Reforma atribuída a Josias teria sido proposta só no pós-exílio

A verdadeira reforma, de fato, ocorreu quase dois séculos depois de Josias. Mas, como frequentemente acontece, a história foi reescrita para dar a essa reforma a autenticação necessária. O século V a.C. fornece um contexto plausível tanto para a “descoberta” do livro do Deuteronômio quanto para a história da reforma de Josias. 

Esta é a proposta de Philip R. Davies, da Universidade de Sheffield, Reino Unido, no texto “Josias e o Livro da Lei” que pode ser lido a seguir.

O texto é: DAVIES, P. R. Josiah and the Law Book. In: GRABBE, L. L. (ed.) Good Kings and Bad Kings: The Kingdom of Judah in the Seventh Century BCE. London: T&T Clark, 2005, p. 65-77. Este livro é resultado do sétimo encontro, ocorrido em 2002, do Seminário Europeu de Metodologia Histórica.

Observo que neste mesmo volume, nas páginas 27-46, Rainer Albertz, da Westfälische Wilhelms-Universität de Münster, Alemanha, se contrapõe a Philip R. Davies com o texto “Why a Reform Like Josiah’s Must Have Happened” [Por que uma reforma como a de Josias deve ter acontecido].

Ele diz, no final de seu texto: “Philip Davies deve ser elogiado por não apenas negar a reforma josiânica e deslocar o livro de Deuteronômio para um período posterior, mas também por tentar dar razões para uma datação no século V a.C. Mas, na minha opinião, a evidência dada por ele é bem menos convincente do que a da hipótese tradicional” [da existência de uma reforma de Josias no século VII a.C.].

As ambições de Josias

As várias questões históricas em torno de Josias foram muito bem abordadas em outras partes deste volume, e minha própria contribuição é concebida amplamente como metodológica, na qual me envolverei com dois dos meus colegas no Seminário [Nadav Na’aman e Rainer Albertz].

Meu ponto de partida é o estudo de Nadav Na’aman sobre a política do reino de Judá sob Josias (Na’aman 1992), que oferece uma crítica muito boa da pesquisa sobre o reinado de Josias, resumida como segue.Philip R. Davies (1945-2018)

A primeira parte do estudo de Na’aman argumenta que as listas de cidades de Judá e Benjamim em Josué 15 e 18 refletem, apesar de algum aprimoramento editorial, a situação em Judá no século VII a.C.

A segunda parte lida com a cronologia do declínio do poder assírio, muitas vezes pensado como tendo ocorrido repentinamente na parte inicial do reinado de Josias, levando a uma política de expansão judaica sobre o território adjacente. Na’aman mostra que esse cenário proposto é improvável. Pelo contrário, os assírios parecem ter cedido o controle sobre a Palestina de uma forma mais ou menos ordenada ao Egito, de modo que o rei judaíta teve pouca ou nenhuma oportunidade para o exercício da independência política. Em suma, não havia vácuo de poder.

Em conexão com a morte de Josias, Na’aman argumenta que Necao II marchou pela Palestina (em vez de levar seu exército para um porto fenício, o procedimento mais usual) não para lutar contra a Babilônia, mas para receber o juramento de lealdade dos reis locais que precisava ser renovado na ascensão de um novo faraó soberano. Observando que nada é dito em 2 Reis sobre uma batalha do faraó contra Josias, Na’aman deduz que Josias não morreu em batalha, mas por assassinato ou execução por algum motivo, possivelmente uma suspeita de deslealdade por parte de Necao II. Assim, a visita de Josias a Meguido pode ter sido em resposta a uma convocação para jurar lealdade pessoalmente diante do novo faraó.

O que pode ter provocado a execução de Josias? Embora Na’aman admita que o controle efetivo da Palestina passou para o Egito à medida que o poder assírio declinava, Josias pode, no entanto, ter desfrutado (ou sentido que tinha) alguma liberdade para unificar e cristalizar (1992: 41) seu reino, enquanto os esforços dos egípcios estavam, como de costume, concentrados nos distritos costeiros e nos vales. Apenas uma expansão limitada de fronteiras, no entanto, poderia ter sido sequer contemplada, muito menos alcançada; nenhum grande projeto para ganhos territoriais extensos.

Esta reconstrução dá sentido a uma morte que, de outra forma, como Miller e Hayes (1986: 402) observam, permanece um mistério. Enquanto 2 Reis 23,29 possivelmente sugere confronto militar, o confronto militar não é explicitamente mencionado. O relato da morte de Josias é vago, até mesmo misterioso e talvez isto seja deliberado. De qualquer forma, a sugestão de uma derrota militar permite que 2 Crônicas 35,20-24 mostre o rei piedoso morrendo de ferimentos de batalha em Jerusalém, por sua vez encorajando a maioria dos estudiosos modernos a concluir que Josias foi para a batalha, embora os deixe confusos sobre os motivos de tal empreendimento suicida.

Mesmo que Na’aman não esteja correto sobre a maneira como Josias morreu, sua análise da situação política é bem fundamentada nas evidências. A expansão frequentemente afirmada de Judá sob Josias não ocorreu, e não poderia ocorrer. Declarações tais como “Ele [Josias] tentou restaurar o reino ou império de Davi em todos os detalhes” (Cross 1973: 283 ) Na’aman descarta como construídas sobre falsos fundamentos: não há, ele diz (1992: 44), fundamentos para a suposição de que Josias tentou conquistar todo o norte e impor suas reformas em todo o território da Palestina, uma conclusão já antecipada por alguns historiadores anteriores.

Permanece, no entanto, alguma evidência epigráfica aparente em contrário nas cartas de Arad e Mesad Hashavyahu. Os óstraca de Arad 1-18, datados do reinado de Josias ou seu sucessor, pertencem a uma coleção enviada a Eliashib, um comandante militar, e a maioria dá instruções para o fornecimento de tropas. No entanto, essas instruções não são necessariamente evidências do ressurgimento militar judaíta ou da refortificação judaíta de Arad. Sob a jurisdição egípcia, Josias teria tido permissão, ou foi obrigado, a assumir a responsabilidade de fornecer guarnições e trabalhadores agrícolas em áreas adjacentes, seguindo a prática refletida muito antes na correspondência de Tel el-Amarna. A evidência desses óstraca é inteiramente consistente com a prática egípcia conhecida durante seus períodos de governo sobre a Palestina e não contradiz a reconstrução de Na’aman.

A conclusão dos argumentos de Na’aman é que “a imagem do reinado de Josias, como refletida nesta discussão, está muito distante da descrição daqueles anos como refletida no livro dos Reis, e não menos distante do esboço de seu período apresentado na historiografia moderna”( Na’aman 1992: 55 ).

Isso aponta para um estado de coisas não desconhecido. Um retrato bíblico enganoso ainda mais distorcido pelas especulações da pesquisa bíblica, neste caso, a tese de um período áureo de reconstrução josiânica. Esse retrato tem que ser redesenhado — mas não apenas em relação à ambição ou realização territorial, mas também para outros aspectos de seu reinado. A apresentação de Josias em 2 Reis é, então, enganosa, e estudiosos modernos frequentemente têm ampliado a distorção (…)

A reforma de Josias

Agora, desejo pegar o bastão de Na’aman e correr um pouco mais com ele. O relato da reforma de Josias também pertence à idealização evidente em relação à sua ambição territorial? Na pesquisa moderna, a política assumida por Josias de expandir um Judá recém independente para um território anteriormente do reino de Israel é fundada, afinal, no relato de sua reforma religiosa. Ou, ao contrário, a reforma é comumente explicada como parte de suas medidas para sinalizar ou consolidar sua independência política.

Mas se essa independência nunca poderia ter sido alcançada, admitindo apenas, na melhor das hipóteses, uma modesta aquisição de território além da fronteira judaíta, então a explicação moderna dada para a reforma de Josias não se sustenta. De fato, ficamos confusos quanto ao que se pretendia alcançar. Reformas religiosas no início do reinado de um rei não são incomuns: elas servem para recomendar o novo monarca a seus súditos e à divindade. Mas essa reforma só foi empreendida quando seu reinado já estava bem adiantado.

O relato em 2 Reis não retrata de fato Josias como expandindo seu território. O relato toma o controle sobre o antigo reino de Israel como garantido, convenientemente apagando (do tempo de Ezequias em diante) qualquer indício de dominação assíria.

Na’aman sugeriu que Josias não poderia ter sido retratado como subserviente à Assíria porque ele era um rei justo, como Ezequias antes dele. Isso é plausível, e tanto Ezequias (2 Reis 18) quanto Josias são creditados com uma reforma religiosa. Mas, de acordo com o esquema de 2 Reis, qualquer bom rei seguindo um rei mau teria que empreender uma reforma religiosa e a liberdade da influência assíria é necessária para tornar isso plausível. Dada essa premissa teológica, não é realmente fácil de afirmar que algum rei realmente tenha cumprido o requisito deuteronomista.

A realidade histórica da resistência de Ezequias, como debatido em um seminário anterior (Grabbe [ed.] 2003), é que ele perdeu a maior parte de seu território e pagou Senaquerib com uma grande fortuna. O simples fato de Jerusalém não ter sido tomada e de o rei assírio ter partido permitiu que Ezequias recebesse o posto de rei justo.

O caso de Josias é mais interessante. O que o qualificou para o mesmo status? Foi sua morte heroica? Ou foi, de fato, algum ato aparentemente piedoso? Josias foi creditado com uma reforma porque seu status a exigia, ou seu status foi motivado por algum ato deuteronomisticamente aprovado que ele realizou? Tentarei chegar a uma resposta, mesmo que provisória.

A história da reforma se divide em três episódios: a descoberta e verificação do livro da lei, seguida pela aliança (2 Rs 22,3-23,3); a destruição de objetos e lugares de culto (2 Rs 23,4-20); e um terceiro episódio (2 Rs 23,21-24), compreendendo a celebração da Páscoa e a remoção de certas práticas religiosas, com referência, mais uma vez, ao livro da lei.

Não está claro se o segundo episódio está intrinsecamente conectado ao primeiro. A estrutura literária de 2 Reis 22-23 permanece em disputa e há uma possibilidade de que o tema do livro da lei tenha sido inserido em uma narrativa de reforma ou uma narrativa de reforma tenha sido desenvolvida após uma história da descoberta de um livro da lei (ver Lohfink 1985).

Também deve ser notado que as atividades de reforma de Josias são confinadas a Judá e seus arredores, especialmente Betel, com exceção de um único breve aviso sobre o território de Samaria (2 Reis 23,19).

Que outras evidências temos para ambos? Deveríamos começar (como muitos estudiosos anteriores) buscando alusões a uma reforma ou ecos dela (ou ausência de ambos), em outros textos bíblicos. Portanto, a natureza do próprio livro de leis requer análise.

O impacto da reforma de Josias

Parece haver pouca ou nenhuma sugestão de qualquer reforma em outra literatura bíblica que possa ser atribuída ao período, por exemplo, os livros de Jeremias ou Sofonias. Albertz (1994: 200) aponta para Jr 8,7-8, sugerindo uma lei escrita nas mãos dos sacerdotes. Mas este texto não menciona nenhuma reforma. Ele também menciona Jr 22,15; 31,2-6 e 44,18 como oferecendo algum suporte para a ideia de um clima de reforma. Mas não há nenhuma indicação clara ou direta no livro do profeta Jeremias, que estava em Jerusalém naquela época, de que uma grande reforma religiosa tenha ocorrido.

Sweeney (2001: 129-313) analisou mais recentemente uma gama mais ampla de textos proféticos (Sofonias, Naum, Jeremias, Isaías, Oseias, Amós, Miqueias e Habacuque), concluindo que os profetas que eram contemporâneos de Josias abordaram ativamente aspectos de seu programa de reforma e frequentemente apontam para aspectos que não são evidentes no relato deuteronomista de seu reinado (p. 310).

O espaço não permite, infelizmente, uma avaliação detalhada da longa discussão de Sweeney. Mas aqueles textos que ele cita em apoio à centralidade de Jerusalém dificilmente indicam inequivocamente o tempo de Josias em vez de um período posterior. Vários textos parecem se referir a aspectos da reforma não mencionados em 2 Reis, enquanto outros textos parecem fornecer legitimação para a reforma, incluindo a reunificação dos reinos divididos, mas não necessariamente pressupõem isso.

Tendo avaliado as evidências e argumentos de Sweeney, não encontrei nenhuma referência convincente a uma reforma como descrita em 2 Reis 22-23, e muito pouco que sugira qualquer reforma religiosa neste momento, com uma exceção importante, à qual retornarei em breve e que não envolve um livro de leis.

Eu sustento, então, que não temos nenhum texto que, na ausência de 2 Reis 22-23, nos levaria a sugerir uma reforma religiosa. Isso deve ser exigido de qualquer corroboração independente. Alguns textos poderiam se referir a tal coisa, se tivesse acontecido, mas não implicam que tenha acontecido. Em suma, os argumentos de Sweeney dependem da suposição de que houve uma reforma, e não fornecem evidências adequadas de que houve uma. Tal ausência é significativa, se não conclusiva.

Esta conclusão nos leva, então, à questão do livro da lei. Como é bem sabido, De Wette pode ser creditado por ter nos legado a percepção de que o livro da lei de Josias era o livro do Deuteronômio, ou alguma forma dele. Esta identificação, feita em 1805, forneceu a ele uma chave importante para separar a lei das origens mosaicas do judaísmo e, assim, desenvolver uma reconstrução crítica da história da religião de Israel e Judá. Vale, no entanto, lembrar que De Wette considerava D como a última das fontes do Pentateuco, e que sua identificação do livro da lei com o Deuteronômio não foi universalmente aceita até hoje.

No entanto, não é preciso ser um gênio para ver que a identificação do Deuteronômio com o livro da lei josiânica é precisamente o que o autor de 2 Reis 22 pretende. A linguagem e a ideologia de 2 Reis são deuteronomistas, e mesmo antes da teoria de Martin Noth sobre a História Deuteronomista, em 1943, poder-se-ia perceber que qualquer relato deuteronomista da descoberta de um livro de leis apresentaria esse livro de leis como o Deuteronômio, em vez de, digamos, o Levítico ou o Código da Aliança do Êxodo.

O escritor da história do livro de leis deseja deixar claro que nos dias dos reis de Judá, o rolo do Deuteronômio, que havia sido perdido temporariamente, foi recuperado e usado como base para uma reforma religiosa, e com a autoridade total de um rei davídico, nada menos.

O comentário de Albertz de que só foi possível avaliar a reforma cultual de Josias com mais precisão quando a identidade do livro de leis que forneceu sua base foi estabelecida (1994: 198-99) erra o ponto. Sabemos qual era o livro de leis da história: mas não sabemos se a história de sua descoberta (ou alguma racionalização moderna, como uma apresentação deliberada do manuscrito logo após a composição) é verdadeira.

Nossa pergunta agora é: É provável uma origem do século VII a.C., ou talvez anterior, para Deuteronômio? É plausível um livro de leis da época josiânica?

Datando o livro da lei

O método de datação do Deuteronômio tem que prosseguir inteiramente com base em evidências internas, interpretadas à luz do pouco que sabemos da história de Judá, sua sociedade e sua religião, durante todo o período em que o Deuteronômio pode ter sido escrito, o que inclui o período monárquico, o período exílico e o período pós-exílico. Ao perguntar sobre a data do Deuteronômio, não estou tentando reabrir um debate: esse debate nunca parou. Obviamente, um breve artigo de discussão não pode cobrir a gama de temas e tópicos do Deuteronômio que precisariam ser abordados para chegar a uma teoria sólida. O seguinte representa uma pequena seleção dos tópicos mais significativos.

Antes de começar, é importante aceitar que muitas partes do livro podem ter se originado em um momento diferente da coleção de leis em si. A primeira introdução (1,1- 4,40 ) e os capítulos finais (27-34) são geralmente vistos como decorrentes de um processo de edição subsequente. Portanto, não devemos procurar datar o presumido livro de leis com base em qualquer material nesses capítulos. Também excluirei a segunda introdução em 4,44-11,32 e me concentrarei apenas no material legal, Dt 12-26.

Neste material jurídico essencial (por conveniência, o tratarei como um documento), encontramos um esboço de uma sociedade que reflete algumas circunstâncias históricas, mas que é essencialmente utópica e, em algumas partes, impraticável. Seu caráter utópico é expresso por meio de um cenário fictício do passado, no qual a utopia continua sendo uma possibilidade futura: quando Israel entrar na terra que Iahweh, seu Deus, está lhe dando como posse (Dt 12,1.9.10.20.29;13,13 etc.) .

A questão-chave para sua datação é: Qual é o propósito desse documento e em que tipo de contexto histórico e social sua definição de Israel teria algum significado ou impacto? Essas questões serão consideradas (muito brevemente) com relação à definição de Israel, as nações, a aliança, o papel e a função do rei e a centralização do culto.

A definição de “Israel”

No núcleo legal do Deuteronômio, Israel designa uma sociedade, e seus membros são chamados de “filhos de Israel” (benē yisrā’ēl). Em que consiste esse Israel não é especificado em muitos detalhes. A dupla menção da tribo de Levi pode indicar uma estrutura tribal para o todo, mas nenhuma outra tribo, ou conjunto de tribos, é mencionada, nem uma estrutura tribal tem qualquer papel organizacional. A menção repetida da terra implica uma dimensão territorial para Israel, e a aquisição desta terra é por conquista militar (Dt 19,1; 20,16). As leis relativas ao rei (Dt 17) também implicam um estado territorial. No entanto, o papel do monarca é de fato virtualmente cerimonial.

O Israel do Deuteronômio dificilmente é histórico. No período monárquico, existiam dois reinos, um chamado Judá e o outro às vezes conhecido como Israel. Os resultados da arqueologia recente da Idade do Ferro na Palestina central sugerem fortemente que as áreas mais tarde representadas pelos dois reinos passaram por assentamentos separados. A alegação bíblica de que eles foram unidos sob Davi e Salomão (e alguns anos sob Roboão) é igualmente sem qualquer suporte arqueológico e, de fato, há fortes indicações do contrário (veja Finkelstein e Silberman 2001 para uma visão geral e reconstrução arqueológica).

A noção de que Israel adquiriu a terra por meio da conquista e aniquilação dos ocupantes anteriores também é utópica. De fato, a apresentação de Israel como vindo de fora da terra contradiz as evidências arqueológicas, que não podem revelar nenhum elemento populacional não indígena na Palestina central nos séculos anteriores ao estabelecimento dos dois reinos (os filisteus não se estabeleceram nas terras altas).

Mas as utopias têm uma função. Não adianta descartá-las como ficção, como se isso resolvesse a questão mais importante. Em que contexto histórico um Israel tão utópico (algo maior que Judá) tem um papel? A noção de que Josias desejava reunir Judá e o antigo reino de Israel já foi discutida. É altamente improvável, mas um Israel previamente unido também é improvável. No próprio reino de Israel, antes de 722 a.C., tal ambição poderia ser alimentada e, de fato, muitos estudiosos consideraram o Deuteronômio um documento originalmente israelita, talvez trazido para o sul após a destruição de Samaria. Mas, além de outras considerações que excluem isso, tal teoria não explica a descoberta e adoção deste documento em Judá no final do século VII a.C. Como e com que efeito o Judá de Josias poderia ser representado neste Israel? De fato, mesmo que a origem do Deuteronômio estivesse no reino de Israel, com base em que Judá se chamaria a si mesmo com este nome?

As “nações”

A seção legal do Deuteronômio se refere aos cananeus uma vez, em Dt 20, 17 (Canaã ocorre apenas uma vez em todo o livro, em Dt 32,49). Mas há muitas referências às “nações”, que se enquadram em duas categorias. Em Dt 14,2;15,6;17,4;18,9.14;26,19 a frase se refere a todas as outras nações, indiferenciadas. Israel deve ser bem distinto destas, criando a dicotomia Israel/nações que ainda persiste em nosso uso moderno do termo gentios. A segunda categoria são “as nações que você expulsará”: estas são caracterizadas como (a) ocupando a terra que foi prometida a Israel e da qual ele tomará posse, e (b) praticando costumes religiosos que são abomináveis a Iahweh e que Israel não deve imitar.

Vamos nos concentrar nas nações despossuídas. Elas são especificadas como sete em Dt 7,1 e 20,17 (gergeseus está faltando, talvez acidentalmente, em 20,17) e devem ser destruídas, junto com sua cultura. Que tipo de contexto social e político dá origem a essa noção de duas nações de culturas completamente diferentes no mesmo espaço, uma indígena, a outra imigrante? Essa é uma realidade histórica ou, novamente, utópica?

Que nação e cultura são sinônimos é um princípio importante em Deuteronômio, pois o próprio Israel é definido por sua cultura, especificamente sua religião determinada pela aliança. Cananeu é cananeu, poderíamos dizer. E o mesmo podemos dizer de Israel.

Embora se possa argumentar que existia alguma diferença cultural entre elementos populacionais na Palestina da Idade do Ferro — por exemplo, entre fazendeiros das terras altas e aqueles que viviam sob um regime de cidade-estado — a animosidade gritante em relação às nações cananeias que o Deuteronômio revela provavelmente não pertence à história da Idade do Ferro, porque o reino de Israel (se não Judá) era evidentemente composto de vários elementos populacionais, entre os quais havia um conjunto amplamente compartilhado de práticas religiosas.

A perseguição religiosa, e mais ainda o genocídio, conforme ordenado por Deuteronômio, se traduz em guerra civil, que os monarcas e as elites governantes em geral não buscam provocar. Certamente, a religião pode ser usada para promover sentimentos e práticas chauvinistas, que podem ajudar um monarca, mas o remédio do Deuteronômio seria desastroso para um estado monárquico. Mesmo se traduzirmos as nações de Canaã em inimigas do culto real, a ideologia do Deuteronômio parece excessivamente entusiasmada. O que, precisamente, um chamado para declarar guerra aos cananeus alcançaria, mesmo supondo que alguém pudesse identificar de maneira inequívoca um cananeu?

A guerra do Deuteronômio não é, está claro, física ou mesmo militar, mas ideológica: os autores do documento não pretendem que os cananeus sejam exterminados. Mas a questão pode muito bem ser a propriedade legítima da terra, a filiação a Israel, a adoração adequada da divindade. E pode envolver conflito entre populações indígenas e imigrantes. Tal contexto pode ser postulado na história de Judá. Mas não para o século VII a.C.

A “aliança”

Garbini (2003: 65) afirma que a noção de uma aliança entre a divindade e o povo é bastante surpreendente. Ele afirma que: “Para todos os povos do Oriente Próximo, uma aliança entre um deus e seu povo simplesmente não fazia sentido: a aliança dizia respeito apenas ao rei e seu deus dinástico e o rei era legítimo apenas por causa desse relacionamento direto com o deus. Era por meio dela que o rei podia garantir a prosperidade de seu povo e legitimar sua própria função. Isso fica claro até mesmo no texto bíblico, onde está escrito, exatamente sobre Josias: E o rei ficou em pé junto a uma coluna e fez uma aliança (wayyikrot ‘et ha-b‘rit) diante de Iahweh (2 Rs 23,3). A questão nunca foi colocada, por que este livro, que supostamente guiou os passos do piedoso Josias, não contém nenhuma menção a ritos de aliança ou pilares desse tipo. Diz-se, além disso, que a mesma cerimônia foi celebrada na época de Salomão, como fica claro na narrativa de 1 Reis 8, apesar de todas as ampliações deuteronomistas. Ao consagrar o templo, Salomão fez uma aliança (8,23) com Iahweh, deus da dinastia (8,25), invocando sua proteção sobre o povo, especialmente nos momentos difíceis da guerra e da fome”.

Este ponto pode, no entanto, ser colocado de forma mais positiva, como foi feito por Geller em um ensaio sobre o papel do Deuteronômio na história do monoteísmo (Geller 2000: 300). Ele descreve o Deuteronômio como “um tipo radicalmente novo de associação de indivíduos … Israel é, na formulação deuteronômica da aliança, em última análise, cada israelita”. (Este fenômeno, do vínculo direto entre o deus e cada indivíduo, é, naturalmente, fortalecido retoricamente pelo uso do singular “tu” em grandes seções do livro). Geller observa ainda a negação da responsabilidade coletiva pelos pecados em Deuteronômio 34. Deuteronômio marca o início de uma definição pessoal da religião israelita — pode-se até dizer a fonte do judaísmo. Em suma, temos aqui, como Geller sugere, um estágio no desenvolvimento da Torá em um órgão de religiosidade pessoal e não um corpo de ensinamentos sociais sustentado por uma instituição estatal (seja a monarquia ou o sacerdócio).

Como tal noção surgiu aqui pela primeira vez é uma questão intrigante. Que tipo de condições levaram ao surgimento de uma religião que era tanto social quanto individual? Mas, novamente, a questão-chave é: Como esse caráter pessoal da aliança do Deuteronômio faz sentido em um pequeno estado monárquico? Qual é o objetivo e o efeito de tal redefinição da religião? E, novamente, digo que não é suficiente simplesmente responder que Deuteronômio é utópico. É necessário sugerir um contexto no qual essa visão faça sentido, em uma comunidade que se formou, ou desejou, uma comunidade na qual a filiação implicava responsabilidades individuais, especialmente religiosas.

Weinfeld (1972: 59-157), entre outros, argumentou, em defesa de uma data josiânica para o Deuteronômio, que a forma de tratado de vassalagem assírio (exemplificada por aqueles de Esarhaddon) fornece um modelo para o Deuteronômio. Mas para ser válido, esse argumento tem que mostrar que o conhecimento de tais formas literárias desapareceu em determinado momento. Entretanto, a influência da Assíria na retórica diplomática e na literatura (assim como na imaginação) do Antigo Oriente Médio persistiu por vários séculos. Um terminus a quo no século VII a.C. para Deuteronômio não é particularmente conclusivo.

Mais pertinente, novamente, é a questão: sob quais circunstâncias um tratado de suserania inspiraria uma nova teoria da religião como um pacto entre uma divindade e uma nação, concebida tanto corporativa quanto individualmente? E sob quais circunstâncias tal conceito adquiriria valor?

O papel e a função do rei

O rei de Israel aparece em apenas dois textos no material legal do Deuteronômio. O primeiro está em Dt 17,14-20. É improvável que a ameaça de um rei estrangeiro, como alerta o texto, fosse substancial no período monárquico (os textos canonizados não relatam que isso tenha acontecido ou mesmo sido ameaçado). Mesmo sob os assírios e babilônios, havia um rei nativo no trono, mas esta é uma questão trivial.

GRABBE, L. L. (ed.) Good Kings and Bad Kings: The Kingdom of Judah in the Seventh Century BCE. London: T&T Clark, 2005A questão principal é esta: duas das principais funções de um rei (de acordo com a sociologia moderna e também com os próprios monarcas antigos) são segurança e justiça. A primeira protege o povo de ameaças externas e a última da exploração interna. Ambas contribuem para a ordem social. Sem essas funções, o papel de um rei é redundante.

A passagem citada propõe limitar seu direito de ser a fonte da justiça e de ter uma força significativa de cavalaria. Em outro lugar, o Deuteronômio prescreve as regras para a guerra (Dt 20) das quais o rei está totalmente ausente. Lá, como aqui, a autoridade é conferida exclusivamente aos sacerdotes. O rei está sujeito à lei que eles mantêm e eles, não ele, ditam seu conteúdo. O rei se torna um monarca constitucional.

A mesma questão retorna, mas com mais força: em que ponto da história de Judá tal revolução política faz sentido, mesmo como um ideal utópico? Quando o governo de um monarca judaíta pode ser substituído por um livro de leis? Não há paralelo algum no período monárquico para qualquer noção desse tipo, e de fato é uma ideia absurda para aquela época. Os antigos códigos de leis da Mesopotâmia, como o tratado de suserania assírio, sem dúvida serviram como um modelo para o livro do Deuteronômio, mas em uma reversão completa da antiga tradição pela qual o rei emite seu código de leis, como representante do deus.

Não há explicações plausíveis para que um rei aceite uma reforma que o priva dos poderes essenciais da monarquia, justiça e guerra. Sugerir que Josias era muito jovem na época e que o documento é uma tentativa dos sacerdotes de controlar o poder real é ingênuo. Os sacerdotes teriam o poder de fazer isso, contra a oposição de todos aqueles seguidores cujo privilégio dependia precisamente da preservação do poder da monarquia? A noção de que tal reforma foi instigada pelo ‘am ha-’aretz, como Albertz também sugere (Albertz 1994: 201), é contrariada pelo fato de que essas pessoas dificilmente teriam transferido autoridade sobre a guerra ou a justiça para o sacerdócio.

Em suma, a crença da maioria dos estudiosos bíblicos de que um manuscrito que priva o monarca de todos os poderes reais (e, na verdade, inviabiliza a instituição da monarquia) é um produto plausível do Judá do século VII a.C. é surpreendente e só pode ser explicada assumindo que tal estudo está tomando o fato como certo e, portanto, ignorando o absurdo ou fabricando uma racionalização implausível para ele.

Centralização do culto

Albertz corretamente descarta a ideia de Wiirthwein (1976) de que a centralização do culto em Deuteronômio indica o período exílico, afirmando que “não havia mais nenhum conflito sobre a centralização do culto no início do período pós-exílico” (1994: 199-200), com base no fato de que isto é pressuposto pelo Dêutero-Isaías e por Ezequiel. Mas ele pode não ter pensado nas situações da vida em Judá durante o período neobabilônico, quando a capital estava em Mispá. Não sabemos se Jerusalém tinha algum tipo de santuário nessa época, mas as evidências sugerem que vários santuários nas proximidades de Mispá funcionavam: Gibeon, a própria Mispá e especialmente Betel. Como e quando Jerusalém foi restabelecida como capital não está claro. O processo de construção do templo do período persa é em si obscuro, e é impensável que a mudança de capital de Mispá para Jerusalém tenha sido alcançada sem algum ressentimento, podendo se dizer o mesmo da reintegração de Jerusalém como o santuário central. De fato, a substituição de Betel por Jerusalém como o principal santuário de Judá em meados do século V a.C. explica muito sobre a tradição de Josias, como agora sugerirei.

O que Josias fez?

Quando o relato de 2 Reis sobre uma reforma josiânica é questionado em vez de assumido, parece não haver razões convincentes para pensar que um texto como o Deuteronômio (especificamente o material legal) vem dessa época. Pelo contrário, para cada tópico discutido há contextos mais plausíveis.

Não me propus aqui argumentar em detalhes para uma data do século V a.C., mas notei que todas as características discutidas se encaixam bem com tal período. O  Deuteronômio se enquadra no contexto de uma população imigrante, baseada em torno de um templo, em conflito com parte da população indígena, bem como com Samaria, e encorajada a viver e exercer seu controle por meio de uma lei escrita, interpretada pelos sacerdotes.

Mas se tal data fornece um contexto melhor para o cerne do Deuteronômio, ainda precisamos explicar a história da reforma de Josias como uma lenda posterior. Mas isso não é difícil. Aqueles elementos populacionais que alegam ser o verdadeiro Israel (contra as nações indígenas desalojadas) exigiriam necessariamente que o documento do qual sua posição dependia replicasse a situação atual: “Israel” se vendo ameaçado pelos “povos que ocupavam a terra”. Mas o documento requer uma autenticação adicional: ele precisaria ser antigo e ter sido autorizado, como fonte escrita, por um rei judaíta legítimo.

Por que Josias? Isso nos traz de volta a outra questão já levantada: Josias foi enaltecido por ter feito algo para ganhar reputação?

O elemento central da história da reforma de Josias (2 Rs 23) diz respeito à sua destruição de Betel, e este ato é ecoado em 1 Rs 12,25-13,34 (cf. 2 Rs 10,29), bem como em Êxodo 32 (ver Blenkinsopp 1998, 2003). Se Josias tivesse sido executado por alguma ofensa contra o faraó, a destruição de Betel, sinalizando o controle judaíta sobre uma área adjacente à própria Jerusalém, poderia ter constituído tal ato. Mais de um século depois, quando Jerusalém estava sendo restabelecida como o principal santuário da província persa de Judá, talvez às custas de Betel (ver Blenkinsopp 2003), tal ato facilmente teria identificado Josias como uma figura justa e fornecido o contexto para a introdução retrospectiva do Deuteronômio na história anterior de Judá.

De fato, a reforma deuteronômica de 2 Reis 22-23 deveria então ser vista, não como um evento histórico, mas como um disfarce para uma nova comunidade centrada em Jerusalém tentando impor sua definição de Israel, seu deus e sua religião, e especificamente sua lei escrita, em meio a uma população indígena idólatra.

Em suma, o século V a.C. fornece um contexto plausível tanto para a “descoberta” do livro do Deuteronômio quanto para a história da reforma de Josias. Esse caso, é claro, terá que ser discutido em mais detalhes, mas sugiro que mesmo no breve esboço dado aqui, ele oferece um relato melhor das coisas do que a ideia de uma reforma deuteronômica sob Josias.

O ataque do rei a Betel lhe rendeu uma reputação como um campeão deuteronômico, mas a verdadeira reforma ocorreu quase dois séculos depois e, como frequentemente acontece, a história foi reescrita para dar a essa reforma a autenticação necessária.

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