Kippenberg

Religião e formação de classes na antiga Judeia

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Resumo

Este artigo é um resumo do livro Religião e formação de classes na antiga Judeia: estudo sociorreligioso sobre a relação entre tradição e evolução social, de autoria do alemão Hans G. Kippenberg, cuja primeira edição é de 1978. A edição brasileira é de 1988, baseada na segunda edição alemã ampliada de 1982. O livro procura relacionar o conteúdo das tradições religiosas judaicas com a vida social dos judeus. Duas tendências antagônicas, isto é, a de formação de classes sociais e aquela da solidariedade, formam dois complexos divergentes de tradição que fundamentam os conteúdos religiosos dos movimentos judaicos de resistência. O sistema de endividamento das famílias, especialmente camponesas, está na base desta análise. O sistema tributário imposto pelos helênicos e romanos acabou degenerando no crescente empobrecimento e escravização dos pequenos agricultores. O progresso social realizou-se contra as antigas tradições da solidariedade. Enfim, o complexo tradicional rural-sacerdotal, sancionado por Neemias, como resistência à formação de classes perdeu definitivamente sua força.  Como reação, surgem os movimentos messiânicos e as revoltas, principalmente as dos Macabeus em 167-142 a.C.; a guerra de 66-73 d.C.; e a revolta de Bar Kosiba em 132-135 d.C. Foi a tradição religiosa que serviu como elemento crítico face às situações novas criadas pela helenização, fazendo da salvação o direito dos oprimidos.

Abstract

This article is a summary of the book Religion and class formation in ancient Judea: a socio-religious study on the relationship between tradition and social evolution, by the german scholar Hans G. Kippenberg, whose first edition is from 1978. The Brazilian edition is from 1988, based on the second expanded German edition of 1982. The book seeks to relate the content of Jewish religious traditions to the social life of Jews. Two antagonistic tendencies, that is, the formation of social classes and that of solidarity, form two divergent complexes of tradition that underlie the religious content of Jewish resistance movements. The indebtedness system of families, especially peasants, is the basis of this analysis. The tax system imposed by the Hellenics and Romans ended up degenerating into the growing impoverishment and enslavement of small farmers. Social progress has taken place against the ancient traditions of solidarity. Finally, the traditional rural-priestly complex, sanctioned by Nehemiah, as resistance to class formation has definitely lost its strength. As a reaction, messianic movements and revolts arise, mainly those of the Maccabees in 167-142 BC; the 66-73 AD war; and Bar Kosiba’s revolt in 132-135 AD. It was the religious tradition that served as a critical element in the face of new situations created by hellenization, making salvation the right of the oppressed.

 

Vamos falar de um livro e de seu conteúdo. Trata-se de KIPPENBERG, H. G. Religião e formação de classes na antiga Judeia: estudo sociorreligioso sobre a relação entre tradição e evolução social. São Paulo: Paulus, [1988] 1997, 184 p. – ISBN 8505006798.

O livro de Hans G. Kippenberg é o resultado de uma tese de livre-docência apresentada na Faculdade de Filosofia e Sociologia da Universidade Livre de Berlim, Alemanha, em 1975.

Hans G. Kippenberg nasceu na Alemanha em 1939. Estudou Teologia, História das Religiões, Línguas Semíticas e Iranianas nas Universidades de Marburg (1959/60), Tübingen (1960/62), Göttingen (1962/63), Leeds (Reino Unido – 1966) e Berlin (1969-1976). Em 2004 tornou-se Professor de Estudo Comparado das Religiões na Universidade Jacobs, Bremen, Alemanha.

Li, no original alemão, a primeira edição, de 19781. Fiquei entusiasmado com o livro e com o que pude aprender com ele. Notei, porém, que muitos interessados no tema tratado não conseguiam vencer as dificuldades da obra – um denso estudo socioantropológico, com vocabulário bastante técnico e centenas de notas de rodapé – que foi traduzida para o português por João Aníbal G. S. Ferreira em 1988, a partir da segunda edição ampliada, de 1982. Daí a ideia do resumo. Não ignoro, é claro, que os estudos nesta área fizeram avanços consideráveis nos últimos anos, mas creio ser defensável a atualidade – pelo menos da maior parte – deste estudo2.

 

Introdução

O objetivo da obra: relacionar o conteúdo das tradições religiosas judaicas com a vida social dos judeus. O motivo da obra: os movimentos judaicos de resistência contra gregos e romanos tiveram interpretações divergentes por parte dos autores.

Por exemplo: M. Hengel (1961) defende que o movimento zelota de resistência tem, como dominantes, razões religiosas, afirmando, assim, a independência e a prioridade do religioso sobre o político-social, enquanto H. Kreissig (1970) defende que foram as contradições sociais, criadas por condições socioeconômicas, que possibilitaram o processo de resistência contra Roma, sendo os camponeses e sacerdotes das camadas mais baixas os seus motores principais. Percebe-se que Hengel e Kreissig trabalham dentro da dicotomia Religião e Sociedade: para um, são as motivações religiosas que dominam a história; para outro, são as motivações sociais que contam.

Mas, neste meio tempo, avançou a sociologia etnológica em três áreas: etnologia do parentesco, antropologia econômica e antropologia política. Daí o presente livro: ele interpreta a antiga literatura judaica em relação aos conceitos e métodos da etnologia – ou antropologia social. A etnologia tenta reconstruir o tipo de ordem social da Judeia antiga, comparando-o com os de outras sociedades do Antigo Oriente Médio.

Os movimentos judaicos de resistência levantam a seguinte questão: existia uma relação intrínseca entre determinados conteúdos da tradição religiosa e as lutas de resistência, ou a relação era extrínseca ou, até mesmo, casual?

A hipótese do autor é a seguinte: a tradição se uniu com duas tendências antagônicas: a tendência à formação de classes e a tendência à solidariedade, formando, assim, dois complexos divergentes de tradição que fundamentam os conteúdos religiosos dos movimentos judaicos de resistência.

 

1. Solidariedade e formação de classes à luz da etnologia

Falamos acima de três áreas de avanço da sociologia etnológica: etnologia do parentesco, antropologia econômica e antropologia política. Retomando e expandindo:

:: Etnologia de parentesco

L. H. Morgan (1877) diz que há duas formas fundamentais de sociedades primitivas: a “societas”, baseada nas  KIPPENBERG, H. G. Religião e formação de classes na antiga Judeia: estudo sociorreligioso sobre a relação entre tradição e evolução social. São Paulo: Paulus, [1988] 1997, 184 p.relações pessoais e a “civitas”, baseada no território e na propriedade privada. Por detrás desta classificação o que há é o seguinte: a descoberta de que nem todos os sistemas de parentesco eram naturais. Há sistemas onde não são as relações de consanguinidade que mais contam, mas a de parentes mais afastados, por exemplo. Daí Morgan trabalhar o conceito de gens – hoje se prefere “linhagem” – como instituição que organiza socialmente os indivíduos numa sociedade tradicional.

Avançando mais, M. Fortes (1969) chama a atenção para a interação, que regula as relações entre as pessoas, e os títulos legais, atribuídos a grupos e através deles aos indivíduos. São dois aspectos complementares do sistema de parentesco.

Já C. Lévi-Strauss (1969) partiu da exogamia e concluiu que os grupos se relacionam socialmente através da troca de mulheres. E. Leach (1971) refutou a tese de Lévi-Strauss.

:: Antropologia econômica

M. Mauss (1924) afirma que a dádiva, uma forma de trocas livres realizadas pelos grupos numa sociedade arcaica, é o fato social (fait social) completo, é o mais significativo, enquanto que K. Polanyi (1957) designa, como formas de integração, a reciprocidade, a distribuição e a troca. M. D. Sahlins (1968), explicando a reciprocidade, diz que ela é posta em prática gradualmente e que é a forma de circulação das sociedades tribais. E M. Godelier (1973) afirma, por sua vez, que a determinação da função social das diversas formas de circulação tem por base a diferença de valor atribuída aos bens em cada sociedade. Os bens estão ordenados hierarquicamente, em classes diferentes, e somente nelas podem ser trocados.

:: Antropologia política

O conceito de segmentário foi usado por E. Durkheim (1893) para a sua análise da divisão do trabalho. A sociedade segmentária é a sociedade baseada nas relações de parentesco. Já M. Fried (1967) chama as sociedades segmentárias de sociedades niveladoras.

Surge a pergunta: Como interpretar a passagem da sociedade segmentária para a sociedade de classes? Duas soluções são propostas: a primeira vê a passagem como problema (sociedade segmentária) e solução (sociedade de classes), enquanto a segunda vê a passagem como mudança e domínio em estrutura complexa.

Conclui-se que a colaboração entre etnologia e história é fundamental. Especialmente na área do Mediterrâneo, onde o relacionamento de apadrinhamento foi central.

 

2. O sistema judaico de parentesco

Após sintetizar o resultado das pesquisas de J. P. Weinberg (1983) sobre a comunidade pós-exílica, o autor apresenta E. Meyer (1896), o qual afirma que a mishpâhâh (= clã) israelita tem importância social e política e que surge pela ligação de numerosas famílias entre si, sob a ficção de terem os mesmos antepassados e o mesmo sangue. E o que é a mishpâhâh? É um grupo de descendência patrilinear; confere direitos corporativos de propriedade da terra; é unidade de convocação do exército; caracteriza-se pela residência comum – mesmo local – de seus membros; onde o direito de posse é transmitido por herança (nahalâh); é formada de bêt ‘abôt, famílias ampliadas; seus membros têm responsabilidade mútua (levirato, ge’ullâh…); tem regras específicas de casamento (preferência pelo casamento entre primos patrilineares, dote… ); é a responsável pelas festas cultuais e pela memória coletiva e, finalmente, integra uma tribo.

R. Patai (1962) confirma a presença de 6 traços fundamentais da mishpâhâh israelita, só encontráveis em sociedades do Oriente Médio. A família bíblica é: endógama: casa-se com parentes; patrilinear: descendência pai-filho; patriarcal: poder do pai; patrilocal: a mulher vai para a casa do marido; ampliada: reúne os parentes próximos todos no grupo; polígina: o homem tem mais de uma esposa.

A característica básica é o casamento patrilinear entre primos primeiros. É o parentesco agnático (= relacionamento dos varões dentro do parentesco consanguíneo), que aparece na transferência da posse da terra, no levirato e na ge’ullâh (resgate da terra).

A casa e o clã unem-se através da relação agnática de parentesco, implicando reciprocidade e comportamento solidário, como pode ser visto no livro de Rute3.

Conclui-se que a venda da terra (terra classificada como nahalâh, herança, posse) é limitada pela prerrogativa dos agnatos. Acima do princípio de troca está o do parentesco. O levirato é prática importante. A eficácia do resgate e do levirato é fundada na hesedh, que significa a solidariedade, a confirmação de uma relação comunitária. Esta solidariedade, na concepção clânica, reduz-se aos grupos de parentes agnáticos.

Em seguida, o autor trata do resgate de posse familiar na Judeia e na Ática. Através do direito de ge’ullâ (= resgate da terra) eram negociadas na Judeia, legitimamente, as terras. A venda da terra ao parente que tinha o direito de compra podia proteger o proprietário empobrecido de pagar tributos e impostos a estrangeiros. Podia protegê-lo de cair na escravidão por dívida e até mesmo de ser vendido como escravo a estrangeiros. Mas o colocava na dependência do parente mais rico dentro do clã.

Isto nos leva a perceber, por outro lado, que havia dentro das famílias dos mishpâhôt (=clãs), e também entre os mishpâhôt, diferenças consideráveis. E no pós-exílio parece que a família adquiriu importância em relação ao clã e cuidou de seus interesses independentemente do clã. Dentro dos clãs e entre eles havia hierarquia. É como diz G. Borkamm (1959): se antigamente os zeqênîm (anciãos) tinham autoridade graças à posição que ocupavam nas grandes famílias (clãs) e nas tribos, agora ela se baseia na posição especial que sua família possui no meio do povo. O cargo de preposto (= delegado, representante) era ligado à primogenitura, criando desigualdade dentro do clã entre os irmãos mais velhos e os mais novos. O preposto ia morar em Jerusalém e participava da administração. Esta hierarquia tornou-se o fundamento da administração persa, que, pressupondo a desigualdade social no sistema de parentesco judaico, a reforçou.

Em síntese, há três dados fundamentais: a estrutura de parentesco determinava a reprodução das famílias e as relações sociais dentro da família; a estrutura de parentesco unia as famílias em uma hierarquia baseada nas prerrogativas dos irmãos mais velhos sobre os mais novos, mas criava laços de solidariedade entre eles (como no caso da escravidão e da venda da terra); a terra podia ser negociada entre parentes, mas não com estranhos ao círculo de parentesco. Este princípio levou ao acúmulo de terras pelas famílias mais ricas.

 

3. Condições da economia na região montanhosa da Judeia no tempo do domínio persa (539-332 a. C.)

A partir da época persa a família (bêt ‘âb) tornou-se a unidade econômica fundamental, e não mais o clã. Isto ocorreu também na Grécia e na Itália: o óikos, a família, formava a unidade fundamental da economia. A pergunta fundamental aqui é: surgiu algum progresso econômico que ameaçou as relações de parentesco da sociedade judaica?

Vamos olhar a agricultura. A província da Judeia, sob domínio persa4, estava quase que só na região KIPPENBERG, H. G. Religion und Klassenbildung im antiken Judäa: eine religionswissenschaftliche Studie zum Verhältnis von Tradition und gesellschaftlicher Entwicklung. 2. ed., erw. Aufl. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1982montanhosa. Somente no nordeste ela se estendia um pouco pela planície do Jordão. Na região montanhosa, o cultivo dependia das chuvas. Na planície era possível a irrigação e a rentabilidade era maior. As encostas íngremes das montanhas do leste impossibilitavam o aproveitamento da terra, enquanto que a região que descia para a planície costeira era mais favorável, só que a terra é calcária, desenvolvendo-se ali apenas plantas de raízes profundas como a oliveira, a parreira e a figueira.

O cultivo da oliveira era menos trabalhoso do que o do trigo. E podia ser feito em terrenos ruins para o trigo. Só que este cultivo exige riquezas, já que a oliveira só dá lucro dez anos depois de plantada. Os casos da Ática e da Itália nos ensinam que o tipo de aproveitamento da terra (como na Judeia) dependia da existência de uma aristocracia que dispusesse de dinheiro e da possibilidade de troca de derivados da azeitona e da uva pelo trigo. Pelo menos este último fator já existia no tempo de Neemias: Ne 10,32 supõe que o ‘am hâ’ârets vendia, em Jerusalém, além de outras coisas, trigo trazido de outra região. É possível que a produção de trigo da Judeia não fosse suficiente para o consumo. Neste caso, os seus habitantes deveriam produzir derivados de azeitona e de uva e manufaturados para trocar pelo trigo.

Além do agricultor, há, na Judeia, o artesão. A mais antiga profissão em Israel era a de hârâsh, da raiz hrsh, “talhar”. Era o “artífice” que trabalhava com metal, pedra e madeira, podendo ser: lapidador, marceneiro, carpinteiro, pedreiro, ferreiro, serralheiro, armeiro, fundidor. Alguns profissionais – todos? – estavam organizados em clãs, segundo Ne 3,8.31-32; 1Cr 2,55;4,21.23 etc.

Já o comércio era feito por atacado e varejo nas cidades. Por exemplo, os habitantes de Tiro traziam peixes e mercadorias variadas para vendê-las em Jerusalém no sábado (Ne 13,16). Também os habitantes da Judeia faziam isso (Ne 13,15). Entretanto, o comércio internacional é pouco documentado nesta época. Para o início do século VI a.C. existe Ez 27. Esd 3,7 indica que a Judeia exportava para Sídon “víveres, bebidas e óleo”. Enquanto importava ouro, pedras preciosas, madeira de lei e cerâmica grega.

E o dinheiro? Como medida de valor na troca de produtos, já existia muito antes da moeda. No Israel antigo caracterizava-se a riqueza pela posse do gado (Gn 13,2;32,4-6; 1Sm 25,2 etc.). Também a etimologia o confirma: miqne (= posse de gado, bens em gado, rebanho) e miqna (= aquisição, compra). Era usado o ouro – na forma de peças de enfeite – nas transações (Gn 20,16;37,28; Nm 31,50;Js 7,21). Este ouro era pesado segundo o método sumério-babilônico, o shekel (Gn 23,16;Jr 32,9). Também se pesava a prata.

As primeiras moedas citadas no AT são as dracmas persas de ouro, cunhadas após 517 a.C. por Dario I (os dáricos). Uma dracma de ouro pesava 8,4 gramas (Esd 2,69; Ne 7,70-72). Circulavam na Judeia também as moedas de prata de Atenas. E ainda os siclos de prata da Pérsia (5,6 gramas) e as moedas yehud, cunhadas na Judeia. A proporção prata/ouro para troca era: ouro = 1 / prata = 13. Com uma dracma de ouro compravam-se 300 litros de cevada: daí que as moedas de prata eram mais práticas no uso cotidiano graças a seu valor menor.

Por que Dario mandou cunhar moedas? Heródoto nos informa: no tempo de Ciro e de Cambises não havia determinações fixas sobre o tributo devido pelas províncias ao império persa. Dario criou um sistema que permitia calcular receitas e despesas e regularizou os tributos com a criação da moeda.

Porém, os moradores da Judeia não tinham minas de prata. Assim, vendiam seus produtos agrícolas (excedentes ou não) e adquiriam prata (Ne 5,4). Segundo Heródoto, a V satrapia, à qual pertencia a Judeia, pagava à Pérsia 350 talentos de prata por ano. Consequências: os agricultores judeus precisavam diminuir o número de familiares que viviam de renda e produzir bens que dessem mais lucro. Vendiam cevada, derivados da oliveira e da videira e gado. Não havendo grande produção de cevada na Judeia, o que compensava era o cultivo de oliveiras e parreiras. Para vender o excedente dependiam de negociantes estrangeiros.

 

4. Crise agrária, revolta dos camponeses e reforma de Neemias (446-432 a. C.)

Ne 5,1-5 narra um conflito social na Judeia. Há três grupos de queixosos: alguns empenharam seus filhos (escravidão por dívida) para receber alimentos; outros hipotecaram suas terras na época da fome e outros, ainda, por não terem pagado os impostos, tiveram que vender seus filhos como escravos.

Há determinada sequência na formação da dependência: primeiro penhoram-se os filhos (escravidão), depois a terra. A penhora dos filhos é a ‘ârab: o devedor insolvente tem que trabalhar para seu credor até saldar sua dívida. Mas se não for possível esta retribuição direta, ele e sua família podem ser vendidos a um terceiro como escravos por dívida e o credor recebe o seu preço.

Os casos de empobrecimento de um israelita e as respectivas soluções são as seguintes, segundo Lv 25,23-55: ele, o empobrecido, vende seu campo ou sua casa; ele recebe dinheiro ou víveres como empréstimo; ele é vendido a um israelita; ele é vendido a um estrangeiro. Aí aparece o seguinte: a venda do campo ao goel agnático era o primeiro passo que levava um camponês à pobreza. A escravidão do chefe de família vem em segundo lugar. É o contrário de Ne 5.

Examinemos o caso 2 de Ne 5,1-5: o caso daqueles que têm campos, vinhas, casas e oliveiras e que tiveram que empenhá-los durante uma penúria. Trata-se de penhora cujo usufruto foi transferido ao credor. Ou seja: o credor tem direito aos produtos excedentes. Como aparece também em Mq 2,1 (“Ai daqueles que planejam…”) os credores podiam se apropriar com facilidade dos campos e das casas dos outros. Se o camponês que penhora sua produção não produzir o suficiente, acaba na escravidão. A penhora permite ataque direto do credor à propriedade e à família do devedor. E, como nos mostra o papiro 10 de Cowley (papiros de Elefantina, séc. V a.C.) é desproporcional o tamanho da penhora em relação ao empréstimo feito.

A crise do tempo de Neemias, que aparece em Ne 5, pode ter tido vários motivos, como: piora da qualidade da terra; mau tempo que prejudicou a colheita; crescimento do número de familiares; divisão e diminuição das terras por causa da herança; exigências estatais de pagamentos de impostos sobre o terreno, de acordo com seu tamanho, e pior: este imposto tinha que ser pago em moedas. Ora, quem já tivesse hipotecado seus campos e sua produção precisava vender filhos e filhas como escravos.

A terminologia desta formação de classes: ‘ebed = escravo, servo: é o último grau de dependência, é quando uma pessoa torna-se objeto de compra. Há distinção entre escravo estrangeiro (permanente) e escravo israelita, por dívida, que deve ser libertado no sétimo ano (Ex 21,2; Lv 25,39-41; Dt 15,12); sâkîr = operário: é o caso de quem perdeu suas terras e resgatou suas dívidas pelo trabalho; tôshâb = morador: é o estrangeiro domiciliado em Israel com situação jurídica e social específica; ‘ikkâr = lavrador: citado em 7 textos do AT, indica em três deles um camponês dependente do dono da terra: Is 61,5; 2Cr26,10 e Jl 1,11. É possível, por causa da data destes textos, que esta dependência só tenha acontecido no pós-exílio.

Mas, voltemos à crise da época de Neemias, como aparece em Ne 5,6-12. Diz o v. 7: “repreendi os nobres (hôrîm) e os magistrados (seganîm)”. Estes são os credores, dos quais muitos judeus dependiam: são da classe alta, pessoas de posses. Por que a repreensão de Neemias? É que o endividamento tinha como objetivo levar à venda (ao estrangeiro) o judeu empobrecido. É que o comércio de escravos no Mediterrâneo estava em pleno florescimento.

As providências tomadas por Neemias: foi uma anistia, através da renúncia às rendas (pelos credores) das terras hipotecadas, tendo como consequência a exclusão da escravidão do judeu ao estrangeiro. Isto se a lei tiver funcionado. Mas não houve distribuição de terras para os sem-terra.

A queixa dos camponeses era contra três tipos de dependência: serviço para pagar as dívidas; obrigação de pagar juros e tributos e escravidão. A queixa era baseada no conceito de fraternidade/solidariedade judaica, fundamentado na relação de parentesco. Desapropriação e escravidão não são compatíveis com esta ordem jurídica. Os conceitos de ‘âh = irmão, ‘âmît = compatriota e rê’a = amigo não são puramente intelectuais, mas designam os membros de uma sociedade solidária. O cap. 25 do Levítico trata desta questão, da igualdade entre irmãos para todos os judeus, ao falar do sábado e do ano jubilar. Mas para se entender bem este capítulo é preciso considerar a situação de sacerdotes e levitas em Israel no pós-exílio.

O culto e o sacerdócio não tinham propriedades, dependiam do tesouro do Estado (Esd 4,3;5,1-17;6,4-9 etc.). Sacerdotes e levitas viviam da contribuição dos camponeses, estando eles mesmos isentos de contribuição (Esd 7,24). Prestavam serviços em Jerusalém só de tempos em tempos, morando, no mais, em suas cidades e aldeias (Ne 11,20.36; 1Cr 24,1-19). Segundo o Dt os levitas não têm herança, terra, e são juridicamente iguais aos gerîm (estrangeiros residentes): mas esta é a visão dos levitas sobre si mesmos, uma vez que há indícios de que alguns sacerdotes e levitas possuíam terras (Jr 1,1;32,6-15; Am 7,17: estes são da nobreza; Ne 11,20;13,10; Lv 27,21 etc.). Era permitido aos levitas usar os prados comunitários (migrâsh) das cidades (‘îr): Js 14,4; Lv 25,34; Nm 35,1-8; 1Cr 6,39-41.

Lv 25 determina que: se o irmão deve vender seu terreno, então o parente agnático mais próximo deve comprá-lo; se isto não for possível, no 49º ou 50º ano o antigo dono deve receber de volta sua propriedade vendida; se o irmão receber empréstimo em dinheiro ou víveres, não se deve cobrar dele nem juros, nem quantidade maior de víveres; se é vendido a israelita, não deve prestar serviços de escravo, mas deve ser considerado como um tôshâb (estrangeiro residente) ou um diarista. No ano jubilar esta condição de empregado termina e ele deve voltar ao seu clã; se o irmão for vendido a estrangeiros como escravo, deve ser resgatado pelo parente mais próximo. Caso contrário, deve ser libertado no ano jubilar.

Todas as cláusulas tentam evitar a formação de classes. Exige-se a solidariedade na forma de resgate e de ajuda ao vizinho, mas também há duas concepções teológicas específicas: o ritual do ano jubilar e o direito sagrado à terra, pois esta é de Iahweh.

Lv 25,23 liga a ideia de propriedade sagrada da terra à regra da organização do clã israelita: a posse da terra é direito de usufruto e não de propriedade: é uma relação de posse – não uma relação jurídica – baseada na posse concreta da terra; segue-se que a dívida não confere ao credor direito de propriedade, nem da terra nem do homem, mas apenas uso limitado, como pagamento pelo empréstimo; o tempo de uso é de 49 anos; unem-se três normas com o postulado do direito de uso, a saber: a ge’ulla (resgate da terra): o direito preferencial de compra da terra, o direito de resgate das casas e o resgate de israelita que cai na escravidão estrangeira.

É provável que esta casuística jamais tenha funcionado. Mas o importante é: segundo estas formulações, a solidariedade não se baseia mais na relação de parentesco, mas na relação sagrada da propriedade da terra e do homem. Este é o conceito que preside a queixa dos camponeses em Ne 5: um amplo conceito de “irmão” que ultrapassa as normas estritas de parentesco.

A regra do ano jubilar está em contradição com a norma do resgate imediato da terra e do escravo, e do ano sabático: é porque estas regras não funcionam mais que se tem de exigir a regra dos 49 anos. O ano jubilar, primitivamente, devia indicar a nova divisão das terras entre as famílias dos clãs. Se o clã, no pós-exílio, fosse igualitário, não haveria necessidade de leis de devolução da terra. O ano jubilar é sinal de estratificação social, onde uma aristocracia, criada no interior do clã, tende a excluir os mais pobres.

Agora, por que o sentido religioso, dado pelos sacerdotes, à posse da terra, propriedade de Iahweh? Coincidência de interesses dos camponeses e sacerdotes/levitas empobrecidos. A classe sacerdotal sem terras estava interessada no controle público das terras e não na privatização da propriedade da terra. Só assim ela poderia ter certeza das contribuições para o Templo e para os seus agentes. A consequência ideológico-política: instituições camponesas de solidariedade adquiriram fundamento religioso e teológico.

Por outro lado, a Judeia da época de Neemias é também obra dos dominadores persas, que favoreceram a criação de um Estado sacerdotal em oposição a um Estado político como forma de manter o controle da região. Nos documentos de Esdras/Neemias distinguem-se israelitas, sacerdotes e levitas como grupos específicos (Ne 11,9.14.22). Através de uma carta enviada de Elefantina aos judeus de Jerusalém em 410 a.C., sabemos que havia um governador persa, uma comunidade sacerdotal com o seu chefe e uma comunidade aristocrática com o seu chefe.

E aparece determinada ordem social em Ne 10,31-38. Esta ordem se fundamenta na tradição religiosa judaica e reflete a resistência do povo contra os interesses da aristocracia quer desejava se desligar das instituições tradicionais da religião/sociedade judaicas. Em especial, a restrição da penhora (Ne 5); o dízimo para os levitas (Ne 13,10); a proibição de negociar no sábado (Ne 13,15); a proibição do casamento com estrangeiras (Ne 13,23) e o descanso da terra a cada 7 anos. São normas que vão contra os interesses aristocráticos.

A reforma de Neemias favoreceu os camponeses da tribo. Neemias, o governador persa da província, assumiu os ideais dos camponeses devedores. Em nome do poder central baixou normas que protegiam os camponeses nativos, bem como o Templo, contra um capitalismo comercial do tipo das cidades gregas.

 

5. Arrendamento estatal grego e luta dos Macabeus pela liberdade (332-142 a.C.)

A pólis grega não tinha uma burocracia estatal profissional. Quanto às finanças públicas, a pólis arrendava a particulares o recolhimento dos impostos, por tempo limitado. A administração ptolomaica somou este arrendamento à estrutura oriental de controle do Estado sobre o cálculo e a arrecadação dos impostos: as aristocracias orientais participaram, assim, da exploração econômica e tiveram influência no Estado.

Dois decretos de Ptolomeu II Filadelfo, de 261/260 a.C., sobre a administração da província siro-fenícia, mostram que havia em um distrito um ecônomo que controlava as finanças e toda uma hierarquia de funcionários inferiores. Todos os camponeses palestinos pagavam tributo: cada um pagava ao arrendatário de sua aldeia. No fim do século III a.C. José Tobias assumiu o controle sobre a arrecadação tributária da província siro-fenícia. Flávio Josefo diz que ele levou aos judeus a prosperidade. E foi de dois modos: fez diminuir o número de bocas para comer através da escravidão – rendendo assim mais excedentes – e estimulou culturas mais rentáveis – olivais no lugar de cereais5.

A teoria grega do Estado admitia a pólis e o éthnos. Sob Antíoco III, a Judeia é considerada como éthnos (pode ser que o fosse também sob os Ptolomeus). O decreto de Antíoco III, de 198 a.C., é ilustrativo, especialmente porque nos permite ver os primeiros passos da emancipação da aristocracia (a gerousia) da hierocracia. A autonomia étnica trouxe aos aristocratas das cidades novas possibilidades: a lei baseava-se no poder do conquistador, proprietário nominal da terra conquistada, que cedia a quem ele bem quisesse a sua exploração. Isto estava em contradição com a base jurídica da posse e não propriedade da terra, segundo a tradição judaica, pois a terra é de Iahweh. Estava aberto o caminho para a ruptura da aristocracia com a tradição antiga. Esta ordem política foi confirmada pelos selêucidas sucessores de Antíoco III, como o testemunham documentos macabeus e romanos.

Mas, quais são os motivos da luta dos Macabeus pela liberdade?6 O problema do comércio, aos sábados, em Jerusalém, permanecia. E isso era insuportável aos ricos. Aí vem Jasão. Há um texto em Estrabão que foi identificado como um manifesto antiasmoneu originário dos círculos helenizantes. E eles justificam suas atitudes dizendo que as prescrições judaicas tradicionais violam as normas mosaicas. Jerusalém fora fundada por Moisés como pólis e devia se adequar a isso.

A resistência dos Macabeus é contra a intromissão estatal no direito sagrado: os Macabeus são sacerdotes – os revolucionários fazem valer os antigos mandamentos: 1Mc 2,34;2,46 etc.; os seus adversários seguem as ordens do rei: 1Mc 2,19-20;6,21-23 etc. Baseiam-se na antiga solidariedade de descendência contra o domínio político do Estado helenizante.

E os motivos da luta são também econômicos, gerados pelo arrendamento estatal. Quando, em 142 a.C., o rei Demétrio II concedeu aos judeus isenção das contribuições, isto foi festejado como libertação da escravidão e começo de uma nova era (1Mc 13,41-42). É que, com o desaparecimento do arrendamento, a aristocracia não era mais identificada com o Estado, dando aos camponeses uma folga maior em relação aos senhores da terra. A desigualdade permaneceu a mesma, mas os camponeses conseguiram controle sobre o excedente.

Já no ano 152 a.C., Demétrio I fizera uma promessa de isenção, o que nos dá ideia do montante dos tributos. É 1Mc 10,29-31 que narra a isenção dos três tipos de tributos: todo o povo (e não só a gerousia e parte dos sacerdotes, como no decreto de Antíoco III) é libertado dos impostos individuais; é suspenso um tributo que corresponde a um terço da colheita e a metade dos frutos das árvores; é assegurada a isenção dos impostos (= 2,5% sobre a circulação de mercadorias) e do dízimo (= antigo imposto sobre os produtos da terra). Eles agora são receitas do Estado macabeu, recolhidos junto aos judeus.

Concluindo: o sistema de arrendamento estatal grego a aristocratas abastados é que levou, em boa parte, ao conflito. Como direito de conquista da terra, os dominadores exigiam tributos, e os aristocratas os recolhiam dos camponeses e os repassavam, violando as normas étnicas internas do povo judeu. A lógica (grega) deste arrendamento era reduzir o direito de cidadania a pequena faixa aristocrática, mantendo os produtores como simples moradores, objeto de conquista, sem direito de cidadania. E esta lógica estava funcionando, até que, em Jerusalém, uma camada aristocrática forçou a helenização e entrou em choque com o direito sagrado tradicional do povo judeu. Aí veio o conflito com os Macabeus. Que não teve objetivos religiosos. O que se queria era uma reforma da constituição da Judeia.

 

6. Apresentação de sociedades asiáticas em etnografia helenística

O capítulo 6 não foi resumido. Mas, podemos dizer que aqui se procura responder à seguinte questão: qual é a interpretatio graeca das estruturas da sociedade asiática? E a conclusão, após o exame de alguns textos de autores da época7, é que são dois os princípios que determinaram a exposição dos aspectos políticos do judaísmo antigo: as tradições judaicas são formuladas em forma de nómoi (= leis) gregas e a sociedade judaica é apresentada como protótipo da pólis, onde os cidadãos são iguais.

 

7. A evolução de um domínio sem tradições na Judeia e a revolta crescente contra ele (142 a. C.- 135 d. C.)

A ordem política na Judeia após a vitória dos Macabeus nos é transmitida em 1Mc 14,27-47. As instituições que compõem a assembleia deliberativa no tempo de Simão (140 a.C.) são: os sacerdotes, o povo (laós), os arcontes da nação (a gerousia de Jerusalém, que se distingue da aristocracia do país) e os anciãos da terra.

A junção dos poderes de sumo sacerdote (poder religioso), estratego (poder militar) e etnarca (poder político) em uma única pessoa fundamentou novo controle do poder e uniu a motivação religiosa à expansão político-militar.

Contudo o Estado asmoneu não durou por causa dos romanos e por causa de suas divisões internas. Os acordos com Roma eram feitos com o Senado pelo sumo sacerdote e pelo povo judeu (demos). A transformação, por Alexandre Janeu, do sumo sacerdócio em reinado era uma violação das normas judaicas – libertando a máquina estatal dos cidadãos – e causou a oposição da velha aristocracia que exigiu o afastamento do reinado, o que, de fato, os romanos fizeram.

Por que Pompeu interferiu no Oriente?8 Interesses também financeiros: houve revolta, na Ásia, contra oHans G. Kippenberg nasceu em 1939 pagamento de impostos a Roma, recolhidos pelos publicanos (ordo publicanorum) e Pompeu veio restabelecer os interesses dos publicanos. Submeteu Jerusalém e seu território – a Judeia – a tributo, juridicamente, stipendium: era prêmio pela vitória e castigo pela guerra. Entre os anos 63 e 44 a.C., uma sociedade de publicanos, sediada em Sídon, tinha adquirido do Estado romano o direito de recolher, como tributo dos produtores, uma quarto da colheita. Os agricultores firmavam um pacto diretamente com a societas: isto excluía a intermediação da aristocracia local. Tanto a supervisão das colheitas como a troca dos produtos ficava a cargo da Sociedade dos Publicanos. O arrendamento do estipêndio valia por um turno de 5 anos, podendo ser suspenso por Roma.

Como a revolta contra Roma era intensa, especialmente no meio rural, o governador Gabínio (57-55 a.C.) tomou várias medidas de amplas consequências: mandou reconstruir as cidades helenistas; separou, em Jerusalém, o cargo de sumo sacerdote da administração política; separou o santuário da politéia; regulamentou aristocraticamente a constituição; dividiu o povo em cinco partes, ficando cada uma delas submetida a uma cidade dirigida por um sinédrio (Jerusalém, Gadara, Amato, Jericó e Séforis) concedendo a estas cidades, além da justiça local, a função de arrecadação de impostos aduaneiros (portoria); protegia as cidades contra a pressão dos publicanos para atrair a aristocracia local para o seu lado.

O idumeu Antípater era epimeletés, era comandante militar, e não estava, de fato, submetido ao poder executivo do sumo sacerdote. No ano 47 a.C. César o nomeou epítropos (procurador) da Judeia: isto aumentou seu poder militar e seu poder de comando sobre a quota dos impostos. Quando em 44 a. C. terminou o contrato com a sociedade dos publicanos, o arrendamento dos impostos lhe foi entregue totalmente. Já a aplicação da justiça era da competência do Sinédrio de Jerusalém.

A administração dos tributos sob Antípater: a Judeia devia pagar 700 talentos de prata (cada talento = 26 kg; 26 x 700 = 18200 kg!) a Roma. Quando as cidades de Gofna, Emaús, Lida e Tamna não puderam pagar o devido, o magistrado e toda a população foram vendidos como escravos e suas terras e propriedades confiscadas.

A Judeia foi dividida, sob Antípater, em onze toparquias e a aristocracia local (os dynatoí) era quem arrendava o direito de recolher o tributo. Uma toparquia tinha a seguinte organização: ela é controlada por um stratêgós; tem um escrivão dos contratos de compra, dívida e arrendamento, o komogrammateús; e tem o parnas, que vem do grego prónoos, chefe e administrador de escalão inferior; os tribunais judeus (synédrion, boulê) pertenciam à organização política dos subúrbios das toparquias.

Agora, no confronto entre Herodes e Antígono podemos observar que os partidários de Antígono viviam especialmente na Judeia e na Galileia e são relacionados por Flávio Josefo com o “banditismo galileu” que vivia em espeluncas, estava organizado e atacava sobretudo estrangeiros. Este banditismo surgiu da impossibilidade dos camponeses pagarem tributo e queria reconstruir a antiga ordem. Por outro lado, os partidários de Herodes viviam na Samaria, na Idumeia e partes da Galileia e eram membros de uma aristocracia economicamente bem situada, etnicamente indiferente. Havia entre eles ricos latifundiários.

Herodes não tinha legitimidade judaica, pois descendia de idumeus e sua mãe era descendente de árabe. Foi legitimado por um essênio, como uma escolha divina. Assim, Herodes, por ser estrangeiro, não tinha para com os judeus nenhuma relação de reciprocidade e sua legitimidade se fundava na própria estrutura do poder exercido.

Quando venceu os seguidores de Antígono, Herodes construiu uma estrutura de poder independente da tradição judaica: nomeava o sumo sacerdote do Templo; exigia de seus súditos um juramento que obrigava a pessoa a obedecer às suas ordens em oposição às normas patriarcais; interferiu na justiça do Sinédrio; mandava vender os assaltantes (também revolucionários políticos) como escravos no exterior (e sem direito a resgate), fazendo, assim da venda à escravidão e da execução pessoal normas comuns do arrendamento estatal.

Mas, se ele violava assim a tradição, como conseguia legitimidade? A estrutura de poder do Estado sob Herodes era bem diferente da estrutura da época do Asmoneus: o rei era legitimado como pessoa e não por descendência; o poderio não se orientava pela tradição, mas pela aplicação do direito pelo senhor; o direito à terra era transmitido pela distribuição, sendo que o dominador a dava ao usuário – era a assignatio; a base filosófica helenística é que legitima o poder do rei, quando diz que o rei é a “lei viva” (émpsychos nómos), em oposição à lei codificada, ou seja, o rei é a fonte da lei, porque ele é regido pelo nous. O rei é a imagem de Deus que ordena e conserva o cosmos pelo nous: o rei tem função salvadora e, por isso, dá aos seus súditos uma ordem racional, através das normas do Estado. O rei em pessoa é a continuação do seu reino e o salvador de seus súditos; e, finalmente, o poder militar de Herodes se baseava nos mercenários estrangeiros que ficavam em fortalezas, ou em terras (cleruquias) dadas aos mercenários por ele e nas cidades não judaicas por ele fundadas, a cujos cidadãos ele tinha dado como posse o território que as rodeava, com os camponeses dentro.

Quando Arquelau foi deposto, no ano 6 d.C., a Judeia tornou-se província romana, governada por uma procurador (prefeito) que tinha o imperium em suas mãos: poder total de administrador, juiz e defensor.

Duas medidas foram tomadas: a venda dos domínios reais de Arquelau e um recenseamento: as propriedades reais foram declaradas ager publicus e vendidas. Assim os domínios reais do vale de Jezrael (antigamente do sumo sacerdote Hircano) e da Galileia foram vendidos a estranhos, que nada tinham a ver com as tradições judaicas; o recenseamento servia para registrar pessoas e bens, em vista do pagamento do tributum solis et capitis

Explicando: o tributum capitis, cobrado em dinheiro, somava-se aos tributos sobre os produtos da terra e aos impostos indiretos e alfandegários. Pesava muito, por isso, sobre quem não tinha propriedades. Foi este o objeto da pergunta feita a Jesus sobre o “imposto a César”. Era de 1 centésimo na Síria, mas era mais pesado na Judeia, por causa das revoltas (no mínimo 1 denário). Já o tributum solis era cobrado em víveres e dinheiro. Os responsáveis pelo recolhimento destes impostos eram os magistrados das toparquias e os aristocratas locais: este sistema de assegurar dívidas coletivas de impostos pela riqueza dos escolhidos para a magistratura era chamado de leiturgía e era característico da época dos césares.

O direito de nomear o sumo sacerdote e de controlar a guarda das vestes sacerdotais ficou com Herodes de Cálcis e, em seguida, com Agripa II. A jurisdição foi transmitida ao prefeito e este a confiou ao Sinédrio. A pena capital era, entretanto, direito intransferível do prefeito.

Falemos agora das facções revoltosas e de seus motivos. A revolta dos judeus contra Roma tinha três metas: a suspensão do pagamento dos tributos, a suspensão dos sacrifícios pelo povo romano e seu César e, como terceira meta, a ereção da soberania política. A guerra dos anos 66-73 d.C. tinha três centros: o Templo, a Judeia e a Galileia.

Nos conflitos internos entre as várias tendências, observamos que o conflito entre os grupos galileus era caracterizado pela oposição entre princípios aristocráticos e democráticos. O grupo proletário atualizou a tradição judaica do qahal (ekklesía), assembleia, contra a aristocracia que tendia a transformá-la em associação normativa da cidade. “O tradicionalismo radical democrata da população das cidades da Galileia foi provavelmente o meio político que Jesus pressupôs”, afirma H. G. Kippenberg na p. 120. E acrescenta a nota 111, da mesma p. 120: “As parábolas evangélicas, que se referem às situações sociais e políticas da zona rural da Galileia, apresentam um mundo de duas classes: a dos ricos e a dos pobres, a dos latifundiários e a do pequeno e endividado agricultor. Uma camada política, a dos funcionários urbanos (estrategos e arcontes) não tem graduação digna de nota”. Por outro lado, o movimento zelota era formado pelos sacerdotes em Jerusalém (ano 66 d.C.) – o movimento zelota é atestado sob este nome somente no ano 66 d.C., mas é provável que suas origens estejam ligadas à resistência de Judas, o Galileu e do fariseu Sadoc por ocasião do recenseamento de Quirino, no ano 6 d.C. -, enquanto os sicários representavam o movimento rural revolucionário da Judeia, dirigido por Judas, o Galileu, e seus sucessores.

Finalmente, o autor apresenta, no resumo das p. 123-125, 4 teses sobre o cerne do conflito:

. Os judeus relacionaram, e com razão, tributos e escravidão. Dois momentos fundamentais explicitam este processo: em 142 a.C. a suspensão dos tributos selêucidas foi saudada como libertação e em 6 d.C. a imposição de registro dos bens particulares (censo) em vista de impostos foi vista como prelúdio da escravidão aberta.

. Havia um conflito entre a antiga aristocracia, formada pelos antigos moradores, a gerousia e o sinédrio, e a nova aristocracia do dinheiro e do exército, engajada no arrendamento estatal. Os donos tradicionais das terras, a velha aristocracia, tinham interesse em possuir grande número de dependentes para mobilização em caso de conflitos, enquanto a nova aristocracia quer os donativos em víveres e dinheiro, preferindo vender o devedor, em caso de insolvência, a estrangeiros, do que fazê-lo escravo por dívida.

. A tradição religiosa judaica da aliança Iahweh-Israel limitava o crescimento das diferenças sociais e da estratificação de classes. Daí o apelo às normas religiosas serem fundamentais para os grupos de resistência judaica. Normas desativadas pelo sistema jurídico do dominador que foi, pouco a pouco, sendo implantado.

. A guerra contra Roma nos anos 66-73 d.C. não foi da classe baixa contra o latifúndio, pois ela seria impossível sem a participação ativa da aristocracia nativa pertencente ao Sinédrio. Esta aristocracia, que não se beneficiava do arrendamento estatal, tinha bons motivos para participar do levante. Todos lutavam, apesar das diferenças, por uma ordem na qual a tradição religiosa garantisse a legitimidade da ordem social.

 

8. Estabelecimento da antiga relação de classes na Judeia

A conclusão a que se chegou até aqui é a de que, sob o controle romano, a base do domínio não era mais a tradição, mas o direito abstrato. Como aprofundar esta conclusão? Pesquisando a alteração das instituições sociais nesta época romana.

O direito de hipoteca se baseava na regra da penhora (= ‘ârab): o devedor insolvente tem que trabalhar para seu credor (= escravidão por dívida – 6 anos) ou entregar seus bens para pagar a dívida: isto funcionava no tempo de Neemias. Qumran ainda conhece este direito: 1Q22 III 4-6; 11QMelquisedec e 4QOrdb 513.

A literatura rabínica (Mishna Shebî`it 10) e o NT (Mt 5,25-26/Lc 12,58) mostram outra norma: não é mais o credor, mas é o juiz o responsável pela cobrança da dívida contra o devedor. Se o devedor não pode pagar, fica preso até que algum familiar faça o pagamento.

Há também o caso, documentado na literatura rabínica, do prozbol: caso houvesse execução da dívida, as terras do devedor passavam definitivamente para a posse do credor (e não por um tempo determinado como era antigamente na lei israelita). Esta regra está documentada em Murabba’at. “Esta concessão pertence à tradição jurídica greco-romana [prosbolê, em grego] e representa novidade no direito judaico de penhora, novidade esta que possibilitava contratos de dívida entre judeus e estrangeiros” (p. 130). Também o ano de perdão caiu, segundo Mur 18. E os juros aparecem também em Lc 16,6-7 (ver nota a da Bíblia de Jerusalém (2002) a Lc 16,8). E o caso do casamento onde a ketubbâ substituiu o mohar (= dote).

A prisão por dívida fiscal já era conhecida antes da era helenística (Esd 7,26), mas agora há prisão por dívida particular como testemunha a parábola do servo cruel (Mt 18,23-35). O Estado agora protegia os contratos particulares, porque o credor não era mais o pequeno camponês vizinho e parente, dentro do clã, mas o daneistês, o profissional de empréstimos ou o administrador de grandes propriedades. Antigamente, o vizinho credor aceitava como pagamento o trabalho do devedor (= escravidão por dívida); agora, não se aceita mais o trabalho, porque a mão de obra era abundante [consequência do tipo de cultivo e da tomada da terra pelos grandes investidores] e o credor queria era dinheiro ou terras.

A conclusão é que há duas diferenças entre o pré-exílio e a época romana: o empréstimo antes do exílio era assegurado pela mão de obra (= escravidão por dívida); no pós-exílio (épocas persa e grega), o empréstimo era garantido pelo terreno e pela mão de obra; agora (época romana) o empréstimo é garantido pelo fator de produção terra e dinheiro, porque este é o interesse dos credores. Por outro lado, não se emprestavam somente víveres para plantação e consumo (como no pré-exílio), mas emprestava-se dinheiro. E o credor podia declarar a terra do devedor insolvente como sua propriedade particular, para compensar o empréstimo.

“Os dois momentos apontam para uma sociedade na qual terra e trabalho tornaram-se meios abstratos da produção de valores, e na qual também o empréstimo servirá a este fim” (p. 133).

Os contratos de venda encontrados entre os documentos de Murabba’at e os evangelhos (Mt 13,44; Lc 14,18) mostram que a limitação da venda da terra pela prerrogativa agnática não vale mais. Acaba-se também o direito de herança agnática.

Nesta época, na Palestina, havia o pequeno agricultor, o arrendatário (colono) e a oikos (trabalhada por escravos ou operários). Na literatura rabínica há três formas de arrendamento: o sôker, que arrenda a terra por uma quantia de dinheiro; o hôker, que arrenda a terra por uma quantidade de mantimentos e o ‘arîs, que é arrendador parcial.

Mas o que se nota, nesta época, é a decadência do pequeno agricultor, porque o sistema de arrendamento tomou conta. Como as famílias não conseguiam pagar a parte da colheita devida ao Estado, suas terras eram desapropriadas. A economia familiar tradicional era imprópria para a produção de excedentes lucrativos para os novos senhores e a nova ordem econômica. “É na racionalidade desta economia que se funda a razão de os grupos familiares não terem, mais, grande importância no tempo dos romanos” (p. 141).

As parábolas usam, como símbolos, elementos da ordem social da Galileia: Mc 12,1-11; Mt 20,1-15; Mt 25,14-28; Lc 12,57-59. A colheita era tempo de alegria no AT: agora em o NT não o é mais: Mt 25,24; Jo 4,37; Mt 13,30; Jo, 4,36. “A relação trabalho/produto cedeu à mediação que simboliza a situação escatológica: a relação do homem com suas necessidades é transmitida através do poder” ou, ainda, “a interpretação da relação de Deus como não recíproca, recorre ao tipo de senhorio prebendal de terras” (p. 142). Isto é uma consequência teológica (indireta) das relações sociais.

As fontes histórico-sociais da época romana testemunham a submissão dos agricultores livres ao sistema de apropriação do excedente e a perda da força das instituições antigas, que protegiam a sociedade judaica da formação de classes. Mostram como o novo proprietário da terra hipotecada pode dispor livremente dela e que os parentes agnatos perdem seus direitos de herança, enquanto o devedor insolvente vai para a cadeia. Atestam, assim, que o progresso social realizou-se contra as antigas tradições da solidariedade. Enfim, o complexo tradicional rural-sacerdotal, sancionado por Neemias, como resistência à formação de classes, perdeu definitivamente sua força.

 

9. Oposição da religião à política

Neste capítulo o autor vai analisar três metas dos judeus nas suas revoltas contra o domínio helenístico-romano: a dos essênios9, a da revolução de Bar Kosiba e a da libertação dos escravos por dívida.

Segundo o Documento de Damasco, a comunidade essênia rompeu com a ordem social dominante nos séculos II a.C./I d.C. e se organizou internamente segundo princípios alternativos. O princípio constitutivo do grupo de Damasco não era o parentesco, mas a livre união. Importante é que o conteúdo de solidariedade do grupo de parentesco agnático se tornou independente e foi racionalizado em normas éticas, cuja validade fica assegurada através de um pacto.

A relação com os estrangeiros implica em não fazer nenhum negócio com eles: nada lhes deve ser vendido ou deles comprado. As relações comerciais se limitam à troca. O conteúdo das relações sociais com os outros judeus, os de fora do grupo, aparece no Documento como expressão de um mundo que vive de acordo com outra lei. Sua separação dos outros e a sua condenação deles é justificada com o conceito de aliança Iahweh-Israel. “Os conceitos religiosos do Manuscrito de Damasco têm pois seu fundamento não numa orientação para aquilo que vem, mas supõem a condição social de uma sociedade de classes e, contrastando com suas instituições impessoais e assimétricas, insistem nas relações pessoais e recíprocas” (p. 147).

Vamos comparar o Documento de Damasco e Qumran (Regra da Comunidade). Damasco: pressupõe a propriedade privada e subordina a determinadas regras a circulação e consumo dos produtos, se espelhando, provavelmente, nas regras de distribuição da hierocracia, constituindo uma união de chefes de família. Qumran: subordina não só a circulação e o consumo, mas também a produção (no campo e na oficina) às regras da comunidade; segue o modelo corporativo do clã (mishpâhâ); é uma comunidade (yhd) muito complexa na sua organização (há uma hierarquia comandada pelos sacerdotes aaronitas). Em Qumran as relações internas seguem o princípio do dom e da retribuição, o princípio da reciprocidade, enquanto as relações para fora se reduzem à compra e venda.

O autor conclui: o tradicionalismo dos essênios reconstruiu as tradições não como leis (nómoi) político-utópicas, mas com ênfase nos aspectos coletivos da tradição que legitimavam a formação de grupo religioso de concepção corporativa e motivaram a resistência à mudança social. “O interesse dos essênios nas tradições foi determinado tendo como pano e fundo a emancipação da sociedade helenística das tradições coletivistas, e tinha como meta a conservação destas tradições como normas das relações sociais” (p. 150).

G. Scholem (1970) acredita que as ideias apocalípticas dos judeus são em sua essência e origem uma teoria da catástrofe. Eles querem a destruição e a superação da História. O Messias transcende assim as relações sociais e a História. Já M. I. Pereira Queiroz (1968) diz que todo movimento messiânico tem três elementos: coletividade oprimida e descontente; a esperança na chegada de um enviado de Deus que colocará fim ao tempo de sofrimento e a crença em paraíso que é ao mesmo tempo santo e profano.

Por que surgem estes elementos? Quando há reciprocidade de condições socioeconômicas e de sistemas simbólicos político-culturais, nos quais as figuras religiosas tradicionais tomam intensidade messiânica e se tornam motivação de revolta contra o regime dominante.

Por que símbolos tradicionais passam a ser revolucionários? O exame será baseado na revolta de Bar Kosiba. O conceito de liberdade era a meta dos três grandes levantes judaicos (Macabeus em 167-142 a.C.; guerra de 66-73 d.C.; revolta de Bar Kosiba em 132-135 d.C.). Os documentos comprovam o que se entendia por liberdade: autonomia política, exercício da justiça, suspensão dos tributos, cobrança dos impostos pelos próprios judeus e cunhagem de moeda própria.

Ao lado do conceito de liberdade existe o de ge’ulla (= resgate da terra) que deve ser traduzido por “reconstrução” ou “restauração”. Mas quem a realiza? Iahweh é o goel na literatura bíblica. Mas, agora, Bar Kosiba é o restaurador, segundo os documentos da revolta. “Nos documentos de Bar Kosiba, o símbolo religioso foi adaptado ao político e significa libertação do domínio estrangeiro através de revolta organizada” (p. 155). O título de nâsî (= príncipe) é aplicado a Bar Kosiba, indicando que o senhorio do nâsî se legitima pela obediência às tradições. “O senhor não está acima da lei, e nem como pessoa inteligente é fonte de justiça, mas ele se legitima justamente pela harmonia de suas ordens com as tradições” (p. 156).

Outro importante conceito é o da proclamação do ano de libertação (Dt 15,2 etc.). “A importância de derôr (= libertação) não pode, através de construções literárias artificiais, ser desviada do seu sentido coletivo social. Do mesmo modo como observamos no conceito de ge’ulla, também este conceito serviu para criar regras de solidariedade segmentária e exigências normativas, e com isso dar definição prática ao acontecimento do tempo de salvação. Norma segmentária, e não consolo de culto, torna-se paradigma do tempo de salvação” (p. 163).

Em resumo, os três elementos discutidos se devem à resistência contra relações sociais: os essênios têm “como meta realizar relações de fraternidade, reciprocidade e solidariedade. Assim, a nova sociedade nasce contra a sociedade de classes helenístico-romana (…) Os essênios retomam como motivação desta sociedade a ideia de aliança divina com o grupo de parentesco israelita” (p. 165). Já a revolução de Bar Kosiba usa a geu’lla como conceito de mudança revolucionária. “A reconstrução de Israel tem como meta uma reviravolta que renova a união pessoal, assegura a solidariedade dos irmãos e realiza uma ordem econômica coletiva” (p. 166). E, por fim, a instituição da libertação dos escravos por dívida “tornou-se paradigma do tempo de salvação, no qual as relações atuais são medidas e julgadas” (p. 166).

A observação de M. Weber (1920) sobre o judaísmo antigo é interessante: o sofrimento de um povo e não de indivíduos tornou-se o objeto de esperança de salvação religiosa. Foi a tradição religiosa que serviu como elemento crítico face às situações novas criadas pela helenização, fazendo da salvação o direito dos oprimidos.

E o cristianismo primitivo? Este supõe, como Qumran, a crise da organização israelita tradicional da solidariedade, abalada pela entrada da propriedade privada e pela apropriação do excedente. Mas, diferente de Qumran, o cristianismo primitivo não se segregou num resto fiel e nem partiu para uma revolução política. O cristianismo “transferiu para mais tarde a crise da lealdade ao parentesco” (p. 166), diz o autor citando Mt 19,29. “O cristianismo primitivo contradisse ao mesmo tempo conteúdos essenciais da tradição judaica e fez da decisão subjetiva a base da ação”, comenta H. G. Kippenberg, na última frase de seu livro.

> Este artigo foi publicado em Estudos Bíblicos, Petrópolis, n. 120, p. 413-434, 2013

Artigos


1 . Religion und Klassenbildung im antiken Judäa: eine religionswissenschaftliche Studie zum Verhältnis von Tradition und gesellschaftlicher Entwicklung. 2. ed., erw. Aufl. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, [1978] 1982, 186 s. – ISBN 3525553667.

2 . Uma apresentação mais detalhada do livro e de seu conteúdo pode ser conferida em https://airtonjo.com/blog1/2007/07/religiao-e-formacao-de-classes-na-antiga-judeia-01.html. Os autores mencionados no livro terão citados aqui apenas seus nomes, seguidos pelas datas de seus estudos. Para saber mais sobre as obras, deve-se consultar a bibliografia no endereço acima mencionado.

3 . Sobre o livro de Rute, cf. Leitura socioantropológica do livro de Rute.

4 . Cf. A época persa e as conquistas de Alexandre, em https://airtonjo.com/site1/historia-18.htm.

5 . Sobre a administração ptolomaica da Palestina, cf. https://airtonjo.com/site1/historia-23.htm.

6 . Sobre a luta dos Macabeus, cf. https://airtonjo.com/site1/historia-26.htm.

7 . Sobre alguns destes autores, cf. Quem são os Judeus? Falam autores gregos do século IV a.C. ao século I d.C., em https://airtonjo.com/site1/autoresgregos.htm e Quem somos nós? Falam autores judeus do século III ao século I a.C., em https://airtonjo.com/site1/autoresjudeus.htm.

8 . Sobre a interferência de Pompeu, cf. https://airtonjo.com/site1/historia-31.htm.

9 . Cf. Os essênios: a racionalização da solidariedade, em https://airtonjo.com/site1/essenios.htm.

Última atualização: 12.02.2021 – 17h42