Seleção de postagens dos biblioblogs em setembro de 2024.
Biblical Studies Carnival #220 (September 2024)
Trabalho feito por Ben em seu blog The Amateur Exegete.
Blog sobre estudos acadêmicos da Bíblia
Seleção de postagens dos biblioblogs em setembro de 2024.
Biblical Studies Carnival #220 (September 2024)
Trabalho feito por Ben em seu blog The Amateur Exegete.
Publiquei no post anterior um capítulo de GRABBE, L. L. (ed.) Good Kings and Bad Kings: The Kingdom of Judah in the Seventh Century BCE. London: T&T Clark, 2005, 384 p. – ISBN 9780567082725.
Este livro é resultado do sétimo encontro do Seminário Europeu de Metodologia Histórica, ocorrido em 2002. Este encontro tratou do reino de Judá do século VII a.C., e, em especial, do reinado de Josias. Coloco aqui o sumário do volume e uma lista dos colaboradores.
Parte I: Introdução
Lester L. Grabbe – Introdução
Parte II: Artigos
Rainer Albertz – Por que uma reforma como a de Josias deve ter acontecido
Ehud Ben Zvi – Josias e os livros proféticos: algumas observações
Philip R. Davies – Josias e o livro da lei
Lester L. Grabbe – O reino de Judá da invasão de Senaquerib à queda de Jerusalém: se nós tivéssemos apenas a Bíblia…
Christof Hardmeier – O rei Josias no clímax da história deuteronômica (2 Rs 22-23) e o documento pré-deuteronômico de uma reforma de culto no local de residência (23,4-15): crítica de fontes, reconstrução de pré-estágios literários e a teologia da história em 2 Reis 22-23
Ernst Axel Knauf – Os gloriosos dias de Manassés
Nadav Na’aman – Josias e o reino de Judá
Francesca Stavrakopoulou – Manassés na lista negra
Marvin A. Sweeney – O rei Manassés de Judá e o problema da teodiceia na História Deuteronomista
Christoph Uehlinger – Houve uma reforma do culto sob o rei Josias? O caso de um mínimo bem fundado
David A. Warburton – A importância da arqueologia do século sétimo
Part III: Conclusões
Lester L. Grabbe – Reflexões sobre a discussão
Onde estavam os colaboradores em 2005? Nos links há informações atualizadas sobre eles.
Rainer Albertz, Professor de Antigo Testamento na Westfilische Wilhelms-Universitat in Miinster, Alemanha.
Ehud Ben Zvi, Professor de História e Estudos Religiosos na Universidade de Alberta, Canadá.
Philip R. Davies, Professor de Estudos Bíblicos na Universidade de Sheffield, Reino Unido.
Lester L. Grabbe, Professor de Bíblia Hebraica e Judaísmo Primitivo na Universidade de Hull, Reino Unido.
Christof Hardmeier, Professor de Antigo Testamento na Universidade de Greifswald, Alemanha.
Ernst Axel Knauf, Professor de Bíblia Hebraica e Arqueologia Bíblica na Universidade de Berna, Suíça.
Nadav Na’aman, Professor de História Bíblica no Departamento de História Judaica na Universidade de Tel Aviv, Israel.
Francesca Stavrakopoulou, Bolsista de Teologia na Universidade de Oxford, Reino Unido.
Marvin A. Sweeney, Professor de Bíblia Hebraica na Escola Claremont de Teologia e Professor de Religião na Claremont Graduate University, Estados Unidos.
Christoph Uehlinger, Professor de História das Religiões na Universidade de Zurique, Suíça.
David A. Warburton, Pesquisador Bolsista na Universidade de Aarhus, Dinamarca.
A verdadeira reforma, de fato, ocorreu quase dois séculos depois de Josias. Mas, como frequentemente acontece, a história foi reescrita para dar a essa reforma a autenticação necessária. O século V a.C. fornece um contexto plausível tanto para a “descoberta” do livro do Deuteronômio quanto para a história da reforma de Josias.
Esta é a proposta de Philip R. Davies, da Universidade de Sheffield, Reino Unido, no texto “Josias e o Livro da Lei” que pode ser lido a seguir.
O texto é: DAVIES, P. R. Josiah and the Law Book. In: GRABBE, L. L. (ed.) Good Kings and Bad Kings: The Kingdom of Judah in the Seventh Century BCE. London: T&T Clark, 2005, p. 65-77. Este livro é resultado do sétimo encontro, ocorrido em 2002, do Seminário Europeu de Metodologia Histórica.
Observo que neste mesmo volume, nas páginas 27-46, Rainer Albertz, da Westfälische Wilhelms-Universität de Münster, Alemanha, se contrapõe a Philip R. Davies com o texto “Why a Reform Like Josiah’s Must Have Happened” [Por que uma reforma como a de Josias deve ter acontecido].
Ele diz, no final de seu texto: “Philip Davies deve ser elogiado por não apenas negar a reforma josiânica e deslocar o livro de Deuteronômio para um período posterior, mas também por tentar dar razões para uma datação no século V a.C. Mas, na minha opinião, a evidência dada por ele é bem menos convincente do que a da hipótese tradicional” [da existência de uma reforma de Josias no século VII a.C.].
As ambições de Josias
As várias questões históricas em torno de Josias foram muito bem abordadas em outras partes deste volume, e minha própria contribuição é concebida amplamente como metodológica, na qual me envolverei com dois dos meus colegas no Seminário [Nadav Na’aman e Rainer Albertz].
Meu ponto de partida é o estudo de Nadav Na’aman sobre a política do reino de Judá sob Josias (Na’aman 1992), que oferece uma crítica muito boa da pesquisa sobre o reinado de Josias, resumida como segue.
A primeira parte do estudo de Na’aman argumenta que as listas de cidades de Judá e Benjamim em Josué 15 e 18 refletem, apesar de algum aprimoramento editorial, a situação em Judá no século VII a.C.
A segunda parte lida com a cronologia do declínio do poder assírio, muitas vezes pensado como tendo ocorrido repentinamente na parte inicial do reinado de Josias, levando a uma política de expansão judaica sobre o território adjacente. Na’aman mostra que esse cenário proposto é improvável. Pelo contrário, os assírios parecem ter cedido o controle sobre a Palestina de uma forma mais ou menos ordenada ao Egito, de modo que o rei judaíta teve pouca ou nenhuma oportunidade para o exercício da independência política. Em suma, não havia vácuo de poder.
Em conexão com a morte de Josias, Na’aman argumenta que Necao II marchou pela Palestina (em vez de levar seu exército para um porto fenício, o procedimento mais usual) não para lutar contra a Babilônia, mas para receber o juramento de lealdade dos reis locais que precisava ser renovado na ascensão de um novo faraó soberano. Observando que nada é dito em 2 Reis sobre uma batalha do faraó contra Josias, Na’aman deduz que Josias não morreu em batalha, mas por assassinato ou execução por algum motivo, possivelmente uma suspeita de deslealdade por parte de Necao II. Assim, a visita de Josias a Meguido pode ter sido em resposta a uma convocação para jurar lealdade pessoalmente diante do novo faraó.
O que pode ter provocado a execução de Josias? Embora Na’aman admita que o controle efetivo da Palestina passou para o Egito à medida que o poder assírio declinava, Josias pode, no entanto, ter desfrutado (ou sentido que tinha) alguma liberdade para unificar e cristalizar (1992: 41) seu reino, enquanto os esforços dos egípcios estavam, como de costume, concentrados nos distritos costeiros e nos vales. Apenas uma expansão limitada de fronteiras, no entanto, poderia ter sido sequer contemplada, muito menos alcançada; nenhum grande projeto para ganhos territoriais extensos.
Esta reconstrução dá sentido a uma morte que, de outra forma, como Miller e Hayes (1986: 402) observam, permanece um mistério. Enquanto 2 Reis 23,29 possivelmente sugere confronto militar, o confronto militar não é explicitamente mencionado. O relato da morte de Josias é vago, até mesmo misterioso e talvez isto seja deliberado. De qualquer forma, a sugestão de uma derrota militar permite que 2 Crônicas 35,20-24 mostre o rei piedoso morrendo de ferimentos de batalha em Jerusalém, por sua vez encorajando a maioria dos estudiosos modernos a concluir que Josias foi para a batalha, embora os deixe confusos sobre os motivos de tal empreendimento suicida.
Mesmo que Na’aman não esteja correto sobre a maneira como Josias morreu, sua análise da situação política é bem fundamentada nas evidências. A expansão frequentemente afirmada de Judá sob Josias não ocorreu, e não poderia ocorrer. Declarações tais como “Ele [Josias] tentou restaurar o reino ou império de Davi em todos os detalhes” (Cross 1973: 283 ) Na’aman descarta como construídas sobre falsos fundamentos: não há, ele diz (1992: 44), fundamentos para a suposição de que Josias tentou conquistar todo o norte e impor suas reformas em todo o território da Palestina, uma conclusão já antecipada por alguns historiadores anteriores.
Permanece, no entanto, alguma evidência epigráfica aparente em contrário nas cartas de Arad e Mesad Hashavyahu. Os óstraca de Arad 1-18, datados do reinado de Josias ou seu sucessor, pertencem a uma coleção enviada a Eliashib, um comandante militar, e a maioria dá instruções para o fornecimento de tropas. No entanto, essas instruções não são necessariamente evidências do ressurgimento militar judaíta ou da refortificação judaíta de Arad. Sob a jurisdição egípcia, Josias teria tido permissão, ou foi obrigado, a assumir a responsabilidade de fornecer guarnições e trabalhadores agrícolas em áreas adjacentes, seguindo a prática refletida muito antes na correspondência de Tel el-Amarna. A evidência desses óstraca é inteiramente consistente com a prática egípcia conhecida durante seus períodos de governo sobre a Palestina e não contradiz a reconstrução de Na’aman.
A conclusão dos argumentos de Na’aman é que “a imagem do reinado de Josias, como refletida nesta discussão, está muito distante da descrição daqueles anos como refletida no livro dos Reis, e não menos distante do esboço de seu período apresentado na historiografia moderna”( Na’aman 1992: 55 ).
Isso aponta para um estado de coisas não desconhecido. Um retrato bíblico enganoso ainda mais distorcido pelas especulações da pesquisa bíblica, neste caso, a tese de um período áureo de reconstrução josiânica. Esse retrato tem que ser redesenhado — mas não apenas em relação à ambição ou realização territorial, mas também para outros aspectos de seu reinado. A apresentação de Josias em 2 Reis é, então, enganosa, e estudiosos modernos frequentemente têm ampliado a distorção (…)
A reforma de Josias
Agora, desejo pegar o bastão de Na’aman e correr um pouco mais com ele. O relato da reforma de Josias também pertence à idealização evidente em relação à sua ambição territorial? Na pesquisa moderna, a política assumida por Josias de expandir um Judá recém independente para um território anteriormente do reino de Israel é fundada, afinal, no relato de sua reforma religiosa. Ou, ao contrário, a reforma é comumente explicada como parte de suas medidas para sinalizar ou consolidar sua independência política.
Mas se essa independência nunca poderia ter sido alcançada, admitindo apenas, na melhor das hipóteses, uma modesta aquisição de território além da fronteira judaíta, então a explicação moderna dada para a reforma de Josias não se sustenta. De fato, ficamos confusos quanto ao que se pretendia alcançar. Reformas religiosas no início do reinado de um rei não são incomuns: elas servem para recomendar o novo monarca a seus súditos e à divindade. Mas essa reforma só foi empreendida quando seu reinado já estava bem adiantado.
O relato em 2 Reis não retrata de fato Josias como expandindo seu território. O relato toma o controle sobre o antigo reino de Israel como garantido, convenientemente apagando (do tempo de Ezequias em diante) qualquer indício de dominação assíria.
Na’aman sugeriu que Josias não poderia ter sido retratado como subserviente à Assíria porque ele era um rei justo, como Ezequias antes dele. Isso é plausível, e tanto Ezequias (2 Reis 18) quanto Josias são creditados com uma reforma religiosa. Mas, de acordo com o esquema de 2 Reis, qualquer bom rei seguindo um rei mau teria que empreender uma reforma religiosa e a liberdade da influência assíria é necessária para tornar isso plausível. Dada essa premissa teológica, não é realmente fácil de afirmar que algum rei realmente tenha cumprido o requisito deuteronomista.
A realidade histórica da resistência de Ezequias, como debatido em um seminário anterior (Grabbe [ed.] 2003), é que ele perdeu a maior parte de seu território e pagou Senaquerib com uma grande fortuna. O simples fato de Jerusalém não ter sido tomada e de o rei assírio ter partido permitiu que Ezequias recebesse o posto de rei justo.
O caso de Josias é mais interessante. O que o qualificou para o mesmo status? Foi sua morte heroica? Ou foi, de fato, algum ato aparentemente piedoso? Josias foi creditado com uma reforma porque seu status a exigia, ou seu status foi motivado por algum ato deuteronomisticamente aprovado que ele realizou? Tentarei chegar a uma resposta, mesmo que provisória.
A história da reforma se divide em três episódios: a descoberta e verificação do livro da lei, seguida pela aliança (2 Rs 22,3-23,3); a destruição de objetos e lugares de culto (2 Rs 23,4-20); e um terceiro episódio (2 Rs 23,21-24), compreendendo a celebração da Páscoa e a remoção de certas práticas religiosas, com referência, mais uma vez, ao livro da lei.
Não está claro se o segundo episódio está intrinsecamente conectado ao primeiro. A estrutura literária de 2 Reis 22-23 permanece em disputa e há uma possibilidade de que o tema do livro da lei tenha sido inserido em uma narrativa de reforma ou uma narrativa de reforma tenha sido desenvolvida após uma história da descoberta de um livro da lei (ver Lohfink 1985).
Também deve ser notado que as atividades de reforma de Josias são confinadas a Judá e seus arredores, especialmente Betel, com exceção de um único breve aviso sobre o território de Samaria (2 Reis 23,19).
Que outras evidências temos para ambos? Deveríamos começar (como muitos estudiosos anteriores) buscando alusões a uma reforma ou ecos dela (ou ausência de ambos), em outros textos bíblicos. Portanto, a natureza do próprio livro de leis requer análise.
O impacto da reforma de Josias
Parece haver pouca ou nenhuma sugestão de qualquer reforma em outra literatura bíblica que possa ser atribuída ao período, por exemplo, os livros de Jeremias ou Sofonias. Albertz (1994: 200) aponta para Jr 8,7-8, sugerindo uma lei escrita nas mãos dos sacerdotes. Mas este texto não menciona nenhuma reforma. Ele também menciona Jr 22,15; 31,2-6 e 44,18 como oferecendo algum suporte para a ideia de um clima de reforma. Mas não há nenhuma indicação clara ou direta no livro do profeta Jeremias, que estava em Jerusalém naquela época, de que uma grande reforma religiosa tenha ocorrido.
Sweeney (2001: 129-313) analisou mais recentemente uma gama mais ampla de textos proféticos (Sofonias, Naum, Jeremias, Isaías, Oseias, Amós, Miqueias e Habacuque), concluindo que os profetas que eram contemporâneos de Josias abordaram ativamente aspectos de seu programa de reforma e frequentemente apontam para aspectos que não são evidentes no relato deuteronomista de seu reinado (p. 310).
O espaço não permite, infelizmente, uma avaliação detalhada da longa discussão de Sweeney. Mas aqueles textos que ele cita em apoio à centralidade de Jerusalém dificilmente indicam inequivocamente o tempo de Josias em vez de um período posterior. Vários textos parecem se referir a aspectos da reforma não mencionados em 2 Reis, enquanto outros textos parecem fornecer legitimação para a reforma, incluindo a reunificação dos reinos divididos, mas não necessariamente pressupõem isso.
Tendo avaliado as evidências e argumentos de Sweeney, não encontrei nenhuma referência convincente a uma reforma como descrita em 2 Reis 22-23, e muito pouco que sugira qualquer reforma religiosa neste momento, com uma exceção importante, à qual retornarei em breve e que não envolve um livro de leis.
Eu sustento, então, que não temos nenhum texto que, na ausência de 2 Reis 22-23, nos levaria a sugerir uma reforma religiosa. Isso deve ser exigido de qualquer corroboração independente. Alguns textos poderiam se referir a tal coisa, se tivesse acontecido, mas não implicam que tenha acontecido. Em suma, os argumentos de Sweeney dependem da suposição de que houve uma reforma, e não fornecem evidências adequadas de que houve uma. Tal ausência é significativa, se não conclusiva.
Esta conclusão nos leva, então, à questão do livro da lei. Como é bem sabido, De Wette pode ser creditado por ter nos legado a percepção de que o livro da lei de Josias era o livro do Deuteronômio, ou alguma forma dele. Esta identificação, feita em 1805, forneceu a ele uma chave importante para separar a lei das origens mosaicas do judaísmo e, assim, desenvolver uma reconstrução crítica da história da religião de Israel e Judá. Vale, no entanto, lembrar que De Wette considerava D como a última das fontes do Pentateuco, e que sua identificação do livro da lei com o Deuteronômio não foi universalmente aceita até hoje.
No entanto, não é preciso ser um gênio para ver que a identificação do Deuteronômio com o livro da lei josiânica é precisamente o que o autor de 2 Reis 22 pretende. A linguagem e a ideologia de 2 Reis são deuteronomistas, e mesmo antes da teoria de Martin Noth sobre a História Deuteronomista, em 1943, poder-se-ia perceber que qualquer relato deuteronomista da descoberta de um livro de leis apresentaria esse livro de leis como o Deuteronômio, em vez de, digamos, o Levítico ou o Código da Aliança do Êxodo.
O escritor da história do livro de leis deseja deixar claro que nos dias dos reis de Judá, o rolo do Deuteronômio, que havia sido perdido temporariamente, foi recuperado e usado como base para uma reforma religiosa, e com a autoridade total de um rei davídico, nada menos.
O comentário de Albertz de que só foi possível avaliar a reforma cultual de Josias com mais precisão quando a identidade do livro de leis que forneceu sua base foi estabelecida (1994: 198-99) erra o ponto. Sabemos qual era o livro de leis da história: mas não sabemos se a história de sua descoberta (ou alguma racionalização moderna, como uma apresentação deliberada do manuscrito logo após a composição) é verdadeira.
Nossa pergunta agora é: É provável uma origem do século VII a.C., ou talvez anterior, para Deuteronômio? É plausível um livro de leis da época josiânica?
Datando o livro da lei
O método de datação do Deuteronômio tem que prosseguir inteiramente com base em evidências internas, interpretadas à luz do pouco que sabemos da história de Judá, sua sociedade e sua religião, durante todo o período em que o Deuteronômio pode ter sido escrito, o que inclui o período monárquico, o período exílico e o período pós-exílico. Ao perguntar sobre a data do Deuteronômio, não estou tentando reabrir um debate: esse debate nunca parou. Obviamente, um breve artigo de discussão não pode cobrir a gama de temas e tópicos do Deuteronômio que precisariam ser abordados para chegar a uma teoria sólida. O seguinte representa uma pequena seleção dos tópicos mais significativos.
Antes de começar, é importante aceitar que muitas partes do livro podem ter se originado em um momento diferente da coleção de leis em si. A primeira introdução (1,1- 4,40 ) e os capítulos finais (27-34) são geralmente vistos como decorrentes de um processo de edição subsequente. Portanto, não devemos procurar datar o presumido livro de leis com base em qualquer material nesses capítulos. Também excluirei a segunda introdução em 4,44-11,32 e me concentrarei apenas no material legal, Dt 12-26.
Neste material jurídico essencial (por conveniência, o tratarei como um documento), encontramos um esboço de uma sociedade que reflete algumas circunstâncias históricas, mas que é essencialmente utópica e, em algumas partes, impraticável. Seu caráter utópico é expresso por meio de um cenário fictício do passado, no qual a utopia continua sendo uma possibilidade futura: quando Israel entrar na terra que Iahweh, seu Deus, está lhe dando como posse (Dt 12,1.9.10.20.29;13,13 etc.) .
A questão-chave para sua datação é: Qual é o propósito desse documento e em que tipo de contexto histórico e social sua definição de Israel teria algum significado ou impacto? Essas questões serão consideradas (muito brevemente) com relação à definição de Israel, as nações, a aliança, o papel e a função do rei e a centralização do culto.
A definição de “Israel”
No núcleo legal do Deuteronômio, Israel designa uma sociedade, e seus membros são chamados de “filhos de Israel” (benē yisrā’ēl). Em que consiste esse Israel não é especificado em muitos detalhes. A dupla menção da tribo de Levi pode indicar uma estrutura tribal para o todo, mas nenhuma outra tribo, ou conjunto de tribos, é mencionada, nem uma estrutura tribal tem qualquer papel organizacional. A menção repetida da terra implica uma dimensão territorial para Israel, e a aquisição desta terra é por conquista militar (Dt 19,1; 20,16). As leis relativas ao rei (Dt 17) também implicam um estado territorial. No entanto, o papel do monarca é de fato virtualmente cerimonial.
O Israel do Deuteronômio dificilmente é histórico. No período monárquico, existiam dois reinos, um chamado Judá e o outro às vezes conhecido como Israel. Os resultados da arqueologia recente da Idade do Ferro na Palestina central sugerem fortemente que as áreas mais tarde representadas pelos dois reinos passaram por assentamentos separados. A alegação bíblica de que eles foram unidos sob Davi e Salomão (e alguns anos sob Roboão) é igualmente sem qualquer suporte arqueológico e, de fato, há fortes indicações do contrário (veja Finkelstein e Silberman 2001 para uma visão geral e reconstrução arqueológica).
A noção de que Israel adquiriu a terra por meio da conquista e aniquilação dos ocupantes anteriores também é utópica. De fato, a apresentação de Israel como vindo de fora da terra contradiz as evidências arqueológicas, que não podem revelar nenhum elemento populacional não indígena na Palestina central nos séculos anteriores ao estabelecimento dos dois reinos (os filisteus não se estabeleceram nas terras altas).
Mas as utopias têm uma função. Não adianta descartá-las como ficção, como se isso resolvesse a questão mais importante. Em que contexto histórico um Israel tão utópico (algo maior que Judá) tem um papel? A noção de que Josias desejava reunir Judá e o antigo reino de Israel já foi discutida. É altamente improvável, mas um Israel previamente unido também é improvável. No próprio reino de Israel, antes de 722 a.C., tal ambição poderia ser alimentada e, de fato, muitos estudiosos consideraram o Deuteronômio um documento originalmente israelita, talvez trazido para o sul após a destruição de Samaria. Mas, além de outras considerações que excluem isso, tal teoria não explica a descoberta e adoção deste documento em Judá no final do século VII a.C. Como e com que efeito o Judá de Josias poderia ser representado neste Israel? De fato, mesmo que a origem do Deuteronômio estivesse no reino de Israel, com base em que Judá se chamaria a si mesmo com este nome?
As “nações”
A seção legal do Deuteronômio se refere aos cananeus uma vez, em Dt 20, 17 (Canaã ocorre apenas uma vez em todo o livro, em Dt 32,49). Mas há muitas referências às “nações”, que se enquadram em duas categorias. Em Dt 14,2;15,6;17,4;18,9.14;26,19 a frase se refere a todas as outras nações, indiferenciadas. Israel deve ser bem distinto destas, criando a dicotomia Israel/nações que ainda persiste em nosso uso moderno do termo gentios. A segunda categoria são “as nações que você expulsará”: estas são caracterizadas como (a) ocupando a terra que foi prometida a Israel e da qual ele tomará posse, e (b) praticando costumes religiosos que são abomináveis a Iahweh e que Israel não deve imitar.
Vamos nos concentrar nas nações despossuídas. Elas são especificadas como sete em Dt 7,1 e 20,17 (gergeseus está faltando, talvez acidentalmente, em 20,17) e devem ser destruídas, junto com sua cultura. Que tipo de contexto social e político dá origem a essa noção de duas nações de culturas completamente diferentes no mesmo espaço, uma indígena, a outra imigrante? Essa é uma realidade histórica ou, novamente, utópica?
Que nação e cultura são sinônimos é um princípio importante em Deuteronômio, pois o próprio Israel é definido por sua cultura, especificamente sua religião determinada pela aliança. Cananeu é cananeu, poderíamos dizer. E o mesmo podemos dizer de Israel.
Embora se possa argumentar que existia alguma diferença cultural entre elementos populacionais na Palestina da Idade do Ferro — por exemplo, entre fazendeiros das terras altas e aqueles que viviam sob um regime de cidade-estado — a animosidade gritante em relação às nações cananeias que o Deuteronômio revela provavelmente não pertence à história da Idade do Ferro, porque o reino de Israel (se não Judá) era evidentemente composto de vários elementos populacionais, entre os quais havia um conjunto amplamente compartilhado de práticas religiosas.
A perseguição religiosa, e mais ainda o genocídio, conforme ordenado por Deuteronômio, se traduz em guerra civil, que os monarcas e as elites governantes em geral não buscam provocar. Certamente, a religião pode ser usada para promover sentimentos e práticas chauvinistas, que podem ajudar um monarca, mas o remédio do Deuteronômio seria desastroso para um estado monárquico. Mesmo se traduzirmos as nações de Canaã em inimigas do culto real, a ideologia do Deuteronômio parece excessivamente entusiasmada. O que, precisamente, um chamado para declarar guerra aos cananeus alcançaria, mesmo supondo que alguém pudesse identificar de maneira inequívoca um cananeu?
A guerra do Deuteronômio não é, está claro, física ou mesmo militar, mas ideológica: os autores do documento não pretendem que os cananeus sejam exterminados. Mas a questão pode muito bem ser a propriedade legítima da terra, a filiação a Israel, a adoração adequada da divindade. E pode envolver conflito entre populações indígenas e imigrantes. Tal contexto pode ser postulado na história de Judá. Mas não para o século VII a.C.
A “aliança”
Garbini (2003: 65) afirma que a noção de uma aliança entre a divindade e o povo é bastante surpreendente. Ele afirma que: “Para todos os povos do Oriente Próximo, uma aliança entre um deus e seu povo simplesmente não fazia sentido: a aliança dizia respeito apenas ao rei e seu deus dinástico e o rei era legítimo apenas por causa desse relacionamento direto com o deus. Era por meio dela que o rei podia garantir a prosperidade de seu povo e legitimar sua própria função. Isso fica claro até mesmo no texto bíblico, onde está escrito, exatamente sobre Josias: E o rei ficou em pé junto a uma coluna e fez uma aliança (wayyikrot ‘et ha-b‘rit) diante de Iahweh (2 Rs 23,3). A questão nunca foi colocada, por que este livro, que supostamente guiou os passos do piedoso Josias, não contém nenhuma menção a ritos de aliança ou pilares desse tipo. Diz-se, além disso, que a mesma cerimônia foi celebrada na época de Salomão, como fica claro na narrativa de 1 Reis 8, apesar de todas as ampliações deuteronomistas. Ao consagrar o templo, Salomão fez uma aliança (8,23) com Iahweh, deus da dinastia (8,25), invocando sua proteção sobre o povo, especialmente nos momentos difíceis da guerra e da fome”.
Este ponto pode, no entanto, ser colocado de forma mais positiva, como foi feito por Geller em um ensaio sobre o papel do Deuteronômio na história do monoteísmo (Geller 2000: 300). Ele descreve o Deuteronômio como “um tipo radicalmente novo de associação de indivíduos … Israel é, na formulação deuteronômica da aliança, em última análise, cada israelita”. (Este fenômeno, do vínculo direto entre o deus e cada indivíduo, é, naturalmente, fortalecido retoricamente pelo uso do singular “tu” em grandes seções do livro). Geller observa ainda a negação da responsabilidade coletiva pelos pecados em Deuteronômio 34. Deuteronômio marca o início de uma definição pessoal da religião israelita — pode-se até dizer a fonte do judaísmo. Em suma, temos aqui, como Geller sugere, um estágio no desenvolvimento da Torá em um órgão de religiosidade pessoal e não um corpo de ensinamentos sociais sustentado por uma instituição estatal (seja a monarquia ou o sacerdócio).
Como tal noção surgiu aqui pela primeira vez é uma questão intrigante. Que tipo de condições levaram ao surgimento de uma religião que era tanto social quanto individual? Mas, novamente, a questão-chave é: Como esse caráter pessoal da aliança do Deuteronômio faz sentido em um pequeno estado monárquico? Qual é o objetivo e o efeito de tal redefinição da religião? E, novamente, digo que não é suficiente simplesmente responder que Deuteronômio é utópico. É necessário sugerir um contexto no qual essa visão faça sentido, em uma comunidade que se formou, ou desejou, uma comunidade na qual a filiação implicava responsabilidades individuais, especialmente religiosas.
Weinfeld (1972: 59-157), entre outros, argumentou, em defesa de uma data josiânica para o Deuteronômio, que a forma de tratado de vassalagem assírio (exemplificada por aqueles de Esarhaddon) fornece um modelo para o Deuteronômio. Mas para ser válido, esse argumento tem que mostrar que o conhecimento de tais formas literárias desapareceu em determinado momento. Entretanto, a influência da Assíria na retórica diplomática e na literatura (assim como na imaginação) do Antigo Oriente Médio persistiu por vários séculos. Um terminus a quo no século VII a.C. para Deuteronômio não é particularmente conclusivo.
Mais pertinente, novamente, é a questão: sob quais circunstâncias um tratado de suserania inspiraria uma nova teoria da religião como um pacto entre uma divindade e uma nação, concebida tanto corporativa quanto individualmente? E sob quais circunstâncias tal conceito adquiriria valor?
O papel e a função do rei
O rei de Israel aparece em apenas dois textos no material legal do Deuteronômio. O primeiro está em Dt 17,14-20. É improvável que a ameaça de um rei estrangeiro, como alerta o texto, fosse substancial no período monárquico (os textos canonizados não relatam que isso tenha acontecido ou mesmo sido ameaçado). Mesmo sob os assírios e babilônios, havia um rei nativo no trono, mas esta é uma questão trivial.
A questão principal é esta: duas das principais funções de um rei (de acordo com a sociologia moderna e também com os próprios monarcas antigos) são segurança e justiça. A primeira protege o povo de ameaças externas e a última da exploração interna. Ambas contribuem para a ordem social. Sem essas funções, o papel de um rei é redundante.
A passagem citada propõe limitar seu direito de ser a fonte da justiça e de ter uma força significativa de cavalaria. Em outro lugar, o Deuteronômio prescreve as regras para a guerra (Dt 20) das quais o rei está totalmente ausente. Lá, como aqui, a autoridade é conferida exclusivamente aos sacerdotes. O rei está sujeito à lei que eles mantêm e eles, não ele, ditam seu conteúdo. O rei se torna um monarca constitucional.
A mesma questão retorna, mas com mais força: em que ponto da história de Judá tal revolução política faz sentido, mesmo como um ideal utópico? Quando o governo de um monarca judaíta pode ser substituído por um livro de leis? Não há paralelo algum no período monárquico para qualquer noção desse tipo, e de fato é uma ideia absurda para aquela época. Os antigos códigos de leis da Mesopotâmia, como o tratado de suserania assírio, sem dúvida serviram como um modelo para o livro do Deuteronômio, mas em uma reversão completa da antiga tradição pela qual o rei emite seu código de leis, como representante do deus.
Não há explicações plausíveis para que um rei aceite uma reforma que o priva dos poderes essenciais da monarquia, justiça e guerra. Sugerir que Josias era muito jovem na época e que o documento é uma tentativa dos sacerdotes de controlar o poder real é ingênuo. Os sacerdotes teriam o poder de fazer isso, contra a oposição de todos aqueles seguidores cujo privilégio dependia precisamente da preservação do poder da monarquia? A noção de que tal reforma foi instigada pelo ‘am ha-’aretz, como Albertz também sugere (Albertz 1994: 201), é contrariada pelo fato de que essas pessoas dificilmente teriam transferido autoridade sobre a guerra ou a justiça para o sacerdócio.
Em suma, a crença da maioria dos estudiosos bíblicos de que um manuscrito que priva o monarca de todos os poderes reais (e, na verdade, inviabiliza a instituição da monarquia) é um produto plausível do Judá do século VII a.C. é surpreendente e só pode ser explicada assumindo que tal estudo está tomando o fato como certo e, portanto, ignorando o absurdo ou fabricando uma racionalização implausível para ele.
Centralização do culto
Albertz corretamente descarta a ideia de Wiirthwein (1976) de que a centralização do culto em Deuteronômio indica o período exílico, afirmando que “não havia mais nenhum conflito sobre a centralização do culto no início do período pós-exílico” (1994: 199-200), com base no fato de que isto é pressuposto pelo Dêutero-Isaías e por Ezequiel. Mas ele pode não ter pensado nas situações da vida em Judá durante o período neobabilônico, quando a capital estava em Mispá. Não sabemos se Jerusalém tinha algum tipo de santuário nessa época, mas as evidências sugerem que vários santuários nas proximidades de Mispá funcionavam: Gibeon, a própria Mispá e especialmente Betel. Como e quando Jerusalém foi restabelecida como capital não está claro. O processo de construção do templo do período persa é em si obscuro, e é impensável que a mudança de capital de Mispá para Jerusalém tenha sido alcançada sem algum ressentimento, podendo se dizer o mesmo da reintegração de Jerusalém como o santuário central. De fato, a substituição de Betel por Jerusalém como o principal santuário de Judá em meados do século V a.C. explica muito sobre a tradição de Josias, como agora sugerirei.
O que Josias fez?
Quando o relato de 2 Reis sobre uma reforma josiânica é questionado em vez de assumido, parece não haver razões convincentes para pensar que um texto como o Deuteronômio (especificamente o material legal) vem dessa época. Pelo contrário, para cada tópico discutido há contextos mais plausíveis.
Não me propus aqui argumentar em detalhes para uma data do século V a.C., mas notei que todas as características discutidas se encaixam bem com tal período. O Deuteronômio se enquadra no contexto de uma população imigrante, baseada em torno de um templo, em conflito com parte da população indígena, bem como com Samaria, e encorajada a viver e exercer seu controle por meio de uma lei escrita, interpretada pelos sacerdotes.
Mas se tal data fornece um contexto melhor para o cerne do Deuteronômio, ainda precisamos explicar a história da reforma de Josias como uma lenda posterior. Mas isso não é difícil. Aqueles elementos populacionais que alegam ser o verdadeiro Israel (contra as nações indígenas desalojadas) exigiriam necessariamente que o documento do qual sua posição dependia replicasse a situação atual: “Israel” se vendo ameaçado pelos “povos que ocupavam a terra”. Mas o documento requer uma autenticação adicional: ele precisaria ser antigo e ter sido autorizado, como fonte escrita, por um rei judaíta legítimo.
Por que Josias? Isso nos traz de volta a outra questão já levantada: Josias foi enaltecido por ter feito algo para ganhar reputação?
O elemento central da história da reforma de Josias (2 Rs 23) diz respeito à sua destruição de Betel, e este ato é ecoado em 1 Rs 12,25-13,34 (cf. 2 Rs 10,29), bem como em Êxodo 32 (ver Blenkinsopp 1998, 2003). Se Josias tivesse sido executado por alguma ofensa contra o faraó, a destruição de Betel, sinalizando o controle judaíta sobre uma área adjacente à própria Jerusalém, poderia ter constituído tal ato. Mais de um século depois, quando Jerusalém estava sendo restabelecida como o principal santuário da província persa de Judá, talvez às custas de Betel (ver Blenkinsopp 2003), tal ato facilmente teria identificado Josias como uma figura justa e fornecido o contexto para a introdução retrospectiva do Deuteronômio na história anterior de Judá.
De fato, a reforma deuteronômica de 2 Reis 22-23 deveria então ser vista, não como um evento histórico, mas como um disfarce para uma nova comunidade centrada em Jerusalém tentando impor sua definição de Israel, seu deus e sua religião, e especificamente sua lei escrita, em meio a uma população indígena idólatra.
Em suma, o século V a.C. fornece um contexto plausível tanto para a “descoberta” do livro do Deuteronômio quanto para a história da reforma de Josias. Esse caso, é claro, terá que ser discutido em mais detalhes, mas sugiro que mesmo no breve esboço dado aqui, ele oferece um relato melhor das coisas do que a ideia de uma reforma deuteronômica sob Josias.
O ataque do rei a Betel lhe rendeu uma reputação como um campeão deuteronômico, mas a verdadeira reforma ocorreu quase dois séculos depois e, como frequentemente acontece, a história foi reescrita para dar a essa reforma a autenticação necessária.
Bibliografia
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Wiirthwein, E. 1976 ‘Die Josianische Reform und das Deuteronomium’, Z7TK 73: 365-423.
Na semana passada li um texto de Juha Pakkala, biblista finlandês, professor de Bíblia Hebraica na Universidade de Helsinque, sobre a possibilidade das reformas de Ezequias e de Josias, reis de Judá em 716/15-699/8 e 640-609 a.C., respectivamente, não terem acontecido. Segundo o autor, é mais provável que os textos de 2 Reis 18 e 22-23 sejam invenções literárias e projeções de ideais pós-exílicos no período monárquico.
O texto pode ser acessado em Academia.edu: Why the Cult Reforms In Judah Probably Did Not Happen. Pode ser acessado, gratuitamente, também aqui.
Foi publicado em KRATZ, R. G.; SPIECKERMANN, H. (eds.) One God, One Cult, One Nation: Archaeological and Biblical Perspectives. Berlin: De Gruyter, 2010, p. 201-235.
Apresento aqui apenas a introdução e recomendo a leitura do texto completo. Especialmente para quem estuda História de Israel e Literatura Deuteronomista.
Os autores citados nas notas podem ser conferidos na bibliografia no final do texto.
As reformas de Ezequias (2 Reis 18,4) e Josias (2 Reis 22–23) tiveram impacto considerável nos estudos bíblicos. Especialmente a reforma de Josias foi amplamente entendida como um momento crucial e um ponto de virada no desenvolvimento da religião[1] de Israel[2]. Consequentemente, os relatos bíblicos foram assumidos como preservando informações históricas importantes da época de Ezequias e Josias.
Por exemplo, no século passado, Hölscher argumentou que 2 Reis 22–23 é um excelente exemplo de escrita histórica autêntica[3]. Noth assumiu que 2 Reis 23,4–20 foi retirado dos anais reais[4]. Embora a maioria dos estudiosos hoje em dia reconheça que os relatos bíblicos não são fontes históricas imparciais, geralmente se presume que os reis tomaram pelo menos algumas medidas para renovar o culto[5]. Alguns estudiosos presumem que eles purificaram o culto de elementos estrangeiros, enquanto outros argumentam que apenas a localização do culto estava em questão[6]. Há também algumas vozes críticas que questionaram totalmente a historicidade das reformas, mas elas ainda representam a minoria[7]. No entanto, é evidente que o ceticismo sobre a historicidade das reformas cresceu nas últimas décadas[8]. Deve-se acrescentar também que a historicidade da reforma de Ezequias foi desafiada com mais frequência do que a de Josias[9].
Os relatos da reforma tiveram impacto considerável nos estudos bíblicos e no estudo do antigo Israel, sua história e religião. Muitas histórias de Israel e introduções à Bíblia hebraica se referem às reformas como eventos importantes que ocorreram no final do século VIII e no final do século VII a.C.[10]. Muitos conceitos centrais ou mesmo definidores do judaísmo posterior, como centralização do culto, adoração exclusiva a Iahweh, crítica de ídolos e religião baseada na Lei, teriam sido introduzidos por um dos reis reformadores. As reformas também tiveram impacto considerável no estudo dos livros bíblicos. Por exemplo, devido às semelhanças evidentes entre o Deuteronômio e 2 Reis 22–23, a datação do Deuteronômio é frequentemente conectada com a reforma de Josias[11]. Alguns estudiosos que questionaram a historicidade da maioria dos eventos em 2 Reis 22–23 ainda conectaram o Deuteronômio com o rei Josias ou com o final do século VII a.C.[12]. O Deuteronômio seria então uma testemunha das mudanças religiosas que ocorreram durante esse período.
As reformas também influenciaram a datação da Obra Histórica Deuteronomista. Muitos estudiosos, especialmente no mundo anglo-saxônico, vincularam o desenvolvimento editorial de sua composição com as reformas. De acordo com o ‘Modelo de Dupla Redação’, uma das principais fases editoriais da composição foi escrita durante o tempo de Josias[13]. Também se tentou correlacionar dados arqueológicos com as reformas do culto. Especialmente em pesquisas anteriores, a destruição dos locais de culto em Arad Tel Berseba foi vista como um resultado ou prova das reformas do culto bíblico[14]. Também foi discutido se as estatuetas [de divindades] da Idade do Ferro de Judá mostram quaisquer sinais de destruição intencional, o que poderia então ser usado como evidência para a reforma de Josias[15]. Em discussões acadêmicas mais recentes, a diminuição dos motivos iconográficos do século VIII a.C. em diante tem sido conectada com as reformas[16].
A confiança nos textos bíblicos em questão como fontes históricas confiáveis é problemática, porque é evidente que 2 Reis 18 e 2 Reis 22–23 foram extensivamente editados. 2 Reis 23, onde toda a discussão sobre as reformas culmina, pode ser o capítulo mais editado de 1–2 Reis, se não de toda a Bíblia Hebraica, e sua complicada história editorial também é geralmente reconhecida. Um indicativo dos problemas é o fato de que as visões acadêmicas sobre seu desenvolvimento diferem em grande medida, com muito pouco consenso à vista[17]. Quase todas e quaisquer partes do capítulo foram atribuídas de forma variável ao texto básico e a vários editores posteriores ou aos anais reais. Consequentemente, o texto é, na melhor das hipóteses, uma fonte histórica problemática e, portanto, uma base pobre para reconstruções da história de Israel e teorias sobre o desenvolvimento de livros bíblicos.
Mesmo sem os problemas causados pela edição, os textos em questão foram evidentemente escritos de uma perspectiva fortemente teológica, o que significa que sua confiabilidade histórica como fonte deve ser cuidadosamente examinada. É quase impossível usá-los como tal para qualquer reconstrução histórica do período monárquico. O perfil teológico dos diferentes autores tem que ser compreendido antes mesmo de começarmos a ver por trás da teologia e possivelmente obter informações sobre eventos históricos. Seria arriscado negligenciar a análise meticulosa dos textos-fonte e assumir que, apesar dos problemas evidentes, eles de alguma forma refletem realidades históricas durante a monarquia. Tal abordagem dos textos não é incomum, mas dificilmente pode fornecer uma base histórica sólida.
Neste artigo, tentarei mostrar que os textos disponíveis não são fontes históricas tão sólidas que deveríamos usá-los como pedras angulares de teorias sobre a religião de Israel e o nascimento dos livros bíblicos. A possibilidade de que as reformas sejam projeções de ideais posteriores ao período monárquico e, portanto, não tenham qualquer base histórica também tem que ser levada em consideração ou pelo menos discutida. Algumas características podem até indicar que nunca aconteceram.
Notas
1. Neste artigo, a religião de Israel indica a religião de Judá e Israel, praticada durante a monarquia.
2. De acordo com Albertz (1994) “[a] decisão mais importante na história da religião israelita é tomada com a datação de uma parte essencial do Deuteronômio no tempo de Josias.” (199). Cf. a discussão posterior sobre esta declaração por Albertz em Davies (2007), 65–77, e Albertz (2007), 27–36.
3. Hölscher (1923), 208.
4. Noth (1967), 86. Assim também Gray (1963), 663.
5. Por exemplo, Lohfink (1987), 459–475; Collins (2007), 86, 150–151; Sweeney (2007), 402–403, 446–449, e Petry (2008), 395 n. 19. Römer (2005), 55, escreve: “A apresentação bíblica de Josias e seu reinado não pode ser tomada como um documento de evidência primária. Por outro lado, alguns indicadores sugerem, no entanto, que algumas tentativas de introduzir mudanças políticas e de culto ocorreram sob Josias.”
6. Hoffmann (1980), 269, concluiu que em quase todos os detalhes o autor de 2 Reis 22–23 apresenta uma imagem idealista da reforma, mas que os eventos têm uma base histórica na época de Josias.
7. Por exemplo, Levin (1984), 351–371; Davies (2007), 65–77.
8. Este desenvolvimento pode ser observado, por exemplo, em comentários e histórias recentes de Israel; por exemplo, Werlitz (2002), 305–311; Grabbe (2007), 204–207.
9. Para uma revisão, veja Hoffmann (1980), 151–154, onde ele mesmo assume que 2 Reis 18,4 contém uma memória de um evento histórico. Similarmente também Collins (2007), 148. Estudos anteriores assumiram que 2 Reis 18,4 contém um trecho dos anais reais, por exemplo, Benzinger (1899), 177.
10. Ver, por exemplo, Liverani (2005), 175–182; Miller/Hayes (2006), 413–414 (a historicidade da reforma de Ezequias é deixada em aberto; ver n. 28), 457–460.
11. Assim, muitos estudiosos, por exemplo, Driver (1902), xliii–lxvi; Veijola (2004), 2–3; Römer (2005), 55. Em pesquisas anteriores e já desde De Wette (1805), Dissertatio critico-exegetica, o livro encontrado no Templo (2 Reis 22,8) foi assumido como tendo sido o Deuteronômio ou sua edição inicial.
12. Assim, por exemplo, Levin (2005), 91. De acordo com Schmid (2008), 106, a argumentação sobre a relação entre 2 Reis 22–23 e o Deuteronômio corre o risco de raciocínio circular, mas ele data a versão mais antiga do Deuteronômio no século VII a.C.
13. Cf. Cross (1973), 274–289, e muitos que o seguiram. Similarmente também Lohfink (1987), 459–475. Provan (1988), 172–173, conectou a primeira edição da composição com o reinado de Ezequias.
14. Ver Aharoni (1968), 233–234; Mazar (1992), 495–498.
15.Kletter (1993), 54–56, demonstrou que não há evidências de uma destruição intencional de estatuetas [de divindades] na Judeia.
16. Ver Uehlinger (2007), 292–295.
17. Ver, por exemplo, Benzinger (1899), 189–196; Hoffmann (1980), 169–270; Würthwein (1984), 452–466; Levin (1984), 351–371; Kratz (2000), 173, 193; Hardmeier (2007), 123–163.
Leia nesta ordem:
O Codex Amiatinus 1
O Codex Amiatinus 2
O Codex Amiatinus 3
O Codex Amiatinus 4
O Codex Amiatinus 5
Fragmentos dos códices gêmeos do Amiatinus foram encontrados
No início de setembro de 1908 Cuthbert Turner (1860-1930), de Oxford e historiador da Igreja, estava na Biblioteca da Catedral de Durham fazendo uma investigação sobre os primeiros manuscritos da Bíblia. O cônego bibliotecário, William Greenwell (1820-1918), arqueólogo e colecionador, convidou-o a jantar em sua casa. No vestíbulo de Greenwell, Turner viu, emoldurada, uma página de um grande manuscrito, escrita em unciais, e observou em meio à conversa que ela se parecia com uma página que faltava no famoso Codex Amiatinus.
Isso parece ter provocado uma reação inesperada de seu anfitrião. Greenwell asseverou que era de uma das outras duas Bíblias encomendadas por Ceolfrido, e, antes que mais investigações pudessem ser feitas, e certamente antes de Turner publicá-las, ele de imediato presenteou a folha ao Museu Britânico, onde foi recebida no início de 1909. É geralmente conhecida pelo nome de “a Folha de Greenwell”. Contém o texto em latim de III Reis 9,29-12,18.
Em retrospecto, Greenwell veio com uma história inverificável, cujos detalhes variavam, de que tinha adquirido a folha por volta de 1890 numa livraria em Newcastle, ou, em outra rememoração, numa “loja de curiosidades antigas”.
Como Newcastle fica a menos de dez quilômetros de Jarrow, essa proveniência soava plausível, conquanto seja difícil acreditar que Greenwell, um antiquário nada modesto (em nenhum dos sentidos da palavra), pudesse ter feito tão assombroso achado e esquecido de mencioná-lo a alguém durante quase vinte anos.
A provável fonte foi revelada em 1911, quando W. H. Stevenson (1858-1924), membro e bibliotecário do St John’s College, Oxford, publicou para a Comissão de Manuscritos Históricos seu catálogo de monumentos de lorde Middleton em Wollaton Hall, Nottingham, uma das grandes casas inglesas construídas na década de 1580.
Stevenson relatou ter achado nos arquivos da família Willoughby, depois nobilitada como barões de Middleton, mais dez folhas e três minúsculos fragmentos do mesmo manuscrito em uncial, usado em encadernações do século XVI. Tudo isso compreendia mais trechos de III-IV Reis.
A essa altura não havia dúvida de que esses gêmeos do Amiatinus de fato sobreviveram, numa coincidência assombrosamente afortunada, de uma ou outra das pandectas que Ceolfrido atribuiu às igrejas de Wearmouth ou Jarrow.
Em 1938, os fragmentos Willoughby foram vendidos também ao Museu Britânico por mil libras.
Mais uma folha, do Eclesiastes, foi achada por Nicholas Pickwoad recentemente, em 1982, entre os documentos imobiliários da família Bankes, em Kingston Lacy, uma propriedade do National Trust. Esse fragmento está hoje depositado por tempo indeterminado na Biblioteca Britânica.
É possível que a folha de Greenwell também fosse proveniente do arquivo de lorde Middleton, e que talvez Stevenson tenha lhe enviado essas descobertas para que o assessorasse na identificação, com uma sugestão, imprópria, de que, não oficialmente, poderia ficar com uma como agradecimento por sua ajuda.
É muito provável que todos esses fragmentos sejam resíduos de uma Bíblia que em algum momento foi de propriedade da Catedral de Worcester.
Evidência disso é que os arquivos de Willoughby também expeliram fragmentos semelhantes de um grande manuscrito de dimensões quase idênticas, contendo transcrições do século XI das escrituras de Worcester.
Sabemos que Offa, rei da Mércia de 757 a 796, tem a fama de ter dado uma grande Bíblia a Worcester, e que Wulfstan, bispo de Worcester de 1062 a 1095, deu ordem para que as escrituras da catedral fossem copiadas na “Bíblia da sacra igreja”.
No século XII alegava-se que a Bíblia de Offa havia sido redigida em Roma, o que provavelmente significava que sua escrita era uncial. Como a filha do rei Offa se casou com o rei da Nortúmbria em 792, existe a possibilidade de que uma das Bíblias de Ceolfrido tenha chegado a ele durante permutas diplomáticas entre os reinos no fim do século VIII, talvez quando Jarrow foi saqueada pelos vikings em 794.
Como o Codex Amiatinus chegou à abadia de San Salvatore?
Finalmente, voltemos à Abadia de San Salvatore no monte Amiata. Não sabemos como ou quando o Codex Amiatinus chegou lá. A inscrição dedicatória adulterada, de um suposto “Pedro, abade dos lombardos”, poderia representar uma doação factual, mas também pode ser uma invenção espúria para ocultar o fato embaraçoso de que o manuscrito estava num lugar diferente da destinação pretendida por Ceolfrido.
O mosteiro dá para a Via Francigena, rota de peregrinação do norte da Itália para Roma, e com certeza era um lugar de parada para viajantes. Na verdade, essa antiga estrada segue uma linha mais longa, que atravessa a Borgonha via Lausanne, pelo passo do Gran San Bernardo, para entrar na Itália acima de Aosta, e descer cruzando Pavia, Lucca, Siena, Viterbo chegando enfim a Roma.
Qualquer um, em teoria até mesmo Carlos Magno, poderia ter recolhido o manuscrito em qualquer lugar dessa rota após a morte de Ceolfrido em Langres, e poderia tê-lo deixado com os monges de San Salvatore na jornada para o sul, ou no retorno, de novo em direção ao norte.
O relicário encontrado na abadia de San Salvatore
Um item interessante foi encontrado em San Salvatore na década de 1960. Conforme um relato, foi descoberto oculto num buraco atrás do grande altar durante os trabalhos de reconfiguração do santuário. Isso foi publicado pela primeira vez em 1974.
O objeto é uma pequenina e primorosa caixa portátil, um relicário insular, no formato de uma pequena casa com telhado de duas águas, incrustada com um mosaico de retângulos vermelho-escuros e guarnecida com ornamentos de metal entrelaçados, inclusive florões no formato de cabeça de pássaros, muito semelhantes à ornamentação em manuscritos do Livro de Durrow e dos Evangelhos de Lindisfarne, ambos provavelmente do final do século VII.
Seria de imaginar que o relicário fosse irlandês, exceto pelo fato de incorporar granadas (prática testemunhada na Inglaterra anglo-saxã, mas ao que tudo indica não propriamente na Irlanda) e conter fragmentos de vidro colorido, exemplos dos quais sobrevivem apenas em Jarrow. A caixa tem alças de metal para que seja pendurada em cordões, possibilitando carregá-la. É perfeitamente crível atribuir-se a ela uma data contemporânea a Ceolfrido.
Um mosteiro numa estrada de peregrinação pode receber em qualquer momento presentes exóticos de viajantes de passagem e de visitantes agradecidos. Não existe absolutamente nenhuma conexão conhecida entre o relicário e o Codex Amiatinus, exceto a notável coincidência de que San Salvatore pudesse ter tido duas grandes obras de arte de mesma data e origem, tão longe da Nortúmbria, e uma explicação simples seria de que as duas chegaram juntas.
A comitiva de Ceolfrido devia sem dúvida levar consigo altares portáteis, cálices e relíquias de Wearmouth-Jarrow, para manter uma vida religiosa durante sua jornada.
Segundo a Vita Ceolfridi, alguns dos monges voltaram para casa após a morte de Ceolfrido, em setembro de 716. Outros continuaram sua jornada para Roma, ainda levando a Bíblia.
A rota para o sul deve ter passado pela Via Francigena. A Itália setentrional é cultivada, e é fácil viajar por seus campos. Quando se alcança a região mais selvagem entre a Toscana e a Úmbria, ela de repente fica perigosa, erma e muito montanhosa. Devia haver bandidos e lobos, e até ursos. Pode-se imaginar a delegação sem seu líder fazendo uma pausa, talvez à espera de uma época mais segura, mas de algum modo nunca deixando totalmente de se locomover. Poderiam já existir alguns estabelecimentos religiosos nas encostas do monte Amiata.
Os monges ingleses estariam morrendo um a um. Em 742, quando o mosteiro de San Salvatore é mencionado pela primeira vez, os membros mais jovens do séquito de Ceolfrido não estariam muito acima de seus quarenta e tantos anos, mas eram velhos e poucos o bastante para com júbilo optar por uma vida mais sedentária, com sua Bíblia e seu relicário.
Isso não é mais do que pura e imaginativa conjectura, mas preencheria a lacuna existente nessa assombrosa jornada de um manuscrito de 1300 anos de Weatmouth ou Jarrow até a Biblioteca Medicea Laurenziana em Florença.
O Codex Amiatinus 1
O Codex Amiatinus 2
O Codex Amiatinus 3
O Codex Amiatinus 4
O Codex Amiatinus 5
A escrita do Codex Amiatinus
Do escriba, passemos para a escrita. O texto do Codex Amiatinus está escrito em unciais, a quintessencial “romana scriptura”, disposta em colunas duplas com linhas longas e curtas, adequadas a uma fácil leitura em voz alta, “per cola et commata”. A uncial é totalmente diferente das maiúsculas e minúsculas nativas dos livros irlandeses, conhecidas por historiadores de manuscritos como de estilo “insular”, o qual compreende todo o âmbito celta das Ilhas Britânicas.
O contraste com as unciais mediterrâneas é mais uma evidência gráfica de que as comunidades de Wearmouth e Jarrow estavam se distanciando da Irlanda e conscientemente imitando as práticas de escrita romanas.
Deve haver a possibilidade de que Bento Biscop e Ceolfrido tenham trazido consigo da Itália escribas treinados, para que ensinassem a escrita uncial aos ingleses. No fólio 86v do Codex Amiatinus no material preambular ao Levítico, há várias palavras canhestramente escritas em grego a afirmar que fora um tal de lorde Servandos quem fizera o livro. Este não é nem de longe um nome anglo-saxão, e a sentença deve ter sido copiada incompreensivelmente do exemplar por alguém que sabia latim, mas não grego.06
Embora os escribas modelassem com atenção seu trabalho segundo protótipos italianos, eles mesmos eram sem dúvida ingleses. São traídos por marcas distintivamente insulares de abreviações e outras peculiaridades que só se encontram em manuscritos em uncial que sabemos com certeza terem sido copiados na Nortúmbria.
Tem-se observado com frequência que só a partir do estilo da escrita já se pode deduzir total diferença no aspecto cultural entre Wearmouth-Jarrow, com modelo em Roma, e Lindisfarne, fundação da ilha irlandesa cerca de oitenta quilômetros ao norte, onde os manuscritos eram de hábito copiados na contrastante caligrafia insular. Na realidade, segundo um provável senso comum, essas comunidades se influenciavam reciprocamente.
Com toda a sua escrita romana, o Codex Amiatinus apresenta traços de uma prática distintamente insular nas palavras de abertura de alguns textos, usando o que se conhece como “diminuendo”, começando com uma letra grande e diminuindo o tamanho letra a letra. Exemplo disso é a abertura do Gênesis. As primeiras palavras são “In principio” (fólio 11r). O “I” é grande, com sete vezes a altura de uma letra do texto normal, o “n” não é tão grande, e o “p” é ainda menor, à medida que a escala se reduz até chegar ao tamanho da escrita normal. Essa é uma característica de manuscritos irlandeses. Os escribas do Codex Amiatinus devem ter visto isso em Lindisfarne.
Em compensação os monges de Lindisfarne derivaram seu padrão para são Mateus do Codex Grandior em Jarrow, e pequenas unciais foram usadas em seu encantador “Evangelho de São Cuteberto” do início do século VIII, hoje na Biblioteca Britânica, tão delicado e leve quanto Amiatinus é vasto e volumoso, e que aparentemente foi enterrado numa data remota junto com o corpo de são Cuteberto, sepultado em seu santuário em 698.
De sete a nove escribas trabalharam no Codex Amiatinus
Uma medida da ordem de grandeza do scriptorium e da rigidez de sua organização nos advém do fato de que parece que pelo menos sete e talvez até mesmo nove escribas trabalharam no Codex Amiatinus.
Algumas caligrafias são maiores que outras, e isso é muito aparente nas quebras entre os livros bíblicos. Sua incidência está claramente repartida em distintos grupos de texto. Como o demonstra o volume alceado, vários cadernos são formados por um número incomum de folhas, todos eles correspondendo aos finais dos livros: xlviii (9 folhas, fim de Crônicas, fólio 378v), lxviii (5 folhas, fim de Isaías, fólio 535v), e xc (5 folhas, fim de Tobias, fólio 708v).
Cada um deles representa também uma mudança de escriba. Um caderno com número ímpar de folhas só parece ter sido necessário quando já se tinha começado a escrever o texto seguinte. Desse modo, muitos escribas trabalhavam simultaneamente.
515 bezerros forneceram o material do Codex Amiatinus
Para suprir o pergaminho de manuscritos tão grandes e tão extensos quanto pandectas inteiras deve ter sido necessário dispor da pele de uma quantidade enorme de animais. Da pele de cada um se preparava não mais do que um simples par de folhas.
Para as 1030 folhas do Codex Amiatinus deve ter sido utilizada a pele de 515 bezerros. Para todas as três pandectas encomendadas por Ceolfrido, deve-se multiplicar isso por três.
Às vezes se afirma, sem evidências, que a concessão de terras a Wearmouth-Jarrow em 692 visava prover pasto suficiente a um rebanho que fora aumentado para a feitura de Bíblias.
Na realidade, a criação de alguns milhares de animais não deve ter sido anormal para uma comunidade rural grande e bem organizada durante os trinta anos do abadado de Ceolfrido, especialmente dado que o gado fornecia muitos produtos necessários além de sua pele. Isso incluía a carne para os jantares diários de muitos monges ativos e também os chifres, cola, ossos e até fertilizantes (providos por seu sangue) para a agricultura.
O Codex Amiatinus 1
O Codex Amiatinus 2
O Codex Amiatinus 3
O Codex Amiatinus 4
O Codex Amiatinus 5
Características do Codex Amiatinus
Da mesma forma que Amiata é uma grande montanha, não há como negar que o Codex Amiatinus é um colosso. Ele tem uma espessura quase inimaginável. Cada página tem uns cinquenta centímetros de altura, mas a lombada — tente imaginar isso — tem cerca de trinta centímetros de espessura. O livro vai afinando ligeiramente até a borda lateral.
O manuscrito está encadernado numa capa muito moderna de couro de bezerro cor de bronze aplicado sobre madeira, com tiras de couro penduradas na borda inferior, costuradas com fio amarelo e dotadas de fechos modernos de latão que se encaixam em pinos de metal afixados na borda superior da capa. Francamente, ele parece uma grande e cara maleta de couro italiana.
São mais de 34 quilos, ou, com a encadernação, acessórios, caixa para transporte, uma estimativa de mais de quarenta quilos.
As primeiras oito folhas são ligeiramente menores que as do resto do livro e pródigas em ornamentos.
Há aquela preciosa inscrição dedicatória, embaixo de um arco, no verso da primeira folha, com os nomes que substituíram os anteriores bem aparentes numa tinta de um marrom muito mais escuro, e nem de longe tão bem executados quanto a escrita que não foi alterada.
Na página adjacente está o soberbo e famoso retrato de Esdras, a mais antiga pintura inglesa à qual se pode atribuir qualquer data absoluta (isto é, não posterior a 716).
A maior parte do restante do enorme manuscrito, mais de 2 mil páginas, é formada por um texto austero, mas elegante, em duas colunas, geralmente com ornamentação insignificante.
Impressiona o espantoso frescor de seu estado. A maioria dos manuscritos antigos traz a marca do uso de muitos diferentes períodos, leitores, anotações em várias escritas, emendas e sinais de consultas e referências durante séculos. Afora algumas correções contemporâneas e marcações litúrgicas, provavelmente oriundas do scriptorium original na Nortúmbria, o manuscrito quase não apresenta sinais de uso. É como se tivesse sido embrulhado e jamais aberto. Talvez tenha ocorrido exatamente isso, caso os monges em San Salvatore o tenham considerado antes uma relíquia sagrada de são Gregório do que um livro de uso prático.
Os Salmos agora estão numerados numa caligrafia pós-medieval e há uma numeração discreta dos capítulos de acordo com o sistema moderno, e para mim é fácil acreditar que isso date possivelmente da época do exílio do manuscrito nos escritórios dos editores da Vulgata, em Roma, entre 1587 e 1590.
O manuscrito é construído em sua maior parte de cadernos com oito folhas cada um. Em certo momento, os estudiosos do Amiatinus especularam que seu exótico caderno preliminar poderia ter sido transferido de outro manuscrito, talvez de origem italiana, por ser tão diferente do resto do volume ou de qualquer coisa que se conhecesse em qualquer outra Bíblia medieval existente. Duas das folhas são tingidas de púrpura e uma de amarelo, típicas técnicas clássicas. No entanto, hoje se aceita em todo o mundo que essas páginas são componentes integrais, se bem que muito incomuns, do volume, feitas pelos mesmos escribas e iluminadores ingleses, usando os mesmos pigmentos da figura de Cristo em Majestade, no Novo Testamento, fólio 796v, a qual é parte inquestionável do livro, como demonstra seu alceamento.
A biblioteca de Cassiodoro na Vivarium
A presença dessas páginas de abertura nos leva a um outro nível de extraordinária coincidência com aquele relato segundo o qual Bento Biscop e Ceolfrido obtiveram uma “imensurável quantidade de livros” em sua visita à Itália em 679. Isso envolve uma biblioteca de livros que tinham sido reunidos por Cassiodoro (c. 485-580), cônsul na fase final do Império Romano, filósofo e autor prolífico, convertido ao cristianismo e figura gigantesca na história da erudição bíblica.
Quando se retirou de cena, Cassiodoro estabeleceu uma espécie de fundação de pesquisa monástica na Calábria, extremo sudeste da Itália, chamada Vivarium à qual ele doou sua biblioteca particular.
Além disso, nas Institutiones, seu compêndio sobre estudo teológico e secular, Cassiodoro não apenas explicou seu método para subdivisão e interpretação da Bíblia como também descreveu em detalhes como tinha incorporado esse seu sistema bíblico único a alguns de seus próprios manuscritos.
Os detalhes apresentados correspondem com tamanha exatidão ao material existente nessas primeiras folhas do Codex Amiatinus que parece ser inescapável a explicação de que são cópias diretas, e de que de algum modo naquela “imensurável quantidade de livros” obtidos em Roma deviam estar incluídos alguns dos manuscritos do próprio Cassiodoro, antes na Vivarium, agora de volta ao mercado.
Como acontece com muita frequência com bibliotecas pobremente dotadas, a Vivarium não conseguiu sobreviver muito tempo após a morte de seu fundador, e seus livros, com acerto, foram dispersos ou vendidos.
Se alguns (pelo menos) foram depois comprados por Ceolfrido, eles estariam por sua vez disponíveis como exemplos para os escribas de Wearmouth-Jarrow, na Nortúmbria. Beda, cujo conhecimento dos estudos clássicos era assombrosamente vasto, talvez tenha tido a sorte de ter acesso às aquisições feitas de uma das mais qualificadas coleções privadas de livros do final do Império Romano, e pode nem mesmo ter se dado conta de que os manuscritos em Jarrow já tinham sido do grande Cassiodoro em pessoa.
Cassiodoro e o Codex Grandior
Em suas Institutiones, Cassiodoro afirma possuir uma enorme pandecta com uma tradução latina da Bíblia, que ele chamou de seu “Codex Grandior”, “o manuscrito maior”. Seu texto do Antigo Testamento, ele diz, foi tirado da primeira revisão do grego por Jerônimo, e não da versão posterior da Vulgata mais recentemente traduzida do hebraico. Supõe-se que compreendia 380 folhas.
Considerando a extrema raridade, na época, de quaisquer versões abrangentes da Bíblia em um só volume em latim, esse manuscrito muito provavelmente não era outro senão aquela mesma pandecta de uma “antiga” tradução que fora trazida da Itália por Ceolfrido.
O Codex Grandior e o Codex Amiatinus
Cassiodoro diz que tinha inserido em seu Codex Grandior um diagrama com a planta do Templo de Jerusalém, conforme descrita em Êxodo 26. Um esboço exatamente com esses detalhes aparece numa página dupla entre as folhas de abertura do Codex Amiatinus (fólios 6v-7r). Mostra o interior do templo, o próprio Tabernáculo. No centro está o Santo dos Santos, com a Arca da Aliança. Mais adiante Cassiodoro relata (tudo isso está no livro I, capítulo 14, das Institutiones) que ele também incluíra no Codex Grandior diagramas com diferentes maneiras de dividir o texto da Bíblia de acordo com os santos Hilário, Jerônimo e Agostinho, respectivamente. É exatamente isso que encontramos nos fólios 3r, 4r e 8r de Amiatinus.
A mais famosa e estranha das páginas preliminares é o assim chamado retrato de Esdras, já mencionado, agora posto no frontispício. Ele mostra um homem aureolado em vestimentas sacerdotais judaicas sentado num banquinho, encurvado, quase de perfil, escrevendo num livro meio aberto em seu colo. Tem os pés num pedestal baixo. Espalhados a sua volta estão vários instrumentos da profissão de escriba — cálamos, compassos, penas, potes de tinta e o que provavelmente é um prato com pigmentos numa mesa em separado. Atrás dele há um armário aberto com as portas apaineladas bem escancaradas para mostrar cinco prateleiras inclinadas nas quais estão arrumados nove livros encadernados em capas ornamentadas vermelho-escuras. Os detalhes da marcenaria nos móveis e os ornamentos entalhados em torno do armário no Codex Amiatinus são extraordinariamente delicados e sofisticados. Há uma hábil tentativa de um desenho em perspectiva. O pote de tinta lança uma sombra no chão, e vale a pena notar isso só pelo fato de com frequência se dizer que não aparecem sombras na arte europeia até o século XV.
É uma cena estranha, aparentemente mostrando um autor que rascunha um texto e não um escriba que copia um. As palavras em seu livro são indicadas por rabiscos desunidos, que às vezes se alega serem na verdade notas tironianas, tipo de antiga estenografia medieval, mas decerto não passa da forma como o artista representou um texto inespecífico. No topo da página, fora da moldura da figura, há um dístico escrito em maiúsculas rústicas: “Codicibus sacris hostili clade perustis/ Esdra deo fervens hoc reparavit opus”, que significa (mais ou menos) “Tendo os Livros Sagrados sido destruídos num desastre hostil, Esdras, comprometido com Deus, restaurou esta obra”.
Isso alude à ocasião, após o exílio dos judeus na Babilônia, por volta de 457 a.C., em que Esdras foi enviado de volta a Jerusalém e descobriu que as Escrituras hebraicas tinham sido esquecidas e perdidas, e sob orientação divina ele as reconstituiu de memória. É essa legenda, bem como sua vestimenta sacerdotal do Antigo Testamento, que identifica o homem apresentado como Esdras.
Retratos preambulares de autor eram provavelmente uma característica de textos gregos desde a Antiguidade clássica.
Esdras não era propriamente um autor. Sua contribuição, se a considerarmos de modo literal, foi na preservação de textos da primeira parte do Antigo Testamento — não, é claro, toda a inteireza das Escrituras cristãs, a maior parte das quais data de muito depois da época em que ele viveu.
De muitas maneiras, um frontispício mais adequado a uma pandecta de Vulgata inteira teria sido uma imagem de São Jerônimo escrevendo, o que de fato aparece, com frequência, na abertura de muitas Bíblias medievais mais tardias.
O estilo aqui é tão mediterrâneo que deve ter sido copiado de um exemplar importado da Itália, o que também é, presumivelmente, o caso do Codex Grandior, embora Cassiodoro não mencione nele a presença de uma figura assim.
Com frequência se sugere que a pintura no Amiatinus seja na verdade uma figura, que foi mal-entendida, do próprio Cassiodoro, que como Jerônimo (e Esdras, e Ceolfrido) estava comprometido com a preservação e a transmissão da Bíblia após um período de caos. Cassiodoro viveu o saque a Roma pelos ostrogodos em 546, e seu pequeno oásis cristão na Vivarium se dedicava a manter as Escrituras em segurança durante as tormentas da barbárie e da apostasia.
Em suas Institutiones, Cassiodoro descreve não só seu Codex Grandior como também o que ele chama de “novem codices”, os nove volumes separados nos quais ele tinha dividido e copiado o texto da Bíblia. As prateleiras no armário atrás de Esdras na figura mostram exatamente isso: nove tomos bíblicos com títulos na lombada.
Nas reproduções da página esses nomes são quase impossíveis de ler, mas posicionando o manuscrito original de modo que reflita a luz, os nove títulos ficam visíveis com seu brilho contra um campo opaco — o Octateuco, Reis e Crônicas com Jó, oito livros de história, os Salmos, os livros de Salomão, os Profetas, os Evangelhos, as Epístolas e (por fim) Atos e Apocalipse.
No melhor dos casos, apenas a primeira prateleira poderia ser atribuída a Esdras na realidade histórica, mas todas as nove estavam na biblioteca da Vivarium. Faria mais sentido se o modelo para essa figura tivesse sido um retrato de Cassiodoro. É discutível que Cassiodoro tivesse encomendado um retrato de si mesmo, mas seus sucessores e bibliotecários póstumos poderiam facilmente ter inserido um frontispício hagiográfico no Codex Grandior, o favorito de seu falecido patrão.
O Codex Amiatinus 1
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Uma Bíblia Vulgata é levada para Roma
Uma nova Bíblia Vulgata para cada igreja, a de Wearmouth e a de Jarrow, é um fato compreensível, conquanto impressionante, mas uma terceira cópia? Quanto a isso só podemos especular.
Talvez houvesse planos que nunca se materializaram para a criação de uma terceira casa nortumbriana, tão distinta e tão indivisível quanto a Trindade (conceito do qual eles gostariam); ou talvez — e ele não seria o único no que concerne a isso — Ceolfrido se perguntasse secretamente se sua carreira não o levaria ainda mais longe, talvez como arcebispo da Cantuária com a morte de Teodoro, ou mesmo como papa, e talvez guardasse um volume de reserva para qualquer promoção que lhe fosse oferecida em outro lugar.
Mas o anônimo Vita Ceolfridi e Beda nos contam o que aconteceu depois. Com a avançada idade de 74 anos, Ceolfrido decidiu ir de novo a Roma e levar consigo a terceira pandecta, a reserva, como um presente para São Pedro, o príncipe dos apóstolos. (Era comum a prática medieval de se referir a uma igreja com o nome de seu santo padroeiro, como se ainda estivesse vivo: isso significava, é claro, a corte papal.) A implicação é que esse anúncio veio como uma surpresa para a comunidade de Wearmouth-Jarrow.
Não sabemos qual foi seu motivo, não mais do que sabia Beda. Será que Ceolfrido ainda esperava, em seu íntimo, uma nomeação em Roma, caso em que poderia precisar da Bíblia para facilitar as negociações? O papa Constantino tinha morrido em 9 de abril de 715, e provavelmente a decisão de viajar foi tomada por Ceolfrido mais ou menos quando a notícia chegou à Inglaterra. Ou teria havido em 679 algum tácito entendimento de que ele podia levar livros de Roma para a Nortúmbria em troca de transcrições posteriores? Ambas as hipóteses são possíveis.
A Vita Ceolfridi registra as palavras exatas de uma inscrição que foi inserida no início do tomo, dedicatória a São Pedro da parte de Ceolfrido, abade dos ingleses dos mais distantes confins da Terra (“extremis de finibus”).
Portanto, em junho de 716, como nos diz o relato, essa terceira pandecta, convenientemente já com a dedicatória, foi levada declive abaixo, da igreja de Jarrow para um navio no rio Don, para o Tyne e para o mar, acompanhada de Ceolfrido e um séquito de monges. Foi a primeira exportação documentada de uma obra de arte da Inglaterra.
Mas para nossa lástima, Ceolfrido morreu durante a viagem, em Langres, França central, em setembro, e isso, por mais de mil anos, representou o fim da história.
O Codex Amiatinus na abadia de San Salvatore
Há um famoso manuscrito antigo da Bíblia na Itália conhecido como Codex Amiatinus. Era um antigo tesouro do mosteiro de San Salvatore, no monte Amiata, no sul da Toscana, de onde tirou seu nome. Está registrado na lista das relíquias da abadia, datada de 1036, que o descreve como sendo o Antigo e o Novo Testamento “escritos pela mão do abençoado papa Gregório”. Essa atribuição a são Gregório, o Grande (c. 540-604), não era desarrazoada, uma vez que fora escrito em unciais italianizadas, muito parecidas com as do Livro dos Evangelhos de Santo Agostinho, e nunca se duvidou de que tinha sido feito na Itália.
Ele abre com uma dedicatória de página inteira, na qual o livro é presenteado ao mosteiro do Salvador (Salvator) por um certo Pedro, abade dos lombardos, “dos mais distantes confins da Terra”. Mesmo hoje em dia, os toscanos consideram todos os lombardos pessoas de um reino alienígena que fica além das mais afastadas fronteiras da civilização (e vice-versa), e essa inscrição de redação estranha foi aceita com satisfação em San Salvatore em seu valor nominal.
O livro é o mais antigo manuscrito completo sobrevivente da Vulgata e ainda é a principal referência para o estabelecimento do texto da Bíblia latina.
Constantin Tischendorf editou o texto em latim do Novo Testamento no Codex Amiatinus em 1854. Ele anunciou que tinha havido pequenas alterações na dedicatória inserida, e que os nomes de Pedro, abade dos lombardos, e do mosteiro ao qual era dedicado pareciam ter sido escritos cobrindo rasuras.
Trinta anos depois, o epigrafista Giovanni Battista de Rossi (1822-94) por fim decifrou os nomes que estavam por trás e revelou que o manuscrito tinha sido originalmente dedicado a São Pedro por um chamado Ceolfrido, “abade dos ingleses”.
Logo depois, um professor de teologia em Cambridge, F. J. A. Hort (1828-92), relembrou que essas palavras batiam com a transcrição na Vita Ceolfridi e se constatou pela primeira vez que devia ser na realidade a pandecta de Wearmouth-Jarrow, da qual se perdera a pista desde que deixara a Nortúmbria, em 716.
Quando estourou a notícia, em fevereiro de 1887, ela causou sensação, especialmente na Grã-Bretanha. Foi uma década excitante de descobertas bíblicas no Oriente Médio e em Oxirrinco, no Egito, mas poucos anúncios tinham sido tão inesperados quanto a revelação de que a mais antiga cópia completa da Bíblia latina fora na verdade feita na Inglaterra.
Em 1890, H. J. White, mais tarde deão da Igreja de Cristo, em Oxford, disse, com um toque de exagero patriótico, que ela era “talvez o mais belo livro no mundo”.
A abadia de San Salvatore
O mosteiro de San Salvatore não fica no cume, mas num platô na encosta leste do monte Amiata, na Toscana, Itália. Em torno dele há uma cidade medieval, e o conjunto é conhecido como Abadia de San Salvatore, pois se desenvolveu como um adjunto à vida do mosteiro, o qual ele cerca e protege.
A história documentada da abadia remonta a 742. Ela se incorporou à Ordem Cisterciense em 1228. Consta que Carlos Magno esteve aqui em 800, em seu caminho em direção ao sul para sua coroação como imperador em Roma. O papa Pio II — Enea Silvio Piccolomini, o erudito humanista — morou aqui durante os meses de verão de 1462. É bem possível que o precioso códex tenha sido mostrado ao imperador e, com certeza, ao papa.
Como o manuscrito era (e ainda é) a referência primordial para o texto em latim da Vulgata, ele assumiu grande importância durante a Contrarreforma. Os assediados católicos do século XVI sentiam-se ameaçados pelas traduções protestantes da Bíblia, que agora eram feitas diretamente das línguas originais das Escrituras, enquanto eles só tinham os textos em latim. O Codex Amiatinus, no entanto, dava a isso uma resposta, ao que parecia, incontestável. Essa “Bíblia de são Gregório” em latim, reputada como do século VI, era substancialmente mais antiga do que qualquer manuscrito em hebraico conhecido e na época só era igualada por um em grego (no Vaticano). Era, portanto, uma grande peça de propaganda na batalha pela precedência de texto.
Em 1572, o capítulo geral dos cistercienses mandou buscá-lo, para consulta; o mesmo fizeram os conselheiros de Gregório XIII. O mosteiro recusou-se a emprestá-lo.
Mais tarde ele foi sumariamente requisitado pelo papa Sisto V, para ser usado como principal fonte na preparação de uma nova edição papal da Bíblia, e o mosteiro não teve escolha. O livro foi para Roma em 12 de julho de 1587 e foi devolvido a San Salvatore em 19 de janeiro de 1590. A Vulgata sistina, nele baseada, foi publicada em 1590 e depois revista como a monumental edição clementina de 1592, a resposta católica a Lutero; é publicada até hoje.
Assim como muitos mosteiros italianos atingidos pela política secular de modernização do Sacro Império Romano no final do século XVIII, a Abadia de San Salvatore foi extinta por completo em junho de 1782.
O Codex Amiatinus na Biblioteca Medicea Laurenziana, em Florença
A existência do Codex Amiatinus foi informada em 1789 ao grão-duque da Toscana, Pedro Leopoldo (1747-92, mais tarde imperador Leopoldo II), como tendo estado “entre as sombras e sob o pó, desconhecido como que perdido”. Ele ordenou que fosse levado do monte Amiata para Florença, primeiro sob a custódia de um seminário, e logo depois para a Biblioteca Laurenziana, onde está agora como Cod. Amiat. 1, provavelmente o mais famoso manuscrito da biblioteca.
A Biblioteca Laurenziana está entre as glórias arquitetônicas e literárias de Florença, uma das mais extasiantes cidades do mundo. Seu cerne é o acervo humanista a princípio reunido por Cosimo de’ Medici, “il Vecchio” (1389-1464), que foi suplementado sobretudo com as aquisições de seu neto Lorenzo, “o Magnífico” (1449-92).
Após a morte de Lorenzo os livros foram saqueados, vendidos e readquiridos pelos Medici, que agora viviam em Roma. Posteriormente as coleções foram devolvidas a Florença por Clemente VII (Giulio di Giuliano de’ Medici, 1478-1534), que encomendou ao próprio Michelangelo o projeto de uma biblioteca nobre para eles acima do claustro da basílica de San Lorenzo, a igreja da família Medici desde 1419. Foi completada em 1571 por Cosimo I de’ Medici (1519-74), grão-duque da Toscana e parente não consanguíneo do papa, e tinha então cerca de 3 mil manuscritos. Ela ainda mantinha algo do caráter de uma biblioteca dinástica quando o grão-duque Pedro Leopoldo ordenou que o Amiatinus fosse levado para lá do extremis finibus de seu ducado, na década de 1780.
No começo deste ano li um livro de Christopher De Hamel, Manuscritos Notáveis. Fiquei impressionado.
Estava procurando mais informações sobre manuscritos da Vulgata. O capítulo 2 trata do Codex Amiatinus, considerado o manuscrito mais bem preservado da versão latina da Bíblia feita por Jerônimo, conhecida como Vulgata.
Publiquei no Observatório Bíblico, em 02.02.2024, um post sobre o Codex Amiatinus. Entre as obras indicadas está o livro de Christopher De Hamel. E um link para um resumo que fiz do capítulo 2.
Agora decidi colocar aqui em 5 posts o resumo, ali disponível em pdf, mas pouco visível.
O livro é: DE HAMEL, C. Manuscritos notáveis. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, 680 p. – ISBN 9788535929867. Em inglês é: Meetings with Remarkable Manuscripts: Twelve Journeys Into the Medieval World. New York: Penguin Press, 2017.
O Codex Amiatinus 1
O Codex Amiatinus 2
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O Codex Amiatinus 5
Os mosteiros de Wearmouth-Jarrow e o abade Bento Biscop
Da Inglaterra do século VII, muito pouca coisa restou sobre o solo. Vestígios da arquitetura do período ainda podem ser vistos na extremidade oeste da igreja paroquial de São Pedro em Monk Wearmouth, no moderno condado de Tyne and Wear, extremo nordeste da Inglaterra, onde era a antiga Nortúmbria.
Há claras marcações no gramado ao sul da igreja indicando o perímetro de escavações arqueológicas recentes, mas é preciso muita imaginação para conceber isso como uma paisagem selvagem da Idade das Trevas, perto de onde o grande rio Wear desemboca no mar do Norte (nenhum dos quais se avista hoje da igreja), num terreno ofertado em 674 por Egfrido, rei da Nortúmbria, para a fundação de um grande mosteiro no modelo dos da Roma clássica tardia.
O primeiro abade e fundador dessa nova abadia do norte foi Bento Biscop (c. 628-90), um nobre local que visitou Roma nada menos que cinco vezes em sua vida. Essas experiências tiveram claramente um enorme impacto em sua percepção cultural. Ele decidiu tornar-se um monge. Em sua terceira viagem, em 669, acompanhou na volta à Inglaterra o sétimo arcebispo da Cantuária, na sucessão a Santo Agostinho, Teodoro de Tarso (602-90), a quem se credita ter instituído o ensino de grego no sul da Inglaterra. Em troca, Teodoro nomeou Bento abade efetivo do mosteiro vizinho na Cantuária, depois conhecido como Abadia de Santo Agostinho.
Quando, vários anos depois, em 674, o rei Egfrido ofereceu o terreno à margem do Wear para um mosteiro, Bento foi o candidato óbvio a ser enviado de volta à Nortúmbria. Conhecemos os detalhes disso a partir das incomparáveis histórias de Beda (c. 672-735), gênio preeminente entre os escritores anglo-saxões.
Bento Biscop e Ceolfrido em Roma e as Bíblias levadas para a Nortúmbria
Após estabelecer a nova casa em Wearmouth, Bento viajou de novo para Roma em 679, acompanhado pelo jovem monge Ceolfrido (c. 642-716). Os dois viajantes compraram lá, ou de algum modo obtiveram, “uma imensurável quantidade de livros de todos os tipos”, como expressou Beda, fato que terá destaque na história que se segue. Beda, que conhecia os dois, deixa implícito que foi Ceolfrido e não Bento quem adquiriu em Roma o texto da nova tradução da Bíblia (isto é, a Vulgata de Jerônimo) em três manuscritos, junto com uma vasta pandecta — ou seja, um volume abrangente — da Bíblia inteira, descrita como uma “antiga” versão das Escrituras. Esses e outros livros, bem como relíquias e objetos sacros, foram todos enviados e vieram junto com Bento e Ceolfrido para Wearmouth.
Os monges ingleses também cooptaram pessoas em Roma, inclusive um chantre chamado João, que veio para ensinar a prática de canto romana, e provavelmente artífices praticantes. As informações para visitantes no exterior da igreja em Monk Wearmouth hoje registram como as escavações no sítio revelaram vestígios de vidro e argamassa romana, técnicas que não eram conhecidas no norte da Europa naquele tempo.
Os livros trazidos de Roma, muito valorizados na época de Beda, há muito desapareceram, exceto (talvez) um pequeno fragmento italiano do século VI, tradução feita por Jerônimo do livro dos Macabeus para o latim, que sobreviveu por sorte, ao ser reutilizado como folha de guarda num manuscrito medieval na biblioteca da Catedral de Durham.
Em 682, o rei Egfrido deu aos monges mais terras, em Jarrow, cerca de onze quilômetros a noroeste, próximo da foz de outro grande rio nortumbriano, o Tyne. Os monges decidiram construir uma segunda igreja. O abade Bento Biscop confiou essa tarefa a Ceolfrido, que se mudou para o novo local com vinte membros do mosteiro, inclusive Beda, que era então adolescente e um monge iniciante.
Os dois estabelecimentos eram tidos como uma só comunidade, a uma distância um do outro que se podia percorrer a pé. Historiadores modernos referem-se comumente aos mosteiros gêmeos como “Wearmouth-Jarrow”, como se fossem um único local, e é costumeiro se referirem “à biblioteca” ou “ao scriptorium” de Wearmouth-Jarrow como sendo entidades indistinguíveis. Wearmouth foi dedicada a São Pedro, e Jarrow a São Paulo, os patronos conjuntos da Roma cristã.
É provável que Ceolfrido tenha transferido para Jarrow os manuscritos que ele mesmo tinha adquirido em Roma, já que Beda, claramente, continuou tendo acesso a eles, mas assim mesmo continuaram a ser propriedade conjunta de ambas as igrejas. Em 686 Ceolfrido foi nomeado abade das duas casas, e continuou a viver em Jarrow por mais trinta anos.
Ceolfrido encomenda três Bíblias completas
Há dois relatos do início do século VIII relacionados com a cópia de mais manuscritos bíblicos sob o patrocínio de Ceolfrido. Tendo em vista a raridade de quaisquer referências documentais à produção anglo-saxã de livros, eles merecem ser examinados com cuidado.
O primeiro refere-se a uma biografia anônima de Ceolfrido, decerto escrita por um de seus monges. Ele registra que Ceolfrido enriqueceu muito o acervo da igreja em Jarrow e que aumentou consideravelmente a coleção de livros que ele e Bento Biscop tinham trazido de Roma. O autor explica que Ceolfrido encomendou mais três Bíblias completas (ou pandectas), das quais uma foi deixada em cada igreja dos mosteiros gêmeos, de modo que quem quer que desejasse ler uma passagem de qualquer um dos testamentos poderia fazê-lo sem dificuldade. Não consta uma data certa para eles, exceto que aconteceram durante o abadado de Ceolfrido, mas esses manuscritos provavelmente tiveram início nas últimas décadas do século VII, e o trabalho deve ter continuado no início do século VIII.
Beda, que sem dúvida estava muito familiarizado com a cópia exibida na igreja de Jarrow, faz um ligeiro complemento desse relato em sua Historia abbatum. Ele descreve como Ceolfrido trouxe uma pandecta de uma “antiga” tradução da Bíblia de Roma e depois ampliou esse benefício fazendo mais três cópias dela, mas com um “novo” texto em vez do primeiro. Essa última observação é de importância. É característico de Beda ter noticiado e registrado qual tradução estava sendo usada. Os escribas sob a direção de Ceolfrido modelavam suas cópias no formato da grande pandecta que tinham recebido da Itália, mas agora eles substituíram o texto para que fosse o da mais moderna Vulgata de Jerônimo. Esse fato vai se tornar significativo na história.
Seleção de postagens dos biblioblogs no verão [do hemisfério norte] de 2024.
Biblical Studies Carnival #219 for Summer 2024
Trabalho feito por Phillip J. Long em seu blog Reading Acts.