O livro de Knohl ‘O Messias antes de Jesus’

Muita gente anda falando do caso do texto apocalíptico escrito com tinta em uma pedra, em hebraico, que, aparentemente, antes da época de Jesus, fala da ressurreição do Messias ao terceiro dia. E, nesta empreitada, batalha firme o Professor Israel Knohl, da Universidade Hebraica de Jerusalém. Leia sobre isso aqui, aqui, aqui e aqui. Quer dizer, faz tempo que Israel Knohl busca fundamento mais sólido para o conceito em questão.

Pois eu tenho aqui comigo uma resenha de um livro de Israel Knohl sobre o assunto que pode interessar aos curiosos. Foi escrita por André Luiz Fávero, que, à época, cursava o terceiro ano de Teologia na FTCR da PUC-Campinas e foi publicada na revista Cadernos de Teologia, ano VII, setembro de 2001, n. 10, p. 115-121. Eu era o redator da revista.

André leu o livro em inglês e o debateu em classe, nas aulas de Novo Testamento do Professor Herminio Andrés. No mesmo ano de 2001, o livro foi publicado em português pela Editora Imago.

Além da resenha de André, o leitor interessado pode ler outra resenha publicada por um especialista em Qumran, o Professor Eibert J. C. Tigchelaar, do Qumran Institute, Groningen, Holanda, publicada na RBL em 16/04/2001. Ele não se mostra muito entusiasmado com as hipóteses de Israel Knohl, quando diz, por exemplo: “Knohl’s booklet is well written, well translated, and published in a very nice manner. The intended audience is the educated but non-specialist public. Many readers may be attracted or even convinced by Knohl’s arguments, which are well developed and carefully woven together. Yet, specialists in the many fields covered by Knohl will question his assumptions, interpretations, and argumentation. Occasionally his statements are incorrect…”

KNOHL, I. The Messiah before Jesus: The Suffering Servant of the Dead Sea Scrolls. Traduzido por David Maisel. Berkeley: University of California Press, 2000, xiv + 145 p. – ISBN 9780520215924

Tradução brasileira: O Messias Antes de Jesus: O Servo Sofredor dos Manuscritos do Mar Morto. Rio de Janeiro: Imago, 2001, 148 p. – ISBN 8531207797

Vamos à resenha de André.

O livro de Israel Knohl, The Messiah before Jesus. The Suffering Servant of the Dead Sea Scrolls [O Messias antes de Jesus. O Servo Sofredor dos Manuscritos do Mar Morto], de 2000, traduzido para o inglês por David Maisel, é um daqueles livros que se pode chamar de audacioso. Desafia os cem anos do ponto de vista dominante no estudo do Novo Testamento e cutuca ainda mais incomodamente algumas áreas da Teologia Sistemática, da Cristologia, da revelação como um todo.

Para ser direto, a obra refere-se à figura messiânica de Jesus, tentando demonstrar que ele era tido como herdeiro e sucessor do Messias descrito nos Manuscritos do Mar Morto.

O autor, professor do Departamento de Bíblia da Universidade Hebraica de Jerusalém, tentando entender a relação entre cristianismo e judaísmo, questiona: qual foi o contexto judaico da carreira messiânica de Jesus? Como podemos resolver o mistério da personalidade de Jesus e do seu autoentendimento messiânico? Ele se considerava como o Messias? Se sim, por que ele recomendava o “segredo messiânico” a seus discípulos, impedindo-os de publicá-lo? Jesus realmente previa seus sofrimentos, sua morte e ressurreição? Ele se via como um redentor divino?

A proposta do autor é realmente mostrar que Jesus se considerava como o Messias e verdadeiramente esperava ser rejeitado, morto e ressuscitado depois de três dias e isso era exatamente o que ele acreditava ter acontecido ao líder messiânico que viveu uma geração antes da sua.

O autor se baseia no fato de que em certos hinos encontrados entre os Manuscritos do Mar Morto, que foram recentemente publicados, esse Messias descreveu-se como sentado num trono celestial, rodeado de anjos. Ele se considerava como o “Servo Sofredor” que traria uma nova era, uma era de redenção e absolvição em que não haveria mais pecado ou culpa. Esta audaciosa ideia trouxe-lhe a rejeição e a excomunhão por parte dos fariseus sob a liderança de Hillel.

Foi a primeira vez que surgiu no judaísmo a concepção de um messianismo catastrófico, em que a humilhação, a rejeição e a morte do Messias eram consideradas partes inseparáveis do processo redentor.

Este Messias assim entendido é, para o autor, o elo de ligação perdido para o nosso entendimento do modo como o cristianismo emergiu do judaísmo. Jesus nasceu por volta do tempo em que este Messias morreu.

No primeiro capítulo o autor faz uma reconstrução imaginária de um dia na vida do Messias, baseada em fontes literárias do período e em descobertas arqueológicas feitas em Qumran, no palácio de Herodes em Massada e em escavações em Jerusalém. Narra esse dia como marcado por dois importantes momentos na vida do Messias de Qumran: sua participação na vida da comunidade essênia, enquanto estes tramam sua ascensão ao trono, e sua atuação junto à corte, no palácio de Herodes, onde ninguém sequer suspeita de sua pretensão messiânica.

No chamado Rolo de Ação de Graças, em dois hinos aí inseridos com o passar de um certo tempo, e em três outros manuscritos encontrados na gruta 4, tem-se o material a partir do qual o autor desenvolve sua tese.

O primeiro hino, conhecido pelos estudiosos como o Hino da Auto-Glorificação, escrito em primeira pessoa, assim diz:

“Quem tem sido desprezado como eu?
E quem tem sido rejeitado pelos homens como eu?
E quem se compara a mim em tolerar (suportar) o mal?
………………………………
Quem é como eu dentre os anjos?
Eu sou o amado do rei, a companhia dos santos”.Entre a dicotomia e a semelhança com certos trechos veterotestamentários, sobretudo com Is 53, o autor vai explicando as doutrinas formadas a respeito do Messias e a concepção do mesmo a respeito de si.

A combinação do status divino e do sofrimento neste hino é desconhecida na literatura judaica. É a expressão original de uma personalidade histórica ativa na comunidade de Qumran. Quem fala no hino é o líder da seita de Qumran que via a si mesmo como o Messias e assim era considerado pela comunidade.

Pode-se supor que quem fala no primeiro hino, que se via nos termos do “Servo Sofredor” descrito por Isaías, era considerado por sua comunidade como alguém que, através de seus sofrimentos, pagaria pelos pecados de todos os membros de sua seita.

O segundo hino, por sua vez, é essencialmente um chamado aos membros da comunidade para agradecer a Deus pela Salvação que ele tem trazido sobre eles.

Contrariando Bultmann e toda uma corrente teológica, o autor afirma que a interpretação messiânica de Isaías 53 não foi descoberta na Igreja Cristã. Ela já havia sido desenvolvida pelo Messias de Qumran. Olhando para esses fatos, deveríamos considerar a possibilidade da descrição de Jesus como a combinação do “Filho do Homem” e o “Servo Sofredor” não ter sido uma invenção posterior da Igreja. Talvez o Jesus histórico realmente visse a si mesmo dessa forma, sendo que tal fusão já havia sido feita por seu predecessor, o Messias de Qumran.

Mas qual foi a natureza da conexão histórica entre Jesus e o Messias de Qumran? É possível que Jesus o tenha conhecido pessoalmente? Não, porque, como vimos, o nascimento de Jesus foi por volta da morte deste Messias. Mas esse movimento messiânico existiu na segunda metade do primeiro século antes de Cristo.

O autor começa sua procura do ambiente histórico do Messias qumrânico com a discussão sobre duas obras apocalípticas: o Oráculo de Hystaspes e o Livro do Apocalipse, bem conhecido por nós, cristãos. Na sua visão, estes apocalipses contam-nos sobre a violenta morte do Messias de Qumran. O autor tenta, pois, datar os eventos descritos nessas obras. Considerando que numa obra apocalíptica o autor geralmente descreve os eventos de seu tempo como uma profecia sobre o futuro, o contexto destas obras pode ser claramente entendido à luz da situação política do Império Romano durante a segunda metade do primeiro século a.C., logo antes da vida e do ministério de Jesus. Isto ele faz baseando-se no então conhecido Oráculo de Hystaspes. E a partir de algumas passagens do Livro do Apocalipse, bem como da relação entre este e o citado oráculo, o autor afirma, após longa e acurada fundamentação: “No Livro do Apocalipse nós encontramos a história de duas testemunhas messiânicas. Na literatura do Mar Morto também encontramos dois Messias – o Messias sacerdotal e o Messias real”.

Podemos assumir que a tradição concernente ao assassinato do Messias que encontramos nas duas obras apocalípticas veio de membros da seita de Qumran ou de algum círculo próximo a eles. Assim, parece que os líderes messiânicos cujas mortes foram relatadas nestas fontes pertenciam à comunidade de Qumran.

Como os dois líderes messiânicos foram mortos em 4 a.C., eles certamente estiveram ativos no período precedente a este ano, ou seja, durante o reinado de Herodes Magno (37-4 a.C.), o que corresponde precisamente à data em que foram escritos as quatro cópias dos dois hinos messiânicos anteriormente citados. Pode-se, então, assumir que um dos dois Messias mortos em 4 a.C. foi o herói dos hinos messiânicos de Qumran. Em conformidade com a descrição nos hinos ele não tinha nenhum caráter sacerdotal; este, então, foi o Messias real.

Os hinos messiânicos sugerem que por poucos anos os membros da seita de Qumran pensaram que a era de redenção havia chegado. Mas a realidade provava ser diferente. Seu líder messiânico foi morto pelos soldados romanos e seu corpo foi deixado sem sepultura na rua por três dias, como o de um criminoso.

Após a morte do Messias, seus fiéis criaram uma “ideologia catastrófica”, fazendo uma releitura de Is 53,3-4.9-12. A rejeição do Messias, sua humilhação e sua morte foram pensadas terem sido preditas nas Escrituras e sendo estágios necessários no processo de redenção. Os discípulos acreditaram que o Messias humilhado e traspassado havia ressuscitado depois de três dias e que estava para reaparecer na terra como redentor, vitorioso e juiz. Acreditavam que ele houvera subido aos céus nas nuvens, como ele havia descrito sobre si em seu hino, e que certamente retornaria, descendo das nuvens do céu rodeado por anjos. Assim, o Messias também cumpriria a visão de Daniel sobre o “Filho do Homem”.

O autor, Israel Knohl, acredita que a figura do Messias qumrânico e a ideologia messiânica a ele ligada tiveram uma profunda influência sobre Jesus e sobre o desenvolvimento do messianismo cristão. Afirma que Jesus foi influenciado em seus últimos anos por essa outra tradição religiosa , da qual ele recebeu sua doutrina messiânica por um encontro com aqueles que mantiveram o legado do Messias de Qumran. Essa teria sido a “Cristologia de Jesus”.

Durante sua vida, o Messias de Qumran havia se autodefinido como a combinação do “Filho do Homem”, que se assenta no céu num trono de poder, e o “Servo Sofredor”, que leva sobre si todas as tristezas. Este Messias atribuiu a si as palavras de Isaías 53: “Desprezado e rejeitado pelos homens”. Temos aqui clara evidência de que a idéia de um Messias sofredor já existia uma geração antes de Jesus.

Jesus esperava que o destino do “Filho do Homem” fosse similar ao do Messias de Qumran. Ele predisse que o “Filho do Homem” seria morto, assim como o Messias qumrânico foi morto pelos soldados romanos. E ele esperava que o “Filho do Homem” ressuscitasse depois de três dias, como foi acreditado que o Messias de Qumran tivesse sido ressuscitado “depois de três dias”.

De acordo com a ideia que Jesus recebeu dos discípulos do Messias de Qumran, o sofrimento e a morte do Messias formava parte inseparável do destino messiânico. Assim, tomar a missão sobre si era naturalmente muito difícil, o que se vê retratado no episódio de Jesus no Jardim do Getsêmani. A luta interna da alma de Jesus tinha agora alcançado seu clímax. Ele iria, pois, seguir o caminho de seu predecessor, o “Servo Sofredor” dos Manuscritos do Mar Morto.

No último capítulo o autor sugere uma identidade histórica para o Messias anterior a Jesus. Embora “especulando” criteriosamente, afirma que a validade da tese principal de seu livro não depende da aceitação da suposição desse capítulo. Ele apresenta o líder qumrânico Menahem como o provável Messias anterior a Jesus. Este personagem histórico fora “amigo” do rei Herodes e membro de sua corte e, após a morte deste, teria tentado a tomada de poder tramada clandestinamente já há muito tempo com os membros de sua seita. Tal peripécia falhou, pois este não conseguiu o esperado e necessário apoio das elites farisaicas da época, que acabaram por excomungá-lo e ocasionaram sua morte em virtude de interpretarem trechos de seu hino como expressão de pura e explícita blasfêmia. Declararam-no, bem como a seus discípulos, como os que “não têm parte com o Deus de Israel”.

O que tenho dito é, bem resumidamente, a tese do autor. Vale dizer que esta sua obra, além de traduzida para um inglês acessível a nível intermediário e de ser escrita de modo a traçar um desenvolvimento muito lógico, detalhado e claro das ideias, ainda traz dois apêndices contendo na íntegra os dois hinos a que me referi anteriormente e um interessante comentário a respeito de cada um. É, ainda, muito rica em notas, as quais evidenciam a cientificidade e o domínio do assunto no trabalho exaustivo que ousou não só confeccionar como também publicar.

Pontuadas suas idéias e os traços de sua obra, penso que cabe aqui interpelar o leitor sobre algumas provocações ou apontamentos que o próprio autor parece querer fazer – e dos quais não seria justo esquivarmo-nos, se quisermos preservar a abertura aos contundentes desafios que as novas pesquisas possam sempre nos lançar à face, sem o que o estudo teológico perderia o seu caráter científico.

Assim, se sua tese for digna de adesão, podemos nos perguntar: o fato de Jesus ter consciência de seu dramático fim, uma vez que se mantivesse – e se manteve – fiel ao projeto em que acreditava, pois sabia também com quem e com o quê estava lidando, derivaria tanto de uma suficiente visão da política de dominação do Império Romano em sua região – como a cristologia latino-americana entende – ou derivaria, talvez, mais dessa noção messiânica um tanto quanto mais fatalista, pois então já dita e escrita como profecia e assim esperada por um grupo religioso significante por realizar-se como tal? Ainda que assim fosse, o cumprimento até ao fim de sua missão perderia a grandeza de seu compromisso ou de seu mérito?

Outras questões: não teria, de fato, o cristianismo surgido, em alguns de seus aspectos, como seu messianismo, de uma significativa influência de um grupo revolucionário, a seita de Qumran, diferentemente do que sempre se pensou a respeito da mesma – que fosse revolucionária? Até que ponto entenderíamos o grupo de Jesus como um grupo sem pretensões de poder, ainda que para atingi-lo reconhecessem a necessidade do aparente fracasso? Se assim influenciado, poderíamos entender o cristianismo nascente como um grupo de resistência pacífica tal qual se tem entendido ultimamente?

Ainda outras questões: o que os sinóticos afirmam, como, por exemplo, quando das predições da paixão, morte e ressurreição de Jesus, feitas por ele mesmo, não deveria ser entendido, tal qual está escrito, como fato verdadeiramente histórico e não como construção teológico-catequética das primeiras comunidades? E a exegese bíblica, tão altamente conceituada de tempos para cá, poderia manter-se tão estável e intocável no que se refere a todas as outras interpretações tendentes a negar a historicidade dos fatos escritos a despeito das pretensões teológico-catequéticas dos hagiógrafos?

De fato, há teses com as quais nos deparamos e que nos remete à já conhecida tensão por que passa toda ciência, no caso, a teológica, a saber: tudo permanece tal qual até que não se prove o contrário. As desestabilizações causadas é que se transformam nos mais eficazes trampolins que nos lançam para o mais profundo e próximo da verdade, que está sempre por ser alcançada. É a angústia e a motivação do fazer teológico. É o princípio curativo para a dogmatização cega e a possibilidade que irrompe para o aprendizado. É o convite provocativo e irresistível ao “sapere aude” – tenha a coragem de te servir de teu próprio entendimento [Nota minha: frase de Kant].

Brasilianista fala sobre a Igreja no Brasil

Kenneth P. Serbin, o brasilianista que citei no post Uma prece pelos civis inocentes mortos no Iraque? está lançando nestes dias seu livro sobre a Igreja Católica no Brasil:

SERBIN, K. P. Padres, Celibato e Conflito Social: Uma História da Igreja Católica no Brasil. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, 448 p. – ISBN 9788535912746.

Original inglês: Needs of the Heart: A Social and Cultural History of Brazil’s Clergy and Seminaries. Notre Dame, IN: University of Notre Dame Press, 2006, xix + 457 p. – ISBN 9780268041199.

Leia a entrevista de Kenneth P. Serbin à IHU On-Line.

 

“Cão-de-guarda moral”. A Igreja no Brasil, hoje. Entrevista especial com Kenneth Serbin – IHU – 10/08/2008

Sem ter a pretensão de julgar as atitudes da Igreja Católica ao longo dos anos, Kenneth Serbin, da Universidade de San Diego, EUA, atua como um observador da história. Em entrevista exclusiva, concedida por telefone à IHU On-Line, nesta semana, ele avalia as mudanças ocorridas no clero brasileiro, e discute questões polêmicas, como a obrigatoriedade do celibato e os crescentes abusos sexuais dentro da Igreja.

Entre tantas observações, Serbin ressalta uma mudança no perfil dos padres. Segundo ele, isso está diretamente relacionado às transformações mundiais ocorridas nos anos 90, e ao modelo neoliberal que pouco a pouco também vem se proliferando pela Igreja. Padres idealistas estão sendo substituídos por jovens seminaristas, que “percebem o fiel como um consumidor de religião”, alerta. E afirma ainda que, diferentemente dos veteranos fundadores da Teologia da Libertação, o novo clero “acredita que o trabalho do padre não é ficar todo o tempo ao lado do povo, mas ser um exemplo para ele”.

A opção pelos pobres, assumida com tanta efervescência pelos seguidores libertários, está perdendo a intensidade, alerta o pesquisador. “Não sei se essa opção ainda vai avançar. Pelo menos não nessa linha que existiu nos anos 60. Haverá, cada vez mais, essa visão da religião como bem de consumo. A linha da libertação vai ter de lutar para sobreviver”.

A Igreja vive hoje o que Kenneth Serbin chama de “cão-de-guarda moral”, ou seja, ela “não tem mais aquele sentimento informal da época pré-conciliar, nem aquele embate frontal do período de D. Ivo Lorscheiter”. Segundo ele, a Igreja está atuando como uma conselheira, “sem se envolver em questões sociais como antes”.

Ph.D. em História pela Universidade da Califórnia, Serbin está no Brasil, lançando seu novo livro Padres, celibato e conflito social. Uma história da Igreja Católica no Brasil (São Paulo: Companhia das Letras, 2008). Ele também é autor de Diálogos na sombra: bispos e militares, tortura e justiça social na ditadura (São Paulo: Companhia das Letras: 2001).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quais são as maiores preocupações dos que optaram por ser padres na Igreja do Brasil? O que eles se propõem fazer como padres?

Kenneth Serbin – O último capítulo do meu livro Padres, celibato e conflito social. Uma história da Igreja Católica no Brasil (São Paulo: Companhia das Letras, 2008) tem como preocupação discutir os desafios que os padres enfrentam no novo milênio. Além disso, apresenta os dois modelos de padres que estão sendo cogitados no Brasil. Por um lado, temos um arquétipo que pertence à Teologia da Libertação, traçado nos anos 60, momento histórico de muita turbulência, marcado por protestos estudantis, pela guerrilha no Brasil e pelo surgimento de novas culturas. Nesse contexto de mudanças, surgiu um movimento de seminaristas no país, no qual padres e teólogos desenvolveram um papel muito importante.
O Rio Grande do Sul foi o centro desse movimento que se chamava União dos Seminaristas Maiores do Sul (Usmas). O grupo preconizou esse modelo de padre mais voltado ao povo, e que, ao invés de morar em grandes seminários como o ex-Seminário Central de São Leopoldo, formado por grandes prédios, optava por ficar em pequenas comunidades. Ele almejava um modelo moderno de formação sacerdotal, ou seja, desejava acompanhar o movimento estudantil, a política, querendo a profissionalização do clero. Os padres, dentro desse modelo, ainda pretendiam ser profissionais: jornalistas, professores, psicólogos, advogados etc. Buscavam, assim, uma maneira de sobreviver independente da Igreja. Como reflexo do movimento dos padres operários na Europa, em 1960, no Brasil muitos sacerdotes foram trabalhar em fábricas. Antes dessa época, eles viviam dos dízimos dos leigos e de benesses das pessoas ricas ou dos ingressos das próprias paróquias ou das dioceses.

Os jovens seminaristas queriam também uma formação integral, ou seja, holística. Em vez de concentrar o seminário na disciplina, propunham uma formação psicológica mais sadia.

Outra grande questão que eles colocaram em pauta nos anos 60 foi a da obrigatoriedade do celibato. Acreditavam que poderiam ter dois tipos de cleros: um celibatário, que não iria casar nem ter filhos; e um outro clero de casados, mas que poderiam exercer todas as funções dos padres. Claro que a Igreja não aceitou essa proposta, e até hoje esse é um ponto controvertido na Igreja do Brasil. De qualquer modo, o movimento dos seminaristas criou um modelo libertário de padre que atuou com destaque até os anos 80.

Segundo modelo

Na década de 90, por outro lado, surgiu um modelo de padre mais conservador, como Marcelo Rossi. Esse não enfatiza a relação com o povo, as questões políticas ou sociais. Numa outra perspectiva, estabelece uma ênfase na espiritualidade tradicional, ou seja, fala mais dos santos, das curas que as pessoas obtêm ao rezar e ir à missa, das questões pessoais de família, do comportamento, do casamento. Esse clero acredita que o trabalho do padre não é ficar todo o tempo ao lado do povo, mas ser um exemplo para ele. Embora seja um modelo mais elitista, não quer dizer, de qualquer modo, que esses padres não tenham interesse de manter contato com o povo. Entretanto, eles disseminam suas atividades, sobretudo através da mídia.

IHU On-Line – Que fatores levaram a essa mudança de postura dos padres dos anos 60 para os 90?

Kenneth Serbin – São muitos fatores, mas a grande questão está relacionada à geração. Os jovens seminaristas dos anos 60 – isso se percebia muito no seminário de Viamão – eram idealistas, ou seja, queriam mudar o mundo. Essa geração nasceu depois da Segunda Guerra Mundial, e viu o Brasil progredir nos anos 50 com a construção de Brasília, a introdução das indústrias automobilística e de bens de consumo. Entretanto, enquanto o Brasil começava a se afirmar como um país capitalista, esses jovens percebiam a pobreza, o crescimento das favelas, a superlotação de cidades como Rio de Janeiro e São Paulo. Eles sentiam essas contradições, e queriam que o mundo fosse mais igualitário. Nesse cenário, foram influenciados pela Revolução Cubana, que questionava o capitalismo e o predomínio dos EUA sobre a América Latina.

Mudança de rumo

Acontecimentos como o fim da Guerra Fria, a queda do muro de Berlim e o fim da União Soviética tiraram fôlego do movimento libertário e criou-se assim o modelo neoliberal, que visa à eficiência capitalista. Isso influenciou também a atuação na Igreja. Os jovens que observei em meus estudos percebem o fiel como um consumidor de religião. Diferente de hoje, nos anos 60, ninguém pensava a religião como bem de consumo. Acredito que o seminarista jovem, hoje, reconhece que o Brasil virou um grande mercado de religiões. Isso ocorreu porque, entre os anos 70 e 90, houve um crescimento das igrejas neopentecostais, que passaram a competir com as igrejas católicas.

Além disso, o mundo mudou, e nos anos 90 surgiu uma nova geração de jovens que não estava mais ligada no idealismo. Essa é uma geração mais realista, sem grandes ideais, desejos e modelos para mudar o mundo. Hoje, a religião se tornou mais individualista, isto é, perdeu o sentido de coletivo dos anos 1960.

IHU On-Line – O que motiva um jovem, hoje, a ser padre católico no Brasil e o que motivava no período pesquisado pelo senhor?

Kenneth Serbin – O que motiva os jovens é a salvação da alma das pessoas. Nesse sentido, os seminaristas voltaram para um modelo pré-anos 1960, ou seja, o que chamamos de pré-conciliar.
A Igreja do Concílio Vaticano II era mais solidária com as questões sociais e deixava de lado a espiritualidade tradicional, focando a salvação das pessoas na terra. Mas os jovens dos anos 1990 e 2000 não visam mais essa posição. Percebo, assim, uma nova preocupação com o “além desta vida”. Essa geração mais recente está recuperando aspectos do catolicismo que foram deixados de lado e ignorados pelos seminaristas dos anos 60.

IHU On-Line – A Igreja latino-americana e brasileira optou pelos pobres. Esta opção é assumida pelos padres formados nos seminários pesquisados pelo senhor?

Kenneth Serbin – Entre as décadas de 1960 e 1980, a opção pelos pobres era abertamente aceita em muitos seminários do Brasil. Era, inclusive, a mais popular, mas hoje em dia ela está desaparecendo. Ainda existem padres, seminaristas e bispos na Igreja do Brasil que estão a favor dessa opção, mas ela não é mais hegemônica como nas décadas anteriores. No passado, todos os bispos achavam importante reconhecer tal opção, e permitiam que os padres agissem nessa linha.

Entretanto, a corrente libertária da Igreja utilizava os conceitos marxistas para interpretar a realidade brasileira. Mas isso não quer dizer que eles fossem comunistas. De qualquer modo, João Paulo II não gostava do envolvimento dos padres brasileiros com a política e tampouco dos questionamentos realizados por Leonardo Boff, por exemplo, no que se refere às estruturas de poder na Igreja. Começou, então, na década de 80, uma grande pressão do Vaticano para diminuir ou eliminar, no Brasil, essa opção pelos pobres.

No meu livro, relato um embate que ocorreu no Recife, quando fecharam o seminário Serene II (Seminário Regional do Nordeste II), em 1989, por ordem expressa do Vaticano, pois esse seguia a opção pelos pobres e a Teologia da Libertação. Também ordenaram o fechamento do Instituto de Teologia do Recife (ITER). Essas foram grandes perdas para a Igreja do Brasil, na medida em que eram instituições com idéias muito interessantes, contando, inclusive, com teólogas como Ivone Gebara. Com essas mudanças, a partir dos anos 90 se construiu um perfil diferente de padres. Quando o jovem seminarista procurou o seminário, ele não encontrou mais modelos como Serene II ou ITER.

IHU On-Line – Por que essa pressão do Vaticano para acabar com essa opção pelos pobres?

Kenneth Serbin – Porque João Paulo II, junto com outros elementos conservadores na Igreja do Brasil, tinham medo do comunismo. Devemos lembrar que, nos anos 1960 e 1980, ainda estávamos em plena Guerra Fria. Nesse período, quando o papa veio à América Latina e percebeu que os padres eram engajados, políticos e que tinham simpatia pelo marxismo, ele ficou horrorizado, pois foi justamente contra esse tipo de pensamento que ele lutava, no Leste Europeu. A Polônia foi dominada pelos soviéticos por décadas. Para ele, esse sistema era totalitário, ateu e anti-católico.

Opção pelos pobres

IHU On-Line – Para avançar nessas questões (opção pelos pobres), seria necessária uma reforma na formação dos padres, tornando-os mais atuantes nas comunidades? Como o senhor avalia a formação deles nos seminários?

Kenneth Serbin – Não sei se essa opção pelos pobres ainda vai avançar. Pelo menos não nessa linha que existiu nos anos 1960. Haverá, cada vez mais, essa visão da religião como bem de consumo. A linha da libertação terá de lutar para sobreviver. Com esse papado, não ocorrerão reformas, questões sociais e políticas não terão grande abertura, pois ele dá continuidade ao mandato de João Paulo II. Bento XVI tem olhos alemães e observa o mundo dessa forma. Quando ele esteve no Brasil, se sentiu como um peixe fora d’água. O papa João Paulo II era um pastor, enquanto Ratzinger é um intelectual. Por isso, é difícil para o povo brasileiro se sentir empolgado com esse tipo de papa. Penso que a população brasileira não vai à Igreja para ouvir grandes discursos, e sim para sentir Deus no coração.

Esse impulso de reforma na formação dos padres deve vir dos dois lados. A Igreja do Brasil terá de se auto-afirmar, como continua fazendo. Mesmo apresentando uma posição mais tradicional, enfatizando menos a opção pelos pobres, a Igreja brasileira ainda sente o desejo de independência. Esse sentimento persiste desde a época do padre Feijó, que propunha uma Igreja na qual os sacerdotes poderiam casar, não precisassem usar batina e pudessem ajudar o povo a melhorar com a agricultura. A Igreja da Libertação pretendia a mesma coisa: autonomia e um modelo brasileiro de formação. Por isso, no Brasil, os padres vivem uma grande tensão com o Vaticano. Eles nascem em terras brasileiras, mas devem obediência ao bispo e ao papa. Nesse sentido, vivem divididos entre a fidelidade à Igreja e ao povo brasileiro, e se questionam: “Como padre, vou acatar o que meu coração brasileiro diz, ou o que ordena o papa, no Vaticano?”. Independente dessas dificuldades, penso que a Igreja brasileira ainda terá vertentes nacionalistas. Surgiram novos movimentos e desejos de expressar um modelo brasileiro de ser Igreja.

IHU On-Line – A religião como bens de consumo é uma tendência mundial?

Kenneth Serbin – Sim. Tudo na vida está virando bem de consumo. Infelizmente, a religião também está seguindo esse caminho. O desafio das religiões é recuperar os valores tradicionais e, nesse sentido, eu concordo com qualquer católico ou mesmo com o papa, que quer recuperar os valores tradicionais. Quando digo isso, me refiro aos valores da religião: como tratamos o nosso próximo, nossos vizinhos na América Latina, por exemplo. Precisamos prestar mais atenção nas questões éticas e morais, e a religião precisa recuperar esses traços.

Igreja e o PT

IHU On-Line – O senhor disse recentemente, numa entrevista ao jornal Estado de S. Paulo, que a tendência geral da Igreja no Brasil é de agir com muita cautela nas questões sociais. A que se deve essa postura?

Kenneth Serbin – Isso acontece porque o mundo, o perfil da sociedade e a política brasileira mudaram. No Brasil, atualmente, existe o que chamamos de convergência política. Vinte anos atrás, quando Lula era candidato à presidência, líderes da Igreja progressista, como Leonardo Boff e Frei Betto, pediam votos para ele, e o apoiavam publicamente. Havia uma sintonia entre a Igreja libertária e o PT. Hoje, ela não existe mais. Lula tem como grande aliado o Partido Liberal (PL), que é um reduto da Igreja Universal do Reino de Deus. Isso demonstra que o terreno político no Brasil mudou. As diferenças ideológicas dentro do Congresso Nacional, hoje, são muito menores do que no passado. Ou seja, a polarização política que tinha no Brasil nos anos 1960 e levou ao golpe militar de 1964, acabou. Hoje, Lula se entende com Collor, com a Direita e a com a Igreja Universal. Agora, a Igreja está num contexto onde não há mais polarização, não há mais Guerra Fria. Nesse sentido, observo que ela age com mais cautela, justamente devido a essas mudanças na política.

IHU On-Line – O fato de Lula ter participado de movimentos sociais católicos na juventude deveria influenciar na sua posição frente as questões sociais, atualmente?

Kenneth Serbin – Muitos achavam que, a partir de 2003, seria o momento de o movimento popular no Brasil se afirmar na política. Mas aconteceu o contrário. As relações entre Lula e a Igreja progressista são menos calorosas. O grande eleitorado do presidente são os despossuídos, aqueles que vivem do Bolsa Família, e que por teoria não tinham muita participação na Igreja progressista da época. Aliás, essa foi uma das falhas da Igreja: ela deveria ter atraído mais militantes pobres. Esses, ao contrário, foram para a Igreja Universal do Reino de Deus, para as neopetencostais. Por isso, percebemos hoje não só Lula mas muitos políticos brasileiros participando de comícios com as igrejas evangélicas. Eles sabem que o voto do povo não está só na Igreja Católica.

IHU On-Line – O senhor pesquisou a gestão da presidência de D. Aloísio Lorscheider e de D. Ivo Lorscheiter na CNBB, durante a Ditadura Militar. Como analisa a longa direção de D. Luciano Mendes de Almeida na CNBB? Quais são as continuidades e as descontinuidades destas gestões com as posteriores?

Kenneth Serbin – D. Aloísio Lorscheider esteve na direção da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) entre os anos 1970 e 1978. Em seguida, assumiu D. Ivo Lorscheiter, que permaneceu até 1986. Ambos estiveram à frente da instituição no período em que a Igreja enfrentou as maiores dificuldades de relacionamento com o governo. Além disso, precisavam lidar com problemas ligados a violação dos direitos humanos e à falta de democracia no país. Entretanto, nas reuniões secretas entre o Regime Militar e os bispos, os irmãos Lorscheiter agiam de maneira diferente. Enquanto D. Aloísio Lorscheiter estava disposto a estabelecer um diálogo, D. Ivo Lorscheiter apresentava um posicionamento mais rígido, criticava a falta de liberdade e a política socioeconômica da época.

Nesse período, a Igreja foi uma das poucas instituições que conseguiu se manifestar livremente. Ela representava – como dizia D. Hélder Câmara – “a voz dos que não tinham voz”.

Com a volta da democracia em 1985, e depois com as eleições de 1986, a Igreja não precisou mais “falar em nome dos oprimidos”, pois se instituiu a liberdade de expressão no país, abrindo espaço para o surgimento de novos movimentos sociais e sindicatos, que passaram a desempenhar um papel significativo na área dos direitos humanos, por exemplo.

Com a democracia instituída, o sucessor da CNBB, D. Luciano Mendes de Almeida, que permaneceu na presidência por oito anos, atuou num contexto totalmente diferente. Na gestão dele, ocorreu o impeachment do presidente Collor, eleito em 1989. Nesse momento, as preocupações da Igreja estavam centradas no debate da ética na política e na vida pública. Com a posse dele, ficou clara a volta de uma Igreja mais conservadora, sob o papado de João Paulo II.

Continuidades

Depois da gestão de D. Luciano Mendes de Almeida, a Igreja passou a apresentar uma atitude, a qual chamo de “cão-de-guarda moral”, ou seja, ela não tem mais aquele sentimento informal da época pré-conciliar (antes do Concílio do Vaticano II), que mantinha com Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek, nem aquele embate frontal do período de D. Ivo Lorscheiter. Agora, ela continua com suas posições morais, mas denuncia o que considera imoral na sociedade brasileira, como a falta de políticas sociais adequadas. Ela atua mais no sentido de aconselhar, advertir, ou seja, simplesmente chama a atenção para os fatos. Desse modo, ela não se envolve mais nas questões sociais como antes.

IHU On-Line – O último Encontro Nacional de Presbíteros solicitou que a Igreja revisse a lei do celibato, tornando-o opcional. A CNBB não encaminhou o pedido ao Vaticano. Como explicar tanta resistência da Igreja a mudanças no que diz respeito ao celibato? O que uma mudança de posicionamento por parte da Igreja poderia representar para a comunidade católica?

Kenneth Serbin – A discussão do celibato sempre esteve presente na história do Brasil. Essa é uma questão política de interesse nacional. Na época do padre Feijó, o tema foi debatido na Assembléia Nacional. Nos anos 1960, o assunto foi tratado entre seminaristas e bispos, os quais reconheciam a necessidade de mudança. Mas a contestação foi barrada e proibida pelo papa Paulo VI. Ou seja, o Concílio Vaticano II foi a maior reforma nos dois milênios da história da Igreja, e ainda assim, não tocou nessa questão. Pelo contrário, Paulo VI reafirmou o celibato como obrigação dos padres. Isso foi uma tragédia para a Igreja do Brasil, porque ela perdeu, entre os anos 1965 e 1980, mais ou menos três mil padres.

Uma vida paralela

No Brasil, muitos padres, embora continuassem exercendo o sacerdócio, constituíram família; e acredito que essa continua sendo uma prática nos dias atuais. Esses homens sofrem muito, e por isso mantêm relacionamentos paralelos. Em Um espinho na carne. Má conduta e abuso sexual por parte de clérigos da Igreja Católica do Brasil (Santuário, 2002), o padre norte-americano Gino Nasini, que atua no Brasil há anos, mostra que muitos sacerdotes ainda mantêm relações com mulheres. Isso acontece porque eles nunca aceitaram o celibato. Do mesmo modo, os leigos nunca se importaram com essas questões. Essa era uma preocupação dos bispos, e foi uma das causas que motivaram a instalação de seminários no Brasil. Até a época do padre Feijó, existiam poucos seminários no país e a formação seminarística era fraquíssima. A Igreja investiu nesses colégios justamente para implantar o celibato. Lá, isolavam meninos de oito e nove anos, os quais não podiam ter contato com as mães e outras mulheres. Só visitavam a família em ocasiões especiais. Por que tudo isso? Para formar padres celibatários.

Divisão na Igreja

Em 2003, um estudo realizado pelo Ceris (Centro de Estatística Religiosa e Investigações Sociais), órgão da CNBB, mostrou que 42% dos padres querem que o celibato seja opcional, ou seja, quase metade dos sacerdotes. Só que o papa e a Igreja não aceitam esse debate.

Os bispos reivindicavam essa mudança, porque percebiam que estavam perdendo sacerdotes. Além disso, os católicos são somente 73% da população, e a cada ano está diminuindo a proporção católica na sociedade brasileira. Não bastasse isso, as igrejas neopetencostais estão construindo mais templos, formando pastores em menos tempo e liberando-os para casar. Em contrapartida, na Igreja Católica a proporção de padres disponíveis para atender a população é muito desigual. São mais de 10 mil fiéis para cada padre. Como a Igreja vai dar atenção a essas pessoas se não existem mais padres? Se permitissem o casamento dos sacerdotes, acredito que surgiriam mais vocações na Igreja brasileira. A comunidade católica iria se beneficiar dessa questão, pois, além de permitir a volta dos padres casados, iria regularizar a situação dos que vivem, segundo a Igreja, em pecado.

IHU On-Line – No livro Padres, celibato e conflito social. Uma história da Igreja Católica no Brasil, o senhor afirma que desde os anos 30 padres cometiam abuso sexual e não eram punidos. O senhor acredita que os bispos continuam ignorando essa realidade? Por que é tão difícil para a Igreja se posicionar rigidamente diante desses acontecimentos?

Kenneth Serbin – Sim. Eles continuam ignorando a realidade e colocando o lixo embaixo do tapete. Nasini constatou que 10% dos padres brasileiros cometem abusos sexuais. Ele inclui, nesse estudo, padres que mantêm relacionamentos com mulheres. Discordo dele nesse sentido, porque penso que esses sacerdotes não praticam abuso sexual. Nesse caso específico, ambos (o padre e sua companheira) vivem um relacionamento difícil, proibido, pois a Igreja não permite a união.

De qualquer modo, sabemos que é relevante o número de sacerdotes abusando de crianças, mulheres e homens. Entretanto, quantos bispos questionam isso? Quantas pesquisas existem sobre esse fato? E as punições? As penalidades que conheço são realizadas pela justiça. Raramente sai uma notícia no jornal mostrando, por exemplo, que um padre foi processado por abusar uma crianças.

Exemplo da Igreja americana

Quando foram noticiados casos de abuso sexual nos EUA, o Vaticano disse que eles eram um problema local. A mídia americana, como sempre, não pesquisou a situação em outros países. Mas, ao tomar conhecimento dessas práticas, a Igreja norte-americana criou uma comissão especial, instituiu regras novas, fez uma devassa em toda a Igreja para acabar com aquele tipo de comportamento. A Igreja do Brasil ainda não enfrentou essa questão. A imprensa brasileira não está interessada em pesquisar o assunto, e a sociedade é tolerante com esse tipo de problema.

Claro que isso não acontece apenas no Brasil. Desde os anos 1930, nos EUA, por exemplo, quando um padre abusava sexualmente de alguém, e era descoberto pelo bispo, simplesmente era transferido, sem receber qualquer punição. Tampouco era excomungado.

No meu livro, relato o caso de um padre que abusava de seminaristas, e, ao ser descoberto, foi transferido para trabalhar com crianças. Isso é uma hipocrisia muito grande. Então, como se pode perceber, a Igreja do Brasil passa pela mesma crise moral que passou a Igreja dos EUA. A responsabilidade de mudar essa realidade cabe não só aos padres brasileiros, mas também ao papa.

IHU On-Line – Há semelhanças entre a Igreja Católica do Brasil e dos EUA? Em quê? Quais são as principais diferenças entre elas?

Kenneth Serbin – A Igreja nos EUA sempre foi minoritária, e nunca teve uma concordata moral como ocorreu no Brasil. A Igreja brasileira era quase um outro Estado, pois ela sempre teve o poder político, econômico e moral, ou seja, representava um poder paralelo, enquanto a Igreja norte-americana sempre viveu uma situação de pluralismo. Só agora a Igreja brasileira começa a enfrentar a realidade do mundo moderno, ou seja, a perceber que na sociedade existem outras fés, Igrejas, crenças e maneiras de ver o mundo. Muitos integrantes da Igreja brasileira, inclusive os progressistas, não queriam diálogo, e tampouco pretendiam reconhecer o crescimento de outras religiões. Somente agora estão refletindo sobre isso. Ou seja, demorou muito para se chegar a esse ponto.

IHU On-Line – Quais as principais deficiências da Igreja brasileira, hoje?

Kenneth Serbin – A falta de compromisso com o espírito do Concílio do Vaticano II. O Brasil foi um dos países que mais aderiu a esse espírito inovador. Hoje, a posição assumida naquela época está muita fraca. A Igreja recua de muitos desafios. Já avançamos no que diz respeito à participação das mulheres na Igreja, mas poderíamos prosperar mais nesse sentido.

No atual estado do mundo, o debate sobre o aborto também deve ganhar mais destaque. Não digo que a Igreja deva abrir mão de seu ensinamento moral sobre o tema, mas essa é uma questão de saúde pública. Existem tantas mulheres se automedicando, realizando abortos em clínicas clandestinas, isto é, há tanto sofrimento nesse sentido. Essas ações mostram como a Igreja, a imprensa e a sociedade brasileira não valorizam a posição da mulher. Tenho certeza que, se os homens pudessem ficar “grávidos”, o aborto seria legalizado. A sociedade precisa valorizar mais a experiência da mulher. A Igreja brasileira poderia desenvolver um papel profético nesse sentido, poderia acolher essas pessoas e ajudá-las, ao invés de simplesmente impor uma norma dizendo que aborto é pecado. A vida é mais complexa do que isso.

IHU On-Line – O senhor diz que “somente olhando para o passado é que a Igreja vai se preparar para o futuro”. Nesse sentido, que aspectos devem ser resgatados para projetar um futuro melhor para a Igreja? Que futuro podemos esperar para a Igreja nos próximos anos, especialmente na América Latina e no Brasil?

Kenneth Serbin – A Igreja precisa recuperar esse espírito do Concílio, valorizar o diálogo com outras crenças, filosofias, e aprender que o mundo é plural. O problema da Igreja na América Latina é que ela sempre foi um monopólio. Hoje isso está mudando, pois o continente está mais democrático e pluralista. A Igreja tem de se adaptar a essa situação. Temo que, se ela não recuperar esses aspectos, poderá cair na irrelevância. Além disso, a Igreja deve valorizar mais a cultura brasileira e seu povo. A própria América Latina vive uma sensação de inferioridade. A Usmas, nesse sentido, queria valorizar o país e o que é brasileiro na tradição católica, construindo uma formação genuinamente nacional. Esse é o desafio.

Entenda o conflito no Cáucaso

Duas análises do conflito no Cáucaso.

 

Lições do conflito na Ossétia – Paul Reynolds – BBC Brasil: 11/08/2008

Apesar de o confronto na Ossétia do Sul ainda não ter terminado, e a possibilidade de choques por conta de outro enclave na Geórgia, na região de Abecásia, parecer estar aumentando, talvez não seja muito cedo para tentar tirar lições da crise.

1. Não soque um urso no nariz a não ser que ele esteja firmemente amarrado.

O presidente da Geórgia, Mikhail Saakashvili deve ter pensado que a Rússia não iria reagir com força ao enviar suas tropas para retomar o controle de um território que ele insiste deve permanecer parte da Geórgia, apesar de contar com alguma autonomia, na véspera dos Jogos Olímpicos.

Mas as chances de a Rússia reagir sempre foram muito prováveis. A Rússia já mantinha tropas na região, liderando a força de paz estabelecida em 1992 por um acordo entre o então presidente russo Boris Yeltsin e o presidente da Geórgia Edward Shevardnadze, o ex-ministro do Exterior soviético que ajudou a pôr fim à Guerra Fria.

A Rússia vem apoiando os separatistas da Ossétia do Sul e entregou passaportes russos à população, o que dá ao país argumentos para alegar que está defendendo seus cidadãos.

O resultado do que muitos veem como um erro de cálculo é que o presidente Saakashvili pode perder qualquer esperança de voltar a impor o poder da Geórgia sobre o enclave.

2. A Rússia está determinada, para dizer o mínimo.

A Rússia, como já o fez tantas vezes no passado, se vê cercada.

Em uma reveladora entrevista ao ex-correspondente da BBC em Moscou Tim Whewell no início deste ano, um assessor do então presidente Vladimir Putin, Gleb Pavlosky, disse que, depois da Revolução Laranja na Ucrânia, a liderança russa concluiu que “isto é o que enfrentamos em Moscou, o que estão tentando exportar para nós, que nós devemos nos preparar para esta situação e, muito rapidamente, fortalecer nosso sistema político…”.

O que se aplicou depois que a Ucrânia se moveu em direção ao Ocidente, se aplicou também à Geórgia. Moscou tenta evitar qualquer revolução deste tipo na Rússia e agora vê a Ucrânia e a Geórgia como influências hostis.

Não está claro até onde a Rússia pretende ir, mas levando-se em conta que já disse que quer restabelecer a ordem na Ossétia do Sul, isso provavelmente significa uma presença permanente, sem devolver à Geórgia um papel de governo. Diplomatas, no entanto, acreditam que é difícil que a Rússia invada a Geórgia “propriamente”.

3. Lembre-se de Kosovo.

A Rússia não gostou quando o Ocidente apoiou a separação de Kosovo da Sérvia e advertiu para consequências. Esta pode ser uma delas. Claro, a Rússia não argumenta que, nesta crise, está fazendo o que Ocidente fez em Kosovo – o que iria minar seu próprio argumento de que Estados não devem ser quebrados sem que haja um acordo. Mas todo mundo sabe que Kosovo não está longe de seus pensamentos.

4. A Geórgia não deve ingressar na Otan tão cedo.

A Geórgia e a Ucrânia tiveram seu ingresso na Otan – a aliança militar do Atlântico Norte – negado em Abril, mas foram autorizadas a elaborar um plano de ação que poderia levar à admissão no grupo no futuro.

Os Estados Unidos defenderam a entrada dos dois países, mas a Alemanha e outros se opuseram, alegando que a região era muito instável para que os países ingressassem no grupo naquele momento, e que a Geórgia, em particular, um Estado com disputa de fronteira, não deveria receber o apoio da Otan.

5. Vladimir Putin ainda está no comando.

Foi Vladimir Putin, o primeiro-ministro e não mais presidente, que esteve presente à cerimônia de abertura da Olimpíada em Pequim e que correu para a região da crise para assumir o controle da resposta russa. Sua linguagem não fez concessões – a Rússia está certa em intervir, declarou.

6. Não deixe uma raposa cuidando das galinhas.

A decisão de Shervardnadze, em 1992, de concordar com a entrada da Rússia na Ossétia do Sul como parte de uma força de paz permitiu que um governo russo futuro e muito diferente daquele de Boris Yeltsin estendesse gradativamente sua influência e controle . Não foi difícil para a Rússia justificar sua intervenção. O governo simplesmente declarou que seus cidadãos não apenas sofrem riscos, mas estão sendo atacados.

7. O ocidente ainda não sabe como lidar com a Rússia.

Alguns dos argumentos da época da Guerra Fria estão ressurgindo, sem que haja consenso sobre o que deve ser feito. Há os neoconservadores, liderados pelo vice-presidente dos Estados Unidos, Dick Cheney, (e apoiados pelo candidato republicano à presidência John McCain), que vêem a Geórgia (e a Ucrânia) como defensores da liberdade que devem ser apoiados. Ao mesmo tempo, eles argumentam, a Rússia será obrigada a mudar, assim como a União Soviética mudou.

Contra isto há o argumento – expressado neste fim de semana à BBC pelo ex-ministro do Exterior britânico Lord Owen, por exemplo – de que é “absurdo” tratar a Rússia como a União Soviética, e que a Geórgia cometeu um erro de cálculo na Ossétia do Sul, pelo qual está pagando.

8. As fronteiras na Europa devem ser eternamente ‘sagradas’?

Esta tem sido uma das regras da Europa pós-guerra – as fronteiras não podem ser mudadas exceto por acordo, como na antiga Checoslováquia. Talvez esta regra tenha sido seguida de maneira muito inflexível. Mas ainda assim, governos como o da Geórgia relutam em abrir mão de qualquer território, mesmo quando a população local é claramente hostil e pode estar naquela situação simplesmente como resultado de uma decisão arbitrária do passado. Foi a União Soviética que forçou a Ossétia do Sul a fazer parte da Geórgia, em 1921. Nikita Khrushcev deu a Crimeia para a Ucrânia. Será que isso algum dia vai causar problemas?

9. Agosto é um bom mês para se refletir sobre alianças.

Em agosto de 1914, o assassinato do arqueduque Franz Ferdinand em Sarajevo levou à Primeira Guerra Mundial. Isso ocorreu porque alianças formadas na Europa entraram em jogo inexoravelmente. A Rússia apoiava a Sérvia, a Alemanha apoiava a Áustria, a França apoiava a Rússia e a Grã-Bretanha entrou no conflito quando a Bélgica foi atacada.

Ninguém deve entrar em uma aliança de maneira leve, ou inadvertidamente. Se a Geórgia estivesse na Otan, o que teria acontecido?

 

O Czar está de volta – Flávio Aguiar – Carta Maior: 11/08/2008

A Primeira Guerra Mundial começou aparentemente quando um suposto anarquista (até hoje essa história não foi de todo contada) disparou contra o arquiduque Ferdinando José, do Império Austro-Húngaro, em Sarajevo, na Sérvia. A cadeia de alianças, algumas secretas, construída em torno da região do Mar Negro, logo levou ao conflito que destruiu impérios (entre eles o Austro-Húngaro) e que só ia parar com o fim da Segunda Guerra Mundial e o começo de outra Guerra Mundial, a Fria.

Esta última terminou, mas não terminou. O desmembramento da União Soviética levou a duas corridas armamentistas: a União Europeia correu para ocupar, “manu econômica”, o espaço do antigo Leste europeu, derramando nele quadros e mais quadros de formação para “preparar o capitalismo”, e quadros e mais quadros funcionais para administrá-lo. E a OTAN correu para ocupar. “manu militari”, o mesmo espaço, ainda com o mesmo objetivo de cercar seu antigo inimigo moscovita, o que só não percebe quem não quer.

O primeiro avanço foi facilitado pela “sede capitalista” (sêde) que cresceu nas sociedades emergentes de um comunismo que não só não conseguiu, de um modo geral, criar o “homem novo”, mas conseguiu a proeza de criar burocracias dirigentes que se transformaram logo em “escolares entusiastas”, mas desorganizados, do capitalismo triunfante ou em máfias extremamente ambiciosas e violentas, mas organizadas, para arrancar e conceder favores na nova ordem.

O segundo avanço, o militar, foi facilitado pelo estraçalhamento da rede de apoio soviética e sua divisão entre as máfias e novos discípulos, que passaram a combater encarniçadamente os velhos discípulos que permanecessem, por razões táticas e estratégicas, mas de modo nenhum ideológicas, aliados da antiga presença da hegemonia russa, que era quem e o que mandava de fato, sob a fachada comunista. A Rússia, durante década e quase meia, viu-se debilitada econômica, política e militarmente, sem poder se contrapor ao avanço do inimigo sobre o que fora seus domínios.

Assim a OTAN bombardeou o ocupou parte dos Bálcãs, enquanto etnias, países e partidos políticos martirizavam suas populações em nome de religiões, de demarcação de territórios, e de um nacionalismo que não recende sequer a aspirações de grandeza, antes a um sórdido conquistar de posições para negocia-las, ou com a águia de duas cabeças do lado leste (o símbolo da antiga Rússia czarista, que renasceu das cinzas da foice e do martelo), ou com a ave de rapina multicor, e de muitas cabeças, do capitalismo triunfante que vinha do lado oeste.

O último capítulo dramático dessa continuação da Guerra Fria foi a “independência” da província separatista do Kosovo, na Sérvia. Na verdade essa “independência” foi uma ocupação da província por albaneses, arqui-inimigos dos sérvios, agora aliados do Ocidente. Houve atrocidades de parte a parte; como os albaneses são agora “aliados”, no Ocidente soube-se mais das atrocidades cometidas pelos soldados sérvios.

Desse episódio, saíram humilhadas a Sérvia e a Rússia. A garantia da independência do Kosovo, território logo ocupado por esquadrões de juízes, policiais, funcionários e administradores de mercado da União Europeia, foi a presença das bases militares da OTAN, instaladas enquanto a Rússia ainda se recuperava das sequelas provocadas pela hecatombe do sistema soviético.

Agora, parece que esse capítulo chegou ao fim e outro começou. Sob a política altamente centralizadora, autoritária na administração e condescendente com as “facilidades” do novo capitalismo, construída durante o primeiro czariato de Putin, a Rússia está em francas vias de recuperação econômica e militar. E parece que chegou a hora de mostrar os dentes.

O governo da Geórgia, desejoso de tornar-se alvo dos avanços militar e econômico do Ocidente, precipitou uma guerra de posições que se dava em torno da sua ex-província da Ossétia do Sul. É mais do que provável que o governo esperasse que seus promissores aliados o socorressem com dinheiro, armas e até soldados. Nada disso aconteceu.

O poderio russo voltou a se afirmar. Quando a Geórgia invadiu a Ossétia, que se proclamara independente nos anos 90 do século passado, Putin, que estava em Pequim assistindo a abertura dos jogos olímpicos, reuniu-se mais do que depressa com Bush.

O que devem ter dito os dois? Quanto às palavras, é impossível saber. Mas certamente Putin fez Bush, agora um presidente sainte, saber que chegara a hora da Rússia beber água, e da Geórgia beber fogo, inclusive em nome do sangue que, aliás, pelos relatos que se têm, seu exército fez correr abundantemente na província invadida, despertando desejos de vingança na população ossétia. E Putin deve ter acrescentado que os Estados Unidos deveria se satisfazer com protestos verbais e deveria “recomendar” o mesmo a seus aliados europeus.

Os Estados Unidos são a maior potência naval e aérea que o mundo já conheceu. Mas em terra ainda não há quem possa com os tanques russos. A única coisa que poderia talvez detê-los seria um ataque aéreo da OTAN, semelhante ao que ela despejou sobre toda a antiga Iugoslávia e em particular sobre a Sérvia, ao fim do século passado, em nome de evitar um genocídio, mas de fato abrindo caminho para a ocupação com suas tropas de terra e bases militares.

Na Europa as reações de direita, na imprensa, seguem o padrão de que o governo georgiano “se excedeu”, e “se precipitou”, mas que a contrarreação russa foi “desproporcional”. A mesma turma, que não hesita em promover a presença ianque e europeia nos Iraque e no Afeganistão, condena o bombardeio russo (agora) da Geórgia, e a ocupação militar de pelo menos parte do território desta, que deve se suceder.

As reações mais para a esquerda coincidem, em boa parte, com a desta análise: Putin está mostrando – sobre, inclusive, a presidência de Medvedev – que o verdadeiro e contínuo Czar é ele, seja como presidente (antes), seja como primeiro-ministro (agora). Putin fora um tanto ofuscado pela presença de Medvedev na conferência do G8 no Japão. Agora voltou à cena, com som e fúria. Saiu de Pequim quase diretamente para a Ossétia do Norte, província russa que limita com sua coirmã “independente” do sul. E de lá comandou ou assistiu o “show” dos tanques russos ao sul de seu império.

Uma coisa é certa: a população da Ossétia do Sul está comendo o pão que a Geórgia, os Estados Unidos, a OTAN, a União Europeia e a Rússia amassaram. Os relatos sobre o comportamento do exército georgiano na Ossétia são terríveis, e foram publicados no conspícuo The Guardian. Mas isto a imprensa do Ocidente, em sua maioria, deverá logo esquecer. E se seguirá a lamentação (também justa) sobre os pobres georgianos que foram vítimas dos bombardeios e dos tanques russos. Afinal, guerra é guerra.