Entrevista com Carlos Mesters, fundador do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos
Agência Adital: Biblista fundador do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos (CEBI), que em 2009, completa 30 anos de atividades, o frei Carlos Mesters está em Fortaleza (CE) participando da 9ª. Edição do Curso de Verão na Terra do Sol, para falar sobre o livro do Profeta Isaías. O evento, cujo tema é “Jovens, construtores de uma nova realidade. É possível?”, começou na segunda-feira, dia 6, e prossegue até o próximo dia, 18, com cerca de 250 participantes.
Conhecido por seus estudos sobre a Bíblia – estudou em Roma e em Jerusalém -, frei Mesters nasceu na Holanda em 1931, mas, já mora no Brasil há sessenta anos. É professor e, desde 1973, trabalha nas Comunidades Eclesiais de Base – CEBs, sempre utilizando a leitura da Bíblia. Aproveitando a sua passagem pela capital cearense, a Adital conversou com frei Mesters sobre a importância da leitura popular da Bíblia, entre outros temas. Confira a entrevista!
ADITAL: Qual foi o caminho e qual é a intuição de fundo da leitura popular da Bíblia?
Carlos Mesters – As coisas acontecem e só depois a gente descobre o que são. Eu acho que a leitura popular da Bíblia no Brasil começou, sobretudo, depois do golpe militar de 1964. O pessoal se chocou e aí começaram a existir as comunidades. Muita gente que tinha lutado na vanguarda se deu conta que o método usado junto ao povo não foi suficientemente respeitoso e começou um trabalho muito mais de base para escutar melhor o povo. O próprio povo começa a ler a Bíblia antes de nós chegarmos e lê como um livro que é a própria vida.
Eles não têm nem dinheiro nem tempo para estudar livros sobre a Bíblia, mas lá está sua intuição de fundo, que depois se explicita: é o método de Emaús (Lucas, c. 24, 13-35). Primeiro Jesus pergunta (aos dois discípulos): “De que vocês estão falando, qual é o problema, por que estão tristes?”. Então, é preciso escutar primeiro, usar a Bíblia não para dar aula, mas para iluminar o problema. E depois para nos abrir os olhos e esquentar o coração, graças a Deus. O terceiro elemento é a dimensão comunitária. Eles convidam Jesus para entrar, rezam juntos, rompem o pão, e aí os olhos abrem e criam coragem para voltar para Jerusalém onde contestam, vivos, as forças da morte. Mas eles superaram a morte porque eles ressuscitaram.
ADITAL – Como este trabalho da leitura popular da Bíblia se espalhou na América Latina e Caribe? E foi mais além?
Carlos Mesters – Também aqui as coisas vão acontecendo. No Sul, no COM (Centro de Orientação Missionária), o Pe. Orestes Stragliotto, que já faleceu, tinha um trabalho grande com muita gente da América Latina pois era amigo do pessoal do CEBI. Muita gente de outros países da América Latina participa dos cursos; vem gente também de outros países como da Itália e muitos italianos chamam para dar cursos de Bíblia lá. Ainda há um centro bíblico na Argentina, um grupo no Equador e outros que atuam dentro do FEBIC (Federação Bíblica Católica Internacional). Assim, todas estas estradas foram utilizadas para divulgar a leitura popular da Bíblia. E foi se espalhando em outros países, agora na África, na Europa e, aqui e acolá, também nas bandas da Ásia, mais no sentido de uma atitude frente à Bíblia do que como organização.
ADITAL – E qual a relação da leitura popular da Bíblia com as Comunidades Eclesiais de Base?
Carlos Mesters – É de nascimento. Num certo sentido o CEBI nasceu antes de nascer porque o povo já lia, já explicava a Bíblia nas comunidades. Assim, no fundo, esta leitura popular da Bíblia nasce lá. O CEBI nasce e existe para articular, aprofundar e espalhar melhor esta leitura popular para que o livro, a Bíblia que nasceu do povo possa voltar para a mão do povo.
ADITAL – No Curso de Verão, cujo tema é ‘Jovens, construtores de uma nova realidade’ o senhor apresenta a Sagrada Escritura. Qual a receptividade da Bíblia entre os jovens?
Carlos Mesters – Eu penso que se a gente consegue colocar a Bíblia no seu contexto humano de origem, e aí a ciência ajuda um pouquinho, porque o coração do jovem que busca está aberto. A gente sente muita receptividade da parte dos jovens para este aspecto profundamente humano da Bíblia quando eles descobrem uma resposta aos seus anseios de justiça, fraternidade, igualdade e de bondade. A Bíblia, se você analisa e procura saber como é que surge o texto bíblico, bate no coração deles, toma pela mão e vai embora.
ADITAL – Nas igrejas está se dando espaço a atitudes fundamentalistas: os cristãos se sentem mais seguros, os melhores. Acontece o mesmo no setor bíblico?
Carlos Mesters – Um desafio muito grande, hoje, é o fundamentalismo que pega a Bíblia separada da história, do contexto, da comunidade, como se fosse uma pedra que cai do céu e se aplica à vida, sem olhar a pessoa que a recebe, seu contexto, sua origem. Isso é perigoso porque, no fundo, não respeita a Bíblia, não respeita a pessoa, não respeita o próprio Deus e faz de Deus o quebra-galho de tudo. Graças a Deus, na nossa igreja católica, isso foi condenado, pela primeira vez, no começo dos anos 90 por um decreto da Pontifícia Comissão Bíblica. Fundamentalismo é perigosíssimo e no Sínodo que teve em Roma no ano passado, uma das coisas de que mais falaram foi contra o fundamentalismo, como é perigoso desvincular a Bíblia das pessoas; vira um troço aéreo, solto no ar, cai na cabeça e pode até matar.
ADITAL – Na Conferência de Aparecida, em maio de 2007, apareceu uma igreja mais clara em seu compromisso de caridade, na escolha preferencial pelos pobres. Neste momento, como a Bíblia pode sustentar esse ‘novo tempo’ do Espírito na América Latina?
Carlos Mesters – Nem sempre tem laranjas na laranjeira, existem momentos em que você busca frutas e não têm. Parece que estamos, no momento, numa baixa, também as CEBs, mas não morremos não. Há tempo em que tem que fazer umas podas e aprofundar as raízes. A gente, hoje, sente em muitos lugares que o povo quer continuar nas comunidades, apesar de nós padres. A gente sente que está começando uma floração nova; o povo descobre que nesta caminhada queremos melhorar a sociedade, lutar contra a corrupção, refazer o relacionamento humano na base.
Eles sentem que a Bíblia pode ajudar nisso e provocar uma força muito grande. Aí depende, também, de nós, exegetas, de explicar a Bíblia não como se fosse uma peruca em cima de uma careca que não faz nascer cabelo, mas como uma coisa que vem lá de dentro, que faz a gente sentir que o que Deus pede de nós é refazer o relacionamento humano na base, procurar uma nova maneira de conviver, perceber as injustiças que existem, ser capaz de desfazer os enganos que a mídia coloca na cabeça do povo. E perceber o engano do consumismo: nisso a Bíblia ajuda sim. Eu faço uma comparação assim: é como quando você está num quarto e parece tudo limpo. De repente cai um raio de sol, de repente você percebe que o quarto está cheio de pó.
Assim, a luz de Deus, quando cai dentro da comunidade, faz perceber o que está errado e aí nasce a ação profética. Eu não sei se estou certo, mas sinto que está se preparando Porto Velho (no fim de julho haverá lá o 12º Intereclesial da CEBs) e aí pode ser o momento para fazer explodir este tempo novo e colocar em movimento os discípulos e missionários de Jesus Cristo para que nele os nossos povos tenham vida, não mais numa pastoral de manutenção, mas numa pastoral de missão. Isso diz o [José] Comblin num artigo dele: este processo de mudança deve começar e, diz ele, é para os próximos 100 anos. Eu gostei disso porque caminhão não faz curvas fechadas, capota. A igreja é um caminhão muito grande, mas tem que entrar na curva da história.
Fonte: Adital: 10/07/2009 – Reproduzido aqui a partir de O Arcanjo no ar – jul 15, 2009