Recent Research in History of Israel

The History of Israel in the Current Research. Journal of Biblical Studies, Riverview, MI, 1:2 (Apr.-Jun. 2001).

Este artigo, publicado em uma revista online norte-americana, traz o mesmo conteúdo de A História de Israel no debate atual. Embora o título esteja em inglês, o artigo foi publicado em português.

This article surveys some perspectives in the current research of the “History of Israel”, the challenges that this poses, and proposes some trajectories for those researching this subject. The scholarly consensus that existed up until the middle seventies of the twentieth century was shattered. The rationalistic paraphrase of the biblical text that constituted the core of the handbooks of the “History of Israel” is no longer acceptable to most scholars. An increasing number of scholars question the use of the biblical text as a source for the “History of Israel”. The implementation of modern literary criticism on the biblical text requires a moving away from issues of historicity, and this allows the “biblical” stories to be evaluated primarily from a literary perspective. The writing of a “History of Israel” using only the archaeological context and non-biblical writings is a controversial undertaking, however, an increasing number of scholars are attempting to do this.  It appears a revisionist “History of Syria/Palestine” will compete against the traditional “History of Israel” as scholars from both sides continue their research.

Este artigo quer traçar um panorama das mudanças pelas quais vem passando a “História de Israel” nos últimos anos, apontar as dificuldades que a crise vem criando e propor algumas pistas de leitura para os interessados no assunto. O consenso existente até meados da década de 70 do século XX foi rompido. A paráfrase racionalista do texto bíblico que constituía a base dos manuais de “História de Israel” não é mais aceita. O uso dos textos bíblicos como fonte para a “História de Israel” é questionado por muitos. O uso de métodos literários sofisticados para explicar os textos bíblicos, afasta-nos cada vez mais do gênero histórico, e as “estórias bíblicas” são abordadas com outros olhares. A construção de uma “História de Israel” feita somente a partir da arqueologia e dos testemunhos escritos extrabíblicos é uma proposta cada vez mais tentadora. Uma “História de Israel e dos Povos Vizinhos”, melhor, uma “História da Síria/Palestina” ou uma “História do Levante” parece ser o programa para os próximos anos.

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Pode uma História de Israel ser escrita?

Pode uma ‘História de Israel’ ser escrita? Observando o debate atual sobre a História de Israel. Artigo publicado na Ayrton’s Biblical Page em 2001 e atualizado em 2019.

Em julho de 1996 foi realizado em Dublin, Irlanda, o Primeiro Seminário Europeu de Metodologia Histórica, do qual participaram pesquisadores escolhidos.

Diz Lester L. Grabbe no primeiro parágrafo do livro por ele editado – e que traz os resultados do Seminário – Can a ‘History of Israel’ Be Written? [Pode uma ‘História de Israel’ Ser Escrita?]. Sheffield: Sheffield Academic Press, 1997 [London: T. & T. Clark, 2005 – ISBN 0567043207]:

“O grupo surgiu das frustrações que eu, em primeiro lugar, venho sentindo acerca da atual situação do debate sobre como escrever a história de Israel e Judá nos segundo e primeiro milênios AEC e no século I da EC” (p. 11).

E continua:

“Nos últimos anos, um certo número de estudiosos – a maioria deles europeus por origem ou adoção – tem feito um ataque radical sobre o modo como a história de ‘Israel’ tem sido escrita. Mesmo aqueles outrora considerados radicais não escaparam da crítica. Este movimento, a princípio minoritário, causou pouco impacto no debate. Recentemente, porém, ele adquiriu personalidade, mas a resposta foi o surgimento de protestos, incluindo a sugestão de que tais tendências são perigosas, ou que podem ser tranquilamente ignoradas ou – de modo curioso – ambas as coisas ao mesmo tempo” (p. 11).

Lester L. Grabbe está se referindo à controvérsia existente entre a postura maximalista “que defende que tudo nas fontes que não pode ser provado como falso deve ser aceito como histórico” e a postura minimalista “que defende que tudo que não é corroborado por evidências contemporâneas aos eventos a serem reconstruídos deve ser descartado” (E. Knauf, citado por H. Niehr no mesmo livro, na p. 163). Os autores “minimalistas” são também conhecidos como membros da “Escola de Copenhague”.

Retomando Grabbe:

“Isto sugeriu que o tempo estava maduro para algo mais organizado, que abordasse as questões centrais de maneira sistemática e que determinasse quais são as reais posições e problemas (…). A tarefa inicial foi agrupar especialistas europeus que estavam, de maneira geral, convencidos de que existe, de fato, um problema” (p. 11-12).

O artigo apresenta algumas das mais importantes publicações dos participantes do Seminário Europeu de Metodologia Histórica [foram realizados 17 seminários entre 1996 e 2012] e procura explicar suas posições no atual debate sobre a História de Israel.

A invasão de Judá por Senaquerib em 701 a.C.

Estou estudando nestes dias, na Literatura Deuteronomista, com o Segundo Ano de Teologia do CEARP, O Contexto da Obra Histórica Deuteronomista – confira meu artigo de 2005 – e o assunto da última aula foi a invasão de Judá por Senaquerib, da Assíria, em 701 a.C. quando em Jerusalém reinava Ezequias e lá estavam os profetas Isaías e Miqueias.

Andei lendo algumas coisas recentes sobre o tema, entre elas o seguinte livro, muito interessante:

KALIMI, I.; RICHARDSON, S. (eds.) Sennacherib at the Gates of Jerusalem: Story, History and Historiography. Leiden: Brill, 2014, XII + 548 p. – ISBN 9789004265615.

Sumário

The Contributors

1. Sennacherib at the Gates of Jerusalem—Story, History and Historiography: An Introduction  – Isaac Kalimi and Seth Richardson

Part One: I will defend this City to Save It
2. Sennacherib’s Campaign to Judah: The Chronicler’s View Compared with His ‘Biblical’ Sources – Isaac Kalimi
3. Cross-examining the Assyrian Witnesses to Sennacherib’s Third Campaign: Assessing the Limits of Historical Reconstruction – Mordechai Cogan
4. Sennacherib’s Campaign to Judah: The Archaeological Perspective with an Emphasis on Lachish and Jerusalem – David Ussishkin
5.  Beyond the Broken Reed: Kushite Intervention and the Limits of l’histoire événementielle – Jeremy Pope

Part Two: The Weapon of Aššur
6. Family Matters: Psychohistorical Reflections on Sennacherib and His Times  – Eckart Frahm
7. The Road to Judah: 701 b.c.e. in the Context of Sennacherib’s Political-Military Strategy – Frederick Mario Fales
8. Sennacherib’s Invasion of the Levant through the Eyes of Assyrian Intelligence Services – Peter Dubovský

Part Three: After Life
9. Memories of Sennacherib in Aramaic Tradition – Tawny L. Holm
10. Sennacherib’s Campaign and its Reception in the Time of the Second Temple – Gerbern S. Oegema
11. Sennacherib in Midrashic and Related Literature: Inscribing History in Midrash  – Rivka Ulmer
12. The Devil in Person, the Devil in Disguise: Looking for King Sennacherib in Early Christian Literature – Joseph Verheyden
13. The First “World Event”: Sennacherib at Jerusalem – Seth Richardson

Os 12 autores

  • Mordechai Cogan (Ph.D. University of Pennsylvania) is Professor Emeritus of Biblical History in the Department of Jewish History, The Hebrew University of Jerusalem.
  • Peter Dubovský (Ph.D., Harvard University). Since 2008 he has been professor of Old Testament exegesis at the Pontifical Biblical Institute in Rome.
  • Mario Fales (Ph.D., University of Rome) is Full Professor of Ancient Near Eastern History at the University of Udine.
  • Eckart Frahm (Ph.D. Göttingen, Habilitation Heidelberg) is Professor of Assyriology at Yale University, where he has been since 2002.
  • Tawny Holm (Ph.D., The Johns Hopkins University) is Associate Professor of Jewish Studies and Classics & Ancient Mediterranean Studies at The Pennsylvania State University.
  • Isaac Kalimi (Ph.D., The Hebrew University of Jerusalem) is Gutenberg Research Professor in Hebrew Bible and Ancient Israelite History, Seminar für Altes Testment und Biblische Archaeologie, Johannes Gutenberg-Universität Mainz, Germany, and Senior Research Associate with the University of Chicago.
  • Gerbern S. Oegema (Habilitation, University of Tübingen), is professor of biblical studies at the Faculty of Religious Studies of McGill University since 2002.
  • Jeremy Pope (Ph.D., John Hopkins University) is Assistant Professor in the Department of History at the College of William and Mary in Williamsburg, Virginia.
  • Seth Richardson (Ph.D., Columbia University), Assyriologist and historian, was Assistant Professor of Ancient Near Eastern History at the Oriental Institute of the University of Chicago from 2003–2011.
  • Rivka Ulmer (Ph.D., Goethe University of Frankfurt) researches Midrash. She teaches Jewish Studies at Bucknell University (The John D. & Catherine T. MacArthur Chair in Jewish Studies, 2002–2007).
  • David Ussishkin (Ph.D., The Hebrew University of Jerusalem) is Professor Emeritus of Archaeology at Tel Aviv University, Israel.
  • Joseph Verheyden studied Philosophy (M.A.), Religious Studies (M.A.), and Oriental languages-Christian Orient (M.A.), before receiving his Ph.D. in Theology at the Catholic University of Leuven. Currently he is Professor of New Testament at the Catholic University of Leuven.

Um trecho da introdução

The Assyrian siege of Jerusalem in 701 b.c.e. was a “world event,” both historically and historiographically. The encounter drew together the actions of disparate groups whose fate was bound together by Assyria’s empire: Babylonia, Anatolia, Syria, Egypt and Nubia were all affected by it. Just as importantly, the event formed the kernel for later literary traditions both east and west: in the Hebrew Bible, in Aramaic folklore, and in Greek and Roman sources about the East; in medieval Syriac tales, in Arabic antiquarianism; and even in the cultural politics of nineteenth century c.e. Europe and America. Thus the historical event formed the basis for ongoing and divergent interpretation in multiple cultural forms from antiquity to modernity. This rich material is fertile ground for historical scholarship: the event is not only important for biblicists and Assyriologists, but also for studies in ancient literature, diplomacy, folk tradition, imperialism, cult practice, epidemiology, military intelligence and com munication, class and politics, and the role of language in society. What is more, since the “siege” of Jerusalem also ironically has the distinction of being historically amplified from a non-event (no actual fighting, as such, occurred at Jerusalem), it excites philosophical and theological questions about the importance of “the event” as a historical category. The third campaign of Sennacherib to the west—in general, with specific reference to Judah and Jerusalem—has been well researched in historical and literary terms. However, it has not yet been much ­investigated from the point of view of historiography or reception history; the appearance of the subject in so many varied literatures is a phenomenon worthy of study. This volume intends to fill these gaps without covering every possible aspect of “Sennacherib studies” [sublinhado meu].The essays herein offer some novel historical approaches, such as psychohistory, mytho-history, and the integration of text, image, and archaeology, and build a bridge between the historical traditions of the ancient and late-antique worlds. The work also attends throughout to how deeply historiographic issues pervade our interpretations of historical events. When, indeed, does “historiography” begin to be relevant to the interrogation of sources we usually think of as “historical?” (…)

The volume comprises three major sections. The first section (“I Will Defend this City to Save It”) mainly concentrates on early sources— biblical, Assyrian and Egyptian texts and archaeological finds in the Land of Israel—concerning the events of 701 b.c.e. The second section (“The Weapon of Aššur”) focuses on the broader Assyrian political and military history forming the background of the campaign. The third section mainly traces the “after life” (Nachleben) of Sennacherib’s campaign as it was interpreted and transformed in the wide range of postbiblical literature, including Apocrypha and Pseudepigrapha, Aramaic and rabbinic literature, New Testament and the early Christian sources.

Como o livro é bastante caro, recomendo aos interessados consultar alguns capítulos disponíveis aqui. Procure pelos nomes dos autores.

A História de Israel na pesquisa atual

A História de Israel na pesquisa atual. Estudos Bíblicos, Petrópolis, n. 71, p. 62-74, 2001.

Este artigo foi publicado, de forma mais ampliada, na Ayrton’s Biblical Page, onde acréscimos ao texto são feitos sempre que surgem novidades. A bibliografia foi atualizada em 2018.

Poucas pessoas no Brasil, na virada do milênio, mesmo entre os especialistas, estavam informadas sobre as novas pesquisas na área da “História de Israel”. E não havia quase nenhum debate sobre o tema. Quando eventualmente este acontecia, causava curiosidade, espanto ou, mais frequentemente, como posso testemunhar, rejeição. Eu mesmo senti este impacto nas primeiras leituras, como disse aqui nesta entrevista:

(…) quando li, em 1998, o livro de Philip R. Davies, In Search of ‘Ancient Israel’ [Em busca do ‘Antigo Israel’], minhas certezas sobre o antigo Israel desabaram. Este livro me deixou muito incomodado. O consenso, que eu ainda pensava existir, fora rompido. Afinal: quem é Israel e como surgiu esta entidade? O antigo Israel, de um dado aparentemente conhecido através dos relatos bíblicos, tornou-se um problema a ser abordado com outros recursos, como a arqueologia, a análise socioantropológica etc (…)  Isto me fez partir para muitas e novas leituras. Infelizmente, a maioria em inglês ou alemão, inacessível para meus alunos ou, como percebi, desinteressante para muitos colegas biblistas ou até mesmo de aparência agressiva, pois desestabilizadora, para os teólogos sistemáticos com os quais eu trabalhava.

Esta, uma das razões porque este número da revista Estudos Bíblicos foi, a pedido da Vozes, ampliado e publicado em livro:

FARIA, J. de Freitas (org.) História de Israel e as pesquisas mais recentes. Petrópolis: Vozes, 2003, 181 p.  – ISBN 8532628281. O meu texto, que aborda as novas pesquisas, está nas p. 43-87.

A primeira edição esgotou-se em 2 meses. Uma segunda edição foi imediatamente lançada, mas também já está esgotada.

Transcrevo aqui trecho da resenha feita pelo exegeta argentino José Severino Croatto:

Escrito por um grupo de cinco biblistas mineiros, esse livro é uma tentativa de situar a História de Israel na pesquisa atual. Jacir de Freitas Faria, organizador, inicia o livro fazendo um apanhado dos “personagens” bíblicos mais notáveis, assim como são apresentados na Bíblia, enfocando em cada caso ou época a problemática da terra (…) As Bíblias servem para reconstruir a história real – não a reconstrução “teológica” – de Israel? Em poucas palavras, Romi Auth explica o problema no capítulo 2. Um ensaio sumamente útil para o leitor é o de Airton José da Silva (cap. 3) sobre “A história de Israel na pesquisa atual” (p. 43-87). Os pontos essenciais da problemática histórica: patriarcas, história javista, diferença entre Canaã e Israel, existência de um império davídico-salomônico ou do exílio babilônico, assim como a questão do “Israel” das origens, são tratados de forma muito sintética, mas clara. É excelente a referência aos mais recentes autores que estão discutindo estes assuntos, e valiosa a bibliografia utilizada, que, aliás, inclui dados informativos. Realmente, uma síntese inteligente do tema, tal como está sendo debatido nos círculos acadêmicos. Uma outra visão, não historiográfica, mas da tradição teológica, é apresentada por Johan Konings no capítulo 4. Neste caso, interessam a forma literária e os temas de cada um dos livros, os quais chamamos “históricos”, em nossa linguagem. Quais elementos historiográficos eles trazem? Que tipo ‘história’ eles representam? (…) Qual é a visão do profeta Amós sobre a historia de Israel? É o que apresenta Jaldemir Vitório no capítulo 5. Esta visão, crítica em termos religiosos, é ressaltada pelo autor como um dado importante neste livro profético. O final do livro está também sob os caprichos da ‘pena’ do seu organizador, Jacir de Freitas Faria (cap. 6), quem nos descreve como a história de Israel é recebida e relida nos Salmos.

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A História de Israel no debate atual

A História de Israel no Debate Atual. Cadernos de Teologia, Campinas, n. 9, p. 42-64, 2001.

Até meados da década de 70 do século XX, havia um razoável consenso na História de Israel. Entre outras coisas, o consenso dizia que a Bíblia Hebraica era guia confiável para a reconstrução da história do antigo Israel. Dos Patriarcas a Esdras, tudo era histórico. Se algum dado arqueológico não combinava com o texto bíblico, arranjava-se uma interpretação diferente que o acomodasse ao testemunho dos textos, como no caso da destruição das (inexistentes) muralhas de Jericó pelo grupo de Josué

(…)

Mas, a ‘História de Israel’ está mudando. O consenso foi rompido. A paráfrase racionalista do texto bíblico que constituía a base dos manuais de ‘História de Israel’ não é mais aceita. A sequência patriarcas, José do Egito, escravidão, êxodo, conquista da terra, confederação tribal, império davídico-salomônico, divisão entre norte e sul, exílio e volta para a terra está despedaçada.

O uso dos textos bíblicos como fonte para a ‘História de Israel’ é questionado por muitos. A arqueologia ampliou suas perspectivas e falar de ‘arqueologia bíblica’ hoje é proibido: existe uma ‘arqueologia da Palestina’, ou uma ‘arqueologia da Síria/Palestina’ ou mesmo uma ‘arqueologia do Levante’.

O uso de métodos literários sofisticados para explicar os textos bíblicos, afasta-nos cada vez mais do gênero histórico, e as ‘estórias bíblicas’ são abordadas com outros olhares. A ‘tradição’ herdada dos antepassados e transmitida oralmente até à época da escrita dos textos frequentemente não consegue provar sua existência.

A construção de uma ‘História de Israel’ feita somente a partir da arqueologia e dos testemunhos escritos extrabíblicos é uma proposta cada vez mais tentadora. Uma ‘História de Israel’, que dispense o pressuposto teológico de Israel como ‘povo escolhido’ ou ‘povo de Deus’ que sempre a sustentou. Uma ‘História de Israel e dos Povos Vizinhos’, melhor, uma ‘História da Síria/Palestina’ ou uma ‘História do Levante’ parece ser o programa para os próximos anos.

E há pesquisadores de renome na área, como Rolf Rendtorff, exegeta alemão, professor da Universidade de Heidelberg, falecido em 2014, que já em 1993 afirmava em artigo na revista Biblical Interpretation 1, p. 34-53, que os problemas da interpretação do Pentateuco estão intimamente ligados aos problemas mais amplos da reconstrução da história de Israel e da história de sua religião.

Este artigo quer traçar um panorama destas mudanças pelas quais vem passando a ‘História de Israel’ nos últimos trinta e tantos anos, apontar as dificuldades que a crise vem criando e propor algumas pistas de leitura para os interessados no assunto.

Este artigo foi publicado, de forma mais ampliada, na Ayrton’s Biblical Page, onde acréscimos ao texto são feitos sempre que surgem novidades. A bibliografia foi atualizada em 2015. Clique aqui para ler o artigo.

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Os instrumentos da helenização

Os instrumentos da helenização. Estudos Bíblicos, Petrópolis, n. 61, p. 23-37, 1999.

 

“Verificou-se desse modo, tal ardor de helenismo e tão ampla difusão de costumes estrangeiros (…) que os próprios sacerdotes já não se mostravam interessados nas liturgias do altar” (2Mc 4,13a.14a).

 

A chegada dos poderosos exércitos macedônios com Alexandre Magno em 332 a.C., mas, principalmente, as várias guerras travadas por seus sucessores na regiões da Síria e da Palestina constituem, sem dúvida, eficaz elemento de helenização das populações locais. A fundação de novas cidades ou a transformação de várias cidades orientais em póleis constituem outro mecanismo fundamental de mudança de mentalidade e estilo de vida. Nas cidades, a língua grega que se difunde sempre mais e a educação aristocrática desenvolvida nos ginásios completam este quadro de transformação social, levando à assimilação de grandes camadas da população à nova realidade.

O assunto deste artigo é este: verificar como os vários mecanismos da sociedade e da cultura grega carreiam para a Palestina os valores do dominador estrangeiro.

Uma versão ampliada deste artigo foi publicada na Ayrton’s Biblical Page. A bibliografia foi atualizada em 2015. Continue a leitura clicando aqui.

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A cidade grega e a etnia judaica

Os impérios não têm coração. A cidade grega e a etnia judaica. Cadernos de Teologia, Campinas, n. 3, p. 16-31, 1997.

 

“Se numa província vês o pobre oprimido e o direito e a justiça violados, não fiques admirado: quem está no alto tem outro mais alto que o vigia, e sobre ambos há outros mais altos ainda” (Ecl 5,7).

 

No processo de conquista do Oriente pelo macedônio Alexandre Magno, no século IV a.C, a fundação de cidades constituir-se-á em instrumento fundamental para a helenização dos vários povos dominados, com o consequente fortalecimento do poder macedônio.

“A civilização arcaica e clássica tinha coincidido com o desenvolvimento da pólis e era nos grandes centros urbanos, tais como Mileto, Corinto, Atenas, Siracusa, que se tinha desenvolvido a civilização grega. Alexandre tinha mostrado bem ser o herdeiro da tradição, ao semear o Império que acaba de conquistar com numerosas Alexandrias”1.

Segundo Plutarco, Alexandre teria fundado 70 Alexandrias. Só que menos da metade pode ser testemunhada com certeza pelos dados históricos e arqueológicos.

A fundação de cidades tem, para Alexandre, objetivos estratégicos, econômicos e políticos: servem para guardar passagens de grandes vias de comunicação, tornam-se lugares de comércio e atraem os nômades para as suas vizinhanças, fazendo deles camponeses que sustentarão as cidades2 .

Os sucessores de Alexandre seguem a mesma política. Especialmente os Selêucidas, herdeiros de um império multinacional, recorrem à política da difusão da pólis.

“Os objetivos desta urbanização [dos Selêucidas] são bastante diversos. As cidades favorecem o desenvolvimento econômico, que acresce, na mesma proporção, a fortuna do rei. Elas permitem a implantação de tropas, que guardam os grandes eixos de circulação e as posições estratégicas (…) Elas diminuem as resistências indígenas, fragmentando as antigas satrapias entre as cidades”3.

É bom, entretanto, lembrarmo-nos de que a fundação das póleis gregas nem sempre começam do nada. Há vários modos de se criar uma pólis: a fundação de uma cidade grega dentro de uma antiga cidade oriental, dando-lhe um estatuto político e um nome grego; a recriação, com estrutura grega, de uma cidade arrasada pela guerra ou por um terremoto; a fusão entre cidades pequenas que não têm como se defender; ou, ainda, a fundação de uma cidade grega ao lado de uma cidade oriental4.

 

1. Antíoco III e Jerusalém

Após a morte prematura de Alexandre Magno em 323 a.C., os seus generais encarregam-se da administração do enorme Império por ele conquistado. Pouco a pouco, porém, envolvidos em lutas internas pela supremacia, estes sucessores de Alexandre (ou diádocos, como são conhecidos em grego) eliminam os herdeiros naturais do macedônio e dividem entre si o Império, coroando-se reis de seus respectivos territórios.

A Palestina, um dos territórios da Celessíria5, pertenceu durante 103 anos aos Ptolomeus, macedônios que governavam a partir de Alexandria, no Egito. Em 198 a.C., entretanto,  o Selêucida Antíoco III, o Grande (223-187 a.C.) vence os egípcios em Panion (Baniyas), junto às nascentes do Jordão, e expulsa definitivamente os Ptolomeus da Ásia. A anexação da Celessíria se dá a seguir, e a Palestina fica agora sob o domínio dos macedônios de Antioquia, na Síria.

Pressionados por Roma, com quem entram em conflito, os Selêucidas assistem aos progressivo declínio de seu Império. Para solidificar o fragmentado Império, os reis Selêucidas, e especialmente Antíoco IV Epífanes (175-164 a.C.), implantam um acelerado processo de helenização dos vários povos e cidades da região.

Quando Antíoco III, o Grande, vence os exércitos dos Ptolomeus, os judeus de Jerusalém o apoiam nesta luta, segundo Flávio Josefo. O partido selêucida em Jerusalém está mais forte do que o ptolomaico. Por isso, Jerusalém é contemplada com um decreto de Antíoco III, em 197 a.C.6

Examinemos um pouco o decreto. Além da reconstrução e do repovoamento da  cidade – que sofrera três assédios consecutivos, em 201, 199 e 198 a.C. – o governo selêucida toma as seguintes medidas:

  • que seja dada uma contribuição real para os sacrifícios, em animais, vinho, óleo, incenso, flor de farinha, trigo e sal
  • a madeira retirada da Judeia e do Líbano para os trabalhos de construção do Templo e dos pórticos está isenta de taxas
  • todos os membros do povo judeu devem viver segundo as leis de seus pais
  • o senado (gerousia), os sacerdotes, os escribas do Templo e os cantores do Templo, ficam isentos da capitação, do imposto coronário e da taxa sobre o sal
  • isenção de impostos durante três anos para os atuais habitantes da cidade e para aqueles que vierem nela morar até determinada data, para que a cidade seja repovoada mais depressa.

É interessante observarmos as medidas de Antíoco III sobre os impostos7.

A madeira para a restauração do Templo está isenta do imposto alfandegário, que incide sobre todas as mercadorias em circulação.

O senado e os funcionários do Templo ficam isentos da capitação, imposto pessoal recolhido dos adultos. Ficam isentos também do imposto coronário: a coroa de folhas é, para os gregos, o símbolo da vitória, concedida aos vencedores dos jogos ou a um rei vitorioso8. Com o tempo, as cidades começam a oferecer aos seus reis coroas de ouro ou uma soma equivalente em dinheiro. O que antes era espontâneo acaba institucionalizado e tornado obrigatório, podendo somente o rei conceder a isenção.

Ainda: o senado e o Templo ficam isentos da taxa sobre o sal. Esta taxa é conhecida na Palestina e na Babilônia. Provavelmente paga-se determinado valor ao governo, ou talvez, na Palestina, que tem boas salinas, se aceite o produto “in natura”.

Os habitantes da cidade, finalmente, são isentos durante 3 anos do phóros, o tributo, em prata ou em produtos, exigido de uma província, de um templo, de um éthnos ou de uma cidade, este último sendo o caso de Jerusalém.

Deve-se observar que, com este decreto, Antíoco III reforça o papel da aristocracia, associada há muito ao poder através da gerousia e que, sob outro aspecto, liga o destino do éthnos  judeu às decisões reais. Pois as leis dos antepassados (a Torá) devem ser obedecidas não porque assim o decidem os judeus, mas porque o quer o governo selêucida9.

Apesar de parecerem benevolentes, estas medidas não devem, entretanto, nos enganar, pois não superam as decisões comuns tomadas em relação a outras cidades, naquela época.

O que Antíoco III faz é seguir a velha política persa em relação aos judeus. H. G. Kippenberg observa que “este decreto tem paralelo no documento de administração persa (Esd 7,12-26). Na carta de nomeação de Artaxerxes a Esdras (do ano 398 a.C.), está incluída a ordem ao encarregado das finanças da província Transeufratiana, que regulamenta o apoio material ao culto, bem como a isenção de tributos para sacerdotes, levitas, cantores, porteiros e servos do templo (vv. 21-24)”10.

É preciso observar também que a reconstrução e o repovoamento da cidade são medidas necessárias para o fortalecimento do governo e dos interesses de Antíoco III naquela região disputada pelos Ptolomeus.

Entretanto, a expansão selêucida sob Antíoco III, o Grande, será impedida por Roma na medida em que seus interesses entram em choque com a forte república na Europa. Após muitas negociações frustradas, Roma enfrenta e vence Antíoco III na batalha de Magnésia, no começo de 189 a.C. O exército romano é comandado por Lucius Cornelius Cipião – depois cognominado “o Asiático” -, ajudado por seu irmão Cipião, o Africano. Antíoco, que tem 72 mil soldados, perde 50 mil homens de infantaria, 3 mil cavaleiros, 15 elefantes e Cipião faz 1400 prisioneiros. Os romanos perdem apenas 400 homens.

Em 188 a.C. a paz entre Roma e os Selêucidas é estabelecida em Apameia da Frígia, quando são impostas humilhantes condições a Antíoco III11.

Assim começa o declínio do império selêucida. Daqui para a frente, Antíoco III e seus sucessores debater-se-ão em crescentes lutas internas pelo poder, assistindo à fragmentação progressiva dos seus domínios e lutando com grandes dificuldades financeiras. Só a Roma Antíoco deve pagar 15.000 talentos euboicos. O talento euboico, do nome da ilha de Eubeia, pesa cerca de 26 kg. Logo, Antíoco deve pagar a Roma o equivalente a 390.000 kg de prata.

O que ocorrerá é que, em relação a cidades como Jerusalém, por exemplo, os sucessores de Antíoco III não terão condições de manter a prometida isenção tributária – ver decreto de 197 a.C – premidos que estarão por Roma. O próprio Antíoco III é morto em 187 a.C., pela população revoltada, quando saqueia um templo elamita, para conseguir dinheiro com que pagar aos romanos.

 

2. Antíoco IV e a pólis

Em 175 a.C. Selêuco IV, filho e sucessor de Antíoco III é assassinado. Assume o poder o seu irmão Antíoco IV Epífanes (175-164 a.C.), que voltava de Roma, onde era refém desde 188 a.C., quando seu pai perdera a batalha de Magnésia e assinara o tratado de Apameia.

A instabilidade do reino selêucida aumenta e Antíoco IV toma medidas helenizantes como forma de consolidar o seu poder. Concede o status de pólis a várias cidades, promove a adoração de Zeus e reivindica para si prerrogativas divinas12.

As dificuldades econômicas enfrentadas por Antíoco IV Epífanes, geradas pela pressão romana, a quem deve pagar mil talentos por ano, leva-o a sobrecarregar seus súditos e o instiga ao saque de templos para a obtenção de fundos.

Enquanto isto, em Jerusalém, o processo de helenização avançara bastante desde o século anterior, especialmente entre a aristocracia sacerdotal e leiga. Forma-se um forte partido pró-helênico, que pretende incrementar o avanço civilizatório grego e, por isso, está em luta com os judeus tradicionais e fiéis à Lei.

Estes helenizantes defendem urgente revogação do decreto de Antíoco III, que os impede de se integrarem totalmente no modo de vida grego.

F.-M. Abel observa, por exemplo, que a Judeia está cada vez mais cercada por cidades helenizadas e é impossível ao judeu não tomar contato com o seu modo de vida. Quem vai a Ptolemaida passa por Samaria ou Dora; se alguém negocia na Galileia não pode fugir de Citópolis ou Filotéria; ou na Transjordânia é necessário ir a Pella, a Gadara ou a Filadélfia. Do lado do mar? Marisa está na rota de Gaza ou Askalon. Jam­nia, Gazara e Jope também não podem ser evitadas13.

A ocasião favorável aos partidários da helenização surge quando Onias III, o conservador sumo sacerdote, está em Antioquia cuidando dos interesses de seu povo e Antíoco IV assume o poder.

Um irmão de Onias III, Jasão (Joshua), oferece ao rei alta soma em dinheiro e um rápido programa de helenização dos judeus em troca do cargo de sumo sacerdote. 1Mc 1,11-13 comenta o caso do seguinte modo: “Por esses dias apareceu em Israel uma geração de perversos (paránomoi) que seduziram a muitos com estas palavras: ‘Vamos, façamos aliança com as nações circunvizinhas, pois muitos males caíram sobre nós desde que delas nos separamos’. Agradou-lhes tal modo de falar. E alguns de entre o povo apressaram-se em ir ter com o rei, o qual lhes deu autorização para observarem os preceitos (dikaiômata) dos gentios”.

O termo paránomoi indica, segundo Dt 13,14, pessoas que fazem propostas de apostasia da Lei. Daí que “fazer aliança com as nações” indica renegar a Lei e seguir costumes gentios.

Também o dikaiômata tôn éthnôn (preceitos dos gentios) é significativo. Dika­íôma é usado pelos LXX para traduzir o hebraico derek ou mishpat (caminho, direito) significando obrigações legais. Observar os preceitos dos gentios significa, portanto, abandonar as normas da Lei e seguir leis gentias14.

Antíoco IV Epífanes aceita a oferta de Jasão, pois precisa de dinheiro, tem urgência em helenizar a região para garantir sua fronteira sul e, ao que parece, suspeita de tendências pró-ptolomaicas em Onias III.

Assim, em 174 a.C. é instalado um ginásio em Jerusalém, aos pés da acrópole, contíguo à esplanada do Templo. 2Mc 4,7-10 descreve do seguinte modo os fatos: “Entrementes, tendo passado Selêuco à outra vida e assumindo o reino Antíoco, cognominado Epífanes, Jasão, irmão de Onias, começou a manobrar para obter o cargo de sumo sacerdote. Durante uma audiência, ele prometeu ao rei trezentos e sessenta talentos de prata e ainda, a serem deduzidos de uma renda não discriminada, mais oitenta talentos. Além disso, empenhava-se em subscrever-lhe outros cento e cinquenta talentos15, se lhe fosse dada a permissão, pela autoridade real, de construir uma praça de esportes e uma efebia, bem como de fazer o levantamento dos antioquenos de Jerusalém. Obtido, assim, o consentimento do rei, ele, tão logo assumiu o poder, começou a fazer passar os seus irmãos de raça para o estilo de vida dos gregos”.

Um ginásio grego não é mera praça de esportes. É uma instituição cultural das mais importantes, usada no processo de helenização de várias cidades orientais. Além dos esportes gregos, praticados nus – o que causa embaraço aos jovens judeus circuncidados -, o ginásio implica a presença de divindades protetoras, como Héracles (= Hércules) e Hermes e ensina a maneira grega de se viver e de se ver o mundo. Falar o grego corretamente, vestir-se à moda grega, conhecer e discutir a cultura grega, são algumas das atividades praticadas no ginásio. Consta que o rei Antíoco IV vai a Jerusalém nesta época, sendo recebido pelos filo-helenistas com grande entusiasmo.

Além do que, “o ginásio parece ter sido realmente uma corporação separada de judeus helenizados, com direitos cívicos e legais definidos, estabelecida dentro da cidade de Jerusalém”16. Estes judeus são chamados de “antioquenos” nos documentos da época, como se vê em 2Mc 4,9.19. Certamente porque estão sob a proteção real, ou mesmo porque são considerados como “cidadãos de Antioquia”, segundo alguns. 2Mc 4,12-14a fala do ginásio de Jerusalém com grande desgosto.

A situação, entrementes, se complica, quando um sacerdote não-sadoquita, chamado Menelau, apoiado pela poderosa família dos Tobíadas, faz uma oferta maior a Antíoco IV e obtém o sumo sacerdócio. Menelau oferece a Antíoco 300 talentos de prata (cerca de 7.800 kg) suplementares na época de pagar o tributo (2Mc 4,23-24).

Isto se dá em fins de 172 a.C., início de 171 a.C. Jasão foge para a Transjordânia, para o feudo de Hircano, o Tobíada dissidente e pró-Lágida, já morto nesta época.

Como protestasse contra a venda de vasos sagrados do Templo (vendidos por Menelau para conseguir o dinheiro prometido a Antíoco IV), Onias III é assassinado a mando de Menelau. A população de Jerusalém, revoltada com as ações de Menelau, vê três membros da gerousia serem executados por Antíoco IV, quando oficialmente denunciam as arbitrariedades cometidas pelo sumo sacerdote.

Em 169 a.C., na volta de sua primeira campanha egípcia, campanha vitoriosa, Antíoco IV saqueia o Templo de Jerusalém, com a aprovação de Menelau. 1Mc 1,21-23 narra este saque do Templo, do qual se desconhece a causa. Talvez seja a sempre crescente necessidade de dinheiro.

No começo de 167 a.C. Antíoco IV envia a Jerusalém Apolônio, o misarca (comandante das tropas mísias), com forte contingente. Ataque, assassinatos em massa, escravidão. Muralhas demolidas e construção de poderosa fortaleza em Jerusalém, conhecida, em grego, como Acra (= cidadela), sede de uma guarnição e verdadeira pólis, no coração de Jerusalém, encostada no Templo. Durante cerca de 25 anos a Acra será o braço armado selêucida em Jerusalém, espinho atravessado na garganta dos judeus fiéis (2Mc 5,23b-24). 1Mc 1,33-35 descreve a construção da Acra.

É nesta época que começa verdadeira caçada aos Oníadas e a seus partidários. Como é de praxe em tais circunstâncias, suas propriedades são confiscadas e transferidas para os Tobíadas ou para as colônias militares reais.

Desencadeia-se feroz perseguição a todos os inimigos de Menelau. Os habitantes do distrito judaico transformam-se em cidadãos sem direitos. Os fiéis seguidores da Lei, os assideus (= piedosos) são obrigados a fugir para os desertos e montanhas. Jerusalém é, enfim, uma cidade contaminada: os gentios controlam a sua população.

 

3. Antíoco IV e a proibição do judaísmo

Acredita-se que tenha sido para vencer a, por enquanto pacífica, resistência judaica ao programa de helenização é que Antíoco IV decide proibir a prática do judaísmo, no verão de 167 a.C.

Acontece, então, como norma geral, duas coisas (1Mc 1,41-53):

  • a abolição da Torá, com seus mandamentos e suas proibições: ficam proibidas as práticas do sábado, das festas, da circuncisão, da distinção de alimentos puros e impuros. Todos os manuscritos da Lei devem ser destruídos. Qualquer violação destas normas tem a morte por punição
  • uma reforma do culto em toda a Judeia: a abolição dos sacrifícios e da sacralidade do santuário e dos sacerdotes, a ereção de altares em todo o país e o sacrifício de porcos e outros animais impuros a deuses estrangeiros.

Para completar, em dezembro de 167 a.C., é introduzido o culto de Zeus Olímpico no Templo de Jerusalém, com respectiva imagem e sacrifício.

Explica C. Saulnier que “deus eminente dos gregos, Zeus representava os valores do poder e da autoridade; o epíteto Olímpico recordava suas prerrogativas sobre as outras divindades e seu aspecto uraniano (isto é, de deus do céu); na Síria ele fora assimilado a Baal Shâmin, deus soberano, senhor das tempestades e da fecundidade. Tais aspectos podiam aparentemente aproximá-lo de Iahweh que, desde a época persa, era designado nos textos judaicos como “o Deus dos céus”. Nestas condições, podemos admitir que Antíoco IV quisesse introduzir em Jerusalém uma divindade sincrética, que permitisse a judeus, sírios e gregos reconhecer nela a emanação de um deus sobera­no”17.

A introdução deste culto no Templo é a “abominação da desolação”, segundo Dn 11,31. 1Mc 1,54-57.64 assim descreve a “abominação da desolação”: “No décimo quinto dia do mês de Casleu do ano de cento e quarenta e cinco [8 de dezembro de 167 a.C.], o rei fez construir, sobre o altar dos holocaustos, a Abominação da desolação. Também nas outras cidades de Judá erigiram-se altares e às portas das casas e sobre as praças queimava-se incenso. Quanto aos livros da Lei, os que lhes caíam nas mãos eram rasgados e lançados ao fogo. Onde quer se encontrasse em casa de alguém um livro da Aliança ou se alguém se conformasse à Lei, o decreto real o condenava à morte (…) Foi sobremaneira grande a ira que se abateu sobre Israel”.

Os judeus são também obrigados a participar da festa de Dionísio e do sacrifício mensal em honra do aniversário do rei (2Mc 6,7). Enfim, uma verdadeira cruzada contra a Lei. Por detrás disso tudo podemos ver as tristes figuras de Menelau e dos Tobíadas18.

 

4. As causas da helenização

Com muita frequência, têm-se colocado as razões religiosa e cultural como motivo para a helenização da Judeia e consequente resistência macabeia. Claro que, na típica visão teocrática do judaísmo de então, as motivações religiosas é que oferecerão os conceitos para a leitura dos fatos (1Mc 1,41-42;Dn 11,31-32.36-37). Apesar de tudo isso, é preciso ir além na interpretação dos fatos. Além das razões estratégicas e políticas dos Selêucidas para incentivar a helenização dos judeus, razões já apresentadas, há motivos econômicos para o conflito que o processo desen­cadeia19.

É que o sistema político grego tradicional, como adotado pelos Selêucidas, não dispõe de um mecanismo fiscal para o recolhimento do tributo. Ou seja: não há uma burocracia profissional que administra as finanças do Estado. Em Atenas, por exemplo, o cidadão se dedica à administração da cidade sem receber recompensa alguma, a não ser a satisfação do dever cumprido e o sentimento de contribuir para o bem comum. Assim, nos reinos helenísticos a função de recolher o tributo é arrendado à aristocracia dos povos dominados, proporcionando-lhe lucros financeiros e influência política junto ao governo estrangeiro, como vimos no caso dos Tobíadas.

Por outro lado, deve-se levar em conta que a noção grega de Estado é concretizada no Oriente:

  • ou na pólis, uma associação de cidadãos livres e autônomos baseada na vizinhança
  • ou no éthnos, uma relação de parentesco baseada na solidariedade dos laços de sangue.

M. Rodrigues explica que “três grandes princípios presidem à formação da pólis: eleuteria (independência), autonomia (poder próprio) e autarquia (autogestão). A cidade era tudo para o cidadão grego. O verbo politeyestaí, que significava ‘tomar parte nos negócios públicos’, também significava simplesmente ‘viver'”20.

Ora, Judá é e permanece um éthnos também na administração selêucida. Mas o próprio Antíoco III, o Grande, com seu decreto de 197 a.C., reforça os privilégios da aristocracia, criando as condições para a sua emancipação da hierocracia e para o predomínio da pólis sobre o éthnos. “A autonomia étnica, que foi concedida oficialmente à Judeia, trouxe em si elementos que ofereciam à aristocracia das cidades novas possibilidades”21.

A lei, baseada na vontade do rei Selêucida – que reivindica tal direito como “direito de lança” por ser o conquistador – e não nas tradições dos antepassados codificadas na Torá, cria condições para que a aristocracia judaica substitua as leis étnicas por leis políticas.

O texto de 1Mc 10,29-31, que trata de uma isenção de impostos concedida aos judeus mais tarde, em 152 a.C., por Demétrio I, dá-nos uma ideia dos tributos recolhidos pelos Selêucidas na Judeia: “Desde agora desobrigo-vos, e declaro isentos todos os judeus, dos tributos (phóroi), do imposto sobre o sal e do ouro das coroas. Igualmente renuncio à terça parte da semeadura e à metade dos frutos das árvores, que me caberiam de direito: de hoje em diante deixo de arrecadá-los à terra de Judá e aos três distritos que lhe foram anexos, bem como à Samaria e à Galileia. Isto a partir do dia de hoje e para todo o tempo. Jerusalém seja considerada santa e isenta, assim como seu território, sem dízimos e sem tributos”.

Os três primeiros impostos citados, já os conhecemos do decreto de Antíoco III: trata-se do phóros, do imposto sobre o sal e do imposto coronário.

Agora, o que aqui nos interessa é perceber como se faz o recolhimento do tributo na Judeia. A aristocracia – por exemplo, os Tobíadas e seus associados – recolhe dos camponeses 1/3 do produto das colheitas e metade da produção das frutas. Vende, certamente com ganhos, estes produtos e paga aos seus senhores Selêucidas determinada quantia em prata. Talvez cerca de 300 talentos anuais segundo 1Mc 11,28.

Daí ser significativo que a primeira notícia a respeito do nascente conflito com o helenismo, aponte uma razão econômica. Vamos lembrar o que diz 2Mc 3,4: “Ora, certo Simão, da estirpe de Belga, investido no cargo de superintendente do Templo, entrou em desacordo com o sumo sacerdote a respeito da administração dos mercados da cidade”.

Assim, a aristocracia começa a pressionar sempre mais na direção da helenização total, como modo de quebrar as barreiras da tradição de solidariedade baseada na aliança. Seu enriquecimento fácil, baseado na tributação e na manutenção de seus privilégios, choca-se com as normas da Lei. A solução será pedir a Antíoco IV Epífanes a eliminação da Lei. Some-se a isso a precariedade financeira dos Selêucidas e o mecanismo começa a ficar claro.

Segundo as leis israelitas, a terra é dom de Iahweh ao povo. Israel tem a posse da terra, mas não é seu proprietário. O livro do Deuteronômio, escrito a partir do século VII a.C., repete isto sempre (Dt 12,1.9.10.20.29;13,13;16,5.18.20 etc). Dt 12,1, por exemplo, diz: “São estes os estatutos e as normas que cuidareis de pôr em prática na terra cuja posse Iahweh, Deus de teus pais te dará, durante todos os dias em que viverdes sobre a terra”.

A terra em Israel é classificada como nahala (= herança, posse), como em Dt 12,9.10;19,10;20,16 e tantos outros lugares.

Pode-se até negociar a terra, mas somente dentro de determinadas normas. O direito que regulamenta a venda da terra é a chamada ge’ulla (= resgate da terra). Quem tem o direito de compra é apenas o parente do lado masculino da família.

A venda da terra pode proteger o proprietário empobrecido de pagar tributos e impostos a estrangeiros, como pode protegê-lo também de ser vendido como escravo permanente a estrangeiros.

O resgate da terra é baseado no conceito de hesed (= fidelidade), uma solidariedade que sustenta a relação comunitária no nível do clã.

H. G. Kippenberg assim resume a relação de parentesco em Israel:

  • a estrutura de parentesco determina a reprodução das famílias e as relações sociais dentro da família
  • a estrutura de parentesco une as famílias em uma hierarquia baseada nas prerrogativas dos irmãos mais velhos sobre os mais novos, mas cria laços de solidariedade entre eles
  • a terra pode ser negociada entre parentes, mas não com estranhos ao círculo de parentesco. Entretanto, este princípio leva ao acúmulo de terras pelas famílias mais ri­cas22.

Compare-se esta concepção israelita da posse da terra com a concepção grega, onde a terra pode ser dada a quem o rei determinar, porque ela lhe pertence por direito de conquista. O conflito jurídico é evidente.

Ora, como no interior do clã a estratificação social avança bastante nos períodos persa e grego, a aristocracia judaica que aí surge tende a excluir os mais pobres. Por outro lado, a manutenção das regras do parentesco exigida pela Lei e confirmada por Antíoco III prejudica os interesses da aristocracia.

Entretanto, os sacerdotes Macabeus, líderes da resistência judaica, e seus partidários assideus, defendem a manutenção dos laços de parentesco, da solidadriedade étnica contra a instalação do regime da pólis em Jerusalém.

Enquanto os partidários da helenização seguem as ordens do rei (1Mc 2,19-20;6,21-27), os revolucionários Macabeus fazem valer os antigos mandamentos (1Mc 2,29-38: o sábado; 2,42-48: a circuncisão; 4,36-51: a purificação do Templo).

Que os motivos desta luta são também econômicos, gerados pelo arrendamento estatal dos impostos à aristocracia, não resta dúvida, se observarmos que em 142 a.C., quando  o rei selêucida Demétrio II concede aos judeus a isenção dos tributos, isto é festejado como libertação da escravidão e começo de uma nova era (1Mc 13,36-42).

É que, com o desaparecimento do arrendamento, a aristocracia não é mais identificada com o Estado, dando aos camponeses maior folga em relação aos senhores da terra. A desigualdade permanece a mesma, mas os camponeses conseguem controle sobre o excedente23.

A lógica grega deste arrendamento é a de reduzir o direito de cidadania a pequena faixa aristocrática, mantendo os produtores como simples moradores, objeto de conquista, sem direito a cidadania.

E esta lógica está funcionando, até que, em Jerusalém, uma camada aristocrática força a helenização e entra em choque com o direito sagrado tradicional do povo judeu. Aí vem o conflito com os Macabeus, que não tem objetivos religiosos: o que se quer é uma reforma da constituição da Judeia. Mas será a simbologia religiosa que exprimirá os interesses igualitários de sacerdotes e camponeses24.

 

Bibliografia

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> Este artigo foi publicado em Cadernos de Teologia, Campinas, n. 3, p. 16-31, 1997. Está disponível também na Ayrton’s Biblical Page, publicado em 06.08.2020.


1. LÉVÊQUE, P. O mundo helenístico. Lisboa: Edições 70, 1987,  p. 59.

2. Cf. PRÉAUX, C.  Le monde hellénistique. La Grèce et l’Orient (323-146 av. J.-C.) II. 2. ed. Paris: Presses Universitaires de France, 1988, p. 401-403.

3. LÉVÊQUE, P. o. c., p. 61.

4. Cf. PRÉAUX, C. Le monde hellénistique II, p. 403-408.

5. Celessíria significa “Síria Côncava” e compreende os territórios do sul da Síria, da Fenícia e da Palestina. A origem do nome é controvertida. É possível que venha do semítico, algo assim como o hebraico kl sûryh, “toda a Síria”, que teria se tornado, em grego, por assonância, koílê syrîa. Originariamente a Celessíria compreendia toda a Síria, mas na época helenística já se distingue entre a Syrîa hê ánô (Síria do norte) e a koílê Syrîa. “Celessíria”, entretanto, só se torna designação oficial da região sob o governo dos Selêucidas, após 198 a.C. Os Ptolomeus chamavam a região de Síria e Fenícia. Cf. STERN, M. Greek and Latin Authors on Jews and Judaism I. Jerusalem: The Israel Academy of Sciences and Humanities, 1976, p. 14.

6. Cf. JOSEFO, F. Antiquitates Iudaicae XII, 138-144. São  Paulo: Editora das  Américas, 1956.

7. Cf., sobre os impostos selêucidas, SAULNIER, C. Histoire d’Israel III. De la conquête d’Alexandre à la destruction du temple (331a.C.-135 a.D.). Paris: Du Cerf, 1985, p. 456-458; PRÉAUX, C. Le monde hellénistique. La Grèce et l’Orient (323-146 av. J.-C.) I. 2. ed. Paris: Presses Universitaires de France, 1987, p. 384-388.

8. Há quatro grandes jogos pan-helênicos: os Jogos Olímpicos, em Olímpia; os Jogos Ístmicos, em Corinto; os Jogos Píticos, em Delfos e os Jogos Nemeus, no vale de Nemeia.

9. Cf. KIPPENBERG, H. G. Religião e formação de classes na antiga Judeia. São Paulo: Paulinas, 1988, p. 77-81; BICKERMAN, E. The God of Maccabees. Studies on the Meaning and Origin of the  Maccabean Revolt. Leiden: Brill, 1979, p. 32-34.

10. KIPPENBERG, H. G. o. c., p. 78.

11. Cf. SAULNIER, C. Histoire d’Israel III, p. 102-104; PRÉAUX, C. Le monde hellénistique I, p.153-163; WILL, E. Histoire politique du monde hellénistique II. 2. ed. Nancy: Presses Universitaires de Nancy, 1982, p. 210-215;221-224.

12. Cf., para o reinado de Antíoco IV e seu confronto com os judeus, BRIGHT, J. História de Israel. São Paulo: Paulinas, 1978, p. 570-576; ABEL, F.-M. Histoire de la Palestine depuis la conquête d’Alexandre jusqu’a l’invasion arabe I. Paris: Gabalda, 1952, p. 109-132; HENGEL, M. Judaism and Hellenism . Studies in their Encounter in Palestine during the Early Hellenist Period I. London: SCM Press, 1981, p. 277-290; SAULNIER, C. Histoire d’Israel III, p. 105-121; Idem, A revolta dos Macabeus. São Paulo: Paulinas, 1987, p. 21-31; WILL, E. Histoire politique du monde hellénistique (323-30 av. J.-C.) II. 2. ed. Nancy: Presses Universitaires de Nancy, 1982, p. 326-341.

13. Cf. ABEL, F.-M. Histoire de la Palestine depuis la conquête d’Alexandre jusqu’a l’invasion arabe I, p. 109.

14. Cf. SAULNIER, C. Histoire d’Israel III, p. 110-111.

15. Jasão oferece a Antíoco 590 talentos, o equivalente a cerca de 15.340 kg de prata. Um talento ático pesa 26,2 kg.

16. BRIGHT, J. História de Israel, p. 572.

17. SAULNIER, C. A revolta dos Macabeus, p. 26.

18. Cf. HENGEL, M. Judaism and Hellenism I, p. 292-303; BRIGHT, J. História de Israel, p. 574-576.

19. Cf. KIPPENBERG, H. G., Religião e formação de classes na antiga Judeia, pp. 73-87; GRUEN, W., Religião e formação de classes sociais no Judá pós-exílico, segundo H. G. KIPPENBERG, em Atualização 171-172, março/abril de 1984, pp. 152-161.

20. RODRIGUES, A. M. As utopias gregas. São Paulo: Brasiliense, 1988, p. 76. Cf. também GIORDANI, M. C. História da Grécia. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 1986, p. 151-183; MOSSÉ, C. As instituições gregas. Lisboa: Edições 70,1985; GLOTZ, G. A cidade grega. São Paulo: Difel, 1980.

21. KIPPENBERG, H. G. o. c., p. 80.

22. Cf. KIPPENBERG, H. G., o. c., p. 39.

23. Cf. Idem, ibidem, p. 86.

24. Cf. Idem, ibidem, p. 86-87.

Judaísmo e Helenismo III

Judaísmo e Helenismo: encontro e conflito. Estudos Bíblicos, Petrópolis, n. 48, p. 9-18, 1996.

Refletir sobre a história, mesmo a muito antiga, antes de Cristo, pode ser extremamente atual. Pode dar-nos uma nova dimensão da realidade, sugerir analogias, ajudar-nos a compreender o homem no mundo e sua história. Por isso estou falando de judaísmo e helenismo.

Mais atenção ainda deve dar ao tema o cristão que milita hoje neste nosso mundo tão dinâmico e tão pluralista, refletindo-o à luz da fé. É preciso lembrar que nós somos “netos” dos gregos e “herdeiros” dos judeus em nossas práticas culturais e religiosas.

A minha proposta é a seguinte:

  • olhar os acontecimentos históricos, de maneira breve e resumida, desde a época de Alexandre Magno até a época de Pompeu
  • verificar a importância de alguns agentes do helenismo na Palestina
  • conferir frutos da helenização na Palestina, a partir de alguns textos de judeus em grego
  • finalmente, seguir algumas linhas de desenvolvimento do pensamento judaico em seu encontro e conflito com o mundo grego.

O artigo prossegue com os seguintes itens:

1. A Palestina de Alexandre a Pompeu
2. Os agentes do helenismo na Palestina
3. Frutos da helenização na Palestina
4. As tendências do pensamento judaico em seu confronto com o helenismo
Conclusão
Leituras recomendadas

Vou transcrever aqui apenas o item 4, as tendências do pensamento judaico em seu confronto com o helenismo (omitindo as 5 notas de rodapé deste trecho) e a conclusão.

4. As tendências do pensamento judaico em seu confronto com o helenismo

É bastante difícil demonstrar influências helenísticas diretas nos escritos judaicos da época grega.

Por razões diversas. A dificuldade linguística, em primeiro lugar. Os conceitos gregos são imperfeitamente transmitidos em construções literárias  semitas. Mas não é só. Há ainda incerteza quanto às datas de composição de várias obras, a influência de contatos com os gregos anteriores à época de Alexandre Magno e a parcialidade dos combativos escritos anti-helênicos conservados, como os documentos essênios recuperados na região do Mar Morto ou os escritos dos grupos apocalípticos.

Por outro lado, entre o fim do domínio persa e a chegada de Roma à região, chama a atenção a quantidade e a variedade da literatura produzida pelos judeus. Isto indica surpreendente efervescência na minúscula comunidade judaica.

Por isso, mais do que traçar possíveis influências, procura-se seguir certas linhas de desenvolvimento do pensamento judaico em sua controvérsia com a pressão cultural da época helenística.

De imediato, observa-se o aparecimento de novos gêneros literários, todos típicos do mundo grego, incomuns entre os judeus. Como a epístola, o romance histórico, a narrativa aretológica (= elogio do comportamento virtuoso) e a pseudoepigrafia na literatura apocalíptica.

Mas, de modo geral, duas correntes de pensamento podem ser percebidas nesta época: a corrente sapiencial, desenvolvida nas várias “escolas de sabedoria”, com múltiplas tendências, e a corrente apocalíptica, filha da enfraquecida profecia, leitura camuflada e simbólica, mas contundente, da nova realidade.

Talvez o ponto comum mais evidente nas tendências predominantes de pensamento seja o uso de uma incipiente racionalidade. Que se manifesta, entre outras possibilidades, na absorção de termos abstratos – desconhecidos na estrutura mental semita, mas centrais no pensamento grego – e no começo de uma certa sistematização e regularidade nas descrições da natureza, da história e da própria existência humana.

Isto é mais evidente, é claro, nos escritos sapienciais. Uma forte tendência das escolas de sabedoria, por exemplo, é a de realizar a fusão da sabedoria internacional com a piedade tradicional, como pode ser visto no Eclesiástico ou em Provérbios 1-9. Ou ainda a tendência crítica e universalista de Jó e Eclesiastes.

Procurou-se, durante muito tempo, estabelecer a possível influência da filosofia grega clássica sobre a sabedoria judaica. Talvez seja mais correto falarmos de um estágio “pré-filosófico” da sabedoria judaica, com maiores afinidades com a filosofia popular grega. Há aí, claro, fortes tendências sincréticas, mas o pensamento grego que mais fortemente penetra nos arraiais judaicos é o estoicismo, em suas versões mais populares.

Um dos aspectos mais populares do estoicismo é a sua pregação de uma fraternidade universal entre os homens, onde não haveria distinção entre gregos e bárbaros, nem entre livres e escravos.

Segundo o estoicismo  “o essencial é distinguir  ‘o que depende de nós’ e  ‘o que não depende de nós’. No segundo grupo fica tudo o que depende das paixões, e o que é preciso aprender a renunciar através de uma longa ascese que vai conduzir ao domínio sobre si mesmo, à apatia (ausência de paixão). O que depende de nós é precisamente a vontade, que faz do sábio um igual a Deus. Moral dura, mas exaltante, que torna o homem independente das circunstâncias, e, em particular, da sua classe e da sua situação. Mas esta moral estoica é fatalista, pois sustenta o conformismo a uma dada ordem.

Falávamos da sabedoria. Contudo, mesmo os escritos apocalípticos mais antigos, provenientes dos círculos dos assideus que combatem a helenização na Palestina, só se tornam possíveis através da assimilação de variados elementos sincréticos estrangeiros, como os babilônios, os persas e gregos.

Conclui-se, portanto, que, pelo menos nos primeiros tempos, o helenismo não causou rupturas graves no desenvolvimento do pensamento judaico. Há, isto sim, uma progressiva assimilação e relativa filtragem, que pode ser rastreada desde a metade do séc. III. a.C.

Abordo aqui, a título de exemplo e demonstração do que vem sendo dito sobre a influência grega, com toda a provisoriedade exigida, apenas alguns aspectos da corrente sapiencial, exemplificada através do Eclesiastes  e do Eclesiástico.

No Eclesiastes ou Qohélet observam-se evidentes indícios da nova realidade greco-palestina. A obra é escrita pela metade do séc. III a.C., portanto, no período do boom econômico ptolomaico.

Chama a atenção do leitor o frio ceticismo do autor, sua racionalidade extremamente objetiva, sua desilusão com a teologia otimista da sabedoria tradicional. O sentido do governo divino sobre o mundo não é óbvio e a justiça javista não funciona. O homem fica nas mãos de um destino desconhecido e hostil. Ecl 2,17 afirma: “Detesto a vida, pois vejo que a obra que se faz debaixo do sol me desagrada: tudo é vaidade e correr atrás do vento”.

J. Guinsburg acredita que o Qohélet rejeita três tendências de sua época: o conservadorismo sapiencial do estrato social a que pertence, o radicalismo messiânico e o misticismo apocalíptico – mais tarde típico dos essênios – e o racionalismo filosófico e o ecletismo cosmopolita, defendidos pelos adeptos da helenização.

M. Hengel, por outro lado, opina que a ética do Qohélet é “burguesa”. Por “burguesia” ele entende aquele estrato social que forma a força dominante do mundo helenístico, a “nata social”, que vive de seus investimentos em terras ou outros negócios. Na vida, este grupo busca segurança e prazer. Tem um pensamento racional, mas é basicamente conservador.

Neste contexto, Qohélet representaria o primeiro momento da crise gerada pela helenização. Vê-se a fragmentação e a falência da teologia e da piedade tradicionais, mas sua formação aristocrática e tradicional o impede de romper com Iahweh, a quem ele confirma como o senhor de tudo o que existe e acontece. Embora a lógica da vida seja absurda e desumana.

O Qohélet faz severas críticas ao sistema opressivo do domínio estrangeiro em 4,1: “Observo ainda as opressões todas que se cometem debaixo do sol: aí estão as lágrimas dos oprimidos e não há quem os console; e força do lado dos opressores, e não há quem os console”. É possível que em 5,7-8 ele esteja aludindo às injustiças cometidas pelos seus próprios conterrâneos em nome dos dominadores estrangeiros dentro da típica administração ptolomaica: “Se numa província vês o pobre oprimido e o direito e a justiça violados, não fiques admirado: quem está no alto tem outro mais alto que o vigia, e sobre ambos há outros mais altos ainda”.

R. Michaud, por sua vez, adota interessante hipótese de N. Lohfink acerca do Qohélet. Quando, por volta de 248 a.C., o rico José, o Tobíada, torna-se o coletor de impostos da Celessíria, em nome dos Ptolomeus, ele vem morar em Jerusalém, acelerando a implantação da educação grega na cidade. Além de filho do poderoso Tobias, ele é sobrinho do sumo sacerdote Onias II. Os mestres tradicionais do Templo vão se enfrentar, então, com os inúmeros filósofos ambulantes que invadem a cidade, segundo o costume grego. Nesta ocasião, para escândalo dos tradicionalistas, um dos mestres judeus, o nosso inovador sábio, resolve ir para as ruas, acompanhado por seus discípulos. Adota o mesmo método dos gregos para poder enfrentá-los. Ele se transforma em um sábio ambulante que observa os acontecimentos do cotidiano e tira suas conclusões a partir da fé javista.

Já o Eclesiástico (= Sirácida), escrito no início do séc. II a.C., polemiza com a aristocracia de Jerusalém que está abandonando a fé de seus antepassados em decorrência de sua assimilação da cultura grega. O Eclesiástico considera os grupos da alta sociedade de Jerusalém como apóstatas da Lei e descrentes das ações de Iahweh em favor dos homens.

Contra tal tendência ele justifica a retribuição divina. E desenvolve, sob influência provável das filosofias mais populares da época, uma teodiceia da criação. O mundo foi criado por Iahweh para a salvação do homem com um profundo sentido de harmonia: “Todas as obras do Senhor são magníficas, todas as suas ordens são executadas pontualmente”, afirma Eclo 39,16.

O centro da humanidade é Israel, com sua única e miraculosa história guiada por Iahweh. Na Lei de Moisés, Israel recebe a sabedoria divina, o poder que regula toda a criação. Além disso, ele admoesta os filhos do sumo sacerdote Simão que estão em luta pelo poder, intercede em favor do pobre oprimido – “Escasso alimento é o sustento do pobre, quem dele o priva é um homem sanguinário. Mata o próximo o que lhe tira o sustento, derrama sangue o que priva do salário o diarista” (Eclo 34,21-22) – e pede, à maneira dos antigos profetas, a realização da salvação escatológica para Israel.

O Sirácida identifica a sabedoria à Lei mosaica – “Saí da boca do Altíssimo e como neblina cobri a terra”, diz Eclo 24,3; e 24,23: “Tudo isto é o livro da Aliança do Deus Altíssimo, a Lei que Moisés promulgou, a herança para as assembleias de Jacó” -, garantindo não só que o mundo foi criado por Iahweh para a salvação do homem, mas que Israel é o centro da humanidade com sua exclusiva história comandada por ele.

Ou seja: em sua polêmica com o racionalismo secular grego, o Eclesiástico procura salientar a superioridade da fé e da tradição israelitas codificadas na Lei.

Conclusão

Certamente esse é apenas um rápido e insuficiente tratamento do problema. Mas, para terminar, quero chamar a atenção, neste jogo de assimilação e combate às ideias helênicas, para a tendência absolutizante da Torá.

Quando, na tradição farisaica, é feita a identificação da Lei com a sabedoria “divina”, revelada a Israel e ocultada à razão humana, o que está em ação é uma ontologização da Torá, que terá múltiplas consequências históricas e teológicas.

Há, no judaísmo pós-exílico, uma perda evidente da consciência histórica, levando à segregação progressiva do judaísmo rabínico, especialmente após a dispersão do ano 70 d.C.

A ação eficaz do “fazer justiça”, construindo uma sociedade solidária, tão típica da teologia mosaica e profética, perde seu impulso. No seu lugar desenvolve-se a ideia do “ser justo”. Ser judeu, agora, na época greco-romana, é ser justo. E ser justo é observar com o maior rigor possível os preceitos da Torá. Especialmente as regras da pureza ritual, as obras de piedade e de misericórdia, o sábado, a circuncisão, as festas.

É a falência do projeto javista, pois o judeu poderá manter sua identidade sem precisar construir uma sociedade nova, onde o direito, a justiça e a solidariedade regem as estruturas políticas, sociais e econômicas.

É, por outro lado, o preço pago para salvar a raça, realimentada pelo despertar de uma consciência que liga fortemente o povo de Israel à religião judaica.

É o bloqueio das dissidências e do sincretismo, pelo menos na Judeia, concretizado na ruptura com os grupos que apresentavam projetos sociais alternativos, tais como os cristãos primitivos.

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Judaísmo e Helenismo II

Judaísmo e Helenismo: resistência e submissão. Cadernos do Cearp, Ribeirão Preto, n. 2, p. 32-33, 1994.

Na sociedade israelita tradicional as relações sociais são reguladas pelo sistema de parentesco. As famílias se agrupam numa formação hierarquizada de tipo patriarcal conhecida como mishpaha (= clã). A reprodução das famílias, a posse da terra, a defesa das propriedades, as festas cultuais e a memória coletiva, por exemplo, são organizadas no interior da estrutura clânica, gerando forte coesão social e intensa solidariedade entre seus membros.

Teologicamente, esta estrutura se expressa no tema do êxodo, que é o caminho do Egito para a terra de Israel, mas que também é a passagem da escravidão para a liberdade, caracterizada na destruição de uma engrenagem de opressão e na construção de uma sociedade soberana e solidária.

Porém, com o restabelecimento do domínio estrangeiro a partir do exílio, este projeto social vai se encontrar num tremendo impasse. Especialmente a partir dos domínios grego e romano que helenizam inexoravelmente a Palestina.

Em 332 a.C. o macedônio Alexandre Magno anexa a Palestina ao seu império. Mas morre pouco depois e seus generais travam acirrada luta pela sucessão. O distrito de Judá pertencerá a senhores diversos até 301 a.C., quando será controlado pelos Ptolomeus, reis macedônios que governam a partir de Alexandria, no Egito.

A partir de 198 a.C. a Palestina passa para o domínio dos Selêucidas, reis macedônios que governam a partir de Antioquia, na Síria.

A aristocracia judaica sente-se prejudicada, no seu processo de enriquecimento, pela limitação imposta pelas leis judaicas que continuam em vigor. Aproveitando momento favorável, negocia com os Selêucidas a implantação dos valores e do modo de vida gregos na região da Judeia. A lei judaica é abolida e a prática do judaísmo é proibida. Os judeus fiéis à tradição são perseguidos e mortos.

Isto provoca um levante armado de sacerdotes e camponeses, que, chefiados pelos Macabeus, conseguem tomar o poder no século II a.C.  Durante 79 anos a Judeia será independente e governada pelos Macabeus, que concentram em suas mãos os poderes político, militar e religioso.

A breve e conturbada independência da Judeia encontra seu fim quando o general Pompeu anexa a Roma, em 63 a.C., os territórios do decadente reino selêucida.

A pesquisa em andamento* quer exatamente enfocar qual é a relação entre a Religião e a Sociedade neste contexto específico do judaísmo entre 332 a.C. (anexação da Judeia por Alexandre) e 63 a.C. (anexação da Judeia por Roma).

Como acontecia a resistência e a submissão à nova realidade grega através da mesma religião judaica? O que faz o judaísmo ser o que é? Sua força não viria do papel simbólico da religião que cria identidade através da diferença?

E uma questão muito próxima a nós: como podem as tradições e práticas religiosas de um povo servir como instrumento de resistência à dominação imperialista e classista hoje?

O estudo se desenvolve em duas partes: na primeira abordo a questão histórica em cinco capítulos: a conquista de Alexandre, o governo dos Ptolomeus, a helenização promovida pelos Selêucidas, a resistência dos Macabeus e a independência por eles conseguida até a chegada de Roma.

Na segunda parte, abordo em cinco capítulos, os instrumentos da helenização (tais como o exército, a pólis, a língua grega comum, os cultos reais e o ginásio), a visão grega dos judeus, a visão judaica dos gregos, a apocalíptica e os essênios.

Gostaria de salientar estes dois últimos elementos: o pensamento apocalíptico, tendência presente em variados grupos, como assideus, fariseus, essênios e cristãos é de grande importância para a compreensão da produção bíblica deste período; o outro é mais específico, estranho e fascinante: é o caso dos essênios que desenvolvem uma teologia mais elaborada, recentemente descoberta em Qumran.

Enfim, uma chave de leitura: frequentemente, o helenismo, consequência das conquistas de Alexandre, tem sido lido como uma fusão de culturas e um processo glorioso que favoreceu o desenvolvimento da dominante cultural ocidental via Império Romano e seus herdeiros. Prefiro enfocar o helenismo como um processo imperialista grego, depois romano, que descaracterizou as culturas orientais dominadas, gerando variadas formas de resistência do povo sofrido daquele tempo naqueles países.

* Esta pesquisa, que foi concluída, deveria ter sido publicada em livro, mas isto nunca aconteceu. Entretanto, o material foi publicado, de maneira dispersa, em meu site – na História de Israel e nos artigos – e em artigos na revista Estudos Bíblicos da Vozes.

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Judaísmo e Helenismo I

Judaísmo e Helenismo: resistência e submissão – O ambiente do querigma cristão. Estudos Bíblicos, Petrópolis, n. 39, p. 10-19, 1993.

Na sociedade israelita tradicional as relações sociais são reguladas pelo sistema de parentesco. As famílias se agrupam numa formação hierarquizada de tipo patriarcal conhecida como mishpaha (= clã). A reprodução das famílias, a posse da terra, a defesa das propriedades, as festas cultuais e a memória coletiva, por exemplo, são organizadas no interior da estrutura clânica, gerando forte coesão social e intensa solidariedade entre seus membros.

Teologicamente, esta estrutura se expressa no tema do êxodo, que é o caminho do Egito para a terra de Israel, mas que também é a passagem da escravidão para a liberdade, caracterizada na destruição de uma engrenagem de opressão e na construção de uma sociedade soberana e solidária.

Porém, com o restabelecimento do domínio estrangeiro a partir do exílio, este projeto social vai se encontrar num tremendo impasse. Especialmente a partir dos domínios grego e romano que helenizam inexoravelmente a Palestina.

Minha proposta é a de observar este processo para situarmos melhor o ambiente judeu-helenista no qual a mensagem cristã é anunciada pela primeira vez.

Isto pode ser feito em três momentos:

  1. a história de 586 a.C. a 135 d.C.
  2. o processo de helenização visto nos seus aspectos de submissão e resistência
  3. o estudo de dois casos: o da apocalíptica e o dos essênios*.

O artigo prossegue com os seguintes itens:

1. De Babel a Roma: a história
1.1. O domínio persa
1.2. O domínio grego
1.3. O domínio romano

2. Judaísmo e Helenismo face a face: o processo
2.1. Leis étnicas x leis políticas
2.2. O bloqueio da solidariedade

3. A apocalíptica e os essênios: a busca de alternativas
3.1. A apocalíptica, filha e herdeira da profecia
3.2. Os essênios, comunidade da nova aliança

Conclusão

* Sobre a apocalíptica, confira o artigo Apocalíptica: busca de um tempo sem fronteiras. Sobre os essênios, confira o artigo Os essênios: a racionalização da solidariedade.

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