálogo. Então, o cristofascismo seria esta plataforma: uma intensa “teologia do poder autoritário”.

IHU On-Line – Esse conceito se aproxima do conceito tradicional de fascismo de algum modo?

Fábio Py – De forma nenhuma. Quando falo de fascismo, não estou considerando que exista uma etapa fascista, mas, sim, que o fascismo faz parte da sociedade democrática liberal desde a formação das sociedades liberais. Assim, existem territórios onde continuamente, desde a colonização brasileira, se espalham táticas fascistas. Sempre é bom lembrar o que o poeta popular grafou: “todo camburão tem um pouco de navio negreiro”. Assim, nas favelas, o estado de sítio é completado por meio das políticas do Estado que não permitem às pessoas circularem. Seus agentes são os algozes que matam, violentam famílias e encarceram seus filhos.

Então, quando falo de cristofascismo, estou usando a noção de fascismo de Walter Benjamin, de que não se trata de uma etapa, mas de uma estrutura dentro do capitalismo atual. Ao mesmo tempo, estou intuindo a noção de neofascismo de Michael Löwy, quando diz que o neofascismo não é mais representado por uma pessoa, mas por práticas de subordinação ao neoliberalismo na sociedade atual, que constrói uma pauta autoritária, a partir do cristianismo, para poder construir e consolidar uma agenda castradora necropolítica, tal como descreve Achille Mbembe.

Não há somente um cristofascismo no Brasil, mas um cristofascismo do Sul, que está se desenvolvendo agora na Bolívia. Também, não podemos deixar de destacar a operação no governo Trump, nos EUA.

IHU On-Line – Que ameaças o cristofascismo representa à democracia?

Fábio Py – Ele é uma ameaça e percebemos isso ao ver a existência de um grupo chamado 300 do Brasil, que esteve acampado em Brasília, fazendo ameaças à democracia, ameaçando juízes, desembargadores, os ministros do STF, enquanto Bolsonaro tenta desarticular o tempo todo a estrutura do Estado brasileiro. Ele declara guerra, constrói linchamentos públicos aos prefeitos e governadores que não aceitam a sua deliberação de quarentena vertical. Lembre-se de que Bolsonaro foi “treinado” desde sua juventude na ditadura civil-empresarial brasileira, desabrochou seu autoritarismo nos mandatos parlamentares e solidificou o desprezo pela morte dos pobres agora que está na presidência.

Também, estamos assistindo a um aumento drástico de crimes nas roças brasileiras em prol dos latifúndios, com grilagens, assassinatos, queimadas e deliberações contra os índios. Nesse sentido já estamos vivendo uma nova forma de expressão do fascismo brasileiro que se criou a partir da memória da Ditadura Civil-Empresarial-Militar no Brasil de 1964.

O governo Bolsonaro promove violências, racismos e eugenias a partir das grandes estruturas religiosas cristãs: evangélicas e católicas. Além de grupos organizados, como o 300 do Brasil, deve-se destacar os vínculos da família Bolsonaro com setores das milícias do Rio de Janeiro. Há também uma caça aos jornalistas e às expressões das mídias. Não se fala isso, de forma tão direta, nas mídias, mas já estamos vivendo um clima tórrido de formas ditatoriais.

Leia a entrevista completa.

Fonte: IHU – 01.07.2020

Coronavírus: nota dos bispos da Amazônia

COVID-19: 65 bispos de 6 regionais da CNBB pedem atenção especial à região Amazônica

65 bispos e 2 administradores apostólicos de seis regionais (Norte 1, Norte 2, Norte 3, Noroeste, Nordeste 5 e Oeste 2) da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) divulgaram hoje, 4 de maio, a “Nota dos Bispos da Amazônia Brasileira sobre a situação dos povos e da floresta em tempos de pandemia da Covid-19”. No documento, assinado também pelo presidente da Comissão Episcopal Especial para a Amazônia da CNBB, o cardeal Claudio Hummes, os bispos exigem maior atenção dos governos federal e estaduais à região que tem demonstrado dados mais preocupantes quanto ao avanço do coronavírus.

Os bispos apontam que os dados são alarmantes. A região, segundo apontam, possui a menor proporção de hospitais do país, de baixa e alta complexidades (apenasCoronavírus: nota dos bispos da Amazônia Brasileira em 04/05/2020 10%). “Extensas áreas do território amazônico não dispõem de leitos de UTI e apenas poucos municípios atendem aos requisitos mínimos recomendados pela Organização Mundial da Saúde (OMS), em número de leitos e de UTIs por habitante (10 leitos de UTI por 100 mil usuários)”, diz o texto.

O documento alerta ainda para o crescimento de 29,9% de desmatamento, em março deste ano se comparado ao mesmo mês de 2019. “Contribuem para esse crescimento o notório afrouxamento das fiscalizações e o contínuo discurso político do governo federal contra a proteção ambiental e as áreas indígenas protegidas pela Constituição Federal (Art. 231 e 232)”, afirma a Nota.

O arcebispo de Belo Horizonte (MG) e presidente da CNBB, dom Walmor Oliveira de Azevedo se manifestou hoje, 4 de maio, sobre a nota dos bispos da região Amazônica.

“Em profunda comunhão com os bispos da Amazônia – em nota Sobre a Situação dos Povos e da Floresta em Tempos de Pandemia da Covid-19 – , a presidência da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) reitera pedido às autoridades que concentrem esforços no enfrentamento da covid-19, especialmente com políticas públicas destinadas aos mais pobres e vulneráveis.

Surpreende-nos que, enquanto a região amazônica e tantos outros lugares sofrem com o colapso do sistema público de saúde, sejam realizadas manifestações contra a ordem democrática. O caminho deve ser sempre o do diálogo, do entendimento, da união de esforços para debelar essa pandemia.

Os que professam genuína fé em Jesus Cristo devem estar ao lado dos mais pobres, o que significa balizar a própria vida a partir dos parâmetros da solidariedade. Para isso, o exercício do poder não pode se configurar em caminho para autoritarismos, ataques ou manipulações. A política deve ser nobre exercício para servir a sociedade, solidariamente. Prevaleça o compromisso com o bem dos mais pobres, com a solidariedade e com a democracia”.

Confira abaixo a íntegra do documento que também toca em outros pontos como a realidade de indígenas, quilombolas e ribeirinhos e o aumento da violência no campo.

 

NOTA DOS BISPOS DA AMAZÔNIA BRASILEIRA SOBRE A SITUAÇÃO DOS POVOS E DA FLORESTA EM TEMPOS DE PANDEMIA DA COVID-19

“Às operações econômicas que danificam a Amazônia
há que rotulá-las com o nome devido: injustiça e crime”
“É preciso indignar-se”.
(Papa Francisco – Querida Amazônia, 14-15)

Nós bispos da Amazônia, diante do avanço descontrolado da COVID 19 no Brasil, especialmente na Amazônia, manifestamos nossa imensa preocupação e exigimos maior atenção dos governos federal e estaduais à essa enfermidade que cada vez mais se alastra nesta região. Os povos da Amazônia reclamam das autoridades uma atenção especial para que sua vida não seja ainda mais violentada. O índice de letalidade é um dos maiores do país e a sociedade já assiste ao colapso dos sistemas de saúde nas principais cidades, como Manaus e Belém. As estatísticas veiculadas pelos meios de comunicação não correspondem à realidade. A testagem é insuficiente para saber a real expansão do vírus. Muita gente com evidentes sintomas da doença morre em casa sem assistência médica e acesso a um hospital.

Diante deste cenário de pandemia incumbe aos poderes públicos a implementação de estratégias responsáveis de cuidado para com os setores populacionais mais vulneráveis. Os povos indígenas, quilombolas, e outras comunidades tradicionais correm grandes riscos que se estendem também à floresta, dado o papel importante dessas comunidades em sua conservação.

Os dados são alarmantes: a região possui a menor proporção de hospitais do país, de baixa e alta complexidades (apenas 10%). Extensas áreas do território amazônico Nota dos Bispos da Amazônia Brasileira sobre a situação dos povos e da floresta em tempos de pandemia da Covid-19não dispõem de leitos de UTI e apenas poucos municípios atendem aos requisitos mínimos recomendados pela Organização Mundial da Saúde (OMS), em número de leitos e de UTIs por habitante (10 leitos de UTI por 100 mil usuários).

Além dos povos da floresta, as populações urbanas, especialmente nas periferias, estão expostas e têm suas condições de vida ainda mais degradadas pela falta de saneamento básico, moradia digna, alimentação e emprego. São migrantes, refugiados, indígenas urbanos, trabalhadores das indústrias, trabalhadoras domésticas, pessoas que vivem do trabalho informal que clamam pela proteção da saúde. É obrigação do Estado garantir os direitos afirmados na Constituição Federal oferecendo condições mínimas para que possam atravessar este grave momento.

A garimpagem, a mineração e o desmatamento para o monocultivo de soja e a criação de gado para exportação vêm aumentando assustadoramente nos últimos anos. De acordo com o sistema Deter-B, desenvolvido pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), o desmatamento na floresta Amazônica cresceu 29,9% em março de 2020, se comparado ao mesmo mês do ano passado. Contribuem para esse crescimento o notório afrouxamento das fiscalizações e o contínuo discurso político do governo federal contra a proteção ambiental e as áreas indígenas protegidas pela Constituição Federal (Art. 231 e 232). O coronavírus que nos assola agora e a crise socioambiental já fazem vislumbrar uma imensa tragédia humanitária causada por um colapso estrutural. Com a Amazônia cada vez mais arrasada, sucessivas pandemias ainda virão, piores do que esta que vivemos atualmente.

Preocupa-nos imensamente o aumento da violência no Campo, 23% a mais que em 2018. No ano de 2019, segundo dados do “Caderno Conflitos no Campo Brasil 2019”, da Comissão Pastoral da Terra (CPT Nacional), 84% dos assassinatos (27 de 32) e 73% das tentativas de assassinato (22 de 30) aconteceram na Amazônia. Causas do aumento da violência no campo e do desmatamento da floresta amazônica são sem dúvida a extinção, sucateamento, desestruturação financeira e a instrumentalização política de órgãos como o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (IBAMA) e de órgãos de fiscalização e de controle agrícola, ambiental e trabalhista.

Inquieta-nos também a militarização da Conselho Nacional da Amazônia Legal, conforme Decreto nº 10.239, de 11 de fevereiro de 2020, formado somente pelo governo federal, sem a participação dos estados, dos municípios, nem da sociedade civil, e a sua transferência do Ministério do Meio Ambiente para a Vice-Presidência da República.

Nós, bispos da Amazônia brasileira que assinamos esta nota, convocamos a Igreja e toda a Sociedade para exigir medidas urgentes do Governo Federal, do Congresso Nacional, dos Governos Estaduais e das Assembleias Legislativas, a fim de:

Nós, bispos da Amazônia brasileira que assinamos esta nota, convocamos a Igreja e toda a Sociedade para exigir medidas urgentes do Governo Federal, do Congresso Nacional, dos Governos Estaduais e das Assembleias Legislativas, a fim de:

  • Salvar vidas humanas, reconstruir comunidades e relações por meio do fortalecimento de políticas públicas, em especial do Sistema Único de Saúde (SUS);
  • Repudiar discursos que desqualificam e desacreditam a eficácia das estratégias científicas;
  • Adotar medidas restritivas à entrada de pessoas em todos os territórios indígenas, em função do risco de transmissão do novo coronavírus, exceto para os profissionais dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI);
  • Realizar testagem na população indígena para adotar as necessárias medidas de isolamento e evitar a disseminação da COVID-19;
  • Fornecer os equipamentos de proteção individual (EPI) recomendados pela Organização Mundial de Saúde, em quantidade adequada e com instruções de uso e descarte corretos;
  • Proteger os profissionais de saúde que estão atuando nas frentes da saúde dos povos, acompanhando-os também nas suas fragilidades psicológicas e físicas;
  • Garantir a segurança alimentar dos núcleos familiares indígenas, quilombolas, ribeirinhos e demais populações tradicionais da Amazônia;
  • Fortalecer as medidas de fiscalização contra o desmatamento, mineração e garimpo, sobretudo em terras indígenas e tradicionais e áreas de proteção ambiental;
  • Garantir a participação da sociedade civil, movimentos sociais e de representantes das populações tradicionais nos espaços de deliberações políticas;
  • Rejeitar a Medida Provisória 910/2019, que propõe uma nova regularização fundiária no Brasil, pois ela elimina a reforma agrária, a regularização de territórios dos povos originários e tradicionais, favorece a grilagem de terras, o desmatamento e os empreendimentos predatórios, regulariza as ocupações ilegais feitas pelo agronegócio, promove a liquidação de terras públicas da União a preços irrisórios e autoriza a aquisição de terras pelo capital estrangeiro, a exploração especulativa de florestas e incentiva a invasão e devastação de terras indígenas e territórios tradicionais;
  • Rejeitar o PL 191/2020 que regulamenta o Artigo 176,1 e o Artigo 231,3 da Constituição Federal estabelecendo as condições específicas para a realização de pesquisa e lavra dos recursos minerais e hídricos em terras indígenas;
  • Revogar o Decreto nº 10.239/2020, voltando o Conselho Nacional da Amazônia Legal para o Ministério do Meio Ambiente, com a participação de representantes da FUNAI e do IBAMA e de outras organizações da sociedade civil, indígenas ou indigenistas como o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), que atuam na Amazônia;
  • Revogar a Instrução Normativa 09/2020 da FUNAI, que permite que a invasão, exploração e até comercialização em terras indígenas ainda não homologadas.

A Igreja na Amazônia, após um rico processo de escuta para a realização da Assembleia Especial do Sínodo dos Bispos para a Amazônia, está atenta a estes cenários e exige, ecoando os gritos dos Pobres e da Terra, que sejam tomadas medidas urgentes para barrar atividades predatórias e, ao mesmo tempo, investir esforços em alternativas à falida proposta de progresso e desenvolvimento que destroem a Amazônia e atentam contra a vida de seus povos.

Nossa Senhora de Nazaré, Rainha da Amazônia, nos acompanhe e socorra em nosso desejo de servir aos pobres e na defesa intransigente da justiça e da verdade.

Brasília-DF, 04 de maio de 2020.

 

Assinam esta nota:

Cardeal Cláudio Hummes, OFM – Presidente da Comissão Episcopal para a Amazônia

Regional Norte 1
Dom Adolfo Zon Pereira, S.X – Diocese de Alto Solimões
Dom Edmilson Tadeu Canavarros dos Santos, SDB – Arquidiocese de Manaus (Auxiliar)
Dom Edson Tasquetto Damian – Diocese de São Gabriel da Cachoeira
Dom Fernando Barbosa dos Santos, CM – Diocese de Tefé
Dom José Albuquerque Araújo – Arquidiocese de Manaus (Auxiliar)
Dom José Ionilton Lisboa de Araújo, SDV – Prelazia de Itacoatiara
Dom Marcos Marian Piatek, CSSR – Diocese de Coari
Dom Mário Antônio da Silva – Diocese de Roraima
Dom Mário Pasqualloto, PIME – Arquidiocese de Manaus (Auxiliar Emérito)
Dom Leonardo Ulrich Steiner, OFM – Arquidiocese de Manaus
Dom Zenildo Luiz Pereira da Silva, C.SS.R – Prelazia de Borba
Dom Sérgio Eduardo Castriani, CSSp – Arquidiocese de Manaus (Emérito)

Regional Norte 2
Dom Alberto Taveira Corrêa – Arquidiocese de Belém
Dom Alessio Saccardo – Diocese de Ponta de Pedras (Emérito)
Dom Antônio de Assis Ribeiro, SDB – Arquidiocese de Belém (Auxiliar)
Dom Bernardo Johannes Bahlmann, OFM – Diocese de Ôbidos
Dom Carlos Verzeletti – Diocese de Castanhal
Dom Erwin Krautler, CPPS – Diocese do Xingú (Emérito)
Dom Evaristo Pascoal Spengler, OFM – Prelazia do Marajó
Dom Irineu Roman, CSJ – Arquidiocese de Santarém
Dom Jesus Maria Cizaurre Berdonces, OAR – Diocese de Bragança
Dom Jesús María López Mauleón, OAR – Prelazia Alto Xingu /Tucumã
Dom João Muniz Alves, OFM – Diocese do Xingú
Dom José Altevir da Silva, CSSp – Diocese de Cametá
Dom José Azcona Hermoso, OAR – Prelazia do Marajó (Emérito)
Dom José Maria Chaves dos Reis – Diocese de Abaetetuba
Dom Luís Ferrando – Diocese de Bragança (Emérito)
Dom Pedro José Conti – Diocese de Macapá
Dom Teodoro Mendes Tavares, CSSp – Diocese de Ponta de Pedras
Dom Vital Corbellini – Diocese de Marabá
Dom Wilmar Santim, Ocarm – Prelazia de Itaituba

Regional Norte 3
Dom Adriano Ciocca Vasino – Prelazia de São Félix do Araguaia
Dom Dominique Marie Jean Denis You – Diocese de Santíssima Conceição do Araguaia
Dom Giovane Pereira de Melo – Diocese de Tocantinópolis
Dom Pedro Brito Guimarães – Arquidiocese de Palmas
Dom Philip Dickmans – Diocese de Miracema do Tocantins
Dom Romualdo Matias Kujawski – Diocese de Porto Nacional
Dom Wellington de Queiroz Vieira – Diocese de Cristalândia

Regional Noroeste
Dom Benedito Araújo – Diocese de Guajará-Mirim
Dom Flávio Giovenale, SDB – Diocese de Cruzeiro do Sul
Dom Joaquín Pertiñez Fernández, OAR – Diocese de Rio Branco
Dom Meinrad Francisco Merkel, CSSp – Diocese de Humaitá
Dom Mosé João Pontelo, CSSp – Diocese de Cruzeiro do Sul (Emérito)
Dom Roque Paloschi – Arquidiocese de Porto Velho
Dom Santiago Sánchez Sebastián, OAR – Prelazia de Lábrea
Pe. José Celestino dos Santos – Diocese de Ji-paraná (Administrador Diocesano)

Regional Nordeste 5
Dom Armando Martín Gutiérrez, FAM – Diocese de Bacabal
Dom Elio Rama, IMC – Diocese de Pinheiro
Dom Evaldo Carvalho dos Santos, CM – Diocese de Viana
Dom Francisco Lima Soares – Diocese de Carolina
Dom João Kot, OMI – Diocese de Zé Doca
Dom José Belisário da Silva, OFM – Arquidiocese de São Luís do Maranhão
Dom José Valdeci Santos Mendes – Diocese de Brejo
Dom Rubival Cabral Britto, OFMCap – Diocese de Grajaú
Dom Sebastião Bandeira Coêlho – Diocese de Coroatá
Dom Sebastião Lima Duarte – Diocese de Caxias do Maranhão
Dom Vilsom Basso, SCJ – Diocese de Imperatriz
Pe. Nadir Luís Zancheti – Diocese de Balsas (Administrador Diocesano)

Regional Oeste 2
Dom Canísio Klaus – Diocese de Sinop
Dom Derek John Christopher Byrne, SPS – Diocese de Primavera do Leste-Paranatinga
Dom Jacy Diniz Rocha – Diocese de São Luís dos Cárceres
Dom Juventino Kestering – Diocese de Rondonópolis-Guiratinga
Dom Milton Antonio dos Santos, SDB – Arquidiocese de Cuiabá
Dom Neri José Tondello – Diocese de Juína
Dom Protogenes José Luft, SdC – Diocese de Barra do Garças
Dom Vital Chitolina, SCJ – Diocese de Diamantino

Fonte: CNBB – 04/05/2020

A nota foi traduzida para o espanhol, francês, inglês, italiano e tukano. Em pdf, aqui.

Francisco e a pandemia do coronavírus

Desde há semanas que parece o entardecer, parece cair a noite. Densas trevas cobriram as nossas praças, ruas e cidades; apoderaram-se das nossas vidas, enchendo tudo dum silêncio ensurdecedor e um vazio desolador, que paralisa tudo à sua passagem: pressente-se no ar, nota-se nos gestos, dizem-no os olhares. Revemo-nos temerosos e perdidos.

Caiu a maquilhagem dos estereótipos com que mascaramos o nosso «eu» sempre preocupado com a própria imagem; e ficou a descoberto, uma vez mais, aquela (abençoada) pertença comum a que não nos podemos subtrair: a pertença como irmãos.

As nossas vidas são tecidas e sustentadas por pessoas comuns (habitualmente esquecidas), que não aparecem nas manchetes dos jornais e revistas, nem nas grandes passarelas do último espetáculo, mas que hoje estão, sem dúvida, a escrever os acontecimentos decisivos da nossa história: médicos, enfermeiros e enfermeiras, trabalhadores dos supermercados, pessoal da limpeza, curadores, transportadores, forças policiais, voluntários, sacerdotes, religiosas e muitos – mas muitos – outros que compreenderam que ninguém se salva sozinho.

Nos apercebemos de que não podemos continuar estrada cada qual por conta própria, mas só o conseguiremos juntos.

Momento extraordinário de oração em tempo de epidemia presidido pelo Papa Francisco - Adro da Basílica de São Pedro - 27 de março de 2020

Assista ao vídeo.

 

Momento extraordinário de oração em tempo de epidemia

Presidido pelo Papa Francisco

Adro da Basílica de São Pedro – 27 de março de 2020

«Ao entardecer…» (Mc 4, 35): assim começa o Evangelho, que ouvimos. Desde há semanas que parece o entardecer, parece cair a noite. Densas trevas cobriram as nossas praças, ruas e cidades; apoderaram-se das nossas vidas, enchendo tudo dum silêncio ensurdecedor e um vazio desolador, que paralisa tudo à sua passagem: pressente-se no ar, nota-se nos gestos, dizem-no os olhares. Revemo-nos temerosos e perdidos. À semelhança dos discípulos do Evangelho, fomos surpreendidos por uma tempestade inesperada e furibunda. Demo-nos conta de estar no mesmo barco, todos frágeis e desorientados mas ao mesmo tempo importantes e necessários: todos chamados a remar juntos, todos carecidos de mútuo encorajamento. E, neste barco, estamos todos. Tal como os discípulos que, falando a uma só voz, dizem angustiados «vamos perecer» (cf. 4, 38), assim também nós nos apercebemos de que não podemos continuar estrada cada qual por conta própria, mas só o conseguiremos juntos.

Rever-nos nesta narrativa, é fácil; difícil é entender o comportamento de Jesus. Enquanto os discípulos naturalmente se sentem alarmados e desesperados, Ele está na popa, na parte do barco que se afunda primeiro… E que faz? Não obstante a tempestade, dorme tranquilamente, confiado no Pai (é a única vez no Evangelho que vemos Jesus a dormir). Acordam-No; mas, depois de acalmar o vento e as águas, Ele volta-Se para os discípulos em tom de censura: «Porque sois tão medrosos? Ainda não tendes fé?» (4, 40).

Procuremos compreender. Em que consiste esta falta de fé dos discípulos, que se contrapõe à confiança de Jesus? Não é que deixaram de crer N’Ele, pois invocam-No; mas vejamos como O invocam: «Mestre, não Te importas que pereçamos?» (4, 38) Não Te importas: pensam que Jesus Se tenha desinteressado deles, não cuide deles. Entre nós, nas nossas famílias, uma das coisas que mais dói é ouvirmos dizer: «Não te importas de mim». É uma frase que fere e desencadeia turbulência no coração. Terá abalado também Jesus, pois não há ninguém que se importe mais de nós do que Ele. De facto, uma vez invocado, salva os seus discípulos desalentados.

A tempestade desmascara a nossa vulnerabilidade e deixa a descoberto as falsas e supérfluas seguranças com que construímos os nossos programas, os nossos projetos, os nossos hábitos e prioridades. Mostra-nos como deixamos adormecido e abandonado aquilo que nutre, sustenta e dá força à nossa vida e à nossa comunidade. A tempestade põe a descoberto todos os propósitos de «empacotar» e esquecer o que alimentou a alma dos nossos povos; todas as tentativas de anestesiar com hábitos aparentemente «salvadores», incapazes de fazer apelo às nossas raízes e evocar a memória dos nossos idosos, privando-nos assim da imunidade necessária para enfrentar as adversidades.

Com a tempestade, caiu a maquilhagem dos estereótipos com que mascaramos o nosso «eu» sempre preocupado com a própria imagem; e ficou a descoberto, uma vez mais, aquela (abençoada) pertença comum a que não nos podemos subtrair: a pertença como irmãos.

«Porque sois tão medrosos? Ainda não tendes fé?» Nesta tarde, Senhor, a tua Palavra atinge e toca-nos a todos. Neste nosso mundo, que Tu amas mais do que nós, avançamos a toda velocidade, sentindo-nos em tudo fortes e capazes. Na nossa avidez de lucro, deixamo-nos absorver pelas coisas e transtornar pela pressa. Não nos detivemos perante os teus apelos, não despertamos face a guerras e injustiças planetárias, não ouvimos o grito dos pobres e do nosso planeta gravemente enfermo. Avançamos, destemidos, pensando que continuaríamos sempre saudáveis num mundo doente. Agora nós, sentindo-nos em mar agitado, imploramos-Te: «Acorda, Senhor!»

«Porque sois tão medrosos? Ainda não tendes fé?» Senhor, lanças-nos um apelo, um apelo à fé. Esta não é tanto acreditar que Tu existes, como sobretudo vir a Ti e fiar-se de Ti. Nesta Quaresma, ressoa o teu apelo urgente: «Convertei-vos…». «Convertei-Vos a Mim de todo o vosso coração» (Jl 2, 12). Chamas-nos a aproveitar este tempo de prova como um tempo de decisão. Não é o tempo do teu juízo, mas do nosso juízo: o tempo de decidir o que conta e o que passa, de separar o que é necessário daquilo que não o é. É o tempo de reajustar a rota da vida rumo a Ti, Senhor, e aos outros. E podemos ver tantos companheiros de viagem exemplares, que, no medo, reagiram oferecendo a própria vida. É a força operante do Espírito derramada e plasmada em entregas corajosas e generosas. É a vida do Espírito, capaz de resgatar, valorizar e mostrar como as nossas vidas são tecidas e sustentadas por pessoas comuns (habitualmente esquecidas), que não aparecem nas manchetes dos jornais e revistas, nem nas grandes passarelas do último espetáculo, mas que hoje estão, sem dúvida, a escrever os acontecimentos decisivos da nossa história: médicos, enfermeiros e enfermeiras, trabalhadores dos supermercados, pessoal da limpeza, curadores, transportadores, forças policiais, voluntários, sacerdotes, religiosas e muitos – mas muitos – outros que compreenderam que ninguém se salva sozinho. Perante o sofrimento, onde se mede o verdadeiro desenvolvimento dos nossos povos, descobrimos e experimentamos a oração sacerdotal de Jesus: «Que todos sejam um só» (Jo 17, 21). Quantas pessoas dia a dia exercitam a paciência e infundem esperança, tendo a peito não semear pânico, mas corresponsabilidade! Quantos pais, mães, avôs e avós, professores mostram às nossas crianças, com pequenos gestos do dia a dia, como enfrentar e atravessar uma crise, readaptando hábitos, levantando o olhar e estimulando a oração! Quantas pessoas rezam, se imolam e intercedem pelo bem de todos! A oração e o serviço silencioso: são as nossas armas vencedoras.

«Porque sois tão medrosos? Ainda não tendes fé?» O início da fé é reconhecer-se necessitado de salvação. Não somos autossuficientes, sozinhos afundamos: precisamos do Senhor como os antigos navegadores, das estrelas. Convidemos Jesus a subir para o barco da nossa vida. Confiemos-Lhe os nossos medos, para que Ele os vença. Com Ele a bordo, experimentaremos – como os discípulos – que não há naufrágio. Porque esta é a força de Deus: fazer resultar em bem tudo o que nos acontece, mesmo as coisas ruins. Ele serena as nossas tempestades, porque, com Deus, a vida não morre jamais.

O Senhor interpela-nos e, no meio da nossa tempestade, convida-nos a despertar e ativar a solidariedade e a esperança, capazes de dar solidez, apoio e significado a estas horas em que tudo parece naufragar. O Senhor desperta, para acordar e reanimar a nossa fé pascal. Temos uma âncora: na sua cruz, fomos salvos. Temos um leme: na sua cruz, fomos resgatados. Temos uma esperança: na sua cruz, fomos curados e abraçados, para que nada e ninguém nos separe do seu amor redentor. No meio deste isolamento que nos faz padecer a limitação de afetos e encontros e experimentar a falta de tantas coisas, ouçamos mais uma vez o anúncio que nos salva: Ele ressuscitou e vive ao nosso lado. Da sua cruz, o Senhor desafia-nos a encontrar a vida que nos espera, a olhar para aqueles que nos reclamam, a reforçar, reconhecer e incentivar a graça que mora em nós. Não apaguemos a mecha que ainda fumega (cf. Is 42, 3), que nunca adoece, e deixemos que reacenda a esperança.

Abraçar a sua cruz significa encontrar a coragem de abraçar todas as contrariedades da hora atual, abandonando por um momento a nossa ânsia de omnipotência e possessão, para dar espaço à criatividade que só o Espírito é capaz de suscitar. Significa encontrar a coragem de abrir espaços onde todos possam sentir-se chamados e permitir novas formas de hospitalidade, de fraternidade e de solidariedade. Na sua cruz, fomos salvos para acolher a esperança e deixar que seja ela a fortalecer e sustentar todas as medidas e estradas que nos possam ajudar a salvaguardar-nos e a salvaguardar. Abraçar o Senhor, para abraçar a esperança. Aqui está a força da fé, que liberta do medo e dá esperança.

«Porque sois tão medrosos? Ainda não tendes fé?» Queridos irmãos e irmãs, deste lugar que atesta a fé rochosa de Pedro, gostaria nesta tarde de vos confiar a todos ao Senhor, pela intercessão de Nossa Senhora, saúde do seu povo, estrela do mar em tempestade. Desta colunata que abraça Roma e o mundo desça sobre vós, como um abraço consolador, a bênção de Deus. Senhor, abençoa o mundo, dá saúde aos corpos e conforto aos corações! Pedes-nos para não ter medo; a nossa fé, porém, é fraca e sentimo-nos temerosos. Mas Tu, Senhor, não nos deixes à mercê da tempestade. Continua a repetir-nos: «Não tenhais medo!» (Mt 14, 27). E nós, juntamente com Pedro, «confiamos-Te todas as nossas preocupações, porque Tu tens cuidado de nós» (cf. 1 Ped 5, 7).

Diálogo interconvicções

O Diálogo de Interconvicções – Rita Macedo Grassi – IHU: 16 Agosto 2019

O diálogo de interconvicções é fruto de um movimento europeu contemporâneo, que começou com um grupo francês chamado G3i [Groupe de travail Interculturel, International et Interconvictionnel (d’où le nom G3I)], composto por “pessoas de diferentes religiões, convicções e culturas“, com o objetivo de “refletir sobre os problemas da coesão social e da laicidade, numa Europa multicultural e multiconvicções“. (QUELQUEJEU, 2012, p.1*). Além de pessoas que se declaram participantes de diversas tradições religiosas, também inclui ateus, sem-religião, agnósticos, humanistas, etc. Segundo Bernard Quelquejeu, um dos fundadores do movimento:

Muito rapidamente, durante nossos encontros, entendemos que a expressão “diálogo inter-religioso” não nos convinha, pois excluía aqueles de nós que não se reconhecem como pertencentes ou referentes a uma religião estabelecida: começamos a falar sobre nossas respectivas convicções, de grupos de convicções e a nos compreender como praticantes de um “diálogo de interconvicções“. (QUELQUEJEU, 2012, p.2).

De acordo com François Becker, a expressão “interconvicções” também vai mais além do “inter-religioso, porque esses confrontos dizem respeito a pessoas que podem ter convicções muito distantes de qualquer forma de religião, porque podem estar em campos políticos, sociais ou culturais muito diversos“. Ao mesmo tempo, afirma não ser apenas uma “constatação estática” da existência de uma multiplicidade cultural ou de cultos. Descrito como ‘inter’ e não ‘pluri’, consiste em estimular encontros, debates e práticas que permitam às diferentes convicções expressarem-se, através de trocas e de confrontos, tendo como única condição o respeito recíproco dos interlocutores. (François Becker, p. 7). Isso quer dizer que a prática, o exercício dialógico, a própria ação, é uma característica importante desse movimento, que não se satisfaz com o diálogo pelo diálogo, mas consiste em ter um objetivo, um impacto social.

A palavra convicção, no sentido proposto, encontra-se no limite entre uma “‘certeza inabalável[…] e uma concordância ponderada’, ao fim de uma análise ou de um exame atento, firme o suficiente para justificar o engajamento a uma causa, mas sem excluir totalmente qualquer sombra de dúvida ou pelo menos a possibilidade de se questionar“. (QUELQUEJEU, 2012, p. 22). É uma palavra que sugere sempre a possibilidade de mudança, de movimento, o que lhe confere um aspecto muito importante nos contextos de dogmatismos ou de fundamentalismos religiosos, e de radicalização e autoritarismo políticos, que estamos vivenciando atualmente no mundo inteiro. Para James Barnett, “as convicções são mais suscetíveis ao desenvolvimento e à evolução do que as certezas, e a interconvicção é mais inclusiva do que o inter-religioso”. (BARNETT, In: BECKER, p.20)

* QUELQUEJEU, Bernard. Les convictions partagées dans l’espace politique: quelques discernements sémantiques et sociologiques. In: BECKER, François (Org.). Devenir citoyens et citoyennes d’une Europe plurielle. Conseil de l’Europe, Strasbourg, 24 janvier 2012.

 

Diálogo interconvicções. A multiplicidade no pano da vida – IHU On-Line – Edição 546 | 16 Dezembro 2019

Diz o Editorial:

Fiar a vida e juntar os pontos. Devagar, unindo as múltiplas cores e origens dos fios. Ajustar, alinhar e tecer. Eis a multiplicidade do pano da vida, que tanto mais belaDiálogo interconvicções. A multiplicidade no pano da vida - IHU On-Line - Edição 546 | 16 Dezembro 2019 quanto mais plural for a hospitalidade à diferença. Não se trata de impor ou aceitar a convicção alheia, mas de tecer a vida por um respeito e diálogo com a diversidade política, filosófica e religiosa. O Diálogo interconvicções, debate oriundo do campo acadêmico francês nos últimos anos, tem, justamente, no contato com o Outro um campo fértil de relação com o plano real da vida, com vistas à consciência humana sobre as próprias convicções e a necessidade concreta de respeito e convívio com o mundo contemporâneo, pleno de desafios, contradições e possibilidades.

Faustino Teixeira, professor e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora, Minas Gerais – PPCIR-UFJF, discute as teias da vida. “Não basta dizer ‘viva o múltiplo’, é necessário desvendar as malhas desta viva relação que constitui a tessitura do real, em que cada coisa, cada ser, está referenciado ao outro, entrelaçado como um dom”, sugere.

Sergio Costa, professor de Sociologia na Freie Universität Berlin (Universidade Livre de Berlim, Alemanha), retoma o pensamento de Ivan Illich ao propor que “com a convivialidade abre-se a possibilidade de incorporar essa multiplicidade de formas sociais que queremos entender e, com o perdão da redundância, conviver em absoluta liberdade com essas diferentes formas sociais”.

Rita Macedo Grassi, mestre em Ciências da Religião pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC-Minas, debate a emergência do diálogo interconvicções e seu impacto político. “Não se trata de um diálogo que tenha como objetivo encontrar uma harmonia ou a paz entre as convicções”, ressalta.

Carlos Roberto Drawin, doutor em Filosofia e professor aposentado do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UFMG, discute as formas da tolerância e intolerância nas sociedades contemporâneas. “Quando as pessoas se reúnem não em nome de si mesmas e sim da experiência comum do sagrado, elas podem trazer para a vida concreta aquela posição terceira que possibilita reconhecer o outro em nós”, pontua.

Marcelo Camurça, antropólogo, professor colaborador do Departamento de Ciência da Religião na Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF, pensa as dimensões religiosas para além de uma perspectiva pessoal. “Passamos então de uma estrutura de plausibilidade monista e açambarcadora da totalidade da pré-modernidade religiosa a múltiplas estruturas de plausibilidade e experiências de religiosidade em competição entre si, por ‘corações e mentes’”, frisa.

Mauro Lopes, jornalista e editor do site e canal no YouTube Paz e Bem, pensa o caminho de busca da bondade, apesar de seus desafios. “Grande desafio foi o de – não sem custo para mim – abdicar de uma visão de catolicismo que estava impregnada pelos limites da institucionalidade”, pontua.

Também pode ser lida nesta edição a entrevista de Paulo Suess, doutor em Teologia Fundamental, “’Nova Teologia Política’ – Teologia Pública que se intromete nos conflitos concretos e que dá ao grito dos pobres uma memória”, publicada em Notícias do Dia, na página eletrônica do IHU, por ocasião da morte de Johann Baptist Metz, um dos mais importantes teólogos do século XX. E, também, o calendário de eventos do IHU para 2020, uma concisa retrospectiva da revista IHU On-Line em 2019 e o comentário de João Ladeira, sobre o filme O Irlandês, de Martin Scorsese

Francisco: o grande líder global da atualidade

Francisco: o grande líder global da atualidade

Robson Sávio Reis Souza – IHU: 27 de outubro de 2019

“O Papa, apesar de octogenário, é a maior liderança propositiva (com palavras e gestos concretos) da atualidade. Enfrenta uma onda massificadora e obscurantista que, utilizando de pseudodiscursos religiosos clamam por uma ‘recristianização’ do Ocidente a impor uma homogeneização violenta, excludente, geradora de morte”, escreve Robson Sávio Reis Souza, pós-doutor em Direitos Humanos, doutor em Ciências Sociais, coordenador do Núcleo de Estudos Sociopolíticos da PUC Minas, onde também é professor do Departamento de Ciências da Religião, membro da Sociedade Teologia e Ciências da Religião (Soter) e vice-presidente do Conselho Estadual de Direitos Humanos de Minas Gerais.

Eis o artigo.

Você não precisa ser católico e/ou religioso para concordar com o título deste artigo. Mas, certamente, só ratificará essa afirmativa se (1) acompanhar o cenário das disputas reais e simbólicas no plano internacional e (2) se o fizer extrapolando a cobertura da mídia empresarial (totalmente comprometida com o capitalismo rentista, concentrador de riqueza e usurpador das democracias contemporâneas). Afinal, esse despotismo financeiro que governa as economias capitalistas contemporâneas é classificado por Francisco como “uma economia que mata”.

Não obstante a guerra patrocinada contra Francisco em vários fronts, por poderosas corporações internacionais (bancos; agronegócio; indústrias das armas, farmacêutica e do petróleo; think tanks norte-americanos propulsores do ultraliberalismo na América Latina – liderados por megaempresários católicos e protestantes; políticos de extrema-direita e grupos religiosos obscurantistas…), o Papa continua a mobilizar um imenso contingente de líderes e grupos sociais de todas as Nações que se somam no enfrentamento, de variadas formas, da chamada “onda ultraconservadora”.

Remando corajosamente contra a maré, Francisco tem se empenhado em ações estratégicas que já redundam em poderosos focos de enfrentamento ao ultraliberalismo. Abaixo, listamos algumas das iniciativas de Francisco que tem repercutido globalmente e extrapolado o “mundo” católico.

1. Protagonismo dos Movimentos Populares: para contrapor a corrosão da política tradicional e os limites da democracia deliberativa (que sucumbiram à “economia que mata”), o Papa promoveu três encontros internacionais, elegendo como interlocutores privilegiados as lideranças dos movimentos populares.

Francisco percebeu que os chefes dos poderes públicos, de modo geral, estão altamente deslegitimados pelo fato de terem capitulado à lógica do dinheiro e do mercado, afastando-se cada vez mais dos clamores dos pobres, servindo a um “sistema econômico que põe os benefícios acima do homem […], que considera o ser humano como um bem de consumo, que se pode usar e depois jogar fora. Servem a um sistema centrado no ‘deus dinheiro’ a saquear a natureza para manter o ritmo frenético de consumo que lhe é próprio. Um sistema global destrutivo “que impôs a lógica do lucro a todo o custo, sem pensar na exclusão social nem na destruição da natureza”. Assim, Francisco preferiu se aliar aos líderes dos movimentos populares que “expressam a necessidade urgente de revitalizar as nossas democracias tantas vezes desviadas por inúmeros fatores.”[1]

Nos três encontros com os movimentos populares[2], Francisco tocou no ponto central desse sistema político-econômico que produz exclusão e múltiplas formas de violências. As últimas crises econômicas mundiais serviram para aumentar a concentração de riqueza e renda em todo o planeta. Atualmente, vinte e oito grandes grupos financeiros manejam quase dois trilhões de dólares por ano. O balanço desses mega conglomerados financeiros que têm, entre outros, o Goldman Sachs, o JP Morgan Chase, o Bank of America, o Citigroup, o Santander, entre outros, mostra um patrimônio (não produtivo) de cinquenta trilhões de dólares, sendo que o PIB mundial está na casa dos 75 trilhões. Esses conglomerados detêm cerca de 68% do fluxo mundial do capital.[3]

O sistema econômico atual se sobrepõe à política e aos interesses dos povos e das nações e funciona graças à corrupção generalizada: nada menos que 25% do Produto Interno Bruto mundial são remetidos a paraísos fiscais por grandes empresas e instituições financeiras. Estima-se que a cada ano dezoito trilhões de dólares seguem o caminho da sonegação de impostos. No Brasil a estimativa de evasão fiscal entre 2003 e 2012 foi de 220 bilhões de dólares.

A corrupção passou a ser a mola propulsora do capitalismo rentista, especulador e concentrador de renda e riqueza que viceja nos últimos tempos. A concentração de poder em pouquíssimos conglomerados e a fusão ou compra de grandes bancos desencadeados pela crise de 2008 determina o modo de funcionamento de um sistema que precisa corromper governos (agentes públicos) para subsistir.

O elemento profético e simbólico da opção de Francisco pelos movimentos populares é a explicitação da mais dura e contundente crítica ao capitalismo em sua fase atual, marcada pelo rentismo especulativo que promove a mais avassaladora política de acumulação de riqueza e renda da história, a privilegiar pouquíssimos.

Em contraposição a esse sistema global idólatra “que exclui, degrada e mata”, o Papa Francisco propõe uma nova governança global protagonizada pelos movimentos populares: “atrevo-me a dizer que o futuro da humanidade está, em grande medida, nas vossas mãos, na vossa capacidade de vos organizar e promover alternativas na busca diária dos ‘3 T’ (terra, teto e trabalho) e, também, na vossa participação como protagonistas nos grandes processos de mudanças nacionais, regionais e mundiais. Não se acanhem”. [4]

2. A economia de Francisco: noutra grande articulação internacional, o Papa promoverá em Assis, na Itália, de 26 a 28 de março do próximo ano, um encontro mundial para repensar a economia global.

Serão convidados jovens economistas de até 35 anos, empresários e militantes de movimentos comprometidos com mudanças sociais. Segundo Francisco, há que se buscar “uma economia diferente, que faz viver e não matar; inclusiva; que humaniza e não desumaniza; que cuida da Criação e não a depreda. Um evento que nos ajude a estar juntos e nos conhecer, e que nos leve a fazer um ‘pacto’ para mudar a atual economia e dar uma alma à economia do amanhã.”

Para o encontro em Assis, já confirmaram presença: Muhammad Yunus, conhecido como “o banqueiro dos pobres” e Amartya Sen, professor de filosofia e economia em Harvard (EUA) e Cambridge (Reino Unido), ambos agraciados com prêmio nobel. Outros renomados especialistas em desenvolvimento sustentável e economia solidária, como Bruno Frey, suíço; Carlo Petrini, italiano fundador do Slow Food; Kate Raworth, inglesa; Jeffrey Sachs, estadunidense interessado nas causas da pobreza; a indiana Vandana Shiva, diretora do Fórum Internacional sobre Globalização e Stefano Zamagni, italiano estarão presentes no evento.

O objetivo do encontro é promover intercâmbios entre teoria e prática, de modo a elaborar uma proposta alternativa à economia hegemônica que, como afirmado anteriormente, gera exclusão social e enriquecimento nababesco de uns poucos. O Papa confia que esse encontro apontará as linhas gerais de uma nova economia: justa, sustentável e inclusiva.

Em vários países, inclusive aqui no Brasil, grupos de trabalho estão promovendo eventos, fóruns, seminários para discutir uma nova economia, propor novos currículos para Universidades que abordem modelos inclusivos (de economia), mapear e promover experiências de economia solidária, criativa, inclusiva, justa.

Essa iniciativa de Francisco aponta, objetivamente, para a proposição de uma nova engenharia de governança global que contraponha o modelo atual, no qual apenas 1% mais rico é dono de metade da riqueza do mundo e as 100 pessoas mais ricas possuem, juntas, mais do que quatro bilhões dos mais pobres.[5]

3. Um pacto educativo global: noutra frente sociopolítica, Francisco articula um pacto educativo entre as nações. Para tanto, promoverá um encontro no Vaticano, em 14 de maio de 2020.

Estão convidados profissionais que trabalham com a educação de várias partes do mundo. Como explica o Papa, numa mensagem divulgada para lançar esse evento, trata-se de um “encontro para reavivar o compromisso em prol e com as gerações jovens, renovando a paixão por uma educação mais aberta e inclusiva, capaz de escuta paciente, diálogo construtivo e mútua compreensão. Nunca, como agora, houve necessidade de unir esforços numa ampla aliança educativa para formar pessoas maduras, capazes de superar fragmentações e contrastes e reconstruir o tecido das relações em ordem a uma humanidade mais fraterna”.

O Pacto Global pela Educação faz parte dos esforços de Francisco para promover uma ampla discussão sobre os efeitos da tecnologia, do consumismo e da cultura do imediatismo/individualismo na sociedade contemporânea: “O mundo contemporâneo está em transformação contínua, vendo-se agitado por variadas crises. Vivemos uma mudança epocal: uma metamorfose não só cultural, mas também antropológica, que gera novas linguagens e descarta, sem discernimento, os paradigmas recebidos da história. A educação é colocada à prova pela rápida aceleração que prende a existência no turbilhão da velocidade tecnológica e digital, mudando continuamente os pontos de referência. Neste contexto, perde consistência a própria identidade e desintegra-se a estrutura psicológica perante uma mudança incessante”, escreveu o Papa na mensagem.

Francisco propõe três desafios a serem enfrentados pela educação: primeiro, ter a coragem de colocar no centro a pessoa; segundo, a coragem de investir as melhores energias com criatividade e responsabilidade e, finalmente, a coragem de formar pessoas disponíveis para se colocarem ao serviço da comunidade, promovendo uma “cultura do encontro”.[6]

4. Um novo humanismo: as iniciativas acima fazem parte de um conjunto de ações que Francisco tem liderado, globalmente, para enfrentar a xenofobia, a exclusão social, os nacionalismos, populismos e totalitarismos que ressurgem em várias partes do mundo na atualidade.

O Papa sempre enfatiza o tema do trabalho humano como um daqueles direitos sagrados que deve ser preservado em cada pessoa. Frente às concreções práticas de teses neoliberais, que sufocam e oprimem as pessoas em suas experiências profissionais, Francisco clama por um “novo humanismo, que coloque fim ao analfabetismo da compaixão e ao progressivo eclipse da cultura e da noção de bem”.

Num prefácio de uma recente publicação, Francisco reconhece que os movimentos sociais têm a capacidade de uma articulação transnacional e transcultural: aquele “modelo poliédrico” ao qual fez referência em sua exortação apostólica Evangelii Gaudium (nº 2), e que se constitui a partir de um paradigma social baseado na cultura do encontro. Para o Papa, esta pluralidade de movimentos, cujas experiências de luta pela justiça ficam plasmadas no livro, “representam uma grande alternativa social, um grito profundo, um marco, uma esperança de que tudo pode mudar”.

Reafirmando sua convicção de que a humanidade enfrenta atualmente uma transformação de época caracterizada pelo medo, pela xenofobia e pelo racismo, Francisco afirma que os “movimentos populares podem representar uma fonte de energia moral para revitalizar nossas democracias”, numa perspectiva humanista.

De fato, em meio a uma sociedade global ferida por uma economia cada vez mais distante da ética, os movimentos sociais podem exercer a função de um antídoto contra os populismos e a política do espetáculo, já que privilegiam a participação da cidadania, com uma consciência mais positiva sobre o outro. Essa é a consequência da promoção de uma “força do nós”, que se opõe à “cultura do eu”.

Numa carta intitulada “A comunidade humana” (Humana communitas) publicada em 15 de janeiro deste ano, Francisco pede para “restaurar a importância desta paixão de Deus pela criatura humana e o seu mundo”. No nosso tempo, escreve o Papa “a Igreja é chamada a relançar com força o humanismo da vida que irrompe desta paixão de Deus pela criatura humana. O compromisso de entender, promover e defender a vida de todo ser humano é impulsionado por este amor incondicional de Deus”.

5. Sínodo da Amazônia: não obstante a guerra midiática, regada com muito dinheiro dos opositores de Francisco — encabeçada por Steve Bannon[7] e grupos religiosos ultraconservadores –, e a batalha política patrocinada pelo governo do Brasil e por grupos de ultradireita dentro e fora do catolicismo contra o encontro que acontece nesses dias em Roma, as notícias diárias do Sínodo dão conta da configuração de um grande pacto internacional em defesa da Amazônia: dos povos locais (os indígenas e sua cultura) e da biodiversidade.

É simbólico o fato de o Sínodo ter extrapolado o campo eclesial e se tornado, internacionalmente, um foco de discussão sobre o modelo predatório do modelo econômico atual que destrói não somente a natureza, mas as culturas e os povos originários, beneficiando somente aquela ínfima parcela da população opulenta, sustentada pelo modelo da “economia que mata”.

Os resultados do Sínodo certamente transbordarão às ações da Igreja Católica na região pan-amazônica e já sinalizam outro pacto global em defesa da “Casa Comum”[8], como vem pregando Francisco desde sua assunção ao trono papal.

6. Reformas na Igreja: como se não bastassem essas iniciativas que posicionam Francisco como o grande líder mundial contemporâneo, o Papa “que veio do fim do mundo” promove uma árdua empreitada de reforma da Igreja Católica.

Enfrentando com sobriedade e destemor todo o tipo de vicissitudes patrocinadas por setores recalcitrantes do catolicismo (clero e laicato), Francisco denuncia o clericalismo, a opulência de setores herméticos da igreja, as perversões sexuais de parte do clero e os escândalos financeiros que, volta e meia, envolvem parte da Cúria Romana.

Obviamente, o Papa percebe que é preciso uma guinada no modelo de “igreja triunfante” para uma igreja em saída “para as periferias geográficas existenciais”: “prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias seguranças” (EG 49).

“Francisco pensa a Igreja “sal da terra”, “luz do mundo” e “fermento na massa”, muito distinta da Igreja societas perfecta, em conluio com os poderosos, contaminada pelo vírus antievangélico do egoísmo, do autoritarismo e do liturgismo, com o narcisismo que o acompanha, levando-a a se voltar para si mesma, num fechamento que a torna indigna do nome cristão. [9]

7. Relação com outras religiões: ao longo de seu pontificado, em vários eventos no Vaticano e em todas as suas viagens internacionais, Francisco tem se disposto a dialogar fraternalmente com todos os líderes religiosos.

“Desde sua eleição, Francisco já visitou (em 2014) a Turquia (maioria muçulmana), a Albânia (também de maioria muçulmana); a Coreia do Sul (maior religião é a budista, com ¼ da população); a Jordânia (maioria muçulmana); Israel (de maioria judaica) e a Palestina (de maioria muçulmana). Nessa viagem à Terra Santa, Francisco se encontrou com dois grã-rabinos judaicos e com o grã-mufti muçulmano na esplanada das mesquitas em Jerusalém. Em 2015 visitou a Bósnia e Herzegovina (maior parte muçulmana); o Sri Lanka (de maioria budista). No Sri Lanka se encontrou inclusive com representantes das quatro grandes tradições religiosas do país: Budismo, Hinduísmo, Islã e Cristianismo. No ano de 2016, além de ter participado do encontro em Assis, na jornada mundial pela paz, onde se encontrou com representantes de diversos grupos cristãos, mas também representantes do Judaísmo, Islã e Tendai, o Papa Francisco foi ao Azerbaijão, de maioria muçulmana, onde manteve um encontro com estes fiéis na mesquita da capital Baku. No ano de 2017, Francisco foi a Myanmar (maioria budista), Bangladesh (maioria muçulmana) e Egito (também de maioria muçulmana). Nessa viagem ao Egito, o Papa Francisco realizou um pronunciamento que pode ser considerado o seu programa para o diálogo inter-religioso. E, finalmente, no ano de 2019, Francisco já viajou aos Emirados Árabes Unidos, de maioria muçulmana e ao Marrocos, país de quase totalidade muçulmana.

No Marrocos foi emblemática a apresentação musical feita com a presença do Papa Francisco e representantes de diversas tradições religiosas, onde foi apresentada uma peça com uma cantora judia, uma cristã e um cantor muçulmano. Esta lista de viagens é apenas uma pequena amostra tanto da centralidade que o tema do diálogo inter-religioso tem em seu pontificado, como também a forma como tem feito Francisco: ir ao encontro, visitar e dialogar no espaço de tradições religiosas diversas da sua. Nestes encontros, o foco dos pronunciamentos e das preocupações do Papa não tem sido a diferença religiosa, mas a busca do engajamento e ação em conjunto em prol da humanidade e dos problemas que a assolam. Assim, disse o Papa no encontro com os muçulmanos no Egito”.[10]

Num dos encontros mais importantes do seu pontificado, em viagem apostólica aos Emirados Árabes Unidos, de 3 a 5 de fevereiro deste ano, o Papa assinou o “Documento sobre a fraternidade humana em prol da paz mundial e da convivência comum”, juntamente com o Grão Imã da Mesquita de Al-Azhar, no Egito, Sheik Ahmad al-Tayyeb. O acordo foi uma forma de celebrar o gesto de São Francisco de Assis de visitar a região, de maioria islâmica (muçulmana), 800 anos atrás. E a visita de Francisco foi a primeira de um Papa à Península Arábica, berço do islamismo.

O documento diz que Al-Azhar e o Vaticano, muçulmanos e católicos, vão, juntos, lutar contra o extremismo religioso e que nenhuma religião deveria, nunca, incitar violência, ódio ou guerra. A assinatura foi feita diante líderes religiosos de todo o mundo.

Esses breves apontamentos confirmam a liderança inconteste de Francisco no cenário internacional. O Papa, apesar de octogenário, é a maior liderança propositiva (com palavras e gestos concretos) da atualidade. Enfrenta uma onda massificadora e obscurantista que, utilizando de pseudodiscursos religiosos clamam por uma “recristianização” do Ocidente a impor uma homogeneização violenta, excludente, geradora de morte.

Francisco constrói pontes: com gestos e palavras é um líder com ações propositivas; aponta, com coragem, os atores que patrocinam as guerras, o comércio de armas e que lucram com a cultura da morte e do descarte; confronta os líderes xenofóbicos e racistas que querem erguer muros e promover políticas de criminalização dos migrantes, dos refugiados, dos pobres, dos movimentos sociais; aponta os males de uma governança global que, desprezando a democracia de fato, sucumbiu ao capitalismo concentrador de riqueza e renda e gerador da miséria, exclusão e múltiplas formas de violências.

Viva Francisco!

Notas:

[1] SOUZA, R. S. R. A política de Francisco. IN: JÚNIOR, F.de A.; ABDALLA, M.; SOUZA, R. S.R. (orgs). Papa Francisco com os movimentos populares. São Paulo: Paulinas, 2018.

[2] Ocorridos em Roma (2014), na cidade boliviana de Santa Cruz de La Sierra (2015) e novamente em Roma (2016).

[3] Utilizamos dados sobre a concentração de riqueza das seguintes fontes: relatório da Oxfam, de 2017; DOWBOR, Ladislau, El capitalismo cambió las reglas, la politica cambió de lugar, Nueva Sociedad, 2016; CACCIA-BAVA, Silvio, “A corrupção e o impasse político”, texto impresso distribuído no encontro do Movimento Nacional de Fé e Política, realizado em maio 2017, no Rio de Janeiro; Ministério das Relações Exteriores, “Temas orçamentários e administrativos da ONU”.

[4] PAPA FRANCISCO. Discurso do Papa Francisco no II Encontro Mundial dos Movimentos Populares. Coleção Sendas. Volume 4. Edições CNBB, 2015.

[5] “Os 26 mais ricos do mundo concentram a mesma riqueza dos 3,8 bilhões mais pobres”. Disponível aqui. Acesso em 20/10/2019.

[6] Veja a mensagem do Papa sobre o Pacto pela Educação, clicando aqui.

[7] É um dos líderes mundiais dos movimentos de extrema-direita. Segundo o jornal The Guardian, Bannon declarou ao ex-ministro do Interior da Itália, Matteo Salvini, que o Papa Francisco “é o inimigo” e deve ser atacado. O ex-estrategista chefe de Donald Trump e mentor do bolsonarismo aconselhou o ministro do Interior italiano a atacar o Papa Francisco sobre a questão da migração, segundo fontes próximas à extrema direita italiana. “Bannon aconselhou o próprio Salvini que o papa atual é uma espécie de inimigo. Ele sugeriu, com certeza, atacar frontalmente”, disse o jornal inglês The Guardian, citando declaração de um representante da Liga anti-migração da Itália. Fonte aqui. Acesso em 20/10/2019.

[8] Citando o Papa Francisco em sua encíclica “Laudato Si: sobre o cuidado da Casa Comum” (2015): “Nunca maltratamos e ferimos a nossa Casa Comum como nos últimos dois séculos… Essas situações provocam os gemidos da irmã Terra, que se unem aos gemidos dos abandonados do mundo, com um lamento que reclama de nós outro rumo” (n.53).

[9] Vitório, Jaldemir. Igreja em saída: para onde? Disponível aqui. Acesso em 20/10/2019.

[10] Papa Francisco e o Diálogo inter-religioso. Artigo de Frei Volney J. Berkenbrock, disponível aqui. Acesso em 20/10/2019.

 

Fonte: IHU – 27 Outubro 2019

A ortopraxia supera a ortodoxia: Francisco, seis anos depois

O foco de Francisco na mensagem simples do Evangelho é bastante ameaçador para aqueles católicos que confundem teologia com fé. A teologia é o modo como explicamos a fé para nós e para os outros… Francisco está preocupado sobretudo com o modo como vivemos a fé, mais do que como a explicamos. A ortopraxia supera a ortodoxia.

Francisco, seis anos depois: que há de bom, de mau e de misericordioso. Artigo de Thomas Reese – IHU On-Line – 14 Março 2019

Há seis anos, no dia 13 de março, o Colégio dos Cardeais surpreendeu o mundo com a eleição do jesuíta argentino Jorge Bergoglio como papa. Assumindo o nome de Francisco, ele conquistou a admiração e o respeito de católicos e não católicos com sua simplicidade e preocupação com os pobres e marginalizados. A cada ano que passa, porém, as críticas ao papa se tornam mais expressivas, especialmente por parte da direita católica, que pensa que ele está rompendo com o ensino tradicional da Igreja, e da direita política, que não gosta das suas opiniões sobre o aquecimento global, a imigração e a justiça social. Francisco também tem sido incapaz de satisfazer aqueles que dizem que a resposta da hierarquia católica aos abusos sexuais do clero foi inadequada. Eu sou um grande fã de Francisco, em parte porque eu acho que qualquer avaliação dos seus primeiros seis anos como papa mostra que suas conquistas superam as suas falhas.

O comentário é do jesuíta estadunidense Thomas J. Reese, ex-editor-chefe da revista America, dos jesuítas dos Estados Unidos, de 1998 a 2005.

The good, the bad and the merciful: Pope Francis after six years – By  Thomas J. Reese – Religion News Service – March 12, 2019

Six years ago, on March 13, the College of Cardinals surprised the world with the election of the Argentine Jesuit Jorge Bergoglio as pope. Taking the name Francis, he won the admiration and respect of Catholics and non-Catholics alike with his simplicity and concern for the poor and marginalized. With each passing year, however, criticism of the pope has become more vocal, especially from the Catholic right, who think he is breaking with traditional church teaching, and the political right, who don’t like his views on global warming, immigration and social justice. Francis has also been unable to satisfy those who say the Catholic hierarchy’s response to the clergy sex abuse crisis has been inadequate. I am a big fan of Pope Francis, in part because I think that any evaluation of his first six years as pope shows that his accomplishments outweigh his failings.

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