A midiatização das experiências religiosas

Estudiosos debatem midiatização das experiências religiosas

Estudiosos do fenômeno da religião e das mídias, reunidos na Universidade Metodista de São Paulo (Umesp) para a 6a. Conferência sobre Meios, Religião e Cultura, analisam as implicações da midiatização das experiências religiosas no contexto de uma sociedade plural e diversa (…) A conferência de São Paulo reúne 200 pesquisadores, de 26 países. Ela é organizada pela Comissão Internacional sobre Meios, Religião e Cultura, a Umesp e a Associação Mundial para a Comunicação Cristã (WACC, a sigla em inglês) na América Latina. O evento teve início na segunda-feira, 11, e se estende até amanhã.

No debate apareceu também a blogosfera. Diz o texto:
O professor Paul Teusner, da Universidade RMIT, de Melbourne, Austrália, apresentou as conclusões de sua investigação sobre a emergência da religiosidade juvenil na “blogosfera”. O estudo de Teusner indica que o uso das novas tecnologias, como a Internet, está gerando novas identidades religiosas e novos processos de interação entre os fiéis, bem como entre a própria comunidade religiosa tradicional.

 

Leia a reportagem de Rolando Pérez na ALC.

 

Quarta-feira, 13 de agosto de 2008 (ALC) – Estudiosos do fenômeno da religião e das mídias, reunidos na Universidade Metodista de São Paulo (Umesp) para a 6a. Conferência sobre Meios, Religião e Cultura, analisam as implicações da midiatização das experiências religiosas no contexto de uma sociedade plural e diversa.

O professor da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), padre Pedro Gilberto Gomes, que participou do painel sobre “a religião nas grandes corporações midiáticas”, sustentou que a América Latina observa hoje um deslocamento do espaço tradicional dos templos para um campo aberto e multidimensional, onde os meios desempenham um papel importante. “A cultura midiática está criando novas ritualidades e sensibilidades religiosas”, afirmou.

Esta mudança de época está marcada por uma nova ecologia comunicacional. Nesse sentido, enfatizou Gomes, o fenômeno da midiatização religiosa é mais do que uma experiência relacionada ao uso e à apropriação da tecnologia midiática. Trata-se da construção de um novo modo de ser no mundo onde as identidades e formas de viver a fé e interagir com a transcendência estão mediadas por espaços e meios que estão além do mundo sagrado institucionalizado.

Nesse sentido, a midiatização da sociedade converte-se numa das chaves hermenêuticas para compreender e interpretar o mundo religioso e as novas espiritualidades.

Os trabalhos apresentados por pesquisadores de diversos países revelam que as novas formas de produção e de consumo religioso estão crescendo cada vez mais no espaço criado pelos novos meios de comunicação, no qual o ciberespaço converteu-se no lugar privilegiado destas novas buscas.

O professor Paul Teusner, da Universidade RMIT, de Melbourne, Austrália, apresentou as conclusões de sua investigação sobre a emergência da religiosidade juvenil na “blogosfera”. O estudo de Teusner indica que o uso das novas tecnologias, como a internet, está gerando novas identidades religiosas e novos processos de interação entre os fiéis, bem como entre a própria comunidade religiosa tradicional.

O estudo revela que essa experiência religiosa não significa necessariamente uma forma de concorrência em relação às comunidades religiosas tradicionais. Os “cibercristãos” assumem a comunidade virtual como um passo intermediário para vincular-se com suas congregações ou igrejas locais tradicionais, salientou.

Para a professora Maru Hess, da Universidade Luterana de Minnesota, nos Estados Unidos, as novas apropriações dos espaços produzidas pelos meios tecnológicos geram re-significações notáveis no campo da autoridade religiosa. Por outro lado, indicou, este fenômeno gera desafios para as igrejas e grupos religiosos tradicionais em termos de repensar suas estratégias discursivas, bem como compreender, interagir e dialogar com estas novas comunidades virtuais de fé e com os próprios fiéis que se movem nos espaços e mundos culturais que a sociedade contemporânea midiatizada está gerando.

A conferência de São Paulo reúne 200 pesquisadores, de 26 países. Ela é organizada pela Comissão Internacional sobre Meios, Religião e Cultura, a Umesp e a Associação Mundial para a Comunicação Cristã (WACC, a sigla em inglês) na América Latina. O evento teve início na segunda-feira, 11, e se estende até amanhã.

Lugo toma posse como Presidente do Paraguai

Em 15 de agosto de 2008 Fernando Lugo tomou posse como Presidente do Paraguai. Leia abaixo duas entrevistas com Fernando Lugo, uma de 2007 e outra de 2017.

 

“O Paraguai subsidia as indústrias de São Paulo”. Entrevista especial com Fernando Lugo

A novidade política no Paraguai se chama Fernando Lugo. O seu nome surgiu recentemente no cenário político paraguaio e já lidera as pesquisas para as eleições presidências no país vizinho que se realizarão no próximo ano. Engana-se quem pensa que ele seja apenas mais um desses personagens efêmeros na política. Lugo tem raízes sólidas. Por detrás da sua candidatura está o movimento popular Tekojoja, que reúne os principais movimentos sociais do Paraguai.

Fernando Lugo emociona-se quando comenta o abaixo-assinado de 100 mil assinaturas que o fez aceitar o desafio da candidatura. Como a Constituição paraguaia proíbe candidatos vinculados a qualquer instituição religiosa, Lugo apresentou a sua renúncia da condição de bispo ao Vaticano.

Em sua breve passagem por Curitiba, Fernando Lugo concedeu uma entrevista exclusiva ao IHU On-Line. A entrevista foi feita pelo Cepat. Na entrevista, Lugo fala da sua família, da sua vida de estudante, da opção pela vida religiosa até a decisão de assumir a luta política. Expõe o temor de que sua candidatura seja impugnada e o seu desejo de mudar radicalmente o Paraguai. Fala, ainda, do programa de governo e da necessidade de se rever o contrato com a Itaipu. Ele comenta também a conjuntura política latino-americana.

A entrevista

IHU On-Line: Quem é Fernando Lugo?

Fernando Lugo: Eu nasci, em 1952, numa localidade muito pequena, San Solano, local onde moravam no máximo umas 60 famílias. No ano em que nasci, toda a minha família precisou se mudar para uma cidade maior em função da necessidade dos meus irmãos seguirem estudando. Somos seis irmãos – cinco irmãos e uma irmã -, e eu sou o último dos irmãos. A minha educação primária se deu em uma escola religiosa, ao mesmo tempo em que trabalhava nas ruas de Encarnación vendendo coisas, empanadas, alimentos, café Cabral – um café do Brasil –, ou seja, o trabalho foi uma das características da família. Quando chegou o momento de decidir-me pelo curso universitário, meu pai queria que eu fosse advogado. Ele sempre quis que algum dos seus filhos fosse advogado, tentou com os maiores e não conseguiu e tampouco conseguiu comigo. Eu queria ser professor e então entrei no magistério e com 17, 18 anos já estava lecionando em uma localidade, Hohenau 5, para mais de cem alunos, cinqüenta pela parte da manhã e cinqüenta pela parte da tarde. Creio que ali foi que Deus me tocou – nessa experiência como professor em Hohenau 5. Em 1971, decidi entrar no Seminário na Congregação do Verbo Divino.

IHU On-Line: Seus pais acolheram bem a sua decisão?

Fernando Lugo: Não. Não aceitaram. Minha família não é uma família religiosa. Eu nunca vi o meu pai ir a uma Igreja, mas ao mesmo tempo sempre foi uma família muito justa, muito generosa, muito solidária. Não eram praticantes da religião e foi um golpe para eles a minha decisão de ir para o seminário. Mas quero destacar que a minha família sempre foi muito perseguida pelo regime de Stroessner. O meu pai esteve por vinte vezes na prisão…

IHU On-Line: Vinte vezes?

Fernando Lugo: Isso mesmo. Três dos meus irmãos foram presos e torturados e expulsos do país porque faziam oposição a Stroessner. Eles participavam de uma dissidência do Partido Colorado que não aceitava a ditadura. Meus irmãos foram expulsos em 1960, e apenas 23 anos depois fui encontrar-me com eles, no natal de 1983. Digo isso porque no meu sangue há um sangue da política que foi canalizada para a vida missionária.

IHU On-Line: Quando decidiu ir para o seminário, qual era a sua idade?

Fernando Lugo: 19 anos. Com o tempo reconciliei-me com o meu pai, um homem de caráter muito forte, ao contrário de minha mãe, uma mulher de um caráter mais doce, suave, carinhosa.

IHU On-Line: Mas a sua motivação para a vida religiosa vem de onde, considerando-se que a sua família não era religiosa?

Fernando Lugo: Vem de Hohenau 5. Em 1970, comecei a lecionar e a ler os evangelhos. O povo dessa localidade era muito religioso e não tinha sacerdote. O sacerdote vinha uma vez por mês, às vezes a cada dois, três meses, mas as pessoas religiosamente se reuniam todos os domingos e eu participava com eles das celebrações dominicais, leitura da palavra de Deus, comentários, orações, cantos e foi daí que surgiu a minha motivação para a vida religiosa. Foi em Hohenau 5 que Deus tocou em minha vida e ali uma série de questionamentos surgiram, até que no final do ano decidi ir para o Seminário.

IHU On-Line: Como foi a sua vida de estudante universitário, na Teologia?

Fernando Lugo: A minha vida universitária se caracterizou muito pela participação no movimento estudantil. Quase sempre fui presidente do centro acadêmico de Teologia em articulação com os centros de outras faculdades, de direito, de engenharia, que eram os grupos estudantis aguerridos em Assunção. Após terminar a Teologia, fui para o Equador onde fiquei por cinco anos.

IHU On-Line: O sr. foi ordenado sacerdote em que ano?

Fernando Lugo: Em 1977. Nesse mesmo ano, vou para o Equador trabalhar em paróquias, colégios, nos presídios, com as pessoas do campo e creio que aí acontece a segunda etapa da minha formação, porque no Paraguai nunca tínhamos estudado Teologia da Libertação. No Equador, de 1977 a 1982, se conformou, em 1979, por ocasião da 3a. Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e Caribenho, em Puebla, uma coordenação da Igreja dos pobres, do qual eu fiz parte e isso complementou a minha formação, o meu ideal, a minha opção de trabalhar no campo social.

IHU On-Line: E o sr. é ordenado bispo em que ano?

Fernando Lugo: Em 1994. Em 1982, eu volto do Equador e por um ano trabalho em uma paróquia no Paraguai. Em fevereiro de 1983, recebo uma ordem de expulsão do Paraguai. A Polícia paraguaia pede ao bispo de Encarnación que, pela segurança do país, eu deveria sair do Paraguai…

IHU On-Line: Por que razão?

Fernando Lugo: Por sermões altamente subversivos, por atentar contra a paz social e por falar contra o governo… Então nessa conjuntura saio do país e vou para Roma estudar. De 1983 a 1987, fico em Roma até retornar ao Paraguai e então passo a dedicar-me à docência, ensinando, sobretudo Ensino Social da Igreja. Aí já estamos em outra conjuntura. Nessa época, trabalhei muito com a Conferência Episcopal Paraguaia, como assessor teológico e também como assessor teológico do Celam.

IHU On-Line: Considerando-se a sua trajetória, não surpreende que o senhor já ligado à Teologia da Libertação seja ordenado bispo? Como se explica a sua ordenação?

Fernando Lugo: Eu tinha uma excelente relação com o episcopado paraguaio. Como sacerdote, estive trabalhando como assessor do Celam na área do Ensino Social da Igreja. Havia uma garantia institucional do meu trabalho que me deu credibilidade e legitimidade.

IHU On-Line: O sr. é ordenado bispo e assume uma diocese…

Fernando Lugo: A diocese mais pobre o país, San Pedro, uma diocese na qual há muitos problemas sociais e econômicos. Até 1994, quando assumi a diocese, em todo o Paraguai houve 112 ocupações de terra. Dessas, 52 foram em San Pedro. Por um lado, é o Departamento de maior número de latifúndios e, de outro, o trabalho pastoral social que organizou os camponeses sem terra. Essas ocupações de terra continuaram acontecendo porque os caminhos legais, institucionais, para se conquistar a terra são ineficientes no Paraguai. Para que os camponeses tenham terra no Paraguai, é preciso ir para as estradas, ocupar as terras, morrer dois ou três, para que depois algo seja conquistado. Assim é o processo de luta pela terra em nosso país.

IHU On-Line: Na sua diocese, muitos conflitos agrários, pobreza…

Fernando Lugo: Quando eu cheguei, havia 650 comunidades eclesiais de base; quando saí havia mil. Fizemos lá o 1o. Encontro Diocesano de Comunidades Eclesiais de Base, o 1o. Encontro nacional e o 5º Encontro Latino-americano e Caribenho de Comunidades Eclesiais de Base em 1997. San Pedro foi notícia eclesial pelo tipo de organização eclesial que mantínhamos dentro da Igreja, de estrutura laical, horizontal, de assembléias diocesanas com muita participação de leigos.

IHU On-Line: Na seqüência o sr. assume um novo momento em sua vida, que é a luta política institucional. Qual foi o momento decisivo para que o sr. se decidisse pela política?

Fernando Lugo: Saio da diocese em 2005 e fico pensando que os grandes esforços que se fez através da Igreja, com as pastorais sociais, não obtiveram o êxito desejado e me dei conta que as mudanças reais na economia, no social, vêm da política. Então, reunido num grupo de amigos de 12 pessoas, no dia 3 de janeiro de 2006 – um grupo de estudo, de análise, do qual participavam artistas, intelectuais, camponeses, estudantes, pessoas de Igreja para pensar o país. Esse grupo foi crescendo, crescendo e se converteu, em 17 de dezembro, no movimento popular Tekojoja, que se tornou o movimento político de maior crescimento no país em um tempo tão pequeno. Este grupo é um dos grupos que propugna a minha candidatura para a presidência da República. O grupo coletou um abaixo-assinado de cem mil assinaturas que me foi apresentado em 17 de dezembro de 2006 para que eu me dedicasse à política. Este grupo se converteu hoje, no Paraguai, num dos grupos mais fortes na dinâmica da política do país.

IHU On-Line: O sr. renunciou à sua condição de bispo ou o Vaticano o expulsou? O sr. poderia esclarecer essa situação?

Fernando Lugo: No dia 22 de dezembro de 2006, eu apresento a minha renúncia ao ministério sacerdotal e episcopal na Nunciatura do Paraguai. No dia 25 de dezembro de 2006, eu anuncio publicamente o pedido de renúncia. No dia 04 de janeiro de 2007, a resposta do Vaticano é a de que não aceita a minha renúncia. Posteriormente, vem a suspensão de todo o meu ministério sacerdotal. Hoje, eu sou um bispo suspenso da Igreja Católica de acordo com o Direito Canônico. Por outro lado, o que diz a Constituição Nacional? A Constituição nacional diz que nenhum ministro de qualquer religião ou culto pode se candidatar à presidência e foi em função desse artigo que apresentei a minha renúncia. O fato da renúncia como um ato livre garante, segundo a interpretação dos constitucionalistas, a validez para uma candidatura e, também o artigo 42 da Constituição nacional afirma que nenhuma pessoa pode pertencer a um grupo se livremente renuncia a ele. O gesto da renúncia feito livremente já garante a habilidade para a candidatura.

IHU On-Line: Mas por que então continua havendo riscos para a impugnação de sua candidatura?

Fernando Lugo: Porque a Igreja Católica, canonicamente, diz que eu continuo sendo bispo. Por quê? Porque o sacramento da ordem imprime “caráter” indelével. Eu jamais deixarei de ser sacerdote, mesmo deixando o ministério. Trata-se de um argumento teológico. Porém, em qualquer jurisprudência de qualquer país do mundo, o argumento teológico não tem peso político. O risco é que a justiça paraguaia dê peso jurídico a um argumento teológico. Então eu posso dar peso a um argumento teológico do judaísmo, do islã, do cristianismo? Qualquer estudante do primeiro ano de Direito sabe que no conjunto de leis de um país, primeiro o que vale é a Constituição Nacional, segundo são os tratados internacionais e terceiro são as leis do país. A lei de uma determinada Igreja não entra nisso. Por isso um argumento teológico não pode ter peso jurídico.

IHU On-Line: Uma eventual impugnação jurídica de sua candidatura poderia então ser interpretada como um “golpe”?

Fernando Lugo: Sim. E mais do que um “golpe”, uma desqualificação com um argumento equivocado.

IHU On-Line: E o sr. avalia que a Suprema Corte pode lhe impugnar?

Fernando Lugo: Sim. É possível e não improvável.

IHU On-Line: Agora, uma decisão dessas teria conseqüências?

Fernando Lugo: Conseqüências que não se podem medir. Poderia haver uma reação da população, da comunidade internacional. Quando dizem que irão impugnar a minha candidatura eu digo que quero saber com que argumentos, uma vez que os constitucionalistas dizem que estou habilitado.

IHU On-Line: O sr. não confia na justiça?

Fernando Lugo: Não.

IHU On-Line: Por quê?

Fernando Lugo: Porque a composição da justiça no Paraguai é resultado de um pacto político e os partidos políticos indicam os seus representantes. Hoje a Corte Suprema da Justiça do Paraguai tem nove membros. Desses nove, cinco são do partido oficialista e quatro são da oposição. Então, não se trata de um problema jurídico, mas sim político, e “politicamente” pode ser decidido num 5 a 4.

IHU On-Line: O que então pode impedir uma eventual e possível impugnação de sua candidatura.

Fernando Lugo: Exato, associando o fato de que se utilizem do argumento teológico no lugar do argumento jurídico…

IHU On-Line: E vocês o que pensam em fazer?

Fernando Lugo: Há vários caminhos em que estamos pensando. Um deles é que não se pode prever a reação popular. Eu não posso dizer “isso não vai acontecer” [a reação popular]. Uma esperança foi colocada em marcha, há uma expectativa por grandes mudanças e as pessoas estão conscientes dessa possibilidade de se mudar de governo e se iniciar mudanças a partir das estruturas.

IHU On-Line: Quem faz parte do movimento Tekojoja?

Fernando Lugo: O movimento Tekojoja nasce quando os movimentos sociais se dão conta de que as suas grandes reivindicações, do ponto de vista social, não são atendidas, não avançam. Quando os sem-terra que querem terra, por exemplo, vêem a sua luta social sendo criminalizada. Ou no momento em que se processam mais de quatro mil camponeses. Então, o que se percebe é que ao contrário de conquistarem o que desejam, apenas vêem processos, repressão, expulsões. Isso vai debilitando a luta social. Nesse momento, esses grupos começam a pensar politicamente os seus movimentos sociais e pensam em conformar um movimento político. Nesse movimento político, Tekojoja, a grande maioria são líderes sociais, jovens estudantes, artistas, políticos que não são originários dos partidos tradicionais. Há intelectuais, operários, camponeses…

IHU On-Line: O sr. será candidato por esse movimento, não necessariamente por um partido?

Fernando Lugo: Tanto a Democracia Cristã, como o Partido Revolucionário Febrerista me ofereceram os seus partidos, mas posso ser candidato pelo Tekojoja, bem como pelo PMAS – Partido Movimento ao Socialismo, um partido novo, de jovens…

IHU On-Line: Esses partidos não fazem parte do movimento político Tekojoja?

Fernando Lugo: Não, mas fazem parte do que se chama Bloco Social e Popular. Dentro do Bloco Popular está o Tekojoja, a Democracia Cristã, o Partido Revolucionário Febrerista, PMAS, centrais sindicais, estão grupos de bairros…

IHU On-Line: Todos esses apoiarão a sua candidatura?

Fernando Lugo: Todos apóiam a minha candidatura. São 27 movimentos.

IHU On-Line: Tivemos informações que alguns desses grupos teriam retirado o apoio à sua candidatura. Isso é um fato? E por que ocorreu?

Fernando Lugo: De retirar o apoio a minha candidatura?

IHU On-Line: Correto. Informações da imprensa dão conta que dentro desse Bloco grande número de apoiadores da sua candidatura teriam falado em se retirar. Isso confere?

Fernando Lugo: Há dois grupos grandes. Um grupo é o Bloco Popular do qual participam os partidos de esquerda e, o outro, é a Concertación Nacional, no qual também participam grupos sociais e oito partidos políticos, alguns tradicionais que estão organizando a Concertación Nacional. A Concertación Nacional também me convidou para que fizesse parte dessa articulação. A Concertación Nacional unida teria o poder de garantir o controle eleitoral. Porque o Partido Liberal é um partido centenário; o Partido Pátria Querida, o Partido Unase, Encontro Nacional, País Solidário… são partidos com representação parlamentar que podem oferecer duas coisas: garantir a correta “fiscalização” do processo eleitoral e também governabilidade porque têm muitos parlamentares. O grupo Bloco Popular, em alguns aspectos, se encontra irreconciliável com a Concertación Nacional. Mas estamos buscando pontos de união. Eu estou me reunindo com a Concertación e também com o Bloco Popular. Hoje, o ponto de concordância entre os dois é a minha candidatura. Eu quero, desejo, que possamos avançar para assegurar a vitória e a governabilidade.

IHU On-Line: O Paraguai, por um lado, caracteriza-se como um país agrícola e por outro, como um país entreposto de produtos “made in China”. Porém, há indústrias no país. Como o sr. pensa a questão industrial? Qual é o seu projeto?

Fernando Lugo: Nós estamos elaborando o nosso projeto de governo com a participação popular, mas também com a colaboração de empresários, profissionais liberais e uma série de outros grupos sociais. Existem dois grandes grupos industriais que hoje, no Paraguai, vão muito bem. A indústria têxtil, que exporta muito bem, e a indústria farmacêutica. Esses grupos desejam um país sério. Os outros elementos da economia não estão bem. O desemprego é alto, a corrupção é galopante, a administração do Estado é ineficiente. Esses são aspectos que precisam ser corrigidos. Precisam ser corrigidos com um projeto diferenciado. O que queremos economicamente? Passar de uma economia agrária a uma economia industrial? Desejamos um modelo econômico diferente, baseado também na economia camponesa, ou seja, fortalecer as pequenas e médias indústrias, algumas familiares que já existem. Outro desafio é como utilizar os recursos naturais de forma responsável em favor de uma industrialização. O Paraguai tem importantes recursos naturais como a energia, acreditamos que podemos nos tornar num país hidroelétrico, e também a água. Grande parte do Aqüífero Guarani está no subsolo paraguaio e neste momento existem pesquisas em busca de petróleo no Chaco paraguaio, ou seja, temos a possibilidade da descoberta de poços petrolíferos que podem impulsionar economicamente o país.

IHU On-Line: Qual é a participação da Itaipu no PIB nacional?

Fernando Lugo: A Itaipu é um caso especial por ser uma empresa binacional. Os recursos da Itaipu não fazem parte do orçamento nacional. Conforma-se quase como se fosse um superministério. A Itaipu faz escolas, estradas, portos… praticamente se sobrepõe aos outros ministérios…

IHU On-Line: Constitui-se quase em um poder paralelo?

Fernando Lugo: É um poder paralelo no qual não há intromissão, nem fiscalização de nenhuma outra instituição. Por isso acreditamos que a transparência da administração pública terá que ser um dos elementos diferenciados num provável governo futuro.

IHU On-Line: O sr. fala em rever os contratos da Itaipu…

Fernando Lugo: Sim. Começamos uma campanha de recuperação da soberania energética. Hoje o Paraguai subsidia os industriais que utilizam a energia da Itaipu, especialmente em São Paulo. 98% da energia é utilizada pelo Brasil que representa quase 20% de toda a energia que o Brasil necessita. Acreditamos que o tratamento dos benefícios da energia não tem eqüidade e cremos que isso precisa mudar. Seguramente, no futuro, no futuro se pedirá que o governo brasileiro reconsidere os tratados de Itaipu. A energia precisa ser vendida pelo preço de mercado e não de custo.

IHU On-Line: Já houve alguma reação do lado brasileiro a essa sua afirmação de se rever o tratado de Itaipu?

Fernando Lugo: Há duas posturas. De um lado, a reação dos grupos sociais e dos partidos progressistas com quem estive reunido recentemente em Porto Alegre que acolheram com bastante serenidade essa proposta. De outro lado, o Itamarati através do ministro [Celso] Amorim que afirmou que o tratado está bom e que não precisa de nenhuma mudança. Agora, reconhecemos que qualquer mudança do tratado precisa ser discutida por ambas as partes.

IHU On-Line: O sr. fala em preço de mercado, em preço justo, é isso?

Fernando Lugo: O preço de custo não convém ao Paraguai. Atualmente, o Paraguai recebe US$ 250 milhões ao ano e se a nossa energia fosse vendida ao preço de mercado por apenas 50% do seu real valor, isso renderia US$ 1,8 bilhão ao ano.

IHU On-Line: Isso se a energia fosse vendida a 50% do preço de mercado?

Fernando Lugo: Sim. Porque se fosse vendida pelo preço de mercado poderia chegar a US$ 3,5 bilhões o que equivale à dívida externa paraguaia e a 50% do orçamento anual paraguaio.

IHU On-Line: Então é uma briga que vale a pena comprar?

Fernando Lugo: (risos) Sim, mas acredito que depende muito da vontade do governo brasileiro e também dos acordos a que se pode chegar.

IHU On-Line: E sobre o debate latino-americano das matrizes energéticas. Por um lado, Chávez insiste – em articulação com a Bolívia – num grande gasoduto, por outro lado o Brasil insiste no etanol. Como o Paraguai se posiciona e entra neste debate?

Fernando Lugo: Eu creio que o tema energético é um tema de primeiro nível em todo o planeta. Eu penso que é preciso pensá-lo não apenas do ponto de vista econômico, mas também inserir no debate a questão ambiental. O que significa isso? Há vários problemas, creio eu, que no mundo moderno, o sistema liberal não conseguiu abordar. E um deles é o meio ambiente. Como garantir que o desenvolvimento econômico não se faça em detrimento e deterioração do meio-ambiente? O problema no Paraguai é que apenas a partir de 1996, as leis contemplam delitos cometidos contra o meio ambiente. Anteriormente não era delito ecológico arrasar o meio ambiente. Como garantir que as empresas multinacionais respeitem o meio ambiente que é um grande tema planetário, especialmente relacionado à geração de energia limpa? Eu acredito que é necessário ir gerando e observando criativamente novos métodos em relação à geração de energia, mas que não vá em detrimento à ética humana e de agressão ao meio ambiente para que tenhamos um planeta mais habitável.

IHU On-Line: Na América Latina, nós percebemos que após o vendaval do neoliberalismo dos anos 1990, novos ventos políticos sopram no continente. Como o sr. interpreta essa “nova” América Latina politicamente?

Fernando Lugo: Nós vemos com bons olhos o fato de que não exista mais um determinado fundamentalismo de esquerda que caracterizou as décadas de 1960 e 70. Eu creio que existe uma esquerda mais inteligente, uma esquerda que não acredita em mudanças radicais, senão nos processos de mudança gradual e creio que é isso que está acontecendo nos países. Por mais que alguns movimentos sociais tenham as suas críticas, eu acredito que as mudanças na América Latina estão acontecendo, como no governo de Tabaré Vázquez, com Lula no Brasil, Evo na Bolívia… Governos que avançam em mudanças. Mudanças que caminham na perspectiva das grandes maiorias.

IHU On-Line: Eu vou propor ao sr. um pingue-pongue e gostaria que dissesse o que pensa de algumas lideranças políticas latino-americanas. Pode ser?

Fernando Lugo: Sim.

IHU On-Line: Chávez?

Fernando Lugo: Um cidadão venezuelano “embandeirado” por Bolívar, a de construir a grande Pátria latino-americana. Com a sua reeleição demonstra que é um líder muito aceito dentro do seu país.

IHU On-Line: Lula?

Fernando Lugo: É o líder do maior país da América. Eu penso que a sua trajetória, o seu testemunho, a história de um metalúrgico que chega à presidência… e a sua reeleição é também a garantia da solidez de sua liderança dentro das condições críticas que não faltam sempre em qualquer governo.

IHU On-Line: Evo Morales?

Fernando Lugo: Apresenta um novo paradigma, um novo ingrediente na política, o étnico, que é um elemento ideológico que aponta para o desejo da Bolívia incluir os que foram esquecidos historicamente.

IHU On-Line: Michelle Bachelet?

Fernando Lugo: Uma mulher que rompe com o paradigma de liderança machista dentro da política com o ingrediente de gênero e, que ao mesmo tempo, tem a capacidade intelectual e de liderança política para levar adiante o seu país.

IHU On-Line: Rafael Correa?

Fernando Lugo: Cria um novo modo de governabilidade. Eu sempre digo que no Paraguai, no Brasil, o presidente sempre governa com o parlamento, que Chávez de alguma maneira governa com o parlamento e assume o poder em sua pessoa, Correa, sem ter parlamentares governa com o povo. Eu creio que é um novo modelo de governabilidade dando participação real e decisão à maioria equatoriana.

IHU On-Line: Néstor Kirchner?

Fernando Lugo: O seu primeiro período não foi muito fácil porque teve que tomar grandes decisões em favor da maioria do povo argentino e contra os interesses das grandes forças econômicas mundiais como o Banco Mundial e o FMI e, atualmente também demonstra que a Argentina pode ser diferente com uma liderança forte, sobretudo com medidas econômicas e sociais que tem tomado em favor das maiorias populares em seu país.

IHU On-Line: Muitos consideram o movimento indígena latino-americano o novo protagonista de mudanças significativas na região, muito mais que o movimento operário. O sr. concorda?

Fernando Lugo: O movimento operário e o movimento dos trabalhadores, pelo menos no Paraguai, foram cooptados pelo sistema e foram debilitados. O movimento operário está muito debilitado. As centrais sindicais que já foram determinantes, hoje já não são. Sem dúvida, o elemento étnico protagonista é o movimento indígena, sobretudo nos países andinos.

IHU On-Line: Qual é a sua impressão sobre o EZLN e o MST?

Fernando Lugo: Eu creio que o movimento zapatista é um movimento histórico, “embandeirado” em Zapata, grande revolucionário da Reforma Agrária no México. O zapatismo assume um protagonismo político no México, especialmente em 1994, naquele 1º de janeiro em San Cristobal de Las Casas para se fazer perceber no mundo que é uma região marginalizada historicamente. O que é lamentável são as forças repressivas que agem de forma muito dura contra os zapatistas. Mas eu creio que o movimento revolucionário armado… não sei se tem futuro hoje na América Latina. Eu creio que os elementos de paz hoje são mais capazes de fazer as mudanças. Creio que cada um tem a sua lógica, as suas razões, os seus argumentos para realizar as suas lutas, mas eu acho que na América Latina, hoje, movimentos revolucionários não têm futuro.

IHU On-Line: E o MST?

Fernando Lugo: O MST no Brasil é um movimento que acolhe as bandeiras dos excluídos. Creio que em toda a América Latina não é possível falar em mudanças sem ter em conta a Reforma Agrária, o problema escandaloso da concentração de terras, como no Paraguai, por exemplo. Eu penso que o movimento sem terra coloca em debate não apenas elementos reivindicativos, mas propostas por mudanças reais e creio que isso é muito positivo.

IHU On-Line: As eleições no Paraguai acontecem no próximo ano. Como o sr. está se preparando para essa disputa?

Fernando Lugo: Estamos em um processo de conversa com a população. O que nós queremos é que se Lugo chegar ao governo, o povo tenha o poder, que o povo seja protagonista, que o povo elabore o programa e eu me coloco a disposição desse povo. Eu creio que pode ser uma utopia, mas gostaria que o povo recuperasse o seu protagonismo de poder. A mudança real tem que vir do povo.

IHU On-Line: Caso o sr. seja eleito, qual seria a sua primeira medida de governo?

Fernando Lugo: A primeira medida seria tornar a justiça independente, autônoma e soberana e não resultado de um pacto político, dependente dos partidos políticos. Outra é adotar uma administração honesta, trabalhar por um pacto social amplo e poder desenhar um crescimento econômico com equidade social.

IHU On-Line: Será possível sem rupturas? A elite aceitará mudanças profundas?

Fernando Lugo: As mudanças violentas não garantem a paz social duradoura. Queremos que grupos sociais antagônicos possam se sentar e, olho no olho, possam discutir o Paraguai que sonhamos e que é possível construir juntos.

IHU On-Line: Como o sr. se define ideologicamente?

Fernando Lugo: Em primeiro lugar, creio que a minha formação cristã marca a minha concepção de vida, o desejo de eqüidade, de igualdade social, de justiça, a busca pelo verdadeiro Reino de paz, de amor. Carrego também elementos da identidade socialista, de alguma maneira sou socialista, assumo elementos do socialismo moderno, sobretudo, aquele que busca a eqüidade, a igualdade, a não discriminação, a participação social de todos os grupos sociais.

Fonte: IHU – 28 de maio de 2007

 

 

“A minha missão era evangelizar o ambiente político”. Entrevista com Fernando Lugo

O atual presidente do Senado pela Frente Guazú conta como entrou na política e fala sobre sua relação com o Vaticano, suas recordações de Perón, seus vínculos com a Teologia da Libertação e a necessidade de uma reforma agrária.

“Amiga, vem tomar um mate com absinto e carqueja, amargo como a verdade”, convida. Fernando Lugo, ex-presidente do Paraguai de 15 de agosto de 2008 até 22 de junho de 2012, recebe o Página/12 em sua casa, em um bairro operário de Assunção. Tudo no lugar é simples: as poltronas floreadas, as imagens de Nossa Senhora, crucifixos e um enorme quadro do general José Gaspar Rodríguez de Francia y Velasco (1776-1840), o principal representante do movimento independentista e ideólogo da emancipação paraguaia.

A casa deve ter mais de 30 anos à qual foram anexados um escritório e um lugar que é uma mistura de churrasqueira e sala de jantar, onde mais tarde, naquele domingo, seus dois filhos iriam almoçar. Antes, durante uma hora e meia de conversa e mate, o atual presidente do Senado pela Frente Guazú preocupa-se em responder a cada uma das perguntas.

A entrevista é de Any Ventura, publicada por Página/12, 26-08-23017. A tradução é de André Langer.

A entrevista

Como foi sua relação com a Igreja e especialmente com o Vaticano? Foi preciso falar com o Papa para deixar de ser bispo e dedicar-se à política.

De acordo com a teologia, eu não podia ser candidato a presidente. Porque há dois sacramentos na Igreja que imprimem caráter, ou seja, que têm caráter indelével, que não se apagam nunca, e um deles é o sacerdócio; o outro é o batismo. Por isso, não existe o rebatismo, não existe o re-sacerdócio; uma pessoa é sacerdote in aeternum até a morte.

Qual foi a relação que a sua história e a sua maneira de pensar tiveram com a revolução cubana, com Fidel Castro?

Nenhuma. O Equador me abre os olhos para a perspectiva Latino-Americana. Aqui no Paraguai tínhamos uma formação muito fechada; aqui, nos seis anos de formação, nunca ouvimos falar da Teologia da Libertação. Eu fui o primeiro professor de Teologia da Libertação quando voltei para o Paraguai em 1982. Porque eu fiz minha tese sobre a Teologia da Libertação. O Equador me abre os olhos. Em 1978, aconteceram os preparativos para a Conferência de Puebla e nasceu no Equador a famosa Coordenação da Igreja dos Pobres. Com um grupo de sacerdotes pastoralistas, muito avançados, biblistas. Isso marca uma certa consciência pastoral, social também, muito comprometida.

Ou seja, você demorou para se relacionar com os movimentos da Igreja para a libertação.

É verdade. Quando aconteceu a revolução sandinista eles vieram pedir alfabetizadores no Paraguai. E foram cerca de 100 rapazes da paróquia, desse grupo de fundadores da Igreja dos Pobres. Até esse momento eu não tinha nenhuma relação com nenhum movimento socialista da América Latina. Ouvia-se lá por 1976 certa relação clandestina com certos movimentos que vinham da Argentina, do Chile, mas nunca tivemos relação com eles.

O que pensava do peronismo?

Eu nasci em 1951, em um povoado pequeno e tenho uma recordação muito infantil, de um homem muito generoso que amava os pobres e que mandava brinquedos às crianças. Mas, na América Latina, também se tinha conhecimento da relação de Perón com alguns líderes vinculados ao fascismo.

Bom, a relação de Perón com Stroessner não era nenhum segredo.

Ele esteve exilado aqui alguns meses.

Como você deixou de ser militante religioso para tornar-se político e chegar à presidência do Paraguai?

Eu nunca tomo uma decisão sozinho, sempre tenho amigos companheiros, a família, minha irmã, a que foi primeira dama e que viveu a minha transformação. Lembro perfeitamente do que tínhamos conversado com ela; nesse dia eu pergunto a ela e a outro irmão o que pensavam sobre isso. E me disseram: “se pudeste dedicar-te 30 anos à Igreja, podes dedicar-te a um país”. A missão era agregar um ingrediente ético à política, evangelizar o ambiente político. Em dezembro de 2006, iriam fazer um abaixo-assinado para reunir 10 mil assinaturas e me trouxeram 120 mil. E isso não me deixou dormir. Aí decidi pedir a redução ao estado laical para poder me dedicar à política. Para os bispos e os sacerdotes é muito fácil criticar as deficiências. Um professor meu de teologia me disse: “a política é um pântano de onde ninguém sai limpo”.

E decidiu entrar no barro.

Decidi embarrar-me, entrar no campo com todas as normas e leis. Jogar em campo alheio. Sou o único político do Paraguai que não está filiado a nenhum partido. Estou por afinidade ideológica, afinidade estratégica, na Frente Guazú.

A questão dos camponeses e a reforma agrária sempre rondaram em sua cabeça.

Sim, eu costumo dizer que enquanto não se fizer uma genuína reforma agrária no Paraguai, aqui não se poderá respirar certa paz social. Eu coloquei isso na medula. Esse foi o foco central, inclusive da minha destituição.

Não tenho a menor dúvida sobre isso.

Com uma desigualdade na posse da terra dessas, não se pode ficar calado. Como dizia em San Pedro, se nós calarmos, a terra gritará.

Entre a reforma agrária que sonhou e a reforma agrária possível, não havia uma negociação intermediária?

Aqui o problema da posse da terra é muito complexo. Há 8 milhões de hectares de terras adquiridas ilegalmente, distribuídas abundantemente nos tempos da ditadura e essa gente continua no poder. Eu não quis fazer uma reforma agrária; eu simplesmente pedia aos fazendeiros para que mostrassem seus títulos. Mas há tantos títulos ilegais no país que é impossível provar que essas terras foram adquiridas legítima e legalmente.

Vamos falar do julgamento político que você sofreu. Qual foi, para você, a verdadeira explicação?

Na política, muitas vezes é mais importante o que se cala do que aquilo que se diz. Porque por trás de tudo o que se disse sobre esse chamado julgamento político há muitos silêncios. Por que Lugo? Por que Dilma? Por que tentaram com Correa? Por que tentaram com Evo? Eu acredito que os Estados Unidos, a dominação do império, não podem permitir que estes governos continuem a crescer.

O que exatamente aconteceu com você?

Eles se puseram a investigar até a última gota de combustível que eu usava na presidência. E aí houve um reconhecimento de que fui um dos presidentes que não meteu a mão na botija. E o sistema funciona com corrupção. Há corrupção nos Estados Unidos, em Genebra, na Itália, na Argentina; em todas as partes há corrupção.

A corrupção é mais funcional ao sistema do que a ética.

Sem dúvida. Sem dúvida alguma. Por quê? Porque também é uma forma de dominação.

Como repercutiram em você e na sociedade as denúncias sobre a paternidade?

Bem, em primeiro lugar, eu assumi a paternidade com absoluta responsabilidade, como disse Francisco em seu livro sobre a terra (a Encíclica Laudato Si’), na página 58: “Fernando Lugo, um bispo que teve um tropeço e se arrependeu”. Isso foi em 2002. O outro caso aconteceu em 2007. Quando eu já estava fora de San Pedro (da diocese). É claro que a corporação midiática, que responde à oligarquia carregou na tinta, mas bem. Eu assumo. Quem não tem erros? E aqueles que mais denunciavam são aqueles que tinham filhos não reconhecidos aí no Parlamento. E os empresários.

O celibato já foi questionado na Igreja?

Eu penso que é uma reflexão que precisa ser feita na Igreja; aqui temos inclusive a experiência dos diáconos casados. Eu reconheço que tropecei, foi um momento de fraqueza, reconheço que não fui um bom exemplo, digamos, em termos de assumir o compromisso de uma vida casta dentro da Igreja e ser um testemunho. Muitas pessoas ficaram escandalizadas, muitas pessoas me diziam que eu era como uma punhalada nas costas da Igreja.

Durante a sua presidência você teve um câncer.

Eu tive um câncer em três lugares: na região da virilha, no mediastino e numa parte óssea da coluna. Eu me curei do câncer porque reagi imediatamente. Aqui eu tenho duas, três coisas muito claras. Aí está o meu santo padroeiro dos enfermos de câncer, a quem rezo todos os dias… Tenho um pé de graviola, coração da Índia, araticuguazu e a quimioterapia. As três coisas, uma santíssima trindade que me limpou o câncer, junto com o profissionalismo dos médicos que me atenderam a tempo.

Como era a sua relação com Néstor Kirchner?

A Cristina chegou quando eu assumi, mas com Néstor, depois, na Secretaria da Unasul, eu tinha uma relação muito boa; ele veio ao Paraguai, tínhamos longas conversas; a mesma aconteceu com Lula e com Chávez, os três presidentes que, de alguma maneira, me ensinaram muitíssimo sobre a política, o que é o governo, o que são as relações internacionais. Evidentemente, também tenho uma boa amizade com Correa, com Evo, eh, com Michelle, com Tabaré.

Como analisa o governo de Horacio Cartes?

É um governo diferente do nosso, é um governo para alguns poucos. O mais revolucionário que tínhamos era fazer um governo para todos. Nosso lema era “Um Paraguai para todos e todas”. Este é um governo para alguns, um governo para os ricos; aqui há gente que vive muito bem, os fazendeiros, os bancos, as financeiras, os investidores, eh, eles têm um Paraguai fantástico, não é verdade? Um país de maravilhas. Eu costumo dizer que o presidente é um empresário, não um político. Ele não vai deixar de ser empresário, vai continuar pensando como um empresário e, infelizmente, quer administrar o país como se fosse sua empresa. Não dialoga, não pergunta. Infelizmente, deu muito poder aos seus gerentes e não à classe política.

Ele se parece com Mauricio Macri?

Eu conheço pouco o Macri, certo? Não tenho informações de dentro. Mas, sim, eu acredito que mais que Macri há uma matriz; há algo em comum com o Brasil, a Argentina e o Paraguai.

Como é ser presidente do Senado em franca minoria?

O Palácio do Governo era como uma panela de pressão, porque havia a pressão de todo o país, e aqui é uma panela de pressão onde tenho 44 colegas, de igual para igual. Eu sou o diretor inter pares, não sou mais que eles; há dois vice-presidentes de dois partidos diferentes e sou presidente de todos, dos 44. Tenho que escutar os 44, estar a serviço dos 44, de diferentes partidos políticos. Podemos concordar em determinadas votações, em determinados interesses, ou estar totalmente em desacordo, mas procuro propiciar um ambiente de convivência democrática.

Você pode concorrer novamente à presidência?

Estou com as portas fechadas para ser presidente. Muitos do meu círculo político dizem que veem com esperança [uma possível nova candidatura], mas eu não acredito. Eu quero ser realista, não quero vender espelhinhos, não quero vender ilusões às pessoas.

Neste país, é possível neste país pensar no matrimônio igualitário?

A população é muito conservadora, o Paraguai é um país conservador. Também há uma questão, talvez muito pessoal. Eu não daria à união entre homens ou entre mulheres o estatuto jurídico de matrimônio. Porque a finalidade do matrimônio, a primeira finalidade é a felicidade, a segunda é a procriação, e eles estão impossibilitados para a procriação.

Onde acredita que errou?

Eu me tornei presidente na hora errada, cheguei com muita ingenuidade. Sem a astúcia da política, sem conhecer os meandros, sem saber como se resolvem os problemas políticos. Aqui havia uma prática política muito ativa do toma lá, dá cá… e eu não entendi isso.

 

Fonte: IHU – 28 de agosto de 2017