Ler a Bíblia no Brasil hoje
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Fato incontestável é a redescoberta da Bíblia e o seu uso constante por todas as igrejas cristãs no Brasil, hoje. Este artigo quer refletir sobre algumas das muitas leituras feitas nos últimos anos. Um levantamento completo abrangeria muito mais. As limitações de quem escreve impõem, contudo, restrições objetivas e necessárias. Por isso, permaneço (quase que) só no âmbito católico e brasileiro. Embora suponha que alguns dados mencionados possam ser encontrados em outras igrejas e outros países latino-americanos. Um texto mais amplo do mesmo autor, com o título de Notas sobre alguns aspectos da leitura da Bíblia no Brasil hoje, pode ser lido na REB, Petrópolis, v. 50, n. 197, p. 117-137, 1990.
O assunto se dispõe em três partes – descrição, análise e perspectivas -, procurando responder, deste modo, a três questões:
. como se lê a Bíblia hoje?
. por que se lê a Bíblia hoje?
. para que se lê a Bíblia hoje?
1. Como se lê a Bíblia hoje?
1.1. A descoberta da Bíblia no Brasil
A presença da Bíblia no Brasil, nos meios católicos, começa a ser mais significativa a partir da década de 40. Por detrás disso há um fato dos mais importantes. Refiro-me à encíclica de Pio XII, Divino afflante Spiritu [Inspirados pelo Espírito Divino], de 30 de setembro de 1943. Foi esta encíclica que permitiu a entrada, na Igreja, da moderna pesquisa exegética, superando séculos de desconfiança no uso da Bíblia. Observo que até o século XIII, a reflexão bíblica ocupava lugar importante na reflexão teológica. A Escolástica quebrou esta tradição, com a elaboração de uma teologia cada vez mais especulativa. A Reforma protestante reagiu contra esta tendência com uma volta radical à Escritura, enquanto os teólogos católicos, no contexto da Contrarreforma, afastavam-se ainda mais da Bíblia.
Pio XII, entre outras coisas, recomendava, na Divino afflante Spiritu, o estudo das línguas bíblicas, o recurso à filologia, a busca do sentido literal dos textos, o exame do contexto, o estudo da história, da arqueologia e dos gêneros literários, o esclarecimento da condição social do autor. Leia-se, por exemplo, sobre o estudo das línguas bíblicas: Além disso são hoje tantos os meios para aprender aquelas línguas que o intérprete da Escritura, que, descurando-as, fecha a si mesmo o acesso aos textos originais, não podendo evitar a imputação de inconsideração e indolência. Ou sobre a pesquisa histórico-crítica: Procure por conseguinte o intérprete distinguir com todo o cuidado, sem descurar nenhuma luz fornecida pelas recentes investigações, qual a índole própria e condição social do autor sagrado, em que tempo viveu, de que fontes, escritas ou orais, se serviu, que formas de dizer empregou. Ou a repreensão dirigida a certas tendências que rejeitam a pesquisa moderna: Tal interpretação (…) será meio eficaz para fazer calar os que se queixam de não encontrar nos comentários bíblicos nada que eleve a mente a Deus, alimente a alma, fomente a vida interior, e por isso dizem que é preciso recorrer a uma interpretação que chamam espiritual e mística.
Perfeitamente afinado com este momento histórico, foi, entre nós, Frei João José Pedreira de Castro, exegeta franciscano, formado em Ciências Bíblicas em 1924. Um dos pioneiros na difusão da leitura e do estudo da Bíblia no Brasil. Na década de 50, por exemplo, Frei João José fundou, em São Paulo, o Centro Bíblico, através do qual incentivou a leitura da Bíblia de todas as maneiras possíveis. Durante 40 anos, Frei João José rompeu barreiras e venceu teimosos preconceitos, iniciando até mesmo um diálogo ecumênico.
Marco fundamental, naqueles tempos, foi a fundação da Liga de Estudos Bíblicos, a LEB, na I Semana Bíblica Nacional, realizada em São Paulo. A LEB reunia os exegetas católicos em amplos debates e estudos, pela primeira vez no Brasil, além de promover a divulgação da Bíblia junto à população. A partir de 1956 começou a ser publicada a Revista de Cultura Bíblica, órgão oficial da LEB. E ainda na década de 50 a LEB iniciou acurada tradução da Bíblia para o português, diretamente dos originais, atendendo aos anseios dos exegetas e aos apelos das autoridades eclesiásticas. Muitos exegetas da LEB se empenharam, desde então, na divulgação e estudo da Bíblia em vários níveis e de todos os modos: cursos, semanas bíblicas, conferências, retiros, artigos, livros e folhetos. Todo este esforço está relatado na Revista de Cultura Bíblica (RCB), São Paulo, n. 43-44, 1987. São mais de 20 artigos que trazem depoimentos dos protagonistas, dados históricos, análises e sugestões.
1.2. À procura do melhor texto
Uma das questões enfrentadas pelos católicos era a dificuldade de acesso ao texto bíblico em português. A grande maioria da população só conhecia as simplificadas – e, com frequência, simplistas – “Histórias Sagradas” do catecismo e os selecionados trechos lidos nas missas e (mal) comentados pelos padres.
Sabe-se que a primeira tradução católica moderna da Bíblia, em português, foi feita pelo Padre Antônio Pereira de Figueiredo, nascido em Macau em 1725 e morto em Lisboa em 1797. A tradução, feita sobre a Vulgata, ficou pronta em 1790. A 1a edição brasileira saiu em 1864 e desde então esta Bíblia Sagrada foi várias vezes reeditada.
Enquanto isso, a primeira tradução protestante da Bíblia para o português, a divulgadíssima João Ferreira de Almeida, fora completada já em 1753. Hoje, a tradução de João Ferreira de Almeida existe em mais de uma forma, como:
:: Almeida Corrigida Fiel – Sociedade Bíblica Trinitariana do Brasil
:: Almeida Revista e Atualizada – Sociedade Bíblica do Brasil
:: Almeida Revista e Corrigida – Sociedade Bíblica do Brasil
:: Bíblia Almeida Século 21 – Vida Nova
:: Nova Almeida Atualizada – Sociedade Bíblica do Brasil
Hoje, surpreende a variedade de Bíblias oferecidas pelas editoras católicas à população brasileira, como [a lista não pretende ser completa]:
:: A Bíblia – Paulinas
:: Bíblia de Jerusalém – Paulus Editora
:: Bíblia do Peregrino – Paulus Editora
:: Bíblia Mensagem de Deus – Edições Loyola
:: Bíblia Pastoral – Paulus Editora
:: Bíblia Sagrada – Ave Maria – Editora Ave-Maria
:: Bíblia Sagrada de Aparecida – Editora Santuário
:: Bíblia Sagrada – Tradução oficial da CNBB – CNBB
:: Bíblia Sagrada – Vozes – Editora Vozes
:: Bíblia TEB – Tradução Ecumênica da Bíblia – Edições Loyola
:: Nova Bíblia Pastoral – Paulus Editora
Algumas são “traduções de traduções”, embora frequentemente cotejadas com os originais, enquanto outras – estas muito mais interessantes – são traduções feitas a partir dos textos originais hebraico, grego [e os poucos textos em aramaico], em geral acompanhadas de úteis introduções e notas explicativas. Lembro ainda que já existem algumas destas Bíblias disponíveis online, para leitura, audição ou download.
Outra questão que deve ser abordada é a do nível de compreensão, pelo povo, das várias traduções existentes e a diferença entre leitura e audição do texto.
Remeto tal discussão para um interessante artigo de Alberto Antoniazzi, no qual se avaliam os resultados de duas pesquisas, feitas em 1981, sobre o tema, uma em Ribeirão Preto e outra em Belo Horizonte[1].
O que preocupava os pesquisadores era:
. Uma tradução da Bíblia pode ser mais acessível (mais compreensível) ao povo que outras?
. Há diferenças na compreensão do texto bíblico lido e do texto bíblico ouvido?
. Se há dificuldades na compreensão, onde estão e como superá-las?
Duas conclusões (provisórias) são interessantes:
. É urgente uma tradução acessível da Bíblia, já que o nível de compreensão da Bíblia pelo povo é baixo.
. É preciso ter cuidado nesta questão da compreensão, pois, às vezes, tomam-se as opiniões dos padres pela manifestação do povo. Nem sempre o texto que o padre ou o agente de pastoral consideram ser mais acessível ao povo o é de fato.
1.3. A mediação hermenêutica necessária
Gostaria de caracterizar agora a leitura da Bíblia feita nos cursos de Teologia, ou melhor, em alguns dos mais bem estruturados cursos de Teologia do país.
O papel da S. Escritura, em vários currículos teológicos, tem sido o de fundamento ou fonte inspiradora da reflexão teológica. Então o dado básico da fé é mediado hermeneuticamente pelos textos bíblicos, levando-se em conta quatro elementos na leitura: o texto e seu contexto, de um lado; nós e o nosso contexto, de outro lado. É estabelecida assim a seguinte correlação: o texto está para o seu contexto, assim como nós estamos para o nosso contexto. Deste modo, a identidade do sentido não é procurada no contexto ou na mensagem, mas na relação entre contexto e mensagem.
Deste modo, procuram os exegetas evitar dois modelos usuais de leitura. Aquele que funciona apenas com as categorias de regra e aplicação, tomando o texto bíblico como um código de normas a ser aplicado às situações atuais, sem mais. Ou ainda, o modelo que estabelece uma relação de igualdade ou profunda semelhança entre a situação do texto bíblico e a nossa, mesmo falando do contexto da Escritura e do nosso contexto. Desta maneira, manipular-se-ia facilmente o texto, exatamente a partir dos interesses preestabelecidos do leitor.
Quando o exegeta aborda o texto, ele o submete a uma verdadeira bateria de questões, do tipo:
. como conseguir uma reconstrução do texto a mais próxima possível do original?
. qual é a proveniência do texto, quem é o seu autor, quais são as suas características literárias, seu contexto histórico-cultural?
. qual é o gênero literário do texto analisado, as formas fixas do discurso utilizado, mesmo na sua fase de transmissão oral, qual o seu contexto social e a intenção de sua linguagem específica?
. como o autor trabalhou teologicamente o material recebido da tradição, dando-lhe a forma atual?
. como foi o desenvolvimento progressivo da tradição desde as camadas pré-literárias até a sua elaboração por escrito?
Para responder a tantas questões, a exegese criou e desenvolveu nos últimos séculos um vasto instrumental histórico-crítico conhecido como: crítica textual, crítica literária, crítica e história das formas, história da redação e história da tradição.
Mesmo assim, nem tudo pode ser respondido aí, porque ainda restam as questões do nosso lado:
a) Para que ler o texto?
Trabalha-se aqui com o problema da finalidade que é a de iluminar a caminhada da comunidade cristã, na busca de uma transformação de estruturas desumanas e anticristãs.
b) Com quem ler o texto?
É a questão do interlocutor, o homem latino-americano empobrecido e excluído.
c) Como ler o texto?
É a articulação Bíblia-Realidade que se pensa aqui: o modo concreto dessa articulação, os obstáculos que se apresentam e as possibilidades de tal articulação.
Como se vê, são os vários recursos da leitura histórico-crítica os mais utilizados. Somados, hoje, é claro, a fecundas contribuições da linguística e a um interessante retorno das questões socioantropológicas.
Pode-se afirmar que esta leitura feita entre nós tem levado a várias consequências, mas gostaria aqui de destacar apenas duas:
. cria-se o hábito de procurar, na Bíblia, mais um sentido global, através de uma permanente atitude de alerta hermenêutico, do que a aplicação de sentidos parciais, retirados, segundo a necessidade, de textos isolados
. o confronto cotidiano do povo entre a Bíblia e os desafios da vida leva ao avanço metodológico, enquanto o exegeta é estimulado a buscar métodos mais adequados e realistas para a compreensão dos textos.
1.4. Ler a vida com a ajuda da Bíblia
De todos os usos recentes da Bíblia entre nós, o que mais chama a atenção é a leitura popular feita pelas CEBs.
Quem melhor traduz a dimensão da leitura popular da Bíblia é Carlos Mesters, quando afirma: “A preocupação principal do povo não é interpretar a Bíblia, mas é interpretar a vida com a ajuda da Bíblia”[2].
Ou ainda: “Estimulado pelos problemas da realidade (pré-texto), o povo busca uma luz na Bíblia (texto), que é lida e aprofundada dentro da comunidade (con-texto). O pré-texto e o con-texto determinam o ‘lugar’ de onde se lê e interpreta o texto”[3]. Quando falta um desses elementos, a leitura empaca.
Há quatro elementos que, segundo Carlos Mesters, caracterizam a leitura popular da Bíblia:
. para o povo, a Bíblia vai além do texto: é Palavra de Deus viva e atual
. o povo recupera a dimensão comunitária e eclesial na leitura e aplicação da Bíblia
. o povo reapropria-se da Bíblia, mistura com a vida e começa a despertar para uma consciência crítica
. para o povo a Bíblia não é só história, é espelho da vida. O povo não pergunta primeiro pelo fato (aconteceu mesmo?), mas pelo símbolo (o que significa?)[4].
Falar de leitura popular, hoje, é falar também do CEBI, Centro de Estudos Bíblicos, que nasceu em 1978, “a partir da necessidade bem concreta, sentida por muita gente havia vários anos, de se articular um serviço que ajudasse o povo das Comunidades Eclesiais de Base no uso e na interpretação da Bíblia”[5]. Idealizado por Carlos Mesters, o CEBI é um organismo ecumênico espalhado por todo o país, que procura interpretar a Bíblia:
:: a partir dos pobres
:: a partir da realidade brasileira e latino-americana
:: a partir e em vista da comunidade de fé
:: ajudando o povo a reapropriar-se da Bíblia
:: procurando uma leitura ecumênica da Bíblia
:: uma leitura que leve em conta a questão do método mais adequado ao povo simples
:: e que considere os múltiplos aspectos da vida, além da razão: a fantasia, a poesia, a fé, a celebração…
A ata de fundação do CEBI, assinada por 23 pessoas, no dia 20 de julho de 1978, atesta a presença das Igrejas Presbiteriana, Congregacional, Católica, Metodista e Anglicana.
2. Por que se lê a Bíblia?
2.1. A opção pelos pobres
Esta não é uma questão tão fácil de ser respondida. Há certamente uma série de razões, uma convergência de múltiplos fatores que levaram à redescoberta da Bíblia entre nós nos últimos anos.
Claro está que o processo de reforma eclesial, que desembocou no Vaticano II e em Medellín [confira as Conclusões da Conferência de Medellín], conta muito. A consequente renovação dos estudos teológicos, o novo espaço conquistado pela Bíblia na liturgia, na catequese e na pastoral, em geral, é extremamente significativo. Pouco a pouco a Bíblia deixa de ser “coisa de protestante”, preconceito bastante difundido entre os católicos, para ser, de novo, o livro da Igreja, de todas as igrejas cristãs.
Mas creio que a análise das causas do crescente uso da Bíblia pela população brasileira passa pela análise das características da Igreja nos últimos 30 anos e, sem dúvida, pelo papel e caminhos das CEBs.
É preciso lembrar, em primeiro lugar, que as CEBs nascem no contexto da ditadura militar instalada no país a partir de 1964. E exatamente aí está uma das suas razões: fechados os outros canais de organização e mobilização, restou, às classes populares, a Igreja, como último espaço social possível. Aliás, é preciso deixar bem claro que não foi a Igreja, enquanto instituição oficial dirigida pelo magistério, que optou pelas classes populares, mas foram estas que ocuparam o espaço representado pela Igreja, graças especialmente às novas perspectivas eclesiais surgidas com o Vaticano II (1965) e com Medellín (1968). As várias pastorais setoriais foram sendo criadas pela cúpula da Igreja como respostas às pressões populares.
A partir desta nova realidade, muitos sociólogos falam de uma ruptura da Igreja, na década de 60, com as seculares posturas anteriores. Mas há aqueles que preferem falar de continuidade, pois manifesta-se aí uma ambiguidade: é a mesma instituição que fomenta, por um lado, a organização popular nas CEBs e, por outro lado, abre espaço para a classe média agrupada em movimentos socialmente reacionários.
Se a Igreja sempre se vinculou, antes de 1964, ao sistema dominante, a partir de então ela passa à defesa dos direitos civis e das liberdades individuais. Ela passa a exercer, em nível nacional, o papel de instituição mediadora entre as transformações sócio-culturais e suas eventuais projeções no sistema político.
Assim, se, por um lado, ela se colocou ao lado das classes populares, envolvendo-se num processo de democratização e descentralização que culmina nas CEBs, especialmente durante a década de 70, por outro lado, contudo, ao defender as liberdades civis e a democracia liberal, ela se identifica com as classes privilegiadas “traídas” pelo regime militar e que defendem, agora, a volta ao Estado de Direito.
Isso é possível, explicam alguns sociólogos, graças ao papel secundário da religião nas sociedades ocidentais contemporâneas: ela não tem a seu cargo a formulação da ideologia dominante e se concentra, por isso, na esfera motivacional, apoiando uma ordem de valores pluralistas.
Aqui entra a Bíblia com toda a sua força: “Os círculos bíblicos propiciaram a relação entre os fatos da vida e os fatos da Bíblia, reduzindo a dicotomia fé e vida, religião e política, Igreja e mundo”[6].
O método ver-julgar-agir possibilitou, por outro lado, a articulação entre comunidades cristãs e organizações de base, soando hegemônica, durante certo tempo, a voz profética da Igreja comprometida com as classes populares.
Entretanto, a volta aos textos fundadores – em nosso caso, à Bíblia – costuma acontecer, nas grandes religiões, nas crises de hegemonia que a instituição tem ou julga ter. É reativada assim sua consciência profética, na busca de uma identidade ameaçada pelas mudanças sociais e políticas. Só que a identidade religiosa não se define nem em si mesma, nem na relação direta religião-sociedade. Mas na disputa de posições hegemônicas ou na subsistência social de seus agentes em um campo de trocas simbólicas. “Identidades são estratégias simbólicas de lidar com o poder através da diferença”[7].
É por esta via que a Bíblia ajuda o povo – pela semelhança de situações entre o Israel antigo e o Brasil atual – a criar uma identidade, enquanto ele se vê como povo oprimido e fiel a Deus. Identidade que é estratégia simbólica na luta contra o poder dominador através da diferença: também o dominador é católico, exigindo do dominado a criação de uma leitura da Bíblia diferente da tradicional leitura do catolicismo oficial.
O oprimido procura na Bíblia uma linguagem para dizer sua luta. É que a linguagem do capital (atualmente de clara tendência neoliberal) predomina nos meios de comunicação, na história oficial, na escola, nas religiões tradicionais… Os discursos oficiais do Estado (e das igrejas) não traduzem a realidade popular. Daí a redescoberta da Bíblia como o discurso do povo, amparado pela legitimidade do sagrado, por isso, sempre vista como Palavra de Deus. Eis por que, em tal leitura, a Bíblia não é a fala de Israel com a sua época, mas a mensagem de Deus para o homem de hoje[8].
Em artigo publicado na revista Concilium 361, de 2015, Carlos Mesters e Francisco Orofino refletem sobre a leitura popular da Bíblia e “O caminho que temos pela frente”. O artigo busca apontar os novos paradigmas da leitura popular da Bíblia na América Latina, fazendo uma análise do caminho percorrido nos últimos 50 anos. Destaca os vários desafios que surgem da realidade latino-americana e como estes desafios influem no método da leitura popular da Bíblia.
Observam os autores que muita coisa mudou nos movimentos sociais e nas organizações populares dos anos 70 para cá. A população pobre, sujeito da leitura popular da Bíblia, tem encontrado novas formas de se organizar e de expressar suas buscas, sonhos e desejos. Por isso, julgam necessário destacar alguns eixos que estão mobilizando as pessoas. Como:
. a questão da terra
. o movimento pela ética na política
. o crescimento dos movimentos indígenas
. a luta dos afrodescendentes
. as grandes mobilizações dos homossexuais
. as várias frentes ecológicas
. os novos avanços da ciência
. o rosto dos pobres a partir do documento de Aparecida
E estes novos desafios levam necessariamente à pergunta: Qual a nossa proposta para uma leitura bíblica que possa atender a estes novos desafios? Para Carlos Mesters e Francisco Orofino são 5 os novos desafios que a leitura popular da Bíblia enfrenta hoje:
. A leitura feminista ou leitura de gênero
Que questiona e relativiza a secular leitura machista feita pelas igrejas para manter o sistema patriarcal.
. Como enfrentar a realidade do fundamentalismo?
Como explicar este crescente fenômeno, sobretudo nos jovens? Vem do contato com a linha conservadora, com a linha carismática, com os pentecostais? Será que também não vem das deficiências da atitude libertadora frente à Bíblia? Será que não vem de algo ainda mais profundo que está mudando no subconsciente da humanidade? Pois, a realidade do fundamentalismo não existe só nas igrejas cristãs, mas também nas outras religiões: judaica, muçulmana, budista. E há também variadas formas de um fundamentalismo secularizado.
. A busca de espiritualidade e o nosso método de interpretação
Em todo canto se ouve e se sente o desejo de maior profundidade, de mística, de espiritualidade.
. A cultura dos povos originários
Precisamos superar a leitura bíblica como instrumento de colonização. Muitos perguntam: o que fazer com a cosmovisão ultrapassada da Bíblia? Precisamos descobrir a mesma presença divina da Bíblia dentro da nossa cultura e expressá-la nas formas da nossa cosmovisão.
. A necessidade de um estudo mais aprofundado da Bíblia na América Latina
Existe uma escassez de assessores e de assessoras acadêmicas capazes de responder à demanda crescente de formação bíblica dos assessores populares e de fazer frente ao problema novo que está se criando por causa do crescimento imenso do fundamentalismo[8a] .
2.2. A opção pela classe média
Como vimos acima, a redescoberta da Bíblia no pós-Vaticano II se dá a partir da crise de hegemonia da Igreja na década de 60 do século XX. Foi quando começou a se implantar, na sociedade brasileira, a modernidade, consequência da inserção ativa do país na economia capitalista internacional. É nesse contexto, de rápidas mudanças, que acontece a ruptura, especialmente nos grandes centros urbanos, com os tradicionais padrões morais e sociais defendidos pela Igreja. Aí, dizíamos, a Bíblia se manifestou como instrumento eficaz na redefinição da identidade católica. Entretanto, convém lembrar que não é apenas nas CEBs que a Bíblia é usada. Ela é redescoberta também pelas classes médias, através de movimentos transnacionais, que impressionam por seu crescimento e persistência.
Defendendo a formação de uma neocristandade, os movimentos possuem uma estratégia bem precisa: influenciar a sociedade não mais via Estado, mas via sociedade civil, ressocializando (convertendo) os cristãos num meio pluralista. Os movimentos visam formar o cristão leigo ativo, em oposição ao cristão tradicional, que só é cristão porque nasceu assim.
Embora tenham origens e estruturas diferenciadas, os movimentos possuem características comuns, tais como: são predominantemente de classe média, defendem a família como fundamento da estrutura social, posicionam-se contra os movimentos populares, a opção pelos pobres e a Teologia da Libertação, olham o homem exclusivamente a partir de sua subjetividade, opõem-se ao engajamento social e político do clero, restringindo sua missão à função religiosa…
Luiz Roberto Benedetti assinala que o papel do leigo nos movimentos – positivo, ativo e não pura negação em relação ao sacerdote – leva a novo clericalismo, enquanto produz a sacralização do cotidiano profano. O leigo, profissionalmente competente, cuida do mundo, enquanto o padre deve restringir-se à ação religiosa tradicional[9].
A meu ver, a leitura da Bíblia, nos movimentos, deve ser compreendida neste contexto: ela serve como ferramenta eficaz para operar este processo de sacralização do real. Que não é real objetivo, é significado, é subjetivo.
Este processo de subjetivização chega a extremos, por exemplo, na Renovação Carismática Católica. Para a RCC, crer é sentir, já que a ação imediata de Deus, percebida pela vivência intensa da emoção, do entusiasmo, constitui a realidade total, a história objetiva. Entusiasmo vem do grego enthousiasmós, indicando o arrebatamento, o transe daqueles que estavam sob inspiração divina, como as sibilas.
É aí que entra a Bíblia: ela testemunha a autenticidade do sentimento do indivíduo. É uma leitura fundamentalista radical. “Radical porque vai além da aceitação, como dado objetivo, da narrativa bíblica, para assumir como única realidade os fatos de agora, sentidos como intervenção atual de Deus. É o mesmo fato: o bíblico e o de hoje. Não é nenhuma analogia”[10]. Daí a recriação de vivências primitivas, literalmente.
O resto é o óbvio: eliminadas as fronteiras entre o objetivo e o subjetivo, o mundo é reduzido ao coração do homem, onde Deus age através de seu Espírito. Para além do discurso moralista, esta subjetivização radical permite a sacralização até do dinheiro, que sustenta a sólida organização do movimento.
Termino com Benedetti, que afirma: “A grande aceitação que os encontros têm junto à classe média tem muito a ver com a sua insegurança e, sobretudo, seu ressentimento, disfarçado como indignação moral. Esse mecanismo social serve também para a classe média desobrigar-se de um compromisso social efetivo, reduzindo os problemas do mundo a problemas morais”[11].
Mas fica aqui, ainda, uma tarefa por mim definida, mas não completamente realizada: analisar a função social do discurso homilético de classe média. Minha hipótese é de que aquelas homilias aparentemente incompetentes e desnecessárias – na medida em que reproduzem um discurso óbvio – são socialmente competentes e necessárias para reproduzir e sacralizar os instrumentos capitalistas de dominação e, com sua crítica romântica das aparências, levar à acomodação à situação vigente. São discursos muitas vezes baseados numa ontologia existencialista e radicalmente inibidores da criticidade exegética.
[1]. Cf. ANTONIAZZI, A. O povo e as traduções da Bíblia. Primeiro resultado de uma pesquisa. Vida Pastoral, São Paulo, n. 104, p. 15-23, maio/junho de 1982. Sobre as traduções da Bíblia, pode ser útil a leitura de um número da revista Pistis & Praxis: v. 8, n. 1 (2016): Traduções da Bíblia. Está disponível na íntegra aqui. Saber o que é equivalência dinâmica e equivalência formal, quando se fala de tradução de texto bíblico, é fundamental. No artigo de Johan Konings a questão é tratada no item “Considerações metodológicas”.
[2]. MESTERS, C. Flor sem defesa: uma explicação da Bíblia a partir do povo. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 37.
[3]. Idem, ibidem, p. 42.
[4]. Cf. Idem, ibidem, p. 305-310.
[5]. CEBI, Por trás da Palavra, n. 25, p. 2, nov./dez. de 1984.
[6]. BETTO, Fr. Prática pastoral e prática política, Tempo e Presença, n. 26, p. 13, 1980.
[7]. BRANDÃO, C. R. Ser católico: dimensões brasileiras – um estudo sobre a atribuição de identidade através da religião. In: VV. AA. Brasil & EUA: religião e identidade nacional. Rio de Janeiro: Graal, 1988, p. 58.
[8]. É oportuno mencionar que são duas as forças simbólicas de sustentação do espoliado povo brasileiro: a sua ancestral memória histórica de sofrimentos e a sua memória religiosa, que também lhe confere identidade e lhe dá esperança.
[8a]. Cf. MESTERS, C.; OROFINO, F. O caminho que temos pela frente. Concilium, Petrópolis, fascículo 361, n. 3, p. 38-48, 2015.
[9]. Cf. BENEDETTI, L. R. Templo, Praça, Coração – A articulação do campo religioso católico. São Paulo: Humanitas/USP/FAPESP, 2000.
[10]. Idem, ibidem, p. 264 (da versão fotocopiada, São Paulo: USP, 1988).
[11]. Idem, ibidem, p. 238-239 (da versão fotocopiada, São Paulo: USP, 1988).
Última atualização: 30.08.2023 – 21h35