Uma leitura crítica da reforma de Josias

Shigeyuki Nakanose, do Centro Bíblico Verbo, São Paulo, defendeu sua tese de doutorado em Teologia no New York Theological Seminary, Nova York, em 1991. O tema foi a Páscoa de Josias, e ele foi orientado por Norman K. Gottwald.

O livro publicado tem por título Josiah’s Passover: Sociology and Liberanting Bible. Eugene, OR: Wipf & Stock, 2004 [edição anterior: Maryknoll: Orbis Books, 1993], 212NAKANOSE, S. Uma história para contar: a Páscoa de Josias: metodologia do Antigo Testamento a partir de 2Rs 22,1-23,30. São Paulo: Paulinas, 2000. p. – ISBN 978592445707. Nele o autor mostra como a leitura sociológica da Bíblia (somada às leituras histórico-crítica e popular) revela com mais clareza a realidade por trás do texto bíblico e nos ajuda a compreendê-lo e aplicá-lo com mais proveito.

Em uma adaptação de sua tese, o autor publicou, em português, Uma história para contar: a Páscoa de Josias: metodologia do Antigo Testamento a partir de 2Rs 22,1-23,30. São Paulo: Paulinas, 2000, 344 p.

Neste livro, na página 131, ele diz:

Muitas pessoas que trabalham com a Bíblia são descuidadas em reconstruir a realidade social do texto bíblico, concentrando-se apenas nas ideias religiosas e ideológicas. Esta falha para compreender a formação social pode comprometer a contribuição do trabalho bíblico como uma das forças transformadoras da sociedade. Na falta de uma análise estrutural da sociedade que está por trás do texto, o texto bíblico não tem elementos suficientes para apresentar as pessoas sofridas e marginalizadas numa perspectiva crítica da sua própria sociedade e dentro de uma compreensão mais clara de exigências concretas de justiça social.

Já sobre a reforma de Josias, ele afirma na página 129: A reforma político-religiosa de Josias talvez seja uma das ações mais brutais registradas no Antigo Testamento, empreendidas em nome de Javé.

Para contextuar esta afirmação, que pode parecer surpreendente para muitos [leia mais sobre a reforma de Josias aqui], é claro que se recomenda a leitura do livro. Que deve ser encontrado nas bibliotecas de Teologia, já que parece estar esgotado nas livrarias.

E ele provoca mais ainda nas páginas 227-228:

Não é de se surpreender que hermenêuticas fundamentalistas e idealistas modernas apresentem a reforma de Josias como um movimento religioso sob uma piedosa e exclusiva lealdade a Javé. Na falta de uma análise sociológica, é impossível para exegetas bíblicos alcançar uma compreensão das forças sociais reais operantes na sociedade josiânica. Esta falha hermenêutica aparece especialmente na interpretação da Páscoa de Josias.

Pois é. Nesta mesma linha de raciocínio, transcrevo abaixo a análise da reforma de Josias feita por Norman K. Gottwald em seu artigo Social Class as an Analytic and Hermeneutical Category in Biblical Studies. Journal of Biblical Literature, vol. 112, no. 1, 1993, p. 3-22. Este texto foi apresentado como fala do presidente no Congresso da Society of Biblical Literature (SBL) de 1992 e está disponível para download em pdf aqui.

Nas páginas 12-14 ele diz:

Journal of Biblical Literature, vol. 112, no. 1, 1993A reforma de Josias, descrita amplamente em termos religiosos em 2 Reis 22-23, escapou de uma cuidadosa análise de classe em favor de preocupações mais literárias e teológicas, como a relação da reforma com o código deuteronômico e os objetivos religiosos ostensivos dos reformadores. Muitas vezes a discussão prossegue como se o código de leis em si fosse a causa da reforma e seus formuladores os únicos proponentes da reforma. Acima de tudo, as dimensões religiosas da reforma são abstraídas de sua matriz de classes sociais. Ao realizar uma leitura de classe social da situação por trás de 2 Reis 22-23, não temos dois pontos de vista nitidamente contraditórios como em 1 Reis 4-12 [Nota: texto anteriormente analisado pelo autor], então temos que reunir mais fontes textuais para obter uma leitura mais ampla do conjunção de circunstâncias históricas sociais naquele momento crucial.

Judá tinha sido um reino vassalo menor da Assíria por setenta e cinco anos, reduzido em tamanho, com seus membros da classe dominante – tanto os dentro quanto os de fora do governo – pressionados a arrancar tudo o que pudessem da base econômica camponesa para sobreviver e prosperar marginalmente. Simultaneamente, essa classe dominante foi levada a adotar a cultura da elite assíria para solidificar sua precária posição política, alienando ainda mais seus membros daqueles que eles exploravam.

A rápida dissolução do domínio imperial assírio na Síria-Palestina no início do reinado de Josias alterou completamente o equilíbrio de poder de classe na Palestina. Os governantes políticos em Jerusalém viram que agora poderia ser possível não apenas solidificar seu domínio sobre Judá, mas expandir seu domínio sobre o território e a população do antigo reino setentrional de Israel, que não funcionava mais como província assíria. Essa expansão abriria novos recursos econômicos para a coroa e para as elites latifundiárias e mercantis de Judá.

Dados os objetivos e os recursos, o que seria necessário para concretizar este projeto ambicioso?

Certamente exigiria esforços militares e burocráticos combinados em uma área muito grande e em face de uma população hostil para processar esse programa. Mas, para alistar, treinar e motivar as tropas necessárias e funcionários menores, era indispensável aumentar as receitas e conseguir uma população judaíta leal e comprometida. A base firme dos proponentes da reforma consistia no rei e seus oficiais da corte, comandantes do exército, sacerdotes e profetas ligados a Jerusalém, e proprietários de terras e mercadores de Judá, que tinham interesse em ver maior riqueza e poder fluir para Jerusalém. Mas poderia a população carregada de tributos de Judá ser alistada de forma confiável na causa?

Como não havia maneira de Josias proceder que não exigisse mais receitas de seus súditos, sua primeira abordagem foi reunir os judaítas com um duplo apelo ao fervor patriótico e à pureza religiosa. A ideologia religiosa nacionalista dos deuteronomistas foi difundida na esperança de construir uma forte “frente popular” na causa do Deus de Israel contra estrangeiros assírios e israelitas apóstatas, tanto no norte quanto no sul.

Em suma, Josias e seu regime aspiravam a restaurar as conquistas territoriais e incorporar as lealdades religiosas de Josué e Davi. O movimento ousado da reforma para proibir todo culto a Iahweh fora de Jerusalém serviu tanto para aumentar a autoridade da capital quanto para financiar a conquista do norte com os dízimos e ofertas que fluíam para a cidade e com o aumento das receitas comerciais derivadas das peregrinações festivas obrigatórias. O desvio de fundos e atividades religiosas para Jerusalém também desvalorizou a cultura e a religião locais, e o efeito da legislação deuteronômica na vida familiar minou ainda mais a autonomia e a integridade das famílias que ainda sobreviviam em muitas áreas rurais. Especialmente radical foi o desenraizamento da observância da Páscoa de seu ambiente familiar de longa data e sua mudança restritiva para Jerusalém. Em troca de um aumento nos tributos, serviço no exército e evisceração da cultura religiosa local, as reformas ofereceram algum alívio da dívida e deram mais assistência do governo aos necessitados.

Então, como as políticas de “pão e circo” de Josias se saíram com a grande maioria da população obrigada a pagar tributos?

Não muito bem. Para começar, a maior parte da população do antigo reino do norte estava há muito tempo alienada da dinastia davídica em Jerusalém. Eles se ressentiam profundamente dos pagamentos compulsórios e das longas peregrinações a Jerusalém e ficaram horrorizados com a violência brutal que Josias impôs a seus centros de culto.

Em Judá, a recepção das reformas foi, sem dúvida, mais mista fora dos círculos da elite. Alguns tinham a esperança de reviver os dias gloriosos da época davídica. Alguns foram atraídos pela promessa de alívio da dívida. Os camponeses que vivem perto o suficiente de Jerusalém para fazer uma peregrinação fácil podem ficar satisfeitos com a conveniência, mas a supressão violenta de locais de culto judaítas fora de Jerusalém estava alienando muitos. Os sacerdotes rurais, respeitados em suas comunidades, foram destituídos e humilhados. O aumento das receitas para Jerusalém era irritante para alguns e oneroso para muitos. As medidas que atingiram as lealdades locais e ameaçaram a cultura e a religião domésticas geraram ressentimento. Consequentemente, é razoável concluir que a grande maioria do campesinato judaíta caiu em um espectro que vai da indiferença à hostilidade aberta em relação às reformas.

Por outro lado, é provável que os maiores apoiadores das reformas entre as subclasses exploradas fossem diaristas descendentes de refugiados do reino do norte em 722 a.C. ou que saíam de terras em Judá que haviam perdido por endividamento. Esse grupo sem raízes, muitas vezes desempregado, lucraria com o aumento do trabalho nos preparativos militares, na construção pública e nos empregos ocasionados pelo comércio de peregrinação. Vivendo dentro e ao redor de Jerusalém, eles também ganhavam mais com a assistência governamental do que os camponeses espalhados pelo território.

O que ocorreu, então, foi uma reconstituição draconiana do governo e do culto de cima para baixo, extraindo drasticamente o excedente e perturbando severamente a cultura em todas as principais áreas da vida comum. Os reformadores negociaram uma troca entre um governo e um culto centralizado mais poderosos, por um lado, e melhores condições de vida para a população em geral, por outro lado.

Em suma, a campanha em favor de uma reforma provavelmente não conquistou uma base de apoio muito considerável, enraizada como estava na classe dominante em Jerusalém, sofrendo uma resistência quase unânime no norte e sendo precariamente apoiada por apenas uma minoria da classe explorada judaíta.

Esta política só poderia ter sucesso pela força imediata das armas, com a esperança de garantir condições para um renascimento e expansão de longo prazo da base econômica, incorporando os territórios mais férteis do norte em uma economia política orquestrada a partir de Judá.

Esperava-se que o fervor religioso nacionalista, simbolicamente e institucionalmente ancorado no Templo de Jerusalém, fornecesse o poder de sustentação ideológicaNorman K. Gottwald (1926-2022) necessária para esse empreendimento monumental.

Como se viu, o ambicioso projeto de reforma foi interrompido em menos de vinte anos. A liberdade da intervenção estrangeira não durou muito. Inicialmente o Egito, e depois a Babilônia, estendeu o controle imperial sobre Judá.

Lamentavelmente, sabemos muito pouco sobre quão extensiva ou intensivamente as reformas foram realmente realizadas, especialmente as medidas econômicas, sociais e jurídicas do Deuteronômio que não são mencionadas em 2 Reis 22-23.

A julgar por Jeremias e Ezequiel, que escreveram alguns anos após a morte de Josias, o prestígio do culto de Jerusalém foi aumentado, mas com uma santidade quase supersticiosa e sem muitas das purificações religiosas que o Deuteronômio havia ordenado. A injustiça social e a corrupção judicial são fortemente pontuadas por esses profetas, enquanto a única evidência que possuímos de que as reformas sociais realmente foram instituídas é um oráculo de Jeremias que elogia Josias por ter “julgado a causa dos pobres e necessitados” (Jr 22,13-19), o que pode, na verdade, ser uma referência aos trabalhadores assalariados das obras régias que substituíram a corveia, e que eram o único grupo da população empobrecida que lucrava com as reformas.

Observação: as 5 notas de rodapé deste texto, de 16 a 20, foram omitidas. Duas delas citam a tese de Shigeyuki Nakanose, que estava para ser publicada.

 

Josiah’s reformation, described largely in religious terms in 2 Kings 22-23, has escaped careful class analysis in favor of more literary and theological concerns, such as the relation of the reform to the Deuteronomic law code and the overt religious aims of the reformers. Often the discussion proceeds as though the law code in and of itself was the cause of the reform and its formulators the sole proponents of reform. Above all, the religious dimensions of the reform are abstracted from its social class matrix. In undertaking a social class reading of the situation behind 2 Kings 22-23, we do not have two sharply contradictory points of view as in 1 Kings 4-12, so we have to bring together more textual sources to get a larger reading of the conjunction of social historical circumstances at that watershed moment.

Judah had been a shrunken vassal kingdom of Assyria for seventy-five years, reduced in size, with its ruling class members-both those in and out of government – pushed to wring all they could out of the peasant economic base in order to survive and prosper marginally. Simultaneously, this ruling class was drawn into adopting Assyrian high culture to solidify its precarious political position, further alienating its members from those they exploited. The rapid dissolution of the Assyrian imperial rule in Syria-Palestine early in the reign of Josiah completely altered the class balance of power in Palestine. The political rulers in Jerusalem saw that it might now be possible not only to solidify their hold on Judah but to expand their dominion over the territory and populace of the former northern kingdom of Israel, which no longer functioned as Assyrian provinces. This expansion would open up new economic resources for the crown and for the landholding and merchant elites of Judah.

Given the goals and the resources, what would it take to bring off this ambitious project? It would certainly necessitate concerted military and bureaucratic efforts over a very large area and in the face of a hostile populace to prosecute this program. But in order to enlist, train, and motivate the necessary troops and lesser officials, expanded revenues and a loyal and committed Judahite populace were indispensable. The firm base of the reformation proponents consisted of the king and his court officials, army commanders, priests and prophets attached to Jerusalem, and landowners and merchants of Judah, who had a stake in seeing greater wealth and power flow to Jerusalem.’ But could the tribute-laden populace of Judah be reliably enlisted in the cause?

Since there was no way for Josiah to proceed that did not require more revenues from his subjects, his first approach was to rally Judahites with a twin appeal to patriotic fervor and religious purity. The nationalist religious ideology of the Deuteronomists was broadcast in the hopes of building a strong “popular front” in the cause of Israel’s God against Assyrian foreigners and apostate Israelites, north and south. In short, Josiah and his regime aspired to restore the territorial conquests and embody the religious loyalties of Joshua and David. The reform’s bold move to outlaw all Yahwistic worship outside of Jerusalem served both to enhance the authority of the capital and to finance the conquest of the north from the tithes and offerings flowing into the city and from increased trading revenues derived from the obligatory festival pilgrimages. The diversion of funds and religious activities to Jerusalem also devalued local culture and religion, and the effect of Deuteronomic legislation on family life further undercut the autonomy and integrity of the households that still survived in many rural areas. Especially radical was the uprooting of the Passover observance from its longstanding household milieu and its restrictive relocation to Jerusalem. In return for an increase in tribute, service in the army, and the eviscerating of local religious culture, the reforms offered some debt relief and public charity to the needy.

So how did Josiah’s “bread and circuses” policies fare with the great majority of the tribute-obligated populace? Not very well. To begin with, most of the populace of the former northern kingdom had long been alienated from the Davidic dynasty in Jerusalem. They deeply resented the compulsory payments and long pilgrimages to Jerusalem and were appalled at the brutal violence that Josiah visited on their cult centers. In Judah, reception of the reforms was doubtless more mixed outside elite circles. Some resonated with the hope of reviving the glorious days of the Davidic empire. Some were attracted to the promise of debt relief. Peasants living close enough to Jerusalem to make easy pilgrimage might be pleased at the convenience, but the violent suppression of Judahite cult sites outside Jerusalem was alienating to many. The rural priests, respected in their communities, were defrocked and angered. The increased revenues to Jerusalem were irritating for some and onerous for many. The measures that struck at local loyalties and threatened household culture and religion were resented. Consequently, it is reasonable to conclude that a large majority of the Judahite peasantry fell along a spectrum ranging from indifference to open hostility toward the reforms. By contrast, it is likely that the biggest supporters of the reforms among the exploited sub-classes were day laborers who were descended from refugees of the northern kingdom in 722 BCE or who came off farms in Judah that they had lost to indebtedness. This rootless group, often unemployed, would profit from increased work in military preparations, in public construction, and in service jobs occasioned by the pilgrimage trade. Living in and around Jerusalem, they also stood to gain more from public charity than peasants scattered in the countryside.

Shigeyuki NakanoseHere then was a draconian reconstitution of government and cult from above, drastically extracting surplus and severely disrupting culture in all major areas of the common life. Stripped to its central point, the reformers offered a trade-off between a more powerful centralized government and cult, on the one hand, and improved living conditions for the general populace, on the other. All in all, the strident reform effort probably did not win over a very sizable base of support, rooted as it was in the dominant class in Jerusalem, resisted almost unanimously in the north, and precariously supported by only a minority of the Judahite exploited class. It could only succeed by immediate force of arms, with the hope of securing conditions for a longer-term revival and expansion of the economic base by incorporating the more fertile northern territories into a political economy orchestrated from Judah. It was hoped that nationalist religious fervor, symbolically and institutionally anchored to the Jerusalem Temple, would provide the ideological sustaining power needed for this monumental endeavor.

As it turned out, the ambitious reform project was cut short in less than twenty years. The freedom from foreign intervention did not last long. Initially Egypt, and then Neo-Babylonia, extended imperial control over Judah. Regrettably, we know very little about how extensively or intensively the reforms were actually carried out, especially the economic, social, and juridical measures in Deuteronomy that are not mentioned in 2 Kings 22-23. Judging from Jeremiah and Ezekiel, who wrote some years after Josiah’s death, the prestige of the Jerusalem cult was enhanced, but with a virtual superstitious sanctity and without many of the religious purifications that Deuteronomy had mandated. Social injustice and judicial corruption are heavily scored by these prophets, while the sole evidence we possess of social reforms actually having been instituted is one oracle of Jeremiah that praises Josiah for having “judged the cause of the poor and needy” (Jer 22:13-17), which may actually be a reference to wage laborers on royal construction projects who replaced corv6e, and who were the one group of the depressed populace that profited from the reforms.

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