O mundo das origens de Israel, segundo Mario Liverani

LIVERANI, M. Para além da Bíblia: História antiga de Israel. São Paulo: Loyola/Paulus, 2008, p. 59-80.

Capítulo 2: A transição (século XII)LIVERANI, M. Para além da Bíblia: História antiga de Israel. São Paulo: Loyola/Paulus, 2008

Anotações de leitura

 

1. Uma crise multifatorial

Liverani começa o capítulo falando resumidamente das pesquisas sobre a ocupação da terra de Canaã e das principais teorias hoje existentes sobre as origens de Israel

Uma apresentação das teorias pode ser conferida em minha “História de Israel” online, no capítulo sobre as origens de Israel.
. a teoria da conquista
. a teoria da instalação pacífica
. a teoria da revolta
. a teoria da evolução pacífica e gradual

Mas, segundo Liverani este é um fenômeno complexo, e talvez uma só teoria não seja suficiente para explicar as origens de Israel. Ele propõe que os especialistas, deixando de contrapor uma a outra, deveriam utilizá-las todas “para compor um quadro multifatorial próprio de um fenômeno histórico complexo” (p. 60).

Há uma grande crise socioeconômica na Idade do Bronze Recente [Bronze Recente=1550-1150 a.C.].

Observo que Eric H. Cline, em 1177 B.C.: The Year Civilization Collapsed. Princeton: Princeton University Press, 2014, faz um ótimo estudo sobre o colapso das grandes civilizações do antigo Oriente Médio no Bronze Recente. Uma apresentação do livro pode ser conferida em 1177 a.C.: o ano em que a civilização entrou em colapso.

Esta crise durou cerca de 3 séculos, de 1500 a 1200 a.C., assim como também cerca de 3 séculos vai durar a construção de uma nova ordem, de 1200 a 900 a.C.

Mas o momento mais agudo da crise foi na primeira metade do século XII (1200-1150 a.C.).

 

2. Fatores climáticos e migrações

Uma severa crise climática na região do Saara fez com que tribos líbias entrassem no vale do rio Nilo à procura de pastagens e água aí pelo fim do século XIII e início do século XII a.C. Os faraós Merneptah e Ramsés III se vangloriam de tê-las combatido.

Também na Anatólia houve uma sequência de anos muito áridos no final do século XIII, com escassas precipitações, provocando uma grave carestia, como atestam textos hititas, ugaríticos, egípcios e a moderna dendrocronologia.

CLINE, E. H. 1177 B.C.: The Year Civilization Collapsed. Princeton: Princeton University Press, 2014A tudo isso se somou a pressão dos “povos do mar”, o fenômeno mais impressionante desta época.

Anoto que sobre os “povos do mar” é preferível consultar Eirc H. Cline, resumidamente, em 1177 a.C.: o ano em que a civilização entrou em colapso.

O resultado: Ugarit, Alashiya (Chipre) e toda uma série de reinos e cidades do Egeu, Anatólia, Síria e Palestina foram destruídos. “Todo o sistema político do Bronze Recente no Mediterrâneo oriental ruiu sob os golpes dos invasores” (p. 63).

E acrescenta Liverani: “Certamente, a crise socioeconômica de longa data, a crise demográfica em curso, a indiferença da população camponesa pela sorte dos palácios reais e as recentes carestias foram outros tantos fatores de fraqueza para o mundo siro-palestino diante dos invasores” (p. 63).

Um dos povos do mar é conhecido através de textos bíblicos: os filisteus, que ocuparam a faixa costeira da Palestina entre o Egito e a Fenícia.

Sobre os filisteus, consultar:
. 1177 a.C.: o ano em que a civilização entrou em colapso
. Os filisteus e a crise da idade do bronze
. DNA indica origem europeia dos filisteus

 

3. A queda do sistema regional

O quadro político da Palestina mudou muito com a queda do sistema regional que era estruturado pelos reinos de Hatti, Egito, Assíria e Babilônia.

O império hitita foi totalmente destruído, o Egito recuou de suas possessões na Ásia, Assíria e Babilônia encolheram.

Depois de séculos, a Palestina se viu livre de controle externo que lhe havia sido imposto pelo Egito a partir do faraó Tutmósis III (1479-1425 a.C.)

 

4. A crise dos palácios

Na Palestina, o sistema dos palácios foi destruído e, com ele, desabam as estruturas administrativas, artesanais e comerciais.Batalha naval dos egípcios contra os povos do mar em imagem de Medinet Habu

Diz Liverani: “Muitos palácios reais e cidades palestinas do Bronze Recente foram destruídos durante as invasões ou depois delas: a relação seria longa. Praticamente todos os sítios arqueológicos pesquisados apresentam um quadro de destruição situado no início do século XII” (p. 68).

Como as destruições não estão “assinadas”, várias hipóteses já foram levantadas para explicar o fenômeno, entre elas: povos do mar, tribos proto-israelitas, intervenções egípcias, guerras locais, revolta de camponeses.

Mas o importante é o quadro de conjunto: “Um quadro de destruição geral da instituição palatina e, portanto, de um tipo de reino baseado na centralidade do palácio” (p. 68). Somente uns poucos núcleos de urbanização ficaram intocados pela crise.

Com a redução do tamanho do núcleo palatino, cidades sobreviventes viram povoados (vilas). “A redução é óbvia: basta tirar de uma cidade do Bronze Recente o palácio real, as habitações dos altos funcionários e da aristocracia militar, as oficinas dos artesãos, os arquivos e as escolas para obter uma grande vila semelhante às outras (p. 69).

 

5. O crescimento do elemento tribal

À destruição do sistema palatino segue-se um processo de sedentarização de tribos pastoris, documentado nos novos assentamentos do Ferro I. “À crise do palácio, com suas relações hierárquicas, serviu de contrapeso a consolidação da tribo, com suas relações de parentesco” (p. 70).

Nos povoados consolidam-se grupos de parentesco estáveis, formando unidades territoriais. É o que chamamos de clã. Grupos vizinhos se unem, formando o que chamamos convencionalmente de tribos. Matrimônios cruzados, necessidades de defesa, relações de trabalho, relações de hospitalidade, por exemplo, fortalecem estes laços.

Liverani observa que todas as relações sociais são apresentadas segundo o modelo genealógico: “O nome da vila é (ou pelo menos é assim interpretado) o do chefe de que todos os habitantes descendem por ramos familiares. E todos os epônimos das vilas serão considerados os filhos ou talvez os netos do epônimo tribal” (p. 70). Um epônimo é um fundador real ou mítico de uma família, clã, tribo, dinastia ou cidade e que lhe dá seu nome.

Mas é um modelo artificial: as vilas e as famílias são aparentadas não porque têm um único antepassado comum, mas porque se tornaram parentes através de matrimônios cruzados.

O fato é que assentamentos agrupados por este sistema de parentesco tomam uma dimensão tal que podem se apresentar como alternativa ao sistema político palatino. Este é um fenômeno documentado também na Síria, não é exclusivo da Palestina.

Portanto, a crise leva a uma nova ordem baseada na solidariedade de parentesco.

 

6. A mudança tecnológica

Esta época é marcada por inovações tecnológicas de grande impacto:
. a fabricação de ferramentas e armas de ferro, material mais resistente e mais fácil de ser obtido do que o bronze
. o alfabeto substitui a escrita cuneiforme e torna a escrita mais acessível a um grupo maior de usuários
. a domesticação do camelo e do dromedário e seu uso como animal de carga amplia o comércio
. o uso do cavalo como montaria muda as táticas de guerra
. a navegação em alto-mar é aprimorada
. a agricultura em região montanhosa se torna possível com a construção de terraços que evitam a erosão dos terrenos
. a água é recolhida e guardada em cisternas impermeabilizadas

Escavações no cemitério filisteu de AscalonLiverani, entretanto, nos alerta de que “esse conjunto de inovações não se desenvolveu de repente nem ao mesmo tempo: algumas técnicas foram se firmando progressivamente no tempo (ferro, alfabeto), outras eram recorrentes no tempo (socalcos, cisternas), outras ocorreram mais tarde (sistemas hídricos montanhosos) (…), mas todas juntas caracterizam o período do Ferro em relação ao período do Bronze e devem ser levadas em consideração para compreender a diferente ordem territorial e a diferente cultura material” (p. 78).

O resultado, como notado mais à frente, nas p. 81-82 desta mesma obra, é o crescimento do número de assentamentos nas montanhas, que saltam de 29 sítios no Bronze Recente para 254 no Ferro I na Cisjordânia e de 32 para 218 na Transjordânia.

 

7. Horizontes ampliados

Ocorre a ampliação e a homogeneização no uso do território. Diz Liverani: “Na Palestina foi se configurando uma nova ocupação territorial que se estendeu aos planaltos e às estepes semiáridas, bem diferente da ocupação do Bronze Recente, toda concentrada somente nas áreas facilmente utilizáveis para a agricultura” (p. 78).

Quanto aos assentamentos: cidades menores, povoados (vilas) em crescimento.

Assim a Palestina se vê no centro de uma rede de vias e trocas comerciais de longa distância, tanto na costa mediterrânea como na Transjordânia.

Entretanto a região montanhosa fica à margem deste processo, pois é rodeada, mas não cruzada, pela principais vias por onde circulam as mercadorias.

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