Os instrumentos da helenização

Os instrumentos da helenização. Estudos Bíblicos, Petrópolis, n. 61, p. 23-37, 1999.

 

“Verificou-se desse modo, tal ardor de helenismo e tão ampla difusão de costumes estrangeiros (…) que os próprios sacerdotes já não se mostravam interessados nas liturgias do altar” (2Mc 4,13a.14a).

 

A chegada dos poderosos exércitos macedônios com Alexandre Magno em 332 a.C., mas, principalmente, as várias guerras travadas por seus sucessores na regiões da Síria e da Palestina constituem, sem dúvida, eficaz elemento de helenização das populações locais. A fundação de novas cidades ou a transformação de várias cidades orientais em póleis constituem outro mecanismo fundamental de mudança de mentalidade e estilo de vida. Nas cidades, a língua grega que se difunde sempre mais e a educação aristocrática desenvolvida nos ginásios completam este quadro de transformação social, levando à assimilação de grandes camadas da população à nova realidade.

O assunto deste artigo é este: verificar como os vários mecanismos da sociedade e da cultura grega carreiam para a Palestina os valores do dominador estrangeiro.

Uma versão ampliada deste artigo foi publicada na Ayrton’s Biblical Page. A bibliografia foi atualizada em 2015. Continue a leitura clicando aqui.

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Resenhas na RBL – 06.02.2015

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Resenhas na RBL – 30.01.2015

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NIV Greek and English New Testament
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The Blessing of Abraham, the Spirit, and Justification in Galatians: Their Relationship and Significance for Understanding Paul’s Theology
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George Lyons
Galatians: A Commentary in the Wesleyan Tradition
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Enciclopédia Digital: Theologica Latinoamericana

Theologica Latinoamericana. Enciclopédia Digital é uma iniciativa dos professores do Departamento de Teologia da FAJE, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. Em sua origem está uma inquietação importante: o lugar ocupado pela mídia digital na atual sociedade do conhecimento e a ausência de uma produção teológica consistente, fiel à tradição teológica inaugurada na América Latina no período pós-conciliar, que responda ao desejo dos que querem aprofundar a fé cristã ou buscam informações sobre ela na rede. Essa preocupação está na origem das primeiras discussões feitas pelo corpo de professores de teologia da FAJE, que em 2013 elaborou um pré-projeto, o qual foi discutido com teólogos e teólogas da UNICAP, da PUC-Rio e do Instituto Humanitas Unisinos, e depois submetido aos reitores de suas respectivas instituições. Ao aceitarem ser parceiras na construção conceitual e teológica de Theologica Latinoamericana. Enciclopédia Digital, essas instituições… (continue a ler a História da enciclopédia).

Seguindo a ideia da rede, a Enciclopédia terá oito grandes eixos temáticos, que reagrupam os principais conteúdos da teologia cristã. Cada eixo veiculará inicialmente verbetes “matriciais”, que darão origem a outros verbetes aprofundados, a serem inseridos na medida em que o projeto for sendo executado.

Os oito eixos temáticos – veja Índice analítico – são:

  • Ética teológica
  • História da teologia e do cristianismo 
  • Liturgia e sacramentos
  • Mística e espiritualidade        
  • Teologia bíblica        
  • Teologia fundamental        
  • Teologia prática e pastoral       
  • Teologia sistemática

Na Teologia Bíblica leio na apresentação feita por Johan Konings:

Em primeira linha são abordados, nesta enciclopédia, os assuntos referentes à Bíblia do judaísmo, chamada na tradição cristã de Antigo Testamento, e os referentes à parte de origem cristã, o Novo Testamento. Estes artigos iluminam, sobretudo, os aspectos históricos, culturais e literários. Nesse contexto é tratada também a recepção judaica e cristã da Bíblia.


O modo de ler e interpretar a Bíblia é tratado no verbete Leitura e hermenêutica bíblicas. No sentido da leitura contextual da Bíblia, atenção especial é dada à Bíblia na América Latina. Também são tratados alguns assuntos emergentes, como a Bíblia na perspectiva da mulher e a Bíblia e as culturas. Outras perspectivas atuais da leitura bíblica serão integradas progressivamente a esta enciclopédia.


A Bíblia representa também uma tradição de orientação prática da vida para pessoas e comunidades. Esse aspecto é abordado no artigo sobre teologia e ética na Bíblia.


Artigos específicos são dedicados aos temas relacionados com a fé, como sejam os conceitos em torno da veracidade da Bíblia: revelação, inspiração e inerrância bíblicas, Bíblia e Ciências e Bíblia e Magistério; e, por outro lado, aos aspectos históricos e culturais, como sejam a formação e extensão do “cânon bíblico”, as línguas bíblicas, as versões bíblicas antigas e modernas.

Embora ainda no começo, já podem ser lidos, sobre Bíblia, os seguintes verbetes:

  • Leituras e hermenêutica – Cássio Murilo Dias da Silva, PUC RS
  • Ética e Teologia no Novo Testamento – Jaldemir Vitório, FAJE
  • A Bíblia na América Latina – Valmor da Silva, PUC GO
  • Recepção judaica e cristã da Bíblia – Aíla Pinheiro, FCF
  • Bíblia como Palavra de Deus – Leonardo Agostini Fernandes, PUC-Rio
  • Introdução ao Antigo Testamento – Cássio Murilo Dias da Silva, PUC RS
  • Ética e teologia no Antigo Testamento – Jaldemir Vitório, FAJE
  • Novo Testamento (NT) – Johan Konings, FAJE

Agradeço ao Cássio Murilo, que me enviou a informação sobre a enciclopédia.

Quem somos nós? A visão judaica

Quem somos nós? Falam Autores Judeus do Século III ao Século I a.C. Artigo publicado na Ayrton’s Biblical Page em 1998.

A partir do século III a.C., com a assimilação da língua e dos gêneros literários gregos, vários judeus tentam explicar aos seus conterrâneos e aos gregos cultos, especialmente de Alexandria, que o judaísmo é uma religião respeitável e recomendável pela sua antiguidade e pelos feitos de seus líderes.

Escrevendo em grego, e em gêneros literários gregos – da historiografia à filosofia – autores como Aristeias, Artápano, Teodoto, Jasão de Cirene e outros nos legam uma literatura de apologia do judaísmo, mas que é, ao mesmo tempo, excelente testemunho da resistência e da submissão desse povo e dessa cultura ao dominador grego.

Neste artigo, proponho a abordagem, em um primeiro momento, desta literatura de um modo geral e, em seguida, da Carta de Aristeias a Filócrates e de alguns historiadores como Demétrio, Eupólemo, o Samaritano anônimo, Artápano e o Pseudo-Hecateu.

Naturalmente esta é apenas uma amostragem, mas creio que bastante significativa, do processo de helenização que avança inexoravelmente entre os judeus durante os últimos três séculos antes da era cristã.

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Segundo os gregos, quem são os judeus?

Quem são os judeus? Falam autores gregos do século IV a.C. ao século I d.C. Cadernos do Cearp, Ribeirão Preto, n. 9, p. 39-60, 1998.

Como é que os gregos antigos veem os judeus? Existe compreensão e aceitação de sua cultura ou não? Constituem os judeus um povo a ser respeitado ou “civilizado”? Como é de se esperar, não temos uma opinião abrangente dos gregos sobre os judeus. O homem grego comum não pode mais testemunhar nesta questão. Mas há os escritos de vários autores da época. E através deles podemos perguntar aos gregos: Quem são, para vocês, os judeus?

As respostas serão diferenciadas, mas nos 18 autores que analisarei a seguir aparecem alguns elementos comuns:

  • os judeus são vistos e julgados a partir dos padrões culturais e civilizatórios gregos, transformando-se assim a sua história em uma história muitas vezes mítica e absurda porque a diferença cultural não é respeitada
  • os costumes alimentares e cultuais judaicos, em geral causam profunda estranheza ao mundo grego
  • as origens de Israel são frequentemente desfiguradas por feroz anti-semitismo que tem sua origem nos conflitos da época do autor e que não deveria ser assim retroprojetado para o final do II milênio.

Do século V a.C. ao início do século II d.C., de Heródoto a Plutarco, são conhecidos 175 fragmentos de 57 autores gregos que falam dos judeus. Destes 57 autores vou apresentar apenas 18. São os mais interessantes quanto às suas opiniões e/ou informações sobre os judeus. Muitos dos outros que deixo de lado trazem apenas informações geográficas sobre a Palestina ou referências muito vagas aos judeus.

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Flávio Josefo, homem singular

Flávio Josefo, homem singular em uma sociedade plural. Cadernos de Teologia, Campinas, n. 5, p. 29-51, 1998.

Neste artigo, sem grandes pretensões de originalidade, mas que tem como objetivo estimular a leitura da obra de Flávio Josefo, importante historiador judeu  do século I d.C., gostaria de  destacar  6 momentos fundamentais:

1. A origem aristocrática de Josefo, sua ligação com os asmoneus, seus estudos e sua formação.

2. A  experiência do deserto na adolescência e a opção religiosa. Casamento e reintegração na vida da família em Jerusalém.

3. A viagem a Roma: o aristocrata provinciano que vê a grandeza e o poderio do Império. A influência deste fato no seu confronto posterior com Roma.

4. O comando da Galileia, a contemporização, a derrota, a suspeita sobrevivência, a “profecia” feita a Vespasiano.

5. De prisioneiro a amigo dos romanos no cerco de Jerusalém. Ao lado de Tito, sua teologia é: Deus abandonou os judeus e agora está com os romanos (traição teológica).

6. Sua condição privilegiada em Roma, as rivalidades e os ciúmes, a obra histórica: encomenda e defesa.

Procurarei sempre olhar Flávio Josefo como ator e intérprete: participa dos acontecimentos e depois os interpreta. Objetivamente Josefo é um traidor de seu povo: este é o nosso olhar crítico hoje. Entretanto, subjetivamente, ele não se vê como traidor, mas modelo: a visão de si mesmo que aparece  na sua obra será destacada.

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Pensar Deus a partir da Nova Física

Inventando o Universo. Pensar Deus a partir da Nova Física. Cadernos de Teologia, Campinas, n. 4, p. 7-24, 1997.

Einstein disse certa vez que  estava interessado mesmo era em saber como Deus criara este mundo. Ora, já se passou mais de um século desde que a teoria da relatividade e a mecânica quântica começaram a ajudar os homens a compreenderem melhor como é feito este mundo em que vivemos. Porém, muitos teólogos ainda encontram sensíveis dificuldades em pensar Deus e o homem a partir da cosmologia que surgiu com as descobertas da física do século XX. Em pleno terceiro milênio, teólogos há que, por razões diversas, ainda continuam a ler os textos bíblicos e a elaborar suas reflexões como se as cosmologias antiga e medieval fossem mais do que suficientes para explicar o universo e o lugar do homem nele. Tempo, espaço, matéria, Deus, causalidade, alma, criação, salvação, redenção, determinismo, livre-arbítrio e tantos outros conceitos precisam ser revisitados sob o olhar vigilante da nova física.

E há mais uma coisa: acontece de pessoas confundirem Teologia com Religião ou com Fé. Ora, a Teologia usa sistemas conceituais, trabalha a partir de regras bem – ou razoavelmente bem – definidas, se esforça em usar com o máximo rigor possível todos os recursos da razão e, assim, se diferencia do discurso religioso, enquanto este é altamente simbólico e tem uma preocupação direta e imediatamente prática, como os discursos catequéticos, homiléticos ou proféticos. Vai daí que discursos teológicos são mais eficazes quando são teorias sobre a Fé e não teorias da Fé. Uma Teologia responsável procura produzir conhecimento e não reconhecimento. Conclui-se, deste modo, que a melhor Teologia é aquela que não toma o lugar da Fé e nem deixa que esta tome o seu (cf. BOFF, Cl. Teologia e Prática: Teologia do Político e suas mediações. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1993, II parte, cap. III).

Pois bem. O que modestamente proponho neste artigo é descrever a postura de alguns cientistas sobre Deus e a religião de modo geral e apresentar algumas das questões da cosmologia científica colocadas por esta nova física, levando a sério os desafios que daí surgem para o biblista e para o teólogo.

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A cidade grega e a etnia judaica

Os impérios não têm coração. A cidade grega e a etnia judaica. Cadernos de Teologia, Campinas, n. 3, p. 16-31, 1997.

 

“Se numa província vês o pobre oprimido e o direito e a justiça violados, não fiques admirado: quem está no alto tem outro mais alto que o vigia, e sobre ambos há outros mais altos ainda” (Ecl 5,7).

 

No processo de conquista do Oriente pelo macedônio Alexandre Magno, no século IV a.C, a fundação de cidades constituir-se-á em instrumento fundamental para a helenização dos vários povos dominados, com o consequente fortalecimento do poder macedônio.

“A civilização arcaica e clássica tinha coincidido com o desenvolvimento da pólis e era nos grandes centros urbanos, tais como Mileto, Corinto, Atenas, Siracusa, que se tinha desenvolvido a civilização grega. Alexandre tinha mostrado bem ser o herdeiro da tradição, ao semear o Império que acaba de conquistar com numerosas Alexandrias”1.

Segundo Plutarco, Alexandre teria fundado 70 Alexandrias. Só que menos da metade pode ser testemunhada com certeza pelos dados históricos e arqueológicos.

A fundação de cidades tem, para Alexandre, objetivos estratégicos, econômicos e políticos: servem para guardar passagens de grandes vias de comunicação, tornam-se lugares de comércio e atraem os nômades para as suas vizinhanças, fazendo deles camponeses que sustentarão as cidades2 .

Os sucessores de Alexandre seguem a mesma política. Especialmente os Selêucidas, herdeiros de um império multinacional, recorrem à política da difusão da pólis.

“Os objetivos desta urbanização [dos Selêucidas] são bastante diversos. As cidades favorecem o desenvolvimento econômico, que acresce, na mesma proporção, a fortuna do rei. Elas permitem a implantação de tropas, que guardam os grandes eixos de circulação e as posições estratégicas (…) Elas diminuem as resistências indígenas, fragmentando as antigas satrapias entre as cidades”3.

É bom, entretanto, lembrarmo-nos de que a fundação das póleis gregas nem sempre começam do nada. Há vários modos de se criar uma pólis: a fundação de uma cidade grega dentro de uma antiga cidade oriental, dando-lhe um estatuto político e um nome grego; a recriação, com estrutura grega, de uma cidade arrasada pela guerra ou por um terremoto; a fusão entre cidades pequenas que não têm como se defender; ou, ainda, a fundação de uma cidade grega ao lado de uma cidade oriental4.

 

1. Antíoco III e Jerusalém

Após a morte prematura de Alexandre Magno em 323 a.C., os seus generais encarregam-se da administração do enorme Império por ele conquistado. Pouco a pouco, porém, envolvidos em lutas internas pela supremacia, estes sucessores de Alexandre (ou diádocos, como são conhecidos em grego) eliminam os herdeiros naturais do macedônio e dividem entre si o Império, coroando-se reis de seus respectivos territórios.

A Palestina, um dos territórios da Celessíria5, pertenceu durante 103 anos aos Ptolomeus, macedônios que governavam a partir de Alexandria, no Egito. Em 198 a.C., entretanto,  o Selêucida Antíoco III, o Grande (223-187 a.C.) vence os egípcios em Panion (Baniyas), junto às nascentes do Jordão, e expulsa definitivamente os Ptolomeus da Ásia. A anexação da Celessíria se dá a seguir, e a Palestina fica agora sob o domínio dos macedônios de Antioquia, na Síria.

Pressionados por Roma, com quem entram em conflito, os Selêucidas assistem aos progressivo declínio de seu Império. Para solidificar o fragmentado Império, os reis Selêucidas, e especialmente Antíoco IV Epífanes (175-164 a.C.), implantam um acelerado processo de helenização dos vários povos e cidades da região.

Quando Antíoco III, o Grande, vence os exércitos dos Ptolomeus, os judeus de Jerusalém o apoiam nesta luta, segundo Flávio Josefo. O partido selêucida em Jerusalém está mais forte do que o ptolomaico. Por isso, Jerusalém é contemplada com um decreto de Antíoco III, em 197 a.C.6

Examinemos um pouco o decreto. Além da reconstrução e do repovoamento da  cidade – que sofrera três assédios consecutivos, em 201, 199 e 198 a.C. – o governo selêucida toma as seguintes medidas:

  • que seja dada uma contribuição real para os sacrifícios, em animais, vinho, óleo, incenso, flor de farinha, trigo e sal
  • a madeira retirada da Judeia e do Líbano para os trabalhos de construção do Templo e dos pórticos está isenta de taxas
  • todos os membros do povo judeu devem viver segundo as leis de seus pais
  • o senado (gerousia), os sacerdotes, os escribas do Templo e os cantores do Templo, ficam isentos da capitação, do imposto coronário e da taxa sobre o sal
  • isenção de impostos durante três anos para os atuais habitantes da cidade e para aqueles que vierem nela morar até determinada data, para que a cidade seja repovoada mais depressa.

É interessante observarmos as medidas de Antíoco III sobre os impostos7.

A madeira para a restauração do Templo está isenta do imposto alfandegário, que incide sobre todas as mercadorias em circulação.

O senado e os funcionários do Templo ficam isentos da capitação, imposto pessoal recolhido dos adultos. Ficam isentos também do imposto coronário: a coroa de folhas é, para os gregos, o símbolo da vitória, concedida aos vencedores dos jogos ou a um rei vitorioso8. Com o tempo, as cidades começam a oferecer aos seus reis coroas de ouro ou uma soma equivalente em dinheiro. O que antes era espontâneo acaba institucionalizado e tornado obrigatório, podendo somente o rei conceder a isenção.

Ainda: o senado e o Templo ficam isentos da taxa sobre o sal. Esta taxa é conhecida na Palestina e na Babilônia. Provavelmente paga-se determinado valor ao governo, ou talvez, na Palestina, que tem boas salinas, se aceite o produto “in natura”.

Os habitantes da cidade, finalmente, são isentos durante 3 anos do phóros, o tributo, em prata ou em produtos, exigido de uma província, de um templo, de um éthnos ou de uma cidade, este último sendo o caso de Jerusalém.

Deve-se observar que, com este decreto, Antíoco III reforça o papel da aristocracia, associada há muito ao poder através da gerousia e que, sob outro aspecto, liga o destino do éthnos  judeu às decisões reais. Pois as leis dos antepassados (a Torá) devem ser obedecidas não porque assim o decidem os judeus, mas porque o quer o governo selêucida9.

Apesar de parecerem benevolentes, estas medidas não devem, entretanto, nos enganar, pois não superam as decisões comuns tomadas em relação a outras cidades, naquela época.

O que Antíoco III faz é seguir a velha política persa em relação aos judeus. H. G. Kippenberg observa que “este decreto tem paralelo no documento de administração persa (Esd 7,12-26). Na carta de nomeação de Artaxerxes a Esdras (do ano 398 a.C.), está incluída a ordem ao encarregado das finanças da província Transeufratiana, que regulamenta o apoio material ao culto, bem como a isenção de tributos para sacerdotes, levitas, cantores, porteiros e servos do templo (vv. 21-24)”10.

É preciso observar também que a reconstrução e o repovoamento da cidade são medidas necessárias para o fortalecimento do governo e dos interesses de Antíoco III naquela região disputada pelos Ptolomeus.

Entretanto, a expansão selêucida sob Antíoco III, o Grande, será impedida por Roma na medida em que seus interesses entram em choque com a forte república na Europa. Após muitas negociações frustradas, Roma enfrenta e vence Antíoco III na batalha de Magnésia, no começo de 189 a.C. O exército romano é comandado por Lucius Cornelius Cipião – depois cognominado “o Asiático” -, ajudado por seu irmão Cipião, o Africano. Antíoco, que tem 72 mil soldados, perde 50 mil homens de infantaria, 3 mil cavaleiros, 15 elefantes e Cipião faz 1400 prisioneiros. Os romanos perdem apenas 400 homens.

Em 188 a.C. a paz entre Roma e os Selêucidas é estabelecida em Apameia da Frígia, quando são impostas humilhantes condições a Antíoco III11.

Assim começa o declínio do império selêucida. Daqui para a frente, Antíoco III e seus sucessores debater-se-ão em crescentes lutas internas pelo poder, assistindo à fragmentação progressiva dos seus domínios e lutando com grandes dificuldades financeiras. Só a Roma Antíoco deve pagar 15.000 talentos euboicos. O talento euboico, do nome da ilha de Eubeia, pesa cerca de 26 kg. Logo, Antíoco deve pagar a Roma o equivalente a 390.000 kg de prata.

O que ocorrerá é que, em relação a cidades como Jerusalém, por exemplo, os sucessores de Antíoco III não terão condições de manter a prometida isenção tributária – ver decreto de 197 a.C – premidos que estarão por Roma. O próprio Antíoco III é morto em 187 a.C., pela população revoltada, quando saqueia um templo elamita, para conseguir dinheiro com que pagar aos romanos.

 

2. Antíoco IV e a pólis

Em 175 a.C. Selêuco IV, filho e sucessor de Antíoco III é assassinado. Assume o poder o seu irmão Antíoco IV Epífanes (175-164 a.C.), que voltava de Roma, onde era refém desde 188 a.C., quando seu pai perdera a batalha de Magnésia e assinara o tratado de Apameia.

A instabilidade do reino selêucida aumenta e Antíoco IV toma medidas helenizantes como forma de consolidar o seu poder. Concede o status de pólis a várias cidades, promove a adoração de Zeus e reivindica para si prerrogativas divinas12.

As dificuldades econômicas enfrentadas por Antíoco IV Epífanes, geradas pela pressão romana, a quem deve pagar mil talentos por ano, leva-o a sobrecarregar seus súditos e o instiga ao saque de templos para a obtenção de fundos.

Enquanto isto, em Jerusalém, o processo de helenização avançara bastante desde o século anterior, especialmente entre a aristocracia sacerdotal e leiga. Forma-se um forte partido pró-helênico, que pretende incrementar o avanço civilizatório grego e, por isso, está em luta com os judeus tradicionais e fiéis à Lei.

Estes helenizantes defendem urgente revogação do decreto de Antíoco III, que os impede de se integrarem totalmente no modo de vida grego.

F.-M. Abel observa, por exemplo, que a Judeia está cada vez mais cercada por cidades helenizadas e é impossível ao judeu não tomar contato com o seu modo de vida. Quem vai a Ptolemaida passa por Samaria ou Dora; se alguém negocia na Galileia não pode fugir de Citópolis ou Filotéria; ou na Transjordânia é necessário ir a Pella, a Gadara ou a Filadélfia. Do lado do mar? Marisa está na rota de Gaza ou Askalon. Jam­nia, Gazara e Jope também não podem ser evitadas13.

A ocasião favorável aos partidários da helenização surge quando Onias III, o conservador sumo sacerdote, está em Antioquia cuidando dos interesses de seu povo e Antíoco IV assume o poder.

Um irmão de Onias III, Jasão (Joshua), oferece ao rei alta soma em dinheiro e um rápido programa de helenização dos judeus em troca do cargo de sumo sacerdote. 1Mc 1,11-13 comenta o caso do seguinte modo: “Por esses dias apareceu em Israel uma geração de perversos (paránomoi) que seduziram a muitos com estas palavras: ‘Vamos, façamos aliança com as nações circunvizinhas, pois muitos males caíram sobre nós desde que delas nos separamos’. Agradou-lhes tal modo de falar. E alguns de entre o povo apressaram-se em ir ter com o rei, o qual lhes deu autorização para observarem os preceitos (dikaiômata) dos gentios”.

O termo paránomoi indica, segundo Dt 13,14, pessoas que fazem propostas de apostasia da Lei. Daí que “fazer aliança com as nações” indica renegar a Lei e seguir costumes gentios.

Também o dikaiômata tôn éthnôn (preceitos dos gentios) é significativo. Dika­íôma é usado pelos LXX para traduzir o hebraico derek ou mishpat (caminho, direito) significando obrigações legais. Observar os preceitos dos gentios significa, portanto, abandonar as normas da Lei e seguir leis gentias14.

Antíoco IV Epífanes aceita a oferta de Jasão, pois precisa de dinheiro, tem urgência em helenizar a região para garantir sua fronteira sul e, ao que parece, suspeita de tendências pró-ptolomaicas em Onias III.

Assim, em 174 a.C. é instalado um ginásio em Jerusalém, aos pés da acrópole, contíguo à esplanada do Templo. 2Mc 4,7-10 descreve do seguinte modo os fatos: “Entrementes, tendo passado Selêuco à outra vida e assumindo o reino Antíoco, cognominado Epífanes, Jasão, irmão de Onias, começou a manobrar para obter o cargo de sumo sacerdote. Durante uma audiência, ele prometeu ao rei trezentos e sessenta talentos de prata e ainda, a serem deduzidos de uma renda não discriminada, mais oitenta talentos. Além disso, empenhava-se em subscrever-lhe outros cento e cinquenta talentos15, se lhe fosse dada a permissão, pela autoridade real, de construir uma praça de esportes e uma efebia, bem como de fazer o levantamento dos antioquenos de Jerusalém. Obtido, assim, o consentimento do rei, ele, tão logo assumiu o poder, começou a fazer passar os seus irmãos de raça para o estilo de vida dos gregos”.

Um ginásio grego não é mera praça de esportes. É uma instituição cultural das mais importantes, usada no processo de helenização de várias cidades orientais. Além dos esportes gregos, praticados nus – o que causa embaraço aos jovens judeus circuncidados -, o ginásio implica a presença de divindades protetoras, como Héracles (= Hércules) e Hermes e ensina a maneira grega de se viver e de se ver o mundo. Falar o grego corretamente, vestir-se à moda grega, conhecer e discutir a cultura grega, são algumas das atividades praticadas no ginásio. Consta que o rei Antíoco IV vai a Jerusalém nesta época, sendo recebido pelos filo-helenistas com grande entusiasmo.

Além do que, “o ginásio parece ter sido realmente uma corporação separada de judeus helenizados, com direitos cívicos e legais definidos, estabelecida dentro da cidade de Jerusalém”16. Estes judeus são chamados de “antioquenos” nos documentos da época, como se vê em 2Mc 4,9.19. Certamente porque estão sob a proteção real, ou mesmo porque são considerados como “cidadãos de Antioquia”, segundo alguns. 2Mc 4,12-14a fala do ginásio de Jerusalém com grande desgosto.

A situação, entrementes, se complica, quando um sacerdote não-sadoquita, chamado Menelau, apoiado pela poderosa família dos Tobíadas, faz uma oferta maior a Antíoco IV e obtém o sumo sacerdócio. Menelau oferece a Antíoco 300 talentos de prata (cerca de 7.800 kg) suplementares na época de pagar o tributo (2Mc 4,23-24).

Isto se dá em fins de 172 a.C., início de 171 a.C. Jasão foge para a Transjordânia, para o feudo de Hircano, o Tobíada dissidente e pró-Lágida, já morto nesta época.

Como protestasse contra a venda de vasos sagrados do Templo (vendidos por Menelau para conseguir o dinheiro prometido a Antíoco IV), Onias III é assassinado a mando de Menelau. A população de Jerusalém, revoltada com as ações de Menelau, vê três membros da gerousia serem executados por Antíoco IV, quando oficialmente denunciam as arbitrariedades cometidas pelo sumo sacerdote.

Em 169 a.C., na volta de sua primeira campanha egípcia, campanha vitoriosa, Antíoco IV saqueia o Templo de Jerusalém, com a aprovação de Menelau. 1Mc 1,21-23 narra este saque do Templo, do qual se desconhece a causa. Talvez seja a sempre crescente necessidade de dinheiro.

No começo de 167 a.C. Antíoco IV envia a Jerusalém Apolônio, o misarca (comandante das tropas mísias), com forte contingente. Ataque, assassinatos em massa, escravidão. Muralhas demolidas e construção de poderosa fortaleza em Jerusalém, conhecida, em grego, como Acra (= cidadela), sede de uma guarnição e verdadeira pólis, no coração de Jerusalém, encostada no Templo. Durante cerca de 25 anos a Acra será o braço armado selêucida em Jerusalém, espinho atravessado na garganta dos judeus fiéis (2Mc 5,23b-24). 1Mc 1,33-35 descreve a construção da Acra.

É nesta época que começa verdadeira caçada aos Oníadas e a seus partidários. Como é de praxe em tais circunstâncias, suas propriedades são confiscadas e transferidas para os Tobíadas ou para as colônias militares reais.

Desencadeia-se feroz perseguição a todos os inimigos de Menelau. Os habitantes do distrito judaico transformam-se em cidadãos sem direitos. Os fiéis seguidores da Lei, os assideus (= piedosos) são obrigados a fugir para os desertos e montanhas. Jerusalém é, enfim, uma cidade contaminada: os gentios controlam a sua população.

 

3. Antíoco IV e a proibição do judaísmo

Acredita-se que tenha sido para vencer a, por enquanto pacífica, resistência judaica ao programa de helenização é que Antíoco IV decide proibir a prática do judaísmo, no verão de 167 a.C.

Acontece, então, como norma geral, duas coisas (1Mc 1,41-53):

  • a abolição da Torá, com seus mandamentos e suas proibições: ficam proibidas as práticas do sábado, das festas, da circuncisão, da distinção de alimentos puros e impuros. Todos os manuscritos da Lei devem ser destruídos. Qualquer violação destas normas tem a morte por punição
  • uma reforma do culto em toda a Judeia: a abolição dos sacrifícios e da sacralidade do santuário e dos sacerdotes, a ereção de altares em todo o país e o sacrifício de porcos e outros animais impuros a deuses estrangeiros.

Para completar, em dezembro de 167 a.C., é introduzido o culto de Zeus Olímpico no Templo de Jerusalém, com respectiva imagem e sacrifício.

Explica C. Saulnier que “deus eminente dos gregos, Zeus representava os valores do poder e da autoridade; o epíteto Olímpico recordava suas prerrogativas sobre as outras divindades e seu aspecto uraniano (isto é, de deus do céu); na Síria ele fora assimilado a Baal Shâmin, deus soberano, senhor das tempestades e da fecundidade. Tais aspectos podiam aparentemente aproximá-lo de Iahweh que, desde a época persa, era designado nos textos judaicos como “o Deus dos céus”. Nestas condições, podemos admitir que Antíoco IV quisesse introduzir em Jerusalém uma divindade sincrética, que permitisse a judeus, sírios e gregos reconhecer nela a emanação de um deus sobera­no”17.

A introdução deste culto no Templo é a “abominação da desolação”, segundo Dn 11,31. 1Mc 1,54-57.64 assim descreve a “abominação da desolação”: “No décimo quinto dia do mês de Casleu do ano de cento e quarenta e cinco [8 de dezembro de 167 a.C.], o rei fez construir, sobre o altar dos holocaustos, a Abominação da desolação. Também nas outras cidades de Judá erigiram-se altares e às portas das casas e sobre as praças queimava-se incenso. Quanto aos livros da Lei, os que lhes caíam nas mãos eram rasgados e lançados ao fogo. Onde quer se encontrasse em casa de alguém um livro da Aliança ou se alguém se conformasse à Lei, o decreto real o condenava à morte (…) Foi sobremaneira grande a ira que se abateu sobre Israel”.

Os judeus são também obrigados a participar da festa de Dionísio e do sacrifício mensal em honra do aniversário do rei (2Mc 6,7). Enfim, uma verdadeira cruzada contra a Lei. Por detrás disso tudo podemos ver as tristes figuras de Menelau e dos Tobíadas18.

 

4. As causas da helenização

Com muita frequência, têm-se colocado as razões religiosa e cultural como motivo para a helenização da Judeia e consequente resistência macabeia. Claro que, na típica visão teocrática do judaísmo de então, as motivações religiosas é que oferecerão os conceitos para a leitura dos fatos (1Mc 1,41-42;Dn 11,31-32.36-37). Apesar de tudo isso, é preciso ir além na interpretação dos fatos. Além das razões estratégicas e políticas dos Selêucidas para incentivar a helenização dos judeus, razões já apresentadas, há motivos econômicos para o conflito que o processo desen­cadeia19.

É que o sistema político grego tradicional, como adotado pelos Selêucidas, não dispõe de um mecanismo fiscal para o recolhimento do tributo. Ou seja: não há uma burocracia profissional que administra as finanças do Estado. Em Atenas, por exemplo, o cidadão se dedica à administração da cidade sem receber recompensa alguma, a não ser a satisfação do dever cumprido e o sentimento de contribuir para o bem comum. Assim, nos reinos helenísticos a função de recolher o tributo é arrendado à aristocracia dos povos dominados, proporcionando-lhe lucros financeiros e influência política junto ao governo estrangeiro, como vimos no caso dos Tobíadas.

Por outro lado, deve-se levar em conta que a noção grega de Estado é concretizada no Oriente:

  • ou na pólis, uma associação de cidadãos livres e autônomos baseada na vizinhança
  • ou no éthnos, uma relação de parentesco baseada na solidariedade dos laços de sangue.

M. Rodrigues explica que “três grandes princípios presidem à formação da pólis: eleuteria (independência), autonomia (poder próprio) e autarquia (autogestão). A cidade era tudo para o cidadão grego. O verbo politeyestaí, que significava ‘tomar parte nos negócios públicos’, também significava simplesmente ‘viver'”20.

Ora, Judá é e permanece um éthnos também na administração selêucida. Mas o próprio Antíoco III, o Grande, com seu decreto de 197 a.C., reforça os privilégios da aristocracia, criando as condições para a sua emancipação da hierocracia e para o predomínio da pólis sobre o éthnos. “A autonomia étnica, que foi concedida oficialmente à Judeia, trouxe em si elementos que ofereciam à aristocracia das cidades novas possibilidades”21.

A lei, baseada na vontade do rei Selêucida – que reivindica tal direito como “direito de lança” por ser o conquistador – e não nas tradições dos antepassados codificadas na Torá, cria condições para que a aristocracia judaica substitua as leis étnicas por leis políticas.

O texto de 1Mc 10,29-31, que trata de uma isenção de impostos concedida aos judeus mais tarde, em 152 a.C., por Demétrio I, dá-nos uma ideia dos tributos recolhidos pelos Selêucidas na Judeia: “Desde agora desobrigo-vos, e declaro isentos todos os judeus, dos tributos (phóroi), do imposto sobre o sal e do ouro das coroas. Igualmente renuncio à terça parte da semeadura e à metade dos frutos das árvores, que me caberiam de direito: de hoje em diante deixo de arrecadá-los à terra de Judá e aos três distritos que lhe foram anexos, bem como à Samaria e à Galileia. Isto a partir do dia de hoje e para todo o tempo. Jerusalém seja considerada santa e isenta, assim como seu território, sem dízimos e sem tributos”.

Os três primeiros impostos citados, já os conhecemos do decreto de Antíoco III: trata-se do phóros, do imposto sobre o sal e do imposto coronário.

Agora, o que aqui nos interessa é perceber como se faz o recolhimento do tributo na Judeia. A aristocracia – por exemplo, os Tobíadas e seus associados – recolhe dos camponeses 1/3 do produto das colheitas e metade da produção das frutas. Vende, certamente com ganhos, estes produtos e paga aos seus senhores Selêucidas determinada quantia em prata. Talvez cerca de 300 talentos anuais segundo 1Mc 11,28.

Daí ser significativo que a primeira notícia a respeito do nascente conflito com o helenismo, aponte uma razão econômica. Vamos lembrar o que diz 2Mc 3,4: “Ora, certo Simão, da estirpe de Belga, investido no cargo de superintendente do Templo, entrou em desacordo com o sumo sacerdote a respeito da administração dos mercados da cidade”.

Assim, a aristocracia começa a pressionar sempre mais na direção da helenização total, como modo de quebrar as barreiras da tradição de solidariedade baseada na aliança. Seu enriquecimento fácil, baseado na tributação e na manutenção de seus privilégios, choca-se com as normas da Lei. A solução será pedir a Antíoco IV Epífanes a eliminação da Lei. Some-se a isso a precariedade financeira dos Selêucidas e o mecanismo começa a ficar claro.

Segundo as leis israelitas, a terra é dom de Iahweh ao povo. Israel tem a posse da terra, mas não é seu proprietário. O livro do Deuteronômio, escrito a partir do século VII a.C., repete isto sempre (Dt 12,1.9.10.20.29;13,13;16,5.18.20 etc). Dt 12,1, por exemplo, diz: “São estes os estatutos e as normas que cuidareis de pôr em prática na terra cuja posse Iahweh, Deus de teus pais te dará, durante todos os dias em que viverdes sobre a terra”.

A terra em Israel é classificada como nahala (= herança, posse), como em Dt 12,9.10;19,10;20,16 e tantos outros lugares.

Pode-se até negociar a terra, mas somente dentro de determinadas normas. O direito que regulamenta a venda da terra é a chamada ge’ulla (= resgate da terra). Quem tem o direito de compra é apenas o parente do lado masculino da família.

A venda da terra pode proteger o proprietário empobrecido de pagar tributos e impostos a estrangeiros, como pode protegê-lo também de ser vendido como escravo permanente a estrangeiros.

O resgate da terra é baseado no conceito de hesed (= fidelidade), uma solidariedade que sustenta a relação comunitária no nível do clã.

H. G. Kippenberg assim resume a relação de parentesco em Israel:

  • a estrutura de parentesco determina a reprodução das famílias e as relações sociais dentro da família
  • a estrutura de parentesco une as famílias em uma hierarquia baseada nas prerrogativas dos irmãos mais velhos sobre os mais novos, mas cria laços de solidariedade entre eles
  • a terra pode ser negociada entre parentes, mas não com estranhos ao círculo de parentesco. Entretanto, este princípio leva ao acúmulo de terras pelas famílias mais ri­cas22.

Compare-se esta concepção israelita da posse da terra com a concepção grega, onde a terra pode ser dada a quem o rei determinar, porque ela lhe pertence por direito de conquista. O conflito jurídico é evidente.

Ora, como no interior do clã a estratificação social avança bastante nos períodos persa e grego, a aristocracia judaica que aí surge tende a excluir os mais pobres. Por outro lado, a manutenção das regras do parentesco exigida pela Lei e confirmada por Antíoco III prejudica os interesses da aristocracia.

Entretanto, os sacerdotes Macabeus, líderes da resistência judaica, e seus partidários assideus, defendem a manutenção dos laços de parentesco, da solidadriedade étnica contra a instalação do regime da pólis em Jerusalém.

Enquanto os partidários da helenização seguem as ordens do rei (1Mc 2,19-20;6,21-27), os revolucionários Macabeus fazem valer os antigos mandamentos (1Mc 2,29-38: o sábado; 2,42-48: a circuncisão; 4,36-51: a purificação do Templo).

Que os motivos desta luta são também econômicos, gerados pelo arrendamento estatal dos impostos à aristocracia, não resta dúvida, se observarmos que em 142 a.C., quando  o rei selêucida Demétrio II concede aos judeus a isenção dos tributos, isto é festejado como libertação da escravidão e começo de uma nova era (1Mc 13,36-42).

É que, com o desaparecimento do arrendamento, a aristocracia não é mais identificada com o Estado, dando aos camponeses maior folga em relação aos senhores da terra. A desigualdade permanece a mesma, mas os camponeses conseguem controle sobre o excedente23.

A lógica grega deste arrendamento é a de reduzir o direito de cidadania a pequena faixa aristocrática, mantendo os produtores como simples moradores, objeto de conquista, sem direito a cidadania.

E esta lógica está funcionando, até que, em Jerusalém, uma camada aristocrática força a helenização e entra em choque com o direito sagrado tradicional do povo judeu. Aí vem o conflito com os Macabeus, que não tem objetivos religiosos: o que se quer é uma reforma da constituição da Judeia. Mas será a simbologia religiosa que exprimirá os interesses igualitários de sacerdotes e camponeses24.

 

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> Este artigo foi publicado em Cadernos de Teologia, Campinas, n. 3, p. 16-31, 1997. Está disponível também na Ayrton’s Biblical Page, publicado em 06.08.2020.


1. LÉVÊQUE, P. O mundo helenístico. Lisboa: Edições 70, 1987,  p. 59.

2. Cf. PRÉAUX, C.  Le monde hellénistique. La Grèce et l’Orient (323-146 av. J.-C.) II. 2. ed. Paris: Presses Universitaires de France, 1988, p. 401-403.

3. LÉVÊQUE, P. o. c., p. 61.

4. Cf. PRÉAUX, C. Le monde hellénistique II, p. 403-408.

5. Celessíria significa “Síria Côncava” e compreende os territórios do sul da Síria, da Fenícia e da Palestina. A origem do nome é controvertida. É possível que venha do semítico, algo assim como o hebraico kl sûryh, “toda a Síria”, que teria se tornado, em grego, por assonância, koílê syrîa. Originariamente a Celessíria compreendia toda a Síria, mas na época helenística já se distingue entre a Syrîa hê ánô (Síria do norte) e a koílê Syrîa. “Celessíria”, entretanto, só se torna designação oficial da região sob o governo dos Selêucidas, após 198 a.C. Os Ptolomeus chamavam a região de Síria e Fenícia. Cf. STERN, M. Greek and Latin Authors on Jews and Judaism I. Jerusalem: The Israel Academy of Sciences and Humanities, 1976, p. 14.

6. Cf. JOSEFO, F. Antiquitates Iudaicae XII, 138-144. São  Paulo: Editora das  Américas, 1956.

7. Cf., sobre os impostos selêucidas, SAULNIER, C. Histoire d’Israel III. De la conquête d’Alexandre à la destruction du temple (331a.C.-135 a.D.). Paris: Du Cerf, 1985, p. 456-458; PRÉAUX, C. Le monde hellénistique. La Grèce et l’Orient (323-146 av. J.-C.) I. 2. ed. Paris: Presses Universitaires de France, 1987, p. 384-388.

8. Há quatro grandes jogos pan-helênicos: os Jogos Olímpicos, em Olímpia; os Jogos Ístmicos, em Corinto; os Jogos Píticos, em Delfos e os Jogos Nemeus, no vale de Nemeia.

9. Cf. KIPPENBERG, H. G. Religião e formação de classes na antiga Judeia. São Paulo: Paulinas, 1988, p. 77-81; BICKERMAN, E. The God of Maccabees. Studies on the Meaning and Origin of the  Maccabean Revolt. Leiden: Brill, 1979, p. 32-34.

10. KIPPENBERG, H. G. o. c., p. 78.

11. Cf. SAULNIER, C. Histoire d’Israel III, p. 102-104; PRÉAUX, C. Le monde hellénistique I, p.153-163; WILL, E. Histoire politique du monde hellénistique II. 2. ed. Nancy: Presses Universitaires de Nancy, 1982, p. 210-215;221-224.

12. Cf., para o reinado de Antíoco IV e seu confronto com os judeus, BRIGHT, J. História de Israel. São Paulo: Paulinas, 1978, p. 570-576; ABEL, F.-M. Histoire de la Palestine depuis la conquête d’Alexandre jusqu’a l’invasion arabe I. Paris: Gabalda, 1952, p. 109-132; HENGEL, M. Judaism and Hellenism . Studies in their Encounter in Palestine during the Early Hellenist Period I. London: SCM Press, 1981, p. 277-290; SAULNIER, C. Histoire d’Israel III, p. 105-121; Idem, A revolta dos Macabeus. São Paulo: Paulinas, 1987, p. 21-31; WILL, E. Histoire politique du monde hellénistique (323-30 av. J.-C.) II. 2. ed. Nancy: Presses Universitaires de Nancy, 1982, p. 326-341.

13. Cf. ABEL, F.-M. Histoire de la Palestine depuis la conquête d’Alexandre jusqu’a l’invasion arabe I, p. 109.

14. Cf. SAULNIER, C. Histoire d’Israel III, p. 110-111.

15. Jasão oferece a Antíoco 590 talentos, o equivalente a cerca de 15.340 kg de prata. Um talento ático pesa 26,2 kg.

16. BRIGHT, J. História de Israel, p. 572.

17. SAULNIER, C. A revolta dos Macabeus, p. 26.

18. Cf. HENGEL, M. Judaism and Hellenism I, p. 292-303; BRIGHT, J. História de Israel, p. 574-576.

19. Cf. KIPPENBERG, H. G., Religião e formação de classes na antiga Judeia, pp. 73-87; GRUEN, W., Religião e formação de classes sociais no Judá pós-exílico, segundo H. G. KIPPENBERG, em Atualização 171-172, março/abril de 1984, pp. 152-161.

20. RODRIGUES, A. M. As utopias gregas. São Paulo: Brasiliense, 1988, p. 76. Cf. também GIORDANI, M. C. História da Grécia. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 1986, p. 151-183; MOSSÉ, C. As instituições gregas. Lisboa: Edições 70,1985; GLOTZ, G. A cidade grega. São Paulo: Difel, 1980.

21. KIPPENBERG, H. G. o. c., p. 80.

22. Cf. KIPPENBERG, H. G., o. c., p. 39.

23. Cf. Idem, ibidem, p. 86.

24. Cf. Idem, ibidem, p. 86-87.