A descoberta do Livro da Lei na época de Josias

David Henige, da Memorial Library, University of Wisconsin, Madison, USA, escreve no Journal of Hebrew Scriptures – Volume 7, de 2007, o artigo Found But Not Lost: A Skeptical Note on the Document Discovered in the Temple Under Josiah, ou seja, Encontrado mas não perdido: uma nota cética sobre o documento descoberto no Templo sob Josias. O texto está disponível online e pode ser lido em formato html ou pdf.

Às vésperas de mais uma reunião dos Biblistas Mineiros e do lançamento de nosso livro sobre a Obra Histórica Deuteronomista, as considerações deste artigo me pareceram úteis.

No abstract ele diz: In this paper I look at the famous story of the finding of the “book of the law” in the temple during the reign of Josiah. Adopting a pragmatic/plausible approach and keeping in mind the biblical testimony about earlier circumstances in Judah, I argue that the story as we have it lacks inherent plausibility and should be rejected as an etiological invention, whether or not of the time. None of the various scenarios that could explain its disappearance can also serve to explain why it remained hidden for so long, only to be discovered at just the right moment to provide a willing Josiah with the justification to begin a cultic reform program.

Henige vai discutir a notícia de 2Rs 22,3-23,3 que narra a descoberta de um “livro da Lei” durante a reforma do Templo ordenada pelo rei Josias (640-609 a.C.), em seu décimo oitavo ano de governo (622 a.C.). Diz o texto, que transcrevo parcialmente na tradução da Bíblia de Jerusalém, publicada pela Paulus em 2002: 

O sumo sacerdote Helcias disse ao secretário Safã: “Achei o livro da Lei no Templo de Iahweh”. Helcias deu o livro a Safã, que o leu. O secretário Safã veio ter com o rei e informou-lhe: (…) “O sacerdote Helcias deu-me um livro”, e Safã leu-o diante do rei. Ao ouvir as palavras contidas no livro da Lei, o rei rasgou as vestes. Ordenou ao (…): Ide consultar Iahweh por mim, pelo povo e por todo Judá a respeito das palavras deste livro que acaba de ser encontrado (…) Foram ter com a profetisa Hulda (…) O rei mandou reunir junto de si todos (…) Leu diante deles todo o conteúdo do livro da Aliança encontrado no Templo de Iahweh. O rei estava de pé sobre o estrado e concluiu diante de Iahweh a Aliança que o obrigava a seguir Iahweh e a guardar seus mandamentos, seus testemunhos e seus estatutos de todo o seu coração e de toda a sua alma, para pôr em prática as cláusulas da Aliança escrita neste livro. Todo o povo aderiu à Aliança.

David Henige cita, no começo do artigo, a posição de alguns autores sobre o assunto, como:
. “O relato de 2Rs 22-23 foi escrito no tempo de Josias e deve ser verdadeiro”, diz Nadav Na’aman, em “Reflections on the Discussion”, em Lester L. Grabbe (ed.), Good Kings and Bad Kings, London, 2005, p. 348.

. “…Mas nós não sabemos se a estória desta ‘descoberta’ (ou alguma racionalização, como uma inserção deliberada do rolo logo após a composição) é verdadeira, diz Philip R. Davies, em “Josiah and the Law Book”, em Good Kings and Bad Kings, p. 70.

. “Há realmente um livro por trás desta estória…?”, pergunta W. Boyd Barrick, The King and the Cemeteries: Toward a New Understanding of Josiah’s Reform, Leiden, 2002, p. 131.

. “Durante muito tempo os críticos defenderam a idéia de que esta ‘descoberta’ era uma fraude piedosa…; hoje esta opinião foi abandonada. Quase com certeza o trabalho pertence a uma época antiga”, reflete Roland de Vaux, Ancient Israel: Its Life and Institutions, New York, 1961, p. 338.

. “A descoberta de um livro da lei no Templo não é implausível…”, diz Mordechai Cogan, “Into Exile: from the Assyrian Conquest of Israel to the Fall of Babylon”, em Michael D. Coogan (ed.) The Oxford History of the Biblical World, New York, 1998, p. 346.

Após algumas considerações metodológicas, o autor vai nos dizer que, sobre a veracidade desta ‘descoberta’, há, grosso modo, cinco posições dos especialistas:

. aceitação/paráfrase: porque é o que a Bíblia diz – como T.C. Mitchell, “Judah until the Fall of Jerusalem (c. 700-586 B.C.)” em CAH2 III/2, Cambridge, 1991, p. 388.
. aceitação com argumentação – como Iain Provan, 1 and 2 Kings, Peabody MA, 1995, p. 271.
. descarte: pode ser, pode não ser, mas isto não importa – como Mark A. O’Brien, The Deuteronomistic History Hypothesis: a Reassessment, Freiburg, 1989, p. 239-40 n. 41.
. dúvida: poderia ser, mas provavelmente não – como Giovanni Garbini, Myth and History in the Bible, Sheffield, 2003, p. 64 ou Thomas Römer, The So-Called Deuteronomistic History: a Sociological, Historical, and Literary Introduction, London, 2005, p. 50-55.
. rejeição com argumentação: de modo algum é verdadeira – como… (o articulista não cita ninguém, só explica a postura!)

O autor descarta a primeira e a última posição como dependentes de crenças, e se situa em algum lugar entre a penúltima e a última. E explica que os pesquisadores estão preocupados, em geral, com o aspecto literário da questão quando perguntam o que foi encontrado no Templo, mas aqui, neste artigo, ele está preocupado com a questão histórica, ou seja, sua pergunta é se foi encontrado algum escrito no Templo. Ele diz que partilha da posição de K. L. Noll de que este é um “um conto muito estranho” (K.L. Noll, Canaan and Israel in Antiquity: an Introduction, Sheffield, 2001, p. 230). E ilustra esta esquisitice com uma leitura atenta do relato, cheio de incongruências.

David Henige levanta, em seguida, várias hipóteses sobre a época e o motivo porque tal livro teria sido “perdido” ou “escondido” no Templo. E rejeita todas as possibilidades já aventadas para explicar este fato, concluindo que “nenhuma teoria do desaparecimento do texto explica adequadamente a ocasião de sua (re)descoberta e nem a reação que ela provocou” (p. 12).

O autor acaba concluindo que temos apenas três possibilidades: um antigo manuscrito foi realmente descoberto; um novo manuscrito foi criado e “encontrado”; nada foi encontrado, mas o episódio tornou-se parte de uma elaboração etiológica.

A primeira é a hipótese mais implausível e a mais difícil de ser aceita, a não ser que o relato bíblico sobre o anti-javista rei Manassés, avô de Josias, deva ser reavaliado, como muitos hoje estão fazendo (por exemplo: Francesca Stavrakopoulou, King Manasseh and Child Sacrifice: Biblical Distortions of Historical Realities, Berlin, 2004).

A segunda hipótese é a mais difundida, não existindo argumento que possa rejeitá-la ou confirmá-la de modo inquestionável.

A terceira hipótese é a mais econômica e a mais plausível, pois uma tal elaboração posterior serviria aos interesses de quem precisava confirmar o Deuteronômio como mosaico e canônico.

O autor, embora não esteja aqui buscando confirmar ou negar qualquer hipótese, mas apenas tentando entender os argumentos em jogo, acaba ficando com esta última quando diz: Even so, looking at the pragmatics of the case, rather than its linguistics or its theological agenda, leads inexorably to a single conclusion. The story of the finding of the “book of the law” in the Temple during the eighteenth year of the reign of Josiah of Judah was a post-facto fabrication designed to lend legitimacy to the reforms being carried out at the time or to justify them retrospectively. To put it another way, it is more likely that the content of the text—whenever there actually came to be a text—conformed to the tenor of any reforms than the contrary (p. 16).

A conclusão do autor merece atenção. Ele diz que a descoberta de um “livro da lei” é um argumento e tanto para aqueles que defendem de unhas e dentes a historicidade das narrativas bíblicas, que poderiam argumentar: se um manuscrito pôde ser descoberto intacto depois de um longo período de dormência, não teriam outros manuscritos muito antigos sido preservados do mesmo modo e não teriam servido de fonte para os textos bíblicos?

Pois é. O autor não chegou, como já avisara, a nenhuma conclusão espantosa. Que, talvez, nem exista neste caso. Apenas lembro ao leitor que David Henige termina o seu artigo dizendo que o objetivo de uma historiografia crítica é estabelecer, a partir dos melhores critérios disponíveis, uma estrutura interpretativa sólida.

Finalizo, com uma lição que se tira desta leitura: historiadores devem trabalhar a partir de indícios que possam conduzir a evidências e não à simples reafirmação de assentadas crenças.

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