Espinosa, um dos pais da moderna crítica bíblica

Baruch Spinoza. Um convite à alegria do pensamento

Apontado como um dos grandes racionalistas na assim chamada Filosofia Moderna, Baruch Spinoza (1632-1677) é considerado o “pai” do criticismo bíblico moderno e um dos primeiros pensadores a formular uma potente crítica contra as ideologias estabelecidas. Filósofo de poucas obras publicadas em vida, em função da excomunhão e censura que lhe foram infligidas pela comunidade hebraica de Amsterdã, o holandês inspira a discussão de capa da IHU On-Line desta semana. Contribuem para o debate Maria Luísa Ribeiro Ferreira, Marilena Chauí, Diego Tatian, César Schirmer dos Santos, Homero Santiago, Bernardo Barata Ribeiro, Marcos Gleizer, Lia Levy, Mariana de Gainza, Vittorio Morfino e Laurent Bove.

Um trecho da entrevista de Maria Luísa Ribeiro Ferreira, professora da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa:

IHU On-Line – Por que Spinoza é considerado o fundador do criticismo bíblico moderno?

Maria Luísa Ribeiro Ferreira – Tal como muitos filósofos seus contemporâneos, Spinoza interessou-se pelo método, encontrando nele um guia que o pudesse conduzir à verdade. E essa busca o levou a procurar uma hermenêutica suscetível de se aplicar eficazmente ao texto bíblico, separando os produtos da imaginação e enfabulação do que poderia ser aceito como verdade. O Tratado teológico-político (TTP, 1670) é uma das suas obras maiores e, como o nome indica, tem uma dupla preocupação: por um lado, demarcar os territórios da teologia e da filosofia e, por outro, refletir sobre a liberdade, nomeadamente a liberdade de expressão, mostrando que ela em nada interfere com o governo de um Estado mas, pelo contrário, era essencial para assegurar a paz e a estabilidade.

O TTP apresenta um método original de interpretação dos textos sagrados. Dado que o seu desconhecimento de grego impedia Spinoza de se debruçar sobre os Evangelhos, circunscreveu-se ao Antigo Testamento tentando nele uma exegese que permitisse detectar incongruências e separar o joio do trigo. Os pressupostos dessa leitura iconoclasta encontram-se no capítulo VII da referida obra, intitulado Da interpretação da Escritura.

Ao longo dos tempos os textos sagrados foram objeto de múltiplas interpretações. Spinoza analisa-as, recusando a maior parte delas. Assim critica as leituras místicas, alegóricas e midrashicas, classificando-as como fantasias. Contesta a perspetiva de Maimónides , que pretendia subordinar o texto bíblico à razão, mas também ataca a interpretação de Alphakar, a qual abdica da luz natural e nos propõe uma hermenêutica norteada pela fé (TTP, caps. VII e XV).

A originalidade da metodologia spinozana assenta num preceito básico: a interpretação da Escritura por si mesma (TTP, cap. VII). A ele anexa cinco vias de leitura que devemos ter em conta: a via naturalista, que implica uma igualdade de tratamento entre a Natureza e os livros sagrados, considerando ambos como escrita divina e selecionando dos últimos aquilo que poderá interessar; a via histórico-contextual, que exige uma atenção às circunstâncias em que os acontecimentos ocorreram e ao modo como os diferentes livros foram selecionados para integrar o corpus canônico; a via psicológica, que atende à personalidade, formação intelectual e costumes dos diferentes autores; a via filológica, pela qual devemos ter em conta o universo linguístico dos judeus, analisando as expressões e termos utilizados; a via comparativa, que nos permite detectar incongruências entre os diferentes textos, levando-nos a interpretar alguns deles de um modo metafórico. Essa metodologia, que na altura foi atacada como herética, é hoje parte integrante dos estudos bíblicos e tais vias são aceitas como achegas hermenêuticas imprescindíveis.

Fonte: IHU On-Line 397 – Ano XII – 06.08.2012

 

Há alguns anos publiquei um artigo e um capítulo de um livro sobre a leitura sociológica e/ou socioantropológica da Bíblia. Aqui, quero apenas lembrar que do século XV ao século XVIII, acontecem dois deslocamentos no pensamento humano na Europa:

O primeiro é a passagem da especulação escolástica à filosofia da natureza. Esta, a natureza, passa a ser entendida e explicada experimentalmente. Este fenômeno se dá com a ascensão da burguesia, na forma de capitalismo mercantilista. É importante observarmos que Galileu (1564-1642) destrói a anterior concepção do universo como sistema imutável e hierarquizado, governado por Deus. Reduz o universo a um mundo geométrico, a uma física mecanicista.

O segundo deslocamento se dá quando se passa da análise da natureza para a análise da sociedade. Percebe-se, então, que a organização da sociedade não é natural, mas histórica. Questionam-se, filosoficamente, os fundamentos da sociedade, a partir da ótica da nova ordem burguesa. É uma crítica ao poder absoluto, no qual Deus criava, organizava e geria o mundo, através da Igreja e de suas leituras da realidade. É de se notar: Descartes (1596-1650) descobre o sujeito pensante autônomo, coloca a consciência como a medida e a forma do ser, marcando uma definitiva virada antropocêntrica.

Na questão da leitura da Bíblia dois nomes são importantes no século XVII:
. um racionalista: ESPINOSA (1632-1677)
. um empirista : HOBBES (1588-1679)

Ambos reivindicaram o uso da razão natural para uma correta interpretação dos textos, libertando-os de sentidos dogmatizantes pré-fixados pelos poderes dominantes.

Espinosa [=Spinoza], judeu, viveu  numa movimentada Holanda que tinha um Estado funda­do na liberdade burguesa, ou seja, liberdade de empresa e liberdade de consciência. Valorizava-se a atividade econômica e promovia-se a tolerância religiosa. A alta bur­guesia adotou o calvinismo liberal, contra o calvinismo ortodoxo – este condenava o desenvolvimento econômico como contrário à Bíblia -, adotado por todas as camadas prejudicadas com o desenvolvimento do mercantilismo.

No Tratado teológico-político – há cópias online –  escrito em 1665 e publicado em 1670, Espinosa inaugura o método histórico-crítico de leitura da Bíblia. Expõe-o no cap. VII e trata do Pentateuco no cap. VIII [cf. Tratado teológico-político. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008, 520 p. – ISBN 9788533624177].

O método histórico-crítico de Espinosa tem três princípios ou linhas de argumen­tação:
. a Bíblia não é um texto especulativo, mas religioso, moral e político
. a interpretação não deve ocupar-se com o problema da verdade e da racionalidade (no sentido metafísico, escolástico), pois não está lendo um texto especulativo, mas deve buscar o sentido dos relatos, compreendendo sua linguagem, as circunstâncias de sua ocorrência, seus personagens e seus destinatários
. o intérprete não pode buscar o sentido dos textos fora deles e não pode determinar tal sentido submetendo-os a critérios especulativos, metafísicos, escolásticos, mas precisa buscá-lo nos próprios textos bíblicos e no confronto entre eles para solucio­nar as dúvidas ou contradições.

A. LODS, Histoire de la litterature hébraique et juive: Des origines à la ruine de l’État juif (135 après J.-C.). Paris: Payot, 1950, p. 89-90 diz: “Se os resultados da exegese espinosista foram ultrapassados, o método não o foi. O TTP encerra o programa das ciências bíblicas tal como foi concebido e realizado pelo século XIX. Espinosa definiu o método dessas ciências: filológico, histórico e crítico. Distinguiu diferentes ramos: história da língua, história do texto, história do cânon, história da formação de cada livro, estudo das idéias dos diversos autores”.

Espinosa defende que o método hermenêutico para se ler a Bíblia deve seguir os mesmos princípios do método usado para o estudo da natureza: assim para interpre­tar a Bíblia é necessário se ter um conhecimento histórico exato dela para então se des­cobrir o pensamento de seus autores.

As dificuldades não estão no assunto, mas na língua hebraica em que o texto foi escrito. Por isso é preciso procurar o seu sentido no uso hebraico da língua hebraica.

Deve-se excluir o recurso à metáfora para conciliar razão e revelação, lendo o texto a partir de especulações exteriores ao próprio texto: Espinosa rejeita assim a leitu­ra escolástica e rejeita igualmente a leitura rabínica, pois critica o esclarecimento de um texto obscuro por outro que nada tem a ver com ele.

Por exemplo: Moisés diz que “Deus é um fogo” em Dt 4,24: “… pois teu Deus Iahweh é um fogo devorador…”. Ora, a metafísica dirá: como Deus é incorpóreo e a Bí­blia não pode conter falsidade, a fala mosaica é metafórica.

Mas, diz Espinosa, a fala mosaica é metafórica sim, só que não é por causa da especulação metafísica da incorporeidade de Deus. É que na própria afirmação hebrai­ca se sabe que “fogo” é metáfora de cólera e de ciúme. Assim, Moisés quer dizer que Deus é um deus ciumento e colérico!

No capítulo VIII do Tratado teológico-político, Espinosa mostra como Ibn Ezra, pensador judeu do século XII, já percebera que o Pentateuco não tinha sido escrito por Moisés. E Espinosa retoma seus argumentos e avança mais na mesma direção. Con­clui: “Por todas estas observações, surge mais claro que o dia que o Pentateuco não foi escrito por Moisés, mas por um outro que viveu muitos séculos depois de Moisés”. Ou ainda: “Ninguém tem fundamento para afirmar que Moisés é o autor do Pentateuco, mas, ao contrário, tal atribuição é desmentida pela razão”.

Um oportuno vocabulário de exegese bíblica

Acaba de ser publicado em português, pela Loyola, um oportuno vocabulário de exegese bíblica.

ALETTI, J.-N.; GILBERT, M.; SKA, J.-L.; DE VULPILLIÈRES, S. Vocabulário ponderado da exegese bíblica. São Paulo: Loyola, 2011, 184 p. – ISBN 9788515038565.

O original – Vocabulaire raisonné de l’exégèse biblique. Les mots, les approches, les auteurs – foi publicado em francês, em 2005, por Les Éditions du Cerf, Paris. A tradução brasileira é de Cássio Murilo Dias da Silva, que me enviou um exemplar. O livro está na coleção Ferramentas Bíblicas. A tradução brasileira foi revista e corrigida pelos autores, que fizeram pequenas modificações em relação às edições francesa e italiana.

Por que oportuno? Porque “este vocabulário apresenta uma exposição clara e rigorosa das palavras úteis ao estudo, à explicação ou à simples leitura dos textos bíblicos. Seu objetivo é facilitar a compreensão dos termos técnicos, dos conceitos fundamentais e, em geral, da linguagem referente à Bíblia”, explica a editora.

Se, ao ler um livro sobre Bíblia, você já se perguntou o que significam Sitz im Leben, etiologia, topos, Wirkungsgeschichte, New Criticism, apodítico, intertestamentário, pésher, semiótica, Formgeschichte, Hipótese Documentária… ou quem são estes tão citados autores alemães, franceses, ingleses e norte-americanos, como Julius Wellhausen, Martin Noth, G. von Rad, R. de Vaux, Charles H. Dodd, William F. Albright, Lagrange, A. Schweitzer, Rudolph Kittel, R. Bultmann, Tischendorf, Albrecht Alt… então este livro é para você!

O livro tem 4 partes e 4 anexos:

:: A primeira parte, escrita por Maurice Gilbert, traz uma apresentação estruturada dos livros da Bíblia e do cânon das Escrituras. Os livros da Bíblia são passados em revista e são apresentados: a sua transmissão, o cânon da Escritura, as línguas usadas, as diversas versões e manuscritos. O autor termina indicando as várias análises críticas aplicadas ao texto bíblico e oferece uma lista da literatura judaica e cristã não canônica.

:: A segunda parte, escrita por Jean-Louis Ska, trata da constituição da exegese moderna e da sua evolução. Apresenta o vocabulário da abordagem diacrônica ou histórico-crítica, seguindo a ordem alfabética.

:: A terceira parte, escrita por Jean-Noël Aletti, apresenta o vocabulário da exegese sincrônica, segundo as diversas análises: narrativa, retórica, epistolar, incluindo a literatura judaica e cristã e as cartas de Paulo.

:: A quarta parte, escrita por Sylvie de Vulpillières, oferece certo número de termos utilizados na análise literária em geral, bem como um breve vocabulário de termos hebraicos, gregos, ingleses e alemães, que um leitor pode encontrar em textos um pouco especializados.

Os anexos trazem:
:: Alguns grandes nomes da exegese
:: Abreviações dos livros do AT e do NT
:: Abreviações de títulos de livros, de coletâneas e de revistas frequentemente citados
:: Alguns livros sobre o vocabulário da exegese

Informações sobre o livro em francês e inglês, na página de Les Éditions Du Cerf, Paris:

L’objet du présent «Vocabulaire raisonné de l’exégèse biblique» est la présentation des mots utilisés dans l’analyse de la Bible.

Exégètes chevronnés et professeurs d’Écriture sainte, les auteurs le savent : la lecture d’une définition ne permet pas toujours de se faire une idée claire de la signification d’un mot. Aussi ont-ils choisi de présenter le vocabulaire de l’exégèse en incluant toute définition dans un discours suivi ou en l’accompagnant d’exemples : ainsi mis en rapport les uns avec les autres, les vocables techniques sont saisis en situation et dans leurs diverses acceptions. L’index final joue le rôle de dictionnaire.

Une première partie est consacrée à la présentation des livres de la Bible, à leur transmission, au canon de l’Écriture, aux langues, aux versions, aux manuscrits. L’auteur termine en indiquant les diverses analyses critiques appliquées au texte biblique et donne la liste de la littérature juive et chrétienne non canonique. La deuxième partie traite de la constitution de l’exégèse moderne et de son évolution. Elle donne le vocabulaire de l’approche diachronique ou historico-critique. Une troisième partie présente le vocabulaire de l’exégèse synchronique selon les différentes analyses : narrative, rhétorique, épistolaire, incluant la littérature juive et chrétienne et les lettres de Paul. Les termes fréquemment utilisés en analyse littéraire générale, les mots hébreux, grecs, anglais et allemands qu’un lecteur est amené à rencontrer, ainsi que « quelques grands noms de l’exégèse » sont listés dans la dernière partie.

The aim of this book is to present and explain the terms we use when analyzing the Bible. As experienced exegetes and teachers of the Holy Scriptures, the authors know that the reading of a definition does not always allow one to gain a clear idea of its signification. That is why they have chosen to explain the vocabulary of exegetics by presenting all the definitions in a logical discourse, or by providing examples. The technical terms are brought into relation with each other, shown in situ and in their different accepted usages. The final index provides a straightforward dictionary.

Part One is devoted to the books of the Bible, their transmission, the Scriptural canon, languages, different versions, manuscripts. The author concludes this part by listing the diverse critical analyses applied to Biblical texts and non-canonical Jewish and Christian literature. Part Two deals with the constitution and evolution of modern exegetics. Here, we find the lexical of the diachronic approach. Part three presents the vocabulary of synchronic exegetics according to different analyses – narrative, rhetorical and epistolary – taking in Jewish and Christian literature and the Epistles of St. Paul. The terms often used in the analyses of general literature; Hebrew, Greek, English and German words the reader may encounter, are listed in this final part, as well as some of the “great names” in exegetics.

A homenagem de Marcelo Barros a Carlos Mesters

Um bonito texto em homenagem a Carlos Mesters, escrito pelo biblista Marcelo Barros.

O artigo foi publicado na Adital em 02/08/2011. Reproduzido aqui a partir de  O Arcanjo no ar – ago 4, 2011.

A frágil flor que perfuma o mundo

Nos oitenta anos do irmão e mestre Carlos Mesters, doutor da fé bíblica para o mundo inteiro, certamente cabe a ele o título que ele deu às comunidades eclesiais de base no primeiro Encontro Intereclesial das CEBs em Vitória, ES em 1975. Se já naquela época elas eram mesmo como uma flor frágil que resiste às intempéries da vida, este aniversário de oitenta anos do frei Carlos é ocasião propícia para celebrarmos como o Espírito presenteou as Igrejas e o mundo dos pobres com a vida e a missão dele, flor frágil, mas muito resistente e que nunca deixou de transpirar e contaminar o universo com o perfume divino.

Atualmente, diversos fóruns mundiais de Teologia e Libertação, além de associações regionais de Teologia e Ciências da Religião espalham pelo continente e pelo mundo novas reflexões teológicas sobre a realidade e expressam novos desafios para uma reflexão de fé inserida nas melhores causas da humanidade e a partir da caminhada dos empobrecidos e excluídos do mundo. Apesar disso, em meios hierárquicos oficiais, há quem diga que a Teologia da Libertação morreu. De fato, alguns hierarcas baniram tanto os teólogos, como seus livros dos seminários e casas de formação oficiais. Ao fazer isso, pensaram decretar a morte da Teologia da Libertação. Entretanto, não podem dizer que a leitura bíblica que tem sustentado e dado força espiritual a este caminho teológico e pastoral esteja morta ou em decadência. Graças a Deus, ao menos na América Latina, vicejam muitas experiências de leitura bíblica a partir da caminhada do povo. Tanto as comunidades católicas, como evangélicas que se abriram a estas experiências novas sabem que entre os pioneiros deste tipo de leitura, o irmão que começou os círculos bíblicos e espalhou por todo o continente e por outros países do mundo esta nova forma de ler a Palavra de Deus foi o frei Carlos Mesters.

Conheci Carlos em 1977, quando comecei a fazer parte do secretariado nacional da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e fui encarregado de escrever um livro sobre “A Bíblia e a Luta pela Terra”. Procurei o frei Carlos Mesters para me situar no que estava sendo pensado, na linha de uma leitura bíblica a partir do povo. Ele me recebeu e me deu uma ajuda inestimável. Desde então, nos tornamos amigos e companheiros de caminho. Quando, em 1979, ele e outros companheiros e companheiras fundaram o CEBI (Centro de Estudos Bíblicos), embora não pude assinar a ata de fundação, fui dos primeiros que participei do Conselho do CEBI e da sua equipe de assessores.

Naqueles anos, vivi uma cena esclarecedora. Em uma livraria católica, um padre tomou nas mãos um dos muitos livros de Carlos Mesters e perguntou: – Este livro é de Exegese, de Teologia Bíblica ou só tem sermões de espiritualidade?

Na época, esta divisão rígida e acadêmica separava a reflexão racional e a prática litúrgica e devocional das Igrejas. Carlos Mesters e, a partir dele, os irmãos e irmãs que fazem o Centro de Estudos Bíblicos (CEBI) derrubaram os muros que dividiam estes diversos campos do conhecimento bíblico. Fizeram uma boa síntese entre um estudo crítico e mesmo científico da Bíblia e uma leitura pastoral e militante, construída a partir da causa dos pobres. Desde então, se espalham por todo o país propostas diversas de leitura bíblica e muitas procuram unir os dados da ciência com a preocupação pastoral de partir da realidade do povo. Carlos Mesters é o pioneiro deste novo caminho teológico e espiritual.

Sem pretender sintetizar toda a riqueza do ensinamento de Carlos Mesters para a leitura bíblica latino-americana, aqui tentarei recordar apenas três elementos entre os muitos outros que podemos descobrir na sua forma de viver a espiritualidade bíblica e de como ele nos comunica a fé e a atualidade da palavra profética.

1 – O primeiro livro da revelação divina: a Vida

Foi uma das primeiras intuições de Carlos Mesters. Em seu Tratado sobre a Trindade, Santo Agostinho escreveu que, antes de inspirar a Bíblia, Deus tinha escrito um primeiro livro para se revelar a nós: a própria vida e a história da humanidade. Desde cedo, Carlos percebeu que a Bíblia é mais corretamente compreendida quando quem deseja aprendê-la procura antes compreender o próprio mistério da vida. Quem tem o privilégio de conviver com Carlos Mesters sabe como ele é aberto e sensível às relações de amizade, à sensibilidade com a justiça e à beleza da arte. Tudo ele capta e transforma em parábolas e histórias que nos ajudam a compreender a vida. Desde jovem, inseriu-se na convivência com as pessoas pobres. Isso lhe dá a capacidade de explicar os mistérios mais sublimes da revelação, com imagens simples do dia a dia. A beleza da chuva encharcando um terreno lhe possibilita explicar como a palavra bíblica vem do céu e, ao mesmo tempo, surge do chão da vida. A arte da fotografia e a ciência da radiografia o ajudaram a distinguir e comparar os evangelhos sinóticos com o texto joanino. Se Carlos Mesters resolvesse escrever todas as parábolas da vida que ele criou e contou, no decorrer destes anos, desde que começou em Belo Horizonte (no começo dos anos 70) os Círculos Bíblicos, como diz o evangelho: “nem todos os livros do mundo poderiam conter”.

Ler os livros do frei Carlos é sempre uma experiência espiritual porque, ao mesmo tempo que elabora seus livros com o conhecimento crítico mais atualizado, ele mantém sempre o estilo simples e comunicativo que aprendeu do povo. Ao mesmo tempo que revela, deixa algo para que a pessoa que lê possa aprofundar e concluir.

Sua relação com Deus que, muito discretamente, ele partilha conosco, me recorda sempre uma música que Maria Bethânia cantava em seu primeiro show (Rosa dos Ventos, 1970). A música inglesa do século XIX tem uma letra inspirada no poeta Fernando Pessoa que Carlos conhece e do qual gosta muito. A canção “Doce Mistério da Vida” fala do amor romântico, mas nos parece muito com o Cântico dos Cânticos. Assim como o poema bíblico, estes versos podem ter muitos sentidos, inclusive o de fazer da paixão humana sacramento da relação íntima com o Espírito. Por vários motivos, esta música na linha da balada romântica me lembra o amigo Carlos e seu jeito de viver a fé. A letra diz assim:

“Minha vida que parece muito calma
Tem segredos que eu não posso revelar,
Escondidas bem no fundo de minh´alma,
Não transparecem, nem sequer em um olhar.
Vive sempre conversando a sós comigo,
Uma voz que eu escuto com fervor,
Escolheu meu coração pra seu abrigo
E dele fez um roseiral em flor.
A ninguém revelarei o meu segredo,
E nem direi quem é o meu amor”.

2 – A dimensão subversiva da fé bíblica

Poucos anos depois que o CEBI começou sua missão de animar grupos de estudo e prestar assessoria bíblica aos diversos movimentos de pastoral popular, setores conservadores acusaram Carlos Mesters de fazer leitura bíblica redutiva e tendenciosamente política. Apesar de que os textos do frei Carlos nunca incitaram à luta de classes ou à violência, pelo fato dele interpretar a Bíblia, ligada à vida e à causa dos mais empobrecidos, está tomando posição política e contribui para a transformação do mundo. O CEBI começou a fazer isso em um tempo no qual as comunidades cristãs aprendiam a fazer análise social e a aprofundar o método pedagógico de Paulo Freire. Era comum se falar e buscar o que seria a “conscientização”. Sempre insistindo em fazer uma leitura de fé e contextual, o CEBI proporcionou um método de ler a Bíblia que se uniu neste caminho. Outros companheiros e companheiras desenvolveram mais a atenção para as dimensões sociais e políticas da leitura bíblica. Alguns procuravam sempre interpretar os textos bíblicos a partir das quatro “pernas” da mesa: a dimensão econômica, a social, a cultural e a religiosa. Carlos se inseriu neste diálogo com sua sensibilidade própria. Sempre mostrou que as coisas não podem ser isoladas uma da outra. A vida é sempre mais rica e diversificada do que nossos modelos intelectuais. Alguns exegetas europeus divulgavam o que chamaram de “Leitura Materialista da Bíblia”. Frei Carlos procurou ir além destes esquemas que algumas vezes podem ser muito estreitos. Sem relativizar ou diminuir a importância destas dimensões (social, política e econômica), Carlos nos ensinou a compreender a Bíblia a partir de um triângulo que se tornou famoso em seus cursos: texto, contexto e pré-texto. A leitura do texto pede o cuidado de uma boa compreensão dos termos e uma tradução que seja fiel e clara. O contexto é histórico, social e também literário. O pré-texto é a realidade da comunidade que está lendo o texto e as perguntas que a comunidade ou pessoa faz à Escritura. A preocupação com a realidade aparece no começo da maioria dos roteiros que ele fez para os círculos bíblicos e é elemento fundamental de sua espiritualidade social e política.

Com a sua sensibilidade, unindo profundo e raro conhecimento da ciência exegética com a cultura do povo simples, frei Carlos contribuiu muito com os encontros inter-eclesiais de CEBs, elaborou bons materiais didáticos para a pastoral indígena, pastoral da terra, ação católica operária, comunidades afro-descendentes e no diálogo com as teólogas que nos ensinaram a ler a Bíblia a partir de olhos femininos. Seus livros, aparentemente escritos como introdução aos textos e dirigidos às pessoas simples, são sempre úteis mesmo para quem estuda e aprofunda o assunto.

3 – A leitura pluralista e ecumênica da Bíblia

O amor à Bíblia sempre foi um elemento que uniu os cristãos das diversas Igrejas e possibilitou um contato e colaboração entre eles. Até os anos 70, era comum se dizer que “a Bíblia fechada une católicos e evangélicos. A Bíblia aberta (isto é interpretada) os separa”. Com sua experiência nos Círculos Bíblicos e no CEBI, experiência de quase meio século, Carlos Mesters mostra que isso pode não ser assim. De fato, seu jeito de ser aberto a todos, afável e acolhedor, sempre o aproximou de irmãos e irmãs de outras Igrejas, sedentos de uma leitura bíblica, densa de conteúdo, séria e mais próxima da realidade, ou seja, comprometida com as mudanças sociais.

O CEBI foi fundado com uma profunda vocação ecumênica. Na época se discutiu até se deveria ser chamado “Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos”. Concordamos que ele poderia ser até mais aberto à participação de cristãos de várias Igrejas, sem o título de ecumênico, que ainda assustava alguns setores eclesiais. Na ata da fundação do CEBI, constam nomes de alguns irmãos evangélicos, amigos do frei Carlos. Desde então, em todos os encontros, assembléias e atividades, sempre houve a preocupação de contribuir com o diálogo ecumênico e aprender com a colaboração de crentes de várias confissões.

Em um documento de preparação para o Diretório Ecumênico Mundial, em 1969, a CNBB fazia uma distinção importante entre Pastoral Ecumênica(trabalho que une cristãos de Igrejas diferentes) e o que então se chamou Ecumenismo da Pastoral. Chamava-se assim o esforço de dar a todo o conjunto da pastoral uma dimensão de fé e abertura ecumênica. Isso quer dizer que, mesmo em atividades cotidianas e quando não há a presença de ninguém de outra Igreja, somos chamados a viver a ecumenicidade da fé e do modo de ser cristãos. Sem este cuidado permanente e profundo de ser ecumênicos, seja quando celebramos a eucaristia, seja quando explicamos a fé para uma criança, a própria pastoral ecumênica seria superficial e sem bases. A leitura da Bíblia é um dos mais importantes pólos ou raízes deste Ecumenismo da Pastoral. A leitura bíblica deve ser sempre ecumênica, não tanto por ser inter-confessional (o que nem sempre é ou consegue ser), mas por ser amorosa e acolhedora ao outro e ao diferente.

Sem dúvida, desde o início do CEBI, o estilo humano e a espiritualidade sempre aberta do frei Carlos nortearam o modo de se ler a Bíblia nesta dimensão. Além disso, o amor e a abertura para as culturas oprimidas, como as negras e indígenas, levou este trabalho de investigação e interpretação bíblica a uma dimensão não só interconfessional cristã, mas também macro-ecumênica, intercultural e interreligiosa.

Nos anos 90, Frei Carlos participou do livro que preparava o tema para um dos grandes encontros intereclesiais de CEBs. Como o encontro era em uma cidade na qual a população negra e a presença dos cultos afro-descendentes são fortes, o frei Carlos contava uma parábola. Dizia que Jesus visitou o templo de um culto afro, achou tudo muito bonito e saiu dizendo que Deus está presente e atuante ali. Um grupo de movimento leigo católico conservador protestou junto aos bispos contra o texto escrito por Carlos. Este assunto rendeu certa polêmica, mas, ao mesmo tempo, ajudou muitos irmãos e irmãs a descobrirem que “Deus não assinou contrato de exclusividade com ninguém. Nenhum grupo ou Igreja é dono de Deus, ou seu representante único e exclusivo”.

Atualmente, um dos maiores desafios para a nossa fé e para a teologia cristã é repensar a espiritualidade e a forma de expressar a fé não mais a partir de modelos exclusivistas ou ainda hegemônicamente cristãos e sim no mundo pluralista e no qual as diversas culturas e diferentes religiões devem colaborar para a paz e a justiça, assim como aprenderem umas com as outras a viverem a intimidade com o Mistério e servirem à humanidade e à defesa da natureza ameaçada.

Neste caminho, comumente, precisamos de estudar e aprofundar para sermos capazes de fazer frente a este desafio tão grande. Na relação com frei Carlos Mesters, tenho sempre a impressão de que isso que para nós é fruto de um esforço e resultado de muito aprofundamento, nele é quase natural. Vem do seu jeito simples e aberto de homem de Deus, parecido com Jesus Cristo, irmão de coração e espírito universal.

4 – Oitenta anos de um menino embriagado de Deus

Sem dúvida, a qualquer pessoa que tem contato com Carlos Mesters, um elemento de sua pessoa e do seu jeito de ser que nos impressiona sempre é a jovialidade. Isso é tanto assim que chega a nos espantar quando alguém diz que, de fato, ele está completando 80 anos. Como espantou muita gente quando soube que ele esteve doente. Ele é destas pessoas que parece sempre jovem e brincando com sua saúde. Há anos e anos, vive uma vida peregrina de missionário por todos os recantos do mundo, encantando as pessoas com sua sabedoria e sua arte poética de falar de Deus e da Bíblia como quem apresenta as pessoas a quem mais se ama. Aliás, entre o Deus bíblico e Carlos Mesters se estabeleceu uma intimidade que já tem tantos anos que parece estes casamentos entre homem e mulher de idade avançada. De tanto conviver, marido e esposa começam a se parecer cada vez mais um com o outro. Isso é bom para nós. É como se nos 80 anos do frei Carlos, fôssemos nós, seus irmãos, irmãs e amigos/as que ganhássemos o maior presente: poder contemplar na pessoa e na vida dele o rosto humano do divino. Ad multos annos, meu irmão e amigo.

A Bíblia serve só para rezar? Novo livro do Cássio

Acabo de receber pelo correio, enviado de Campinas por meu amigo e colega Cássio Murilo Dias da Silva, mais dois livros recém-lançados pela Loyola:

DIAS DA SILVA, C. M. A Bíblia não serve só para rezar. São Paulo: Loyola, 2011, 136 p. – ISBN 9788515038107

CONYBEARE, F. C., STOCK, St. G. (Editado em português por CÁSSIO MURILO DIAS DA SILVA) Gramática do grego da Septuaginta. São Paulo: Loyola, 2011, 104 p. – ISBN 9788515037964

 

Apresento aqui o primeiro. Em outra postagem, o segundo.

– A Bíblia não serve só para rezar!
– Mas então serve para quê?…

Assim começa o prefácio escrito por Cássio. Que, em seguida, explica:

Quem faz este tipo de pergunta após aquela afirmação inicial demonstra que não entendeu o que é afirmado. É claro que a Bíblia serve para rezar; mas não serve  para rezar. O livro em que a Palavra de Deus está escrita e disponível a todos é bem mais do que um livro devocional. Foi o próprio Deus quem assim o quis. Por isso, reduzir a Bíblia a um tesouro de orações, conselhos e provas doutrinais equivale a desprezar o dom das Sagradas Escrituras e, por conseguinte, posicionar-se contra a vontade do autor do dom. É necessário também chamar a atenção para o perigo de crer que, para compreender os textos bíblicos, basta a oração. Não! Só rezar não resolve! Sem negar a ação do Espírito Santo, é necessário dizer: mesmo no caso de textos mais simples, se o leitor confiar unicamente na sua oração para compreendê-los, deixará de colher grande parte da riqueza da Palavra de Deus. Não é difícil perceber que essas duas posturas conduzem a um círculo vicioso: a Bíblia serve para rezar, é necessário rezar para compreender a Bíblia. Ou, em outras palavras, para ler/compreender mais a Bíblia é necessário rezar, e para rezar é necessário ler/compreender mais a Bíblia! Ora, este circulo vicioso demonstra sua caducidade diante de textos complexos que demonstram que a Bíblia é muito mais do que um ramalhete espiritual (…) Este opúsculo tem a finalidade de alargar os horizontes daqueles que amam a Palavra de Deus e sentem a necessidade de aprender mais, para aumentar ainda mais este amor que sentem por ela. Assim, cumpre-se o velho ditado: “amar para conhecer, conhecer para amar”. Outra finalidade é tranquilizar os que não se contentam com a leitura orante da Escritura e sofrem por pelo menos uma das consequências deste descontentamento: não se sentem acolhidos em suas comunidades, têm embutido em suas consciências o medo de questionar o texto sagrado, temem perder a fé, sentem-se os únicos no mundo a pensar o que pensam. Para estes “insatisfeitos”, este livro mostrará como é bom e desejado por Deus levantar voo e ler a Bíblia com olhos mais curiosos e críticos. Enfim, como não poderia deixar de ser, este livro também quer estender a mão para os que olham a Bíblia com desconfiança e até mesmo a desprezam, exatamente porque pensam que a Bíblia seja o que ela não é: um livro que serve só para alimentar a religiosidade de pessoas devotas. Nas páginas a seguir, quem ainda não se interessa pela Bíblia encontrará muitas razões para lhe dar mais atenção… (p. 11-13)

A apresentação do livro, que saiu na Coleção FAJE da Loyola, é feita por Johan Konings, que diz nas p. 9-10:

O exegeta se mostra mestre e pastor, mestre para os estudantes de teologia e pastoral, pastor para os cristãos que querem ler a Bíblia de modo inteligente, valorizando os dons intelectuais que Deus lhes deu (…) O livro se caracteriza, assim, por sua praticidade. Escrito em linguagem muito acessível, sem academicismo obsessivo, será de proveito tanto para seminários e escolas teológicas quanto para grupos de estudo de cristãos leigos, formação de agentes pastorais…

São seis capítulos:
1. Fundamentalismo
2. Inspiração e revelação
3. Uma Bíblia, muitas leituras
4. Não existe receita pronta
5. Leitura litúrgica
6. Leitura catequética
Posfácio [a estrutura tripartida da Verbum Domini] Bibliografia

 

Cássio Murilo Dias da Silva, de Jundiaí, SP, é Doutor em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma. Lecionou na Faculdade de Teologia da PUC-Campinas e no Mosteiro de São Bento em São Paulo e atualmente [2019] está na PUC-RS. É autor de vários livros e artigos, dentre eles: Aquele que manda a chuva sobre a face da Terra (Loyola); Metodologia de exegese bíblica (Paulinas); Leia a Bíblia como literatura (Loyola). Faz parte do grupo dos Biblistas Mineiros e alguns de seus artigos podem ser lidos na revista Estudos Bíblicos, da Vozes.

Estudo do Cássio sobre a Verbum Domini

Em 2008, aconteceu em Roma a 12ª Assembleia Geral e Ordinária do Sínodo dos Bispos, cujo tema foi “A Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja”. Os Padres Sinodais encaminharam ao Papa Bento XVI cinquenta e cinco proposições, que redundaram na Exortação Apostólica Pós-Sinodal Verbum Domini (“A Palavra do Senhor”), lançada em 2010.

Em janeiro de 2011 Cássio Murilo Dias da Silva fez um estudo sobre o documento e agora o disponibilizou para download no Observatório Bíblico.

Clique no link a seguir e faça o download do texto, que está em formato pdf e tem 5 páginas.

A Exortação Apostólica Verbum Domini

Introdução à S. Escritura 2011: métodos de leitura

A Introdução à S. Escritura compreende 2 horas semanais, no primeiro semestre de Teologia. Mais do que estudar o surgimento e o conteúdo dos vários livros bíblicos, a disciplina é voltada para a compreensão/ apreensão de alguns métodos de leitura dos textos bíblicos. Esta opção se justifica, pois a introdução a cada um dos livros é feita a partir das disciplinas que abordam áreas específicas da Bíblia ao longo do curso de Teologia.

Um dos problemas típicos desta disciplina é a carga horária exígua que lhe é, em geral, atribuída. Até porque, ao tomar contato com a moderna metodologia de abordagem dos textos bíblicos, a desmontagem de noções ingênuas adquiridas na educação anterior e a dificuldade em abandonar certezas que beiram o fundamentalismo requerem tempo e paciência. Além disso, conseguir a convivência da criticidade que se vai progressivamente adquirindo em sala de aula com as necessidades pastorais dos envolvidos no processo de aprendizagem, exige a construção de uma linguagem hermenêutica adequada, outra questão espinhosa.

Por isso, uma tarefa que se impõe a quem se envereda por esse caminho, é a comparação e o confronto da teoria exegética crítica com as leituras cotidianas e costumeiras da Bíblia. Isto é feito pelos alunos, que coletam e analisam os dados necessários.

Costumo orientar este processo através de uma série de questões que são propostas para a análise de uma leitura bíblica feita no ambiente pastoral dos estudantes.

I. Ementa
A disciplina privilegia o nascimento e a estruturação dos vários métodos de leitura da Sagrada Escritura, especialmente os modernos métodos histórico-críticos, sócio-antropológicos e populares.

II. Objetivos
Possibilita ao aluno a visualização das diversas problemáticas envolvidas na abordagem dos textos bíblicos no contexto e no pensamento contemporâneos.

III. Conteúdo Programático

1. A leitura histórico-crítica
:: A crítica textual
:: A crítica literária
:: A crítica das formas
:: A história da redação
:: A história da tradição

2. A leitura socioantropológica
:: Por que uma leitura socioantropológica da Bíblia?
:: Origem e características do discurso sociológico
:: Origem e características do discurso antropológico
:: A Bíblia e a leitura socioantropológica
:: Algumas dificuldades da leitura socioantropológica

3. A leitura popular
:: Ler a vida com a ajuda da Bíblia
:: A opção pelos pobres
:: Da Bíblia à Sociedade: passagem para o Político

4. Oficina bíblica: leitura de textos selecionados
:: Mc 6,30-44: a primeira multiplicação dos pães
:: Lc 3,21-22: o batismo de Jesus
:: Mt 2,1-12: a visita dos magos
:: Jo 2,1-12: as bodas de Caná

IV. Bibliografia
Básica
DIAS DA SILVA, C. M. Leia a Bíblia como literatura. São Paulo: Loyola, 2007, 104 p. – ISBN 9788515033072.

MESTERS, C. Flor sem defesa: uma explicação da Bíblia a partir do povo. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 1999, 206 p.

ZENGER, E. et al. Introdução ao Antigo Testamento. São Paulo: Loyola, 2003, 560 p. – ISBN 9788515023288.

Complementar
ALAND, K. et al. O Novo Testamento Grego. Quarta edição revisada com introdução em português e dicionário grego-português. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 2009, 1040 p. – ISBN 9783438051516.

ALMADA, S. (org.) Interpretação Bíblica em Busca de Sentido e Compromisso. Diversas aproximações ao texto de Lucas 1-2: Caleidoscópio de métodos, exegese e hermenêutica. RIBLA, Petrópolis, n. 53, 2006/1.

BUSHELL, M. BibleWorks 8. Norfolk, VA: BibleWorks, 2008 (software para o estudo da Bíblia). Acesso em: 11 janeiro 2011.

CARTER, C. E.; MEYERS, C. L. (eds.) Community, Identity and Ideology: Social-Scientific Approaches to the Hebrew Bible. Winona Lake, IN: Eisenbrauns, 1996, 574 p. – ISBN 9781575060057.

CHALCRAFT, D. J. (ed.) Social-Scientific Old Testament Criticism. London: T & T Clark, 2006, 400 p. – ISBN 9780567040848

DA SILVA, A. J. A visita dos magos: Mt 2,1-12. Acesso em: 11 janeiro 2011.

DA SILVA, A. J. Leitura socioantropológica da Bíblia Hebraica. Acesso em: 11 janeiro 2011

DA SILVA, A. J. Leitura socioantropológica do Novo Testamento. Acesso em: 11 janeiro 2011

DA SILVA, A. J. Notas sobre alguns aspectos da leitura da Bíblia no Brasil hoje. REB, Petrópolis, v. 50, n. 197, p. 117-137, mar. 1990. Acesso em: 11 janeiro 2011.

DA SILVA, A. J. O discurso socioantropológico: origem e desenvolvimento. Acesso em: 11 janeiro 2011

DA SILVA, A. J. Por que milagres? O caso da multiplicação dos pães. Estudos Bíblicos, Petrópolis, n. 22, 1989, p. 43-53.

DE OLIVEIRA, E. M. et al. Métodos para ler a Bíblia. Estudos Bíblicos, Petrópolis, n. 32, 1991.

DIAS DA SILVA, C. M. Aprenda a ler o Antigo Testamento. São Paulo, 2010, 12 p. Publicado no Observatório Bíblico em 26 de setembro de 2010 (pdf).

DIAS DA SILVA, C. M. com a colaboração de especialistas, Metodologia de Exegese Bíblica. 3. ed. São Paulo: Paulinas, 2009, 526 p. – ISBN 8535606432.

EGGER, W. Metodologia do Novo Testamento: Introdução aos Métodos Linguísticos e Histórico-Críticos. São Paulo: Loyola, 1994, 238 p. – ISBN 9788515010561.

ELLIGER, K.; RUDOLPH, W. Biblia Hebraica Stuttgartensia. 5. ed. Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft, [1967/1977], 1997, lviii + 1574 p. – ISBN 9783438052193.Cf. também a Biblia Hebraica Quinta.

ELLIOT, J. H. What is Social-Scientific Criticism? Minneapolis: Augsburg Fortress, [1993] 2009, 174 p. – ISBN 9780800626785.

ESLER, P. F. (ed.) Ancient Israel: The Old Testament in Its Social Context. Minneapolis: Fortress, 2005. xvii + 420 p. – ISBN 0800637674.

HULL, R. F. Jr. The Story of the New Testament Text: Movers, Materials, Motives, Methods, and Models. Atlanta: Society of Biblical Literature, 2010, 244 p. – ISBN 9781589835207.

KONINGS, J.; RIBEIRO, S. H. et al. Bíblia: Teoria e Prática. Leituras de Rute. Estudos Bíblicos, Petrópolis, n. 98, 2008.

KONINGS, J. Sinopse dos evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas e da Fonte Q. São Paulo: Loyola, 2005, 360 p. – ISBN 9788515030569.

PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA A Interpretação da Bíblia na Igreja. 8. ed. São Paulo: Paulinas, 2009. Disponível online no site do Vaticano. Acesso em: 11 janeiro 2011.

POWELL, M. A. Introducing the New Testament: A Historical, Literary and Theological Survey. Grand Rapids, MI: Baker Academic, 2009, 560 p. – ISBN 9780801028687.

REIMER, H.; DA SILVA, V. (orgs.) Hermenêuticas Bíblicas: Contribuições ao I Congresso Brasileiro de Pesquisa Bíblica. São Leopoldo: Oikos Editora/UCG/ABIB, 2006, 252 p.

REIMER, I. R.; SCHWANTES, M. (org.) Leituras Bíblicas Latino-Americanas e Caribenhas. RIBLA, Petrópolis, n. 50, 2005/1.

ROHRBAUGH, R. L. (ed.) The Social Sciences and New Testament Interpretation. Peabody, Mass: Hendrickson, 2004, 240 p. – ISBN 9781565634107.

SCHNELLE, U. Introdução à exegese do Novo Testamento. São Paulo: Loyola, 2004, 192 p. – ISBN 9788515024919.

SIMIAN-YOFRE, H. (ed.) Metodologia do Antigo Testamento. São Paulo: Loyola, 2000, 200 p. – ISBN 9788515018499.

TATE, W. R. Interpreting the Bible: A Handbook of Terms and Methods. Peabody, Mass.: Hendrickson, 2006, viii + 482 p. – ISBN 9781565635159.

TREBOLLE BARRERA, J. A Bíblia Judaica e a Bíblia Cristã. Introdução à História da Bíblia. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2000, 741 p. – ISBN 8532614370.

WEGNER, U. Exegese do Novo Testamento: Manual de Metodologia. 3. ed. São Leopoldo: Sinodal/Paulus, 2002, 407 p. – ISBN 852330598X.

Leia Mais:
Preparando meus programas de aula para 2011
História de Israel 2011: o pouco que sabemos
Pentateuco 2011: ainda sem um novo consenso
Literatura Deuteronomista 2011: o desafio
Literatura Profética 2011: a voz necessária
Literatura Pós-Exílica 2011: tempo sem fronteiras

Preparando meus programas de aula para 2011

Estou, nestes dias, preparando meus programas de aula de Bíblia para 2011. Começo a publicá-los no Observatório Bíblico. A intenção é de que possam servir, para além de meus alunos, a outras pessoas que, eventualmente, queiram ter uma noção de como se estuda a Bíblia em determinadas Faculdades de Teologia. Ou, pelo menos, parte da Bíblia, porque posso expor apenas os programas das disciplinas que leciono. Tomo aqui como referência o currículo do CEARP, onde trabalho. Já fiz isso em 2006 e em 2009, mas a bibliografia vai mudando…

Quatro elementos serão levados em conta, em uma leitura da Bíblia que eu chamaria de sócio-histórica-redacional:

:: contextos da época bíblica
:: produção dos textos bíblicos
:: contextos atuais
:: leitores atuais dos textos

O sentido da Escritura, segundo este modelo, não está nem no nível dos contextos da época bíblica e/ou dos contextos atuais, nem no nível dos textos bíblicos ou da vivência dos leitores, mas na articulação que se forma entre a relação dos textos bíblicos com os seus contextos, por um lado, e entre os leitores atuais e seus contextos específicos.

Ou seja: “Da Escritura não se esperam fórmulas a ‘copiar’, ou técnicas a ‘aplicar’. O que ela pode nos oferecer é antes algo como orientações, modelos, tipos, diretivas, princípios, inspirações, enfim, elementos que nos permitam adquirir, por nós mesmos, uma ‘competência hermenêutica’, dando-nos a possibilidade de julgar por nós mesmos, ‘segundo o senso do Cristo’, ou ‘de acordo com o Espírito’, das situações novas e imprevistas com as quais somos continuamente confrontados. As Escrituras cristãs não nos oferecem um was, mas um wie: uma maneira, um estilo, um espírito. Tal comportamento hermenêutico se situa a igual distância tanto da metafísica do sentido (positivismo) quanto da pletora das significações (biscateação). Ele nos dá a chance de jogar a sério o círculo hermenêutico, pois que é somente neste e por este jogo que o sentido pode despertar” explica BOFF, C. Teologia e Prática: Teologia do Político e suas mediações. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1993, p. 266-267.

As disciplinas de Bíblia no curso de graduação em Teologia podem, segundo este modelo, ser classificadas em três áreas:

1. Disciplinas Contextuais:
:: História de Israel (alternativa: História da época do Antigo Testamento e História da época do Novo Testamento)

2. Disciplinas Instrumentais:
:: Introdução à S. Escritura (alternativa: Métodos de leitura dos textos bíblicos)
:: Língua Hebraica Bíblica
:: Língua Grega Bíblica

3. Disciplinas Exegéticas:
:: Pentateuco
:: Literatura Profética
:: Literatura Deuteronomista
:: Literatura Sapiencial
:: Literatura Pós-Exílica
:: Literatura Sinótica e Atos
:: Literatura Paulina
:: Literatura Joanina
:: Apocalipse

——————————–
Destas disciplinas, leciono:

No primeiro semestre:
:: História de Israel: 4 hs/sem.
:: Introdução à S. Escritura: 2 hs/sem.
:: Literatura Profética: 4 hs/sem.
:: Literatura Deuteronomista: 2 hs/sem.

No segundo semestre:
:: Pentateuco: 4 hs/sem.
:: Literatura Pós-Exílica: 4 hs/sem.

Leia Mais:
Introdução à S. Escritura 2011: métodos de leitura
História de Israel 2011: o pouco que sabemos
Pentateuco 2011: ainda sem um novo consenso
Literatura Deuteronomista 2011: o desafio
Literatura Profética 2011: a voz necessária
Literatura Pós-Exílica 2011: tempo sem fronteiras

Avalos responde a seus críticos

O debate sobre a relevância ou não dos estudos bíblicos e como eles deveriam ser feitos na atualidade dá mais um passo com um texto de Hector Avalos em The Bible and Interpretation:

Six Anti-Secularist Themes: Deconstructing Religionist Rhetorical Weaponry

Diz Avalos:

Here, I concentrate on the rhetorical weapons that are being deployed by religionist biblical scholars against efforts to reform the field of biblical studies so that it might function like all other fields in modern academia—a completely secular enterprise with methodological naturalism at its core (…) Contrary to the objections expressed by many of my opponents, I am trying to save biblical studies in public academia, but saving it requires a thorough reorientation and secularization. Faith-based approaches in biblical studies need to realize that their days in public academia are numbered if they don’t fully integrate with the approaches we find in the rest of the Humanities and Social Sciences.

Ou seja:
Avalos diz que aqui ele se concentra em rebater estudiosos defensores da manutenção do aspecto religioso (ou seria teológico?) nos estudos bíblicos e que lutam contra seus esforços para reestruturar o campo nos moldes dos campos de pesquisa das Ciências Humanas e Sociais na academia moderna. Em síntese: Avalos propõe uma urgente secularização dos estudos acadêmicos da Bíblia em escolas públicas, não-confessionais.

O leitor já deve ter percebido que, para além da retórica que parece colocar em confronto religião x secularização, trata-se de uma discussão sobre metodologia – possivelmente não só, mas principalmente. Metodologia que, é claro, sendo desenvolvida por pessoas concretas em contextos políticos e sociais diferentes, envolve e carrega consigo opções anteriores. As escolhas éticas precedem, queiramos ou não, o método. Em qualquer campo científico.

No meu entender, nenhum método é apolítico, assim como nenhum exegeta o é.

I argue that there is no apolitical method, just as there is no apolitical biblical scholar.

Roland Boer: considerações sobre o debate Lemche-Avalos

O debate entre Lemche e Avalos sobre a relevância ou não dos estudos bíblicos na atualidade, mencionado aqui no blog, continua.

Agora, com a contribuição de Roland Boer, na mesma The Bible and Interpretation, em novembro, com o ensaio:

Elitism, Colonialism, and the Independence of Biblical Studies: Reflections on the Lemche-Avalos Debate

Roland Boer é o organizador do livro Secularism and Biblical Studies. London: Equinox Publishing, 2010, 224 p. – ISBN 9781845533755, que reacendeu o debate.

Ele diz:

Lemche asserts, without evidence, that the Bible is increasingly important in our modern world. Avalos, by contrast, is caught: on the one hand, he argues that the Bible is increasingly irrelevant, but on the other, he argues that the Bible is a dangerous book, so much so that its influence should be eliminated from our world. Both are correct, but not in ways they would expect.

Tim Bulkeley: estudos bíblicos, uma disciplina dividida

O debate entre Lemche e Avalos sobre a relevância ou não dos estudos bíblicos na atualidade, mencionado aqui no blog, continua.

Agora, com a contribuição de Tim Bulkeley, na mesma The Bible and Interpretation, em novembro, com o ensaio:

The End of Scripture and/or Biblical Studies

Seu parágrafo final diz:

What is needed is a frank recognition that there are two (related but different) disciplines studying the biblical texts. Then their practitioners need to identify more clearly what they do similarly and what they do differently. In such an environment, discussion of whether any, all, or no religious study of Scripture is scholarly might be possible without a slinging match. But that, of course, is not the world we live in, so we will no doubt continue to read abusive missives aimed from one set of trenches to another in the religious, as in the historical, wars.