Sandri fala sobre a oposição da Cúria a Francisco

Imagino que, no Brasil, — mas também em qualquer outro país da América Latina ou da Ásia ou da África e do Norte do mundo! — as pessoas nada saibam das brigas curiais e tenham outros problemas para se preocuparem. Todavia, um discurso como aquele do dia 22 de dezembro, retomado por muitos meios de comunicação, sugere também aos mais distraídos e às pessoas mais distantes de Roma que na Cúria — isto é, no órgão que auxilia o Papa no governo da Igreja Católica — está crescendo uma dura oposição a Bergoglio. Em suma, terminou, na Cúria e no establishment católico, a lua de mel  – se é que tenha existido – com Jorge Mario Bergoglio (Luigi Sandri).

Como a cúpula da Igreja obstrui a mensagem do Papa de dentro do Vaticano – Marcela Belchior: Adital – 13/02/2015

Em uma atitude que nenhum pontífice jamais havia ousado ter na história recente da Igreja Católica, o Papa Francisco pegou a Cúria Romana despreparada e falou claramente da necessidade de mudança na cúpula do Vaticano. Em discurso proferido no último dia 22 de dezembro, o primeiro papa latino-americano tornou público que não sente na equipe da Santa Sé fidelidade às suas diretivas e solidariedade às perspectivas de seu pontificado [cf. o discurso de Francisco aqui].

Os 2.300 curiais se dividem em três grupos: os que estão do lado de Francisco, se empenhando por atender às suas indicações; os que não se opõem, mas se limitam a um trabalho burocrático, deixando a máquina lenta; e, finalmente, aqueles profundamente contrários à forma de agir de Jorge Mario Bergoglio, sua teologia, seu estilo de vida e seu próprio magistério.

São esses dois últimos grupos que formam a grande maioria da Cúria e atuam, deliberadamente, obstruindo a mensagem libertadora do Papa. Operando em torno da manutenção do establishment católico, complicando o caminho das reformas imaginadas pelo Papa, essa oposição também tem motivações políticas e financeiras, associada a interesses dos que defendem os privilégios dos ricos pelo sistema neoliberal em detrimento das causas estruturais que geram a pobreza, denunciadas por Francisco.

“Pode haver um órgão como a Cúria Romana que não seja dominado pelas tentações do poder?”. Com essa pergunta, o jornalista, vaticanista e escritor italiano Luigi Sandri nos ajuda a compreender o que se passa no Vaticano e como isso reflete em toda a comunidade católica do mundo. Autor dos livros Cronache dal futuro (em português, “Crônicas do futuro”) e Dal Gerusalemme I al Vaticano III. I Concili nella storia tra Vangelo e potere (em português, “De Jerusalém I ao Vaticano III. Os Concílios na história entre o Evangelho e o poder”), Sandri, em entrevista exclusiva para a Adital, defende que é preciso, sim, uma reforma dentro cúpula da Igreja Católica.

Para o escritor, essa reforma é o passo decisivo para uma reformulação subsequente da Igreja Católica Apostólica Romana. “Mas o caminho não será fácil, e serão inevitáveis as tensões, sofrimentos e contradições”, adverte. Atualmente, a estrutura da Santa Sé remonta (acredite) à reforma lançada pelo Papa Sisto V, ainda de 1588, época em que toda a América Latina, principal reduto católico no mundo, mal brotava nos mapas do globo. Somente com uma equipe que reflita sua mentalidade, o Papa pode tornar real uma mudança nos rumos da Igreja Católica. Caso contrário, Francisco corre o risco de continuar sozinho na luta pela libertação dos povos.

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Sobre algumas leituras de Marcos

Observações sobre algumas leituras atuais de Marcos. Cadernos do Cearp, Ribeirão Preto, n. 7, p. 44-57, 1997.

Nota: O artigo foi escrito em 1997. Para textos mais recentes sobre Bíblia, confira aqui. Este artigo está disponível também na Ayrton’s Biblical Page.

 

A proposta deste artigo é a de servir ao leitor como orientação para a leitura de Marcos. Por isto comento dez das mais recentes e conhecidas obras escritas nos últimos anos, acessíveis em português e espanhol, sobre o evangelho de Marcos. A ordem seguida foi a da data da publicação original. Começamos assim em 1966 e terminamos em 1996. É necessário observarmos que nem todas as publicações em português destes últimos 30 anos são aqui comentadas.

 

TAYLOR, V. Evangelio según San Marcos. Madrid: Cristiandad, 1979, 848 p.

Este é um clássico e indispensável comentário a Marcos. Editado em inglês pela primeira vez em 1952, teve uma segunda edição publicada em 1966, com várias reimpressões. Seu título original é The Gospel According to St. Mark. The Greek Text with Introduction, Notes and Indexes. A edição espanhola utilizou a 8a reimpressão inglesa, feita em 1969.

É o próprio Vincent Taylor, exegeta metodista britânico, nascido em 1887 e falecido em 1968, que nos explica a estrutura do livro no prólogo à 1a edição, p. 24: “NaTAYLOR, V. Evangelio según San Marcos. Madrid: Cristiandad, 1979, 848 p. introdução estudei os problemas críticos, gramaticais, teológicos e históricos, para não ter que discuti-los sempre de novo. No comentário dividi o texto primeiro em grandes blocos e, em seguida, em seções que contêm diversas narrativas e ditos de Jesus, tudo precedido por curtas introduções; em notas separadas estudei problemas especiais. No final do volume acrescentei alguns excursos sobre problemas mais amplos, cuja solução tem que ser necessariamente de caráter mais geral e especulativo”.

O jesuíta espanhol Dionísio Mínguez, professor no Pontifício Instituto Bíblico de Roma, comenta, na apresentação à edição espanhola deste clássico: “A informação é exaustiva, a crítica perspicaz e equilibrada, a orientação um pouco conservadora”. No campo da filologia Taylor é um expoente da mais genuína tradição britânica, pois “discute quase todas as palavras, estuda suas raízes no grego clássico, nos papiros, na LXX (= tradução grega do AT), manuseia documentos e manuscritos, revisa as diversas traduções inglesas, aceitando-as ou propondo outras novas mais ajustadas ao significado original. Faz o mesmo com as construções, sobretudo quando analisa expressões típicas de Marcos que são difíceis, incorretas, ou simplesmente mal transmitidas pela tradição textual” (p. 18-19).

É livro de leitura lenta e difícil, portanto recomendado para especialistas, como se pode deduzir destas poucas palavras. Mas, necessária, conclui Mínguez, quando afirma na p. 20: “O comentário é uma obra extraordinária e ainda hoje imprescindível para o estudo sério de Marcos. Se tivesse que salvar para a posteridade apenas dois comentários a Marcos dentre os muitos aparecidos neste século pessoalmente eu não duvidaria sequer um momento: o comentário de Vincent Taylor seria imediatamente o primeiro contemplado”.

 

DELORME, J. Leitura do evangelho segundo Marcos. São Paulo: Paulinas, 1982, 148 p.

Em 1972, Jean Delorme, sacerdote da diocese de Annecy e professor nas Faculdades Católicas de Lyon, na França, fez uma palestra para sacerdotes sobre o evangelho de Marcos, do qual é especialista. Desta palestra nasceu o Lecture de l’Évangile selon Saint Marc. Paris: Du Cerf, 1972. Em português o livro está na Coleção Cadernos Bíblicos da então Paulinas (hoje Paulus), sob o número 11.

DELORME, J. Leitura do evangelho segundo Marcos. São Paulo: Paulinas, 1982, 148 p.É um estudo perfeitamente acessível ao leigo, escrito com clareza e em estilo agradável. O autor nos conduz através do evangelho de Marcos, “convidando-nos a participarmos do drama que nele se desenrola”, explica E. Charpentier, editor da coleção francesa Cahiers d’Évangile, na qual a obra foi originariamente publicada.

J. Delorme propõe três leituras globais de Marcos, cada uma salientando um aspecto do evangelho:

A primeira leitura observa o evangelho de Marcos a partir dos deslocamentos de Jesus e procura seu plano a partir da geografia teológica de Marcos, observando-se uma dupla oposição: 1a) Galileia – Jerusalém: “É da Galileia que o Evangelho deve difundir-se, depois da Ressurreição, como foi da Galileia que Jesus começou a proclamá-lo. Jerusalém aparece como a cidadela da oposição, a cidade da qual vem o ataque mais hostil a Jesus (3,22) e na qual os responsáveis pela nação o condenarão à morte e o entregarão aos pagãos” (p. 14); 2a) Galileia, região habitada por judeus e por gentios: esta oposição se manifesta no deslocamento de Jesus entre as duas margens do lago de Genezaré, sendo que uma fica do lado dos judeus – e na qual Jesus enfrenta a oposição dos escribas e fariseus vindos de Jerusalém – e outra do lado dos gentios, onde Jesus prefere mover-se, por ser aí bem aceito. “Assim a Galileia de Marcos não tem fronteiras. Nela, opõem-se dois espaços, o dos fariseus e escribas, o qual se fecha em si mesmo, e o que Jesus vai abrindo, ao passar entre os pagãos [= gentios]” (p. 15).  É uma geografia teológica, pois provavelmente Jesus jamais ultrapassou a fronteira judaica da Galileia, mas “Marcos insiste neste ponto porque vê nele a preparação da missão aos pagãos”(p. 15). Os deslocamentos de Jesus em Marcos nos propõe um evangelho que não deve deixar se encerrar nos limites de uma Jerusalém qualquer, ontem ou hoje.

A segunda leitura nos convida a participarmos do drama que se representa dentro deste espaço geográfico acima delineado. A primeira frase do evangelho de Marcos é: “Evangelho de Jesus, Cristo, Filho de Deus”.  Mas, como Jesus manifesta que ele é o Cristo, o Filho de Deus? Curiosamente, Jesus oculta sua identidade (chamamos isso de “segredo messiânico”) até a cruz. Somente após a sua morte, um gentio, um centurião romano, é quem vai dizer: “De fato, este homem era Filho de Deus” (15,29). “Aqui o círculo se fecha. A partir deste momento, diz-nos Marcos, podeis dizer que Jesus é Filho de Deus, porque o vistes morrer. O fato de o crucificado ser aquele que vós proclamais Filho de Deus esvazia todos os mitos de filho de Deus que poderíeis aplicar a Jesus… Ele é o Cristo, mas de um modo todo seu, não como esperaríeis. É o crucificado que é Filho de Deus. Temos aqui o ponto culminante do evangelho de Marcos. É isto que ele quer pôr na cabeça dos cristãos” (p. 23-24).

A terceira leitura, que ocupa a maior parte do livro, nos convida a seguir “as relações que se estabelecem entre Jesus e os discípulos, entre Jesus e a multidão, entre Jesus e seus adversários” (p. 33). Segundo Delorme temos em Marcos “uma espécie de triângulo, formado pelas relações complexas entres esses três polos: multidão, adversários, discípulos” (p. 33). Os discípulos adquirem uma fisionomia própria, reunidos em torno de Jesus, na medida em que este se posiciona face à multidão e aos seus adversários. Jesus convoca os discípulos, prepara-os para compreenderem sua pessoa, sua obra e sua missão e, entretanto, acaba abandonado por eles e enfrenta sozinho seus juízes e algozes (cf. o quadro sinótico das três leituras na p. 35).

Importante para compreendermos a perspectiva do autor são suas observações na p. 7, na introdução: Marcos sempre foi preterido na Igreja em favor de Mateus e de Lucas. Somente no século XIX ele foi redescoberto. E hoje, o crescimento do interesse pela humanidade de Jesus é o principal motivo que nos leva à leitura e estudo desse evangelho que descreve um Jesus que ensina pouco e age mais.

 

CLÉVENOT, M. Enfoques materialistas da Bíblia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, 164 p.

O livro de Michel Clévenot, Approches matérialistes de la Bible, foi publicado pela Du Cerf, em Paris, no ano de 1976. O autor se inspira na famosa obra do português Fernando Belo, de orientação marxista, Lecture matérialiste de l’Évangile de Marc. Récit – Pratique – Ideologie, também editada pela Du Cerf em 1974.

Fernando Belo causou sensação na época ao ler Marcos através de Marx nas difíceis e complexas 415 páginas de sua obra. É que F. Belo combina o marxismoCLÉVENOT, M. Enfoques materialistas da Bíblia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, 164 p. estruturalista de L. Althusser com a teoria de linguística e de semiótica social extraídas de F. de Saussure, R. Barthes e J. Derrida, exigindo do leitor “coragem e uma certa dose de conhecimento para lê-lo até o fim”, explica Clévenot no prólogo de sua obra, p. 17. E completa: “Responsável pela edição do ‘Belo’, pareceu-me útil apresentar aos numerosos leitores interessados por esse novo acesso à Bíblia um livro menor, mais modesto e, espero, mais abordável” (p. 17).

A 1a parte do livro de Clévenot, fruto de um seminário de dois anos, do qual participou também F. Belo, traz uma abordagem materialista das tradições Javista, Eloísta, Sacerdotal e Deuteronomista, vistas como produto da conjunção de fatores ideológicos, políticos e econômicos. A 2a parte faz uma leitura do evangelho de Marcos como um relato da prática de Jesus, seguindo os passos de F. Belo. Como explica Clévenot, na p. 22, “nós consideraremos os textos que compõem a Bíblia como produtos ideológicos. Nosso projeto será analisar as condições nas quais ele foi produzido”.

Mas o que vem a ser este enfoque materialista de Clévenot? Ele mesmo explica na p. 22: “Ao contrário da filosofia alemã (idealista), que desce dos céus à terra, aqui nós subiremos da terra para o céu. Quer dizer, nós não nos baseamos no que os homens dizem, pensam, representam, nem naquilo que eles são segundo as palavras, pensamentos, imaginação e representação de outros para então chegar aos homens em carne e osso; não, nós nos baseamos nos homens em suas atividades reais, quer dizer, é a partir do processo real de vida que podemos representar o próprio desenvolvimento dos reflexos e das repercussões ideológicas desse processo vital”.

Assim,  “ler Marcos de modo materialista é tomá-lo como uma narração que não se pode compreender fora da situação social de seu autor e dos protagonistas (Jesus, seus amigos, seus adversários, a multidão…). É pôr o acento menos nas palavras de  Jesus do que na sua prática; tanto mais que a narração de Marcos não é uma coleção de ‘palavras’ ou ‘discursos’, mas expõe práticas e estratégias”, confirma F. Belo em La Lettre 198 (fev. 1975), Paris, Temps Present, p. 11.

 

MATEOS, J. Los “Doce” y otros seguidores de Jesús en el Evangelio de Marcos. Madrid: Cristiandad, 1982, 304 p.

“Juan Mateos é professor dos Institutos Oriental e Bíblico de Roma. É autor de uma série de livros de grande rigor linguístico e exegético que abrem um novo caminho para a leitura e interpretação do NT”, informa-nos a “orelha” do livro.

De fato, o autor procura esclarecer, através de rigorosa análise linguística e exegética, a existência de diversos grupos de seguidores de Jesus: os Doze, os discípulos, os que estão em torno dele, a multidão e sua relação com Jesus…

MATEOS, J. Los “Doce” y otros seguidores de Jesús en el Evangelio de Marcos. Madrid: Cristiandad, 1982, 304 p.Segundo Juan Mateos (cf. p. 247-258) há, em Marcos, dois grupos que acompanham Jesus:

  • os Doze/discípulos (3,14): representam o Israel institucional e se dividem em três subgrupos:

– Simão (Pedra = obstinado: 8,32), Tiago e João (Filhos do Trovão = autoritários  e ambiciosos: 10,37)
– André e os outros (são 8): são os homens sem destaque
– Judas: o traidor.

  • os que estavam ao redor dele: são os não-israelitas, rompidos com a aliança, tipificados por Levi (2,14). É a nova família de Jesus (3,34-35).

Estes dois grupos se distinguem dos de fora (4,11), que é a multidão que escuta Jesus, mas não o segue.

Os dois grupos (Doze/discípulos e os que estavam ao redor dele) estão na casa (espaço da comunidade) e no barco. Os outros estão fora da casa ou na margem.

Quando se dirige aos Doze/discípulos, Jesus usa expressões do AT (batismo, Messias, ressurreição, aliança). Quando Jesus se dirige “aos que estavam ao redor dele”, usa outros termos equivalentes aos anteriores (o Filho do Homem, o Filho de Deus, salvar a vida = ressurreição, seguir Jesus = batismo e aliança).

Assim, Marcos amplia o evangelho para os não-judeus, os gentios. Basta que sigam a Jesus.

A incompreensão dos Doze/discípulos é repetida ao longo do evangelho (4,34; 8,18; 8,22-26; 10,46-52), enquanto que “os que estavam com ele”, por pertencerem ao judaísmo periférico e por seu pouco apego às tradições judaicas, compreendem logo, após a 1a  vacilação (4,10). Veja-se a oposição entre os dois grupos em 9,33-37, onde a “criança” representa “os que estavam com ele”, em oposição aos Doze que discutiam quem era o mais importante.

Também a atitude de Simão Pedro (nega, foge) está em contraste com a de Simão Cirineu (segue, ajuda), este sim, símbolo dos que estavam com Jesus, pois ele é da diáspora.

No final do evangelho os Doze/discípulos (os judaizantes) não recebem o aviso para ir encontrar Jesus na Galileia (as mulheres se calam: 16,8): eles ficam presos a Jerusalém, ao ideal messiânico nacionalista… não existe para eles um Jesus vivo e ativo após a sua morte: são os judaizantes da época de Marcos! Mas os outros prosseguem, simbolizados em Simão Cirineu (pai de Alexandre, nome grego, e Paulo, latino, símbolos das comunidades cristãs que florescem na gentilidade).

O autor explica nas p. 29-31 que o estudo é feito unicamente a partir do texto de Marcos, único dado objetivo ao nosso alcance. A história de sua redação é deixada de lado, por seu caráter necessariamente hipotético, conduzindo a pontos de vista subjetivos e convidando o exegeta a resolver de modo não textual os problemas do texto.

 

CÁRDENAS PALLARES, J. Um pobre chamado Jesus. Releitura do evangelho de Marcos. São Paulo: Paulinas, 1988, 167 p.

José Cárdenas Pallares é um sacerdote mexicano. Un pobre llamado Jesús foi surgindo pouco a pouco, em palestras e cursos, fruto do trabalho pastoral do autor. Pallares decidiu publicar em 1982 estes trabalhos “porque demonstram o aspecto humano, radical e revelador das lutas de Jesus, o caráter libertador de sua práxis e a ‘parcialidade’  total de Deus a favor dos oprimidos. A causa de Jesus é a de Deus inseparavelmente unido com todos os explorados” (p. 7).

O autor explica na introdução à obra que estas páginas são o resultado de uma decepção, na medida em que ele, ao chegar à sua paróquia muito seguro de seus conhecimentos bíblicos, pensava que bastava transmitir ao povo o que havia aprendido para que este amadurecesse em seu compromisso cristão.

“O grande problema da exegese bíblica era e é o de tornar a palavra de Deus acessível ao homem moderno. Mas esse Homem não existe entre nós e, o que é pior, identifica-se – ao menos assim o percebem os pobres – com o opressor, com quem os trata como burros de carga ou como curiosidades de zoológico” (p. 8).

Colocando-se, assim, inteiramente do lado dos oprimidos em um país subdesenvolvido, o autor questiona a “isenção cientifica” da exegese atual, que se esqueceu de que “a linguagem do evangelho de são Marcos é linguagem simples, é literatura de gente pobre” e se pergunta angustiado: “A exegese está sendo elaborada em função de que projeto de sociedade, ou dizendo mais humildemente, em função de que tipo de pastoral? (…) Será o evangelho, antes de tudo e acima de tudo, Boa Nova para os satisfeitos? (…) Nós, os novos intérpretes da Bíblia, estaremos em sintonia, em afinidade sociológica com Jesus? E se nossa situação fosse mais semelhante à dos dirigentes fariseus ou à dos saduceus?” (p. 9).

Procurando responder, através da leitura do evangelho de Marcos, qual é a Boa Nova de Cristo para o homem humilhado e tiranizado da América Latina, o autor aborda em 11 capítulos os seguintes temas: o conflito de Jesus com as autoridades do judaísmo, o poder de Jesus expresso nos sinais de libertação (= milagres), a satanização de Jesus, a postura de Jesus face à opressão da mulher, Jesus e a riqueza, Jesus e o poder, Jesus e a máscara de santidade das autoridades religiosas, o que vale um pobre (Mc 12,41-44): o óbolo da viúva), o assassinato de Jesus, a ressurreição de um maldito e, finalmente, o triunfo da vida.

Confrontados com a morte de Jesus não devemos perguntar: “Diante da dor dos oprimidos é Deus derrotado e inútil?”, mas afirmar: “Se há futuro para Jesus, nada nem ninguém pode impedir o futuro, o triunfo definitivo dos oprimidos” (p. 163).

Este é um livro de leitura fácil e provocadora.

 

ALEGRE, X. Marcos ou a correção de uma ideologia triunfalista. Chave de leitura de um evangelho beligerante e comprometido. Belo Horizonte: CEBI, n. 8, 1988, 43 p.

Este livreto é a tradução de Marc o la correcció d’una ideologia trionfalista. Pautes de lectura d’un evangeli belligerant i compromès, texto da aula inaugural do ano letivo 1984-85 da Facultad de Teologia de Barcelona.

Xavier Alegre nos diz na p. 2 que “vivendo em El Salvador, uma igreja marcada por uma dura perseguição e regada pelo sangue de muitos mártires, entre os quais se destaca Dom Oscar Ranulfo Romero – São Romero da América, como o denomina Dom Pedro Casaldáliga – tornou-se mais claro, para mim, o teor que Marcos quis dar à sua obra”. Por isso o autor presta, através deste texto, “uma homenagem de gratidão às comunidades cristãs de El Salvador, sobretudo às pessoas simples e pobres que as compõem, os autênticos destinatários de uma obra como a de Marcos que, com seu testemunho de fé e esperança e amor, me ensinaram a ler com novos olhos o Evangelho de Jesus, morto e ressuscitado por ter vivido, com toda a radicalidade, a solidariedade  com os pobres, como testemunho do infinito amor do Pai”.

Segundo Alegre, Marcos escreveu sua obra para corrigir uma interpretação triunfalista da figura de Jesus, interpretação esta “apoiada no poder de fazer milagres que era próprio de Jesus” (p. 6). É então que Marcos “nos apresenta a figura de Jesus e da comunidade cristã com traços mais críticos em relação a determinadas representações triunfalistas da fé que esquecem o conflito histórico de Jesus com os poderes políticos e religiosos do seu tempo” (p. 3-4).

O autor vai demostrar sua tese a partir de dois pontos:

  • a estrutura do evangelho, que deixa a descoberto a cegueira dos homens do tempo de Jesus, dominados que são pela ideologia dominante
  • os retoques redacionais que Marcos realiza em suas fontes – “sobretudo no que diz respeito aos milagres e exorcismos e nos textos em que aparecem os discípulos de Jesus – e que têm como denominador comum o que os especialistas convencionaram chamar ‘o segredo messiânico’ e ‘a incompreensão dos discípulos’” (p. 6).

Alegre defende que Marcos quer fazer a comunidade cristã de ontem e de hoje entender que só se pode saber quem é Jesus quem o segue no caminho da cruz.

É uma leitura genial do evangelho, muito coerente, com um raciocínio bem estruturado e um enfoque bem situado. Poder-se-ia, a partir desta ótica, desenvolver o que o autor chama de “caminho da cruz”. O texto trata do aspecto negativo apenas – a correção da ideologia triunfalista – quando pode-se mostrar o caminho a ser seguido. Como, por exemplo, através das oposições do bloco 8,31-10,52: criança/adulto, último/primeiro, servir/dominar etc, onde se definem as práticas messiânica e eclesial.

 

MYERS, C. O evangelho de São Marcos. São Paulo: Paulinas, 1992, 581 p.

Um ativista da paz, Ched Myers estudou S. Escritura em Berkeley, Califórnia. O original deste comentário a Marcos foi publicado pela Orbis Books, Maryknol, New York, em 1988 e tem como título Binding the Strong Man. A Political Reading of Mark’s Story of Jesus (“Amarrando o homem forte. Leitura política da história de Jesus de Marcos”).

A obra compõe-se de quatro partes: a primeira trata do texto e do contexto sócio-histórico do evangelho de Marcos, a segunda e a terceira leem o texto e a quarta traz as conclusões do trabalho. Um posfácio e um apêndice consideram as várias leituras sociopolíticas atuais da narrativa de  Jesus.

O autor adota o modelo centro-periferia, que ele (norte-americano, escrevendo do centro imperial) considera adequado tanto para a produção do texto de Marcos quanto para a sua leitura atual.

“O mundo mediterrâneo antigo era dominado pela lei da Roma imperial. No entanto, se eu leio situando-me no centro [USA], Marcos escreveu da periferia palestina [naMYERS, C. O evangelho de São Marcos. São Paulo: Paulinas, 1992, 581 p. Galileia, entre 66 e 70 d.C. quando Roma destruía a Palestina]. Seu principal auditório era constituído por aqueles cujas vidas diárias suportavam o peso explorador do colonialismo, ao passo que os meus ouvintes são os que se acham em posição que lhes possibilita usufruir os privilégios do colonizador” (p. 29).

Assim, citando Dorothee Sölle, o autor reflete: “Nós que nos achamos no centro (…) não temos outra opção senão a de ‘fazer teologia na casa do faraó’, ou seja, ficar do lado dos hebreus mesmo sendo cidadãos do Egito” (p. 30). Privilegiada, para ler Marcos, é a situação de quem se  situa na periferia e pode enfocar adequadamente temas de libertação, como o fazem os teólogos latino-americanos, emenda o autor.

Deste modo, mesmo situado no centro, o autor defende uma leitura libertadora de Marcos, considerando a chave apocalíptica a mais adequada para a leitura do texto, a partir de sua definição dos escritos apocalípticos, tais como Daniel e Apocalipse, como “manifestos políticos de movimentos não-violentos de resistência à tirania”. “Meu comentário” acrescenta Myers “demonstra que o mesmo pode ser dito a propósito de Marcos” (p. 491).

Ched Myers procura extrair três fios narrativos ou subtramas do evangelho de Marcos. “A primeira subtrama envolve tentativas de Jesus para criar e consolidar uma comunidade messiânica, tendo como sujeito evidentemente seus discípulos. Seu mandamento a eles dirigido deve levar avante a obra do reino (…) A segunda subtrama é o ministério de Jesus de cura, de exorcismo e de proclamação da libertação, tendo como sujeito os pobres e oprimidos, encarnados pela ‘multidão’ no Evangelho. O mandamento aparece no primeiro exorcismo da sinagoga, em que a multidão reconhece que  a autoridade de Jesus supera  a dos supersenhores, os escribas (…) A terceira subtrama é o confronto de Jesus com a ordem sociosimbólica dominante, tendo como sujeito os defensores desta obra: os escribas, os fariseus, os herodianos e o clero dirigente de Jerusalém. Jesus confia seu mandamento a eles diversas vezes na primeira campanha de ação direta, afirmando sua autoridade sobre o sistema de pureza e de débito (2,10.28) e desafiando as autoridades a optarem pela justiça e pela  compaixão em vez da dominação” (p. 158-159).

Estas três subtramas levam Jesus à prisão e execução, com a deserção dos discípulos, a decepção da multidão e a hostilidade das autoridades. Jesus segue sozinho o caminho da cruz. “Essa tragédia, porém, é revertida pela promessa de que, como Jesus vive, a aventura do discipulado pode continuar (16,6s)” (p. 158).

Deste modo, o evangelho de Marcos é visto como um manifesto escrito para súditos do poder imperial romano “aprenderem a dura verdade sobre o seu mundo e sobre eles mesmos”. Para Ched Myers o relato de Marcos “é história feita pelos comprometidos, que versa sobre os comprometidos e que se dirige aos comprometidos com  a obra de Deus, obra de justiça , de compaixão e de libertação no mundo”.

Aos teólogos modernos Marcos não “oferece sinais do céu” (Mc 8,11-12), como não os oferecem aos fariseus; aos exegetas que recusam um compromisso ideológico Jesus não dá resposta alguma, como não a deu aos sumos sacerdotes (Mc 11,30-33)… “Mas aos que querem provocar a ira do império, Marcos apresenta uma forma de “discipulado (8,34ss)” (p. 34). Um discipulado radical.

 

VV. AA. Ele caminha à vossa frente. O seguimento de Jesus pelo evangelho de Marcos. Estudos Bíblicos, Petrópolis, n. 22, 1989, 93 p.

O número 22 da revista Estudos Bíblicos foi preparado pelos “biblistas mineiros”, grupo que periodicamente se reúne em Belo Horizonte para colaborar com esta publicação da Vozes, como o fazem outros grupos espalhados pelo país. À época, 1989, coordenado por Alberto Antoniazzi, este grupo optou pelo estudo do evangelho de Marcos, com especial atenção à pedagogia de Jesus. Cientes de que Jesus ensinou mais pela vida do que pelas palavras, demos atenção “à prática (ou práxis) de Jesus, assim como Marcos a apresenta, e ao modo com que o mesmo evangelista fez da vida de Jesus o roteiro da caminhada de seus discípulos; roteiro válido para nós hoje”, explica o editorial assinado por A. Antoniazzi.

Duas visões de conjunto do evangelho abrem este n. 22: Airton José da Silva oferece, no primeiro artigo, um roteiro para uma leitura de Marcos, acompanhado o próprio texto do evangelho e relendo “o contexto conflitivo em que foi escrito e o seu objetivo de preservar uma memória proibida, que alimentava a luta dos oprimidos” (p. 8); Walmor Oliveira de Azevedo, no segundo artigo, “procura revelar ‘a força pedagógica da articulação global do Evangelho de Marcos’”, mostrando “como a leitura do Evangelho provoca e exige o envolvimento do leitor num processo que lhe abre perspectivas de ação libertadora” (p. 8).

A seguir são propostos dois exemplos do seguimento de Jesus em Marcos através da análise de temas específicos. Alberto Antoniazzi lê Mc 4,1-14, o capítulo das parábolas, enquanto Airton José da Silva explora o significado dos milagres em Marcos, através da leitura de Mc 6,30-44, relato da multiplicação dos pães”.

Após estes quatro artigos, dois instrumentos de trabalho são oferecidos ao leitor: “Uma experiência popular com Marcos” de Paulo Sérgio Soares, “explica como um grupo pode aprender a usar (na sua comparação bem ao gosto do povo) o facão para tirar a água do coco, ou a mensagem da Bíblia” (p.8); e em “Apresentação de alguns estudos sobre Marcos”, Emanuel Messias de Oliveira apresenta nove livros sobre Marcos, com a intenção de ajudar o leitor interessado a prosseguir suas pesquisas sobre Marcos.

Como brinde aos leitores, José Luiz Gonzaga do Prado “apresenta uma leitura original do conhecido texto de Paulo, Fl 2,6-11, mostrando que a perspectiva do caminho, tão importante para entender Marcos, ilumina também o famoso texto paulino”, explica A. Antoniazzi no editorial.

Uma notícia sobre o Mês da Bíblia e duas recensões encerram este número de Estudos Bíblicos, que recomendo vivamente ao leitor como útil instrumento para que faça, ele mesmo,  a “sua” leitura de Marcos.

 

BALANCIN, E. M. Como ler o evangelho de Marcos. Quem é Jesus?  2. ed. São Paulo: Paulus, 1991, 183 p.

Este texto de Euclides Martins Balancin reutiliza o material pensado e apresentado para círculos bíblicos no semanário Bíblia-Gente e faz parte da coleção de sucesso da Paulus “Como ler a Bíblia”. Coleção que pretende ser “uma chave de leitura, uma espécie de lanterna que nos ajuda a focalizar e a enxergar, no seu conjunto, um ou mais livros bíblicos (…) e estimula a ler os textos com os pés no chão da existência, jamais perdendo de vista os anseios de vida e liberdade do nosso povo”, explica a editora na p. 5.

Lendo o primeiro versículo de Marcos (“Começo da Boa Notícia de Jesus, o Messias, o Filho de Deus”)  Balancin nos explica que “todo o livro de Marcos é caracterizado como um simples começo” (p. 10): lendo Marcos, acompanhamos Jesus saindo de Nazaré da Galileia para ser batizado por João na Judeia e retornando à Galileia após a prisão deste. Na Galileia Jesus realiza suas ações, faz a caminhada com seus discípulos até Jerusalém, onde entra em choque com as autoridades judaicas, é crucificado e, após a ressurreição, promete encontrar-se com os discípulos na Galileia.

BALANCIN, E. M. Como ler o evangelho de Marcos. Quem é Jesus?  2. ed. São Paulo: Paulus, 1991, 183 p.Segundo Balancin, “desse modo, o evangelista nos ensina que aquilo que Jesus realizou é apenas o início da atividade que seus discípulos deverão continuar em todos os tempos e lugares, a fim de trazer o Reino de Deus para dentro da humanidade e da história. Fazendo isso, os seguidores de Jesus têm certeza de sua presença viva e contínua no meio deles (p. 11).

Acontece que Marcos diz também ser o seu escrito uma Boa Notícia, um Evangelho. Mas Marcos nos mostra mais o que Jesus faz do que o seu ensinamento. “Com isso, ficamos sabendo que o grande ensinamento de Jesus é sua prática e que sua palavra é nova porque é sempre acompanhada por sua ação” (p. 12). Só que este conceito “evangelho” era aplicado, na época, ao César romano, cuja subida ao poder era divulgada como boa notícia. “Ao proclamar Jesus Filho de Deus, Marcos está dando a “Boa Notícia que constitui um desafio à organização da propaganda imperial dos romanos” (p. 13).

E mais: Marcos diz que Jesus é o Messias (o Cristo) em um momento em que havia muitas e diferentes ideias a respeito de quem seria o Messias, de onde ele viria e qual seria a sua missão. Marcos vai, ao longo de seu texto, explicar porque Jesus é o Messias. Assim, diz Balancin, Marcos “vai mostrar que a prática de Jesus entra em conflito com aquilo que muitos esperavam de um messias”, posicionando-se “na luta ideológica sobre o modo de entender adequadamente o Messias” (p. 13).

A partir deste ótica, sintetizada no primeiro versículo ou título do evangelho, é que Balancin lê Marcos. Para ele, este título nos coloca diante de grandes desafios, elencados na p. 14:

  • “se quisermos ser discípulos de Jesus Ressuscitado, precisamos ser continuadores de sua prática;
  • desmascarar os falsos messias que são criados pela propaganda e se apresentam como salvadores;
  • desmistificar os ‘homens divinos’ que sustentam um ‘reino’ que explora e oprime;
  • discernir entre a Boa Notícia e as outras notícias que são apresentadas como boas”.

CNBB Caminhamos na estrada de Jesus. O evangelho de Marcos. 2. ed. São Paulo: Paulinas, 1996, 128 p.

O Secretário Geral da CNBB, Dom Raymundo Damasceno Assis, nos explica na apresentação deste livro, às p. 5-8, terem os bispos brasileiros determinado que o tema central da preparação do grande Jubileu em 1997 – Jesus Cristo e a fé – “seja assumido, refletido e vivenciado principalmente a partir do evangelho de Marcos, lido aos domingos neste ano litúrgico.

Como está previsto no Projeto de Evangelização “Rumo ao Novo Milênio”, este subsídio “é uma introdução à leitura do evangelho de Marcos que destaca a figura de Jesus e os passos que todo discípulo – de ontem ou de hoje – deve dar para seguir o caminho de Jesus, ou seja, para viver sua fé” (p. 5).

Acrescenta Dom Raymundo Damasceno, na página 6, que o objetivo desse subsídio “é levar os leitores e suas comunidades a aprofundar a fé em Jesus, a renovar a adesão pessoal a Ele, a firmar o compromisso de segui-lo nos caminhos da vida. Marcos nos convida a refazer hoje os passos que Jesus faz na busca da vontade do Pai, desde a Galileia até Jerusalém, lugar da cruz e ressurreição”.

Caminhamos na estrada de Jesus, fruto do trabalho de uma equipe que assessorou a CNBB, é destinado aos animadores de círculos bíblicos e de grupos de reflexão, bem como aos padres e agentes de pastoral que deverão comentar este evangelho nas celebrações dominicais.

Já na Introdução (p. 9-11), o autor do livro explica que seu título é tirado da oração eucarística V, quando, após a consagração repetimos: “Caminhamos na Estrada de Jesus”, nos comprometendo, mais uma vez, com a Boa Nova de Jesus. Marcos  nos oferece, em seu evangelho, o mapa e o roteiro desta Estrada. São 9 capítulos: o 10 é de introdução, o 80 “fala da importância da fé para quem assume caminhar na Estrada de Jesus”, o 90 “fala da terra e do povo por onde passa a Estrada de Jesus”, enquanto que “nos capítulos 2 a 7 percorremos as várias etapas deste caminho, desde o lago na Galileia até o Calvário em Jerusalém” (p. 9).

No capítulo primeiro o autor nos apresenta, de início, uma série de problemas que marcavam a vida das comunidades cristãs por volta do ano 70 – data em que Marcos escreve (p. 17). Os principais problemas seriam: a ameaça constante de perseguição dos cristãos por parte do Império Romano; a rebelião dos judeus da Palestina contra a invasão romana e a atitude dos cristãos que estavam sem saber se deviam entrar ou não nesta luta; como entender que um crucificado, considerado como “maldito de Deus”, poderia ser o Messias, e, ainda, como organizar adequadamente uma comunidade cristã…

E explica: “No meio de tantas preocupações, a preocupação maior continuava sempre a mesma: ‘Como ser discípulo ou discípula de Jesus no meio desta situação tão complicada e tão difícil?’ Esta ainda é a pergunta que, até hoje, nos leva a abrir os evangelhos e que, em toda parte, suscita grupos que se reúnem em torno da Palavra de Deus” (p. 20).

E mais adiante (p. 24) o autor nos esclarece que Marcos não quer apenas nos informar sobre o que Jesus fez no passado, “mas também quer que você se identifique com os discípulos de Jesus e se envolva com os problemas deles, sinta o entusiasmo deles e viva a crise que eles viveram. Que percorra o caminho que aqueles primeiros discípulos percorreram junto com Jesus, desde a Galileia até Jerusalém. E fazendo assim, que você elimine de dentro de si ‘o fermento dos fariseus e dos herodianos’ (Mc 8,15) e se torne melhor discípulo ou discípula de Jesus”.

A caminhada dos discípulos e das discípulas de Jesus no evangelho de Marcos é feita em quatro etapas:
1) Mc 1,16-6,13 : o entusiasmo no início da caminhada com Jesus
2) Mc 1,35-8,21 : o mistério da pessoa de Jesus aparece. Nos discípulos surge a crise do não entender
3) Mc 8,22-13,37: a cegueira causada pela luz escura da Cruz é combatida pela instrução de Jesus
4) Mc 14,1-16,8: o fracasso final é apelo para recomeçar tudo de novo.

Para terminar: “São estes os quatro passos da caminhada com Jesus. Eles indicam o roteiro que vamos seguir neste livrinho. Vamos olhar nele, como se fosse um espelho, onde vemos refletida nossa própria vida. Foi pensando na vida das comunidades, que Marcos recolheu e arrumou as palavras e gestos de Jesus” (p. 27-28).

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Novos paradigmas no estudo do Pentateuco

Novos paradigmas no estudo do Pentateuco. Cadernos do Cearp, Ribeirão Preto, n. 6, p. 15-30, 1996.

O conceito de paradigma, que hoje invade todos os campos do conhecimento, é de Thomas S. Kuhn. Em sua obra A estrutura das revoluções científicas, Kuhn trabalha “a ideia de que cada disciplina científica resolve os próprios problemas dentro de uma estrutura pré-estabelecida por pressupostos metodológicos, convenções linguísticas e experimentos exemplares. Em seu desenvolvimento, a ‘ciência normal’ assim constituída se choca com situações de crise, ou seja, confronta-se com a impossibilidade de resolver um número sempre maior de problemas na base do paradigma vigente”1.

Desta crise deve nascer um novo paradigma que possui as características da inovação radical, pois ele se amolda aos problemas que estavam na base da crise, permitindo a sua solução, e reproduz novamente a estrutura do paradigma, devolvendo-o para a ciência como uma potência constituinte2.

Nos últimos 20 anos [Obs.: o artigo é de 1996], a teoria clássica das fontes JEP do Pentateuco, elaborada no século passado [Obs.: século XIX, pois este artigo é do século XX] por Hupfeld, Kuenen, Reuss, Graf e, especialmente, Wellhausen, vem sofrendo sérios abalos, de forma que hoje muitos pesquisadores consideram impossível assumir, sem mais, este modelo como ponto de partida.

O que apresentarei a seguir é um apanhado de alguns dos mais significativos estudos recentes sobre o Pentateuco, nos quais os autores procuram  utilizar novos paradigmas em sua pesquisa3.

Podemos exemplificar estas pesquisas do seguinte modo:

  • em primeiro lugar, falarei de autores que ainda permanecem na clássica divisão das fontes JEP – javista, eloísta e sacerdotal
  • em seguida, abordarei autores que modificam a teoria das fontes dos Pentateuco
  • em terceiro lugar surgem as abordagens sincrônicas dos textos, abordagens que não levam em conta a questão das fontes
  • e, finalmente, um texto que poderia se enquadrar no primeiro item, mas que tratarei separadamente – porque acredito que ela mereça destaque: a obra de D. J. A. Clines.

>> Para alguns dados e estudos mais atualizados sobre a pesquisa do Pentateuco, clique aqui .

1. Estudos que permanecem no JEP

COOTE, R. B. In Defense of Revolution: The Elohist History. Philadelphia: Fortress Press, 1991, 160 p.

Coote lembra, ao longo de seu trabalho, que as tradições do Pentateuco e a história da redação ainda têm muito a oferecer à exegese e que não foram desbancadas pelo grande número de vozes que exigem uma leitura da Bíblia somente na sua “forma final”.

O E é identificado por ele como adições feitas ao documento J e que nunca existiu como texto paralelo ao J. O eloísta é somente uma adaptação do J e, por isso, não pode ser separado dele.

O E provém da corte de Jeroboão I, embora tenha sofrido complementações posteriores: “E foi escrito por um escriba que estudou o texto J, planejou cuidadosamente as inserções e então reescreveu o manuscrito”4.

Os capítulos 5 e 6 são especialmente interessantes: aí o autor faz uma análise política do Estado salomônico e da revolta do norte, trazendo valiosa contribuição para a historiografia do Israel pré-exílico.

Segundo Coote, o E enfatiza três aspectos:

  • o perigo enfrentado pelos filhos: como  os filhos de Abraão, Ismael e Isaac; Jacó ameaçado por Labão; os perigos vividos por José e Moisés… Este tema parece ser um dos favoritos do E. Mas, por que? Porque Jeroboão I tinha seu(s) filho(s) como refém (s) no Egito e se preocupava muito com isto. Então o E oferece a Jeroboão um “espelho” no qual se mirar,  nestas narrativas: Deus sempre intervém quando os filhos estão em perigo
  • a história de José, que também refletiria a vida de Jeroboão I: como José, bem tratado pelo Faraó no Egito, também o fora Jeroboão I quando ali buscara refúgio, fugindo de Salomão
  • o Horeb e suas leis: nos capítulos 10 e 11 Coote discute, entre outros, temas como o nome de Deus (El), o Horeb como o local sagrado de Moisés, a polêmica contra os sacrifícios humanos e o “temor de Deus” como um aspecto importantíssimo na perspectiva do E.

Em síntese: Jeroboão I assumiu o poder em meio a muitas crises e confrontos e o texto eloísta está carregado de um espírito de incerteza e de intimidação, em contraste com a serenidade e a confiança do javista. Assim, o temor torna-se a “norma social” na teologia e na ideologia do E.

Avaliando: muitas conclusões deste estudo podem ser questionadas, porém a obra de Coote é importante especialmente porque sua análise está bem situada dentro de uma séria consciência social e política. Seu estudo provoca aqueles que sempre trabalham sobre temas muito restritos e altamente sofisticados, sugerindo-lhes que ampliem seu horizontes na direção de uma perspectiva mais global5.

2. Modificações na teoria das fontes

BLENKINSOPP, J. The Pentateuch: An Introduction to the First Books of the Bible. New York: Doubleday, 1992, 284 p.

Blenkinsopp defende o método histórico-crítico contra as novas abordagens, tais como o “New Criticism”, o “reader-response criticism” e as escolas formalistas apaixonadas por estruturas quiásticas.

Discorda igualmente de J. Van Seters, quando este compara a literatura bíblica com a literatura grega ou com a literatura de outras culturas6.

Sua opinião: no Pentateuco podem ser identificadas, com certeza, somente duas camadas: uma redação deuteronomista (D) e um escrito sacerdotal (P). A redação D retoma antigos elementos, em processo semelhante à OHDtr. Blenkinsopp considera difícil identificar um J e, especialmente, um E no Pentateuco.

Como outros autores, tais como Frei, Crüsemmann7 e Blum, Blenkinsopp vê no Pentateuco uma espécie de documento oficial que estabelece o status de Israel como uma comunidade centrada no Templo durante o período persa. Os interesses da comunidade judaica, especialmente os interesses sacerdotais, e os interesses das autoridades persas convergem na redação do Pentateuco.

A obra é composta da seguinte forma:

  • dois capítulos de introdução: um sobre o estudo do Pentateuco nos últimos dois séculos e o outro sobre a estrutura e a cronologia do Pentateuco
  • nos capítulos seguintes Blenkinsopp trata dos quatro principais blocos do Pentateuco:

* as origens (Gn 1-11)
* os patriarcas (Gn 12-50)
* a passagem do Egito para Canaã
* o Sinai, a Aliança e a Lei

  • no sétimo capítulo ele lida com a questão da redação final do Pentateuco

Algumas de suas propostas:

  • Gn 1-11 é uma composição pós-exílica posterior a P
  • Gn 15 é D (embora a teologia da aliança de Gn 15 seja diferente de D)
  • Quanto ao Sinai, Blenkinsopp retoma a velha teoria de Wellhausen de uma tradição de Kadesh, sendo a perícope do Sinai uma composição D8.

VAN SETERS, J. The Life of Moses: The Yahwist as Historian in Exodus-Numbers. Louisville: Westminster John Knox, 1994, 540 p.

São três os elementos principais da obra de Van Seters:

  • o Javista compõe uma obra unificada que vai da criação do mundo até a morte de Moisés. O J faz o trabalho de um historiador – semelhante ao trabalho do historiador grego Heródoto – no qual ele se baseia em fontes orais e escritas, dando-lhe, porém um significado teológico próprio
  • o objetivo da obra do J é o de corrigir o nacionalismo e o ritualismo da Obra Histórica Deuteronomista, da qual ela é uma espécie de introdução
  • Por isso, o Javista é posterior ao Deuteronômio e ao OHDr , sendo contemporâneo do Dêutero-Isaías e tendo afinidades com Jeremias e com Ezequiel. Mas é anterior ao Sacerdotal (P), que, por sua vez, não é uma obra independente, mas uma série de suplementos ao J.

Este tese é demonstrada em quatro capítulos por Van Seters: o primeiro trata de Ex 1-14, o segundo das andanças no deserto e das rebeliões ali acontecidas, o terceiro trata da perícope do Sinai e o quarto da conquista da terra  e da morte de Moisés.

Van Seters acredita no método histórico-crítico, mas se recusa a atomizar os textos em várias camadas. O E, por exemplo, em muitos casos pode ser tranquilamente lido como J, pois não se diferencia suficientemente dele para poder ser considerado como uma fonte autônoma.

Van Seters observa que numerosos temas tratados pelo J não o são pelos profetas pré-exílicos, enquanto há grande número de paralelismos entre os escritores exílicos e o escrito J. E quando são detectados paralelos entre J e D ou OHDtr ele argumenta que estas obras são anteriores ao J.

Van Seters é hoje um dos mais significativos autores na linha do New Criticism. Obviamente ele recusa a postura de W. F. Albright e de sua escola, pois o uso de argumentos arqueológicos e de material epigráfico para provar a antiguidade de determinados textos beira, para ele, o fundamentalismo.

Do mesmo modo ele recusa a linha alemã de pesquisa de um M Noth e de um G. Von Rad, pois não acredita que o J seja uma coletânea de sagas, procurando, deste modo, emancipá-lo da tradição oral9.

BLUM, E. Studien zur Komposition des Pentateuch. Berlin: de Gruyter, 1990, 443 p.

A obra de Blum contribui com o debate recente sobre o Pentateuco, numa direção semelhante à de Rolf Rendtorff, Hans Heinrich Schmid, John Van Seters e outros. Os pontos básicos desta tendência  são os seguintes:

  • ceticismo quanto à existência de fontes narrativas continuas desde o começo da monarquia
  • uma tendência, quanto às datas, em direção ao exílio e pós-exílio
  • uma maior abrangência do papel do redator D  que estaria também em Gênesis, Êxodo e Números
  • uma tendência para  a análise holística e sincrônica dos textos.

Blum procura, em sua obra, combinar as leituras sincrônica e diacrônica sendo sua ideia central a seguinte:

  • o Pentateuco é o resultado da integração de uma obra D em uma mais abrangente obra P
  • tanto D como P são pós-exílicos, embora tenham integrado textos escritos anteriores, que não são, em sua opinião, as clássicas fontes J e E
  • esta obra D, que se estende de Gn 12-50 através do Êxodo até Números, foi retomada e expandida por  um escritor sacerdotal
  • eventualmente esta obra D tem sua continuação na OHDtr, formando uma história continua de Israel, desde  Abraão até o exílio babilônico
  • Blum convida o leitor a se colocar no ponto de vista daqueles que se encontravam no exílio babilônico ou que permaneceram na terra no século VI a.C.

A parte mais consistente de seu estudo é o estudo de Ex 19-34,  a perícope do Sinai/Horeb, atribuída  a D em seu núcleo. À semelhança de outros autores, ele fala de Pentateuco e não de Hexateuco e rejeita a ideia de P como uma fonte independente: P seria muito mais uma revisão da narrativa D.

No final de seu estudo, Blum considera o Pentateuco como uma resposta à demanda persa por uma constituição civil e uma política baseada no consenso dentro do étnos judaico10.

3. Abordagens sincrônicas

DAVIES, G. F. Israel in Egypt: Reading Exodus 1-2. Sheffield: Sheffield Academic Press, 1992, 204 p.

Nos últimos 20 anos, novos paradigmas na interpretação bíblica produziram um número considerável de interpretações criativas – e, frequentemente conflitivas – sobre estes dois primeiros capítulos do Êxodo. O estudo de Davies quer agrupar estas interpretações em uma apresentação coerente e trazer novas contribuições para o debate atual.

Seu método é confessadamente eclético. Davies reconhece que há divergências entre interpretações orientadas pela origem do texto, que olha a história da composição como a chave interpretativa fundamental, e interpretações orientadas pelo discurso, centradas no “modelo de sentido e efeito”. Mas ele não vê incompatibilidade entre estas duas abordagens. Davies prefere também, no que diz respeito ao sentido, uma abordagem de meio-termo, situada entre teorias centradas no leitor e teorias centradas no texto. Seu ecletismo é uma oposição consciente ao reducionismo provocado pela adesão incondicional a um método específico.

Davies utiliza uma bateria de categorias interpretativas para as perícopes nas quais ele divide Ex 1-2. Para cada perícope ele faz:

  • uma tradução literal, que, às vezes, oferece elementos a serem comentados posteriormente
  • notas detalhadas explicam os pontos controvertidos da tradução
  • uma justificativa para a delimitação da perícope
  • uma análise da estrutura narrativa, dividida entre “estrutura de superfície”  e “estrutura profunda”. Estrutura de superfície é a descrição de uma trama e as tensões que a conduzem. Estrutura profunda são as sequências actanciais, como por exemplo: a estrutura profunda de Ex 1,8-14 é descrita como “problema – tentativa de solução – resultado”, uma abstração altamente formalizada das ruminações do Faraó sobre como lidar com o crescimento do número de israelitas no país
  • em seguida, Davies considera o ponto de vista narrativo, a repetição e as lacunas no texto, a simetria da narrativa (incluindo quiasmos e distribuição significativa do vocabulário na perícope) e, finalmente, o vocabulário-chave11.

4.  Em busca do tema do Pentateuco

Limitar-me-ei a resumir os pontos principais da interessante obra de CLINES, D. J. A. The Theme of the Pentateuch. Sheffield: Sheffield Academic Press, 1986, 152 p.

1. Método
1.1. Crítica ao atomismo e ao geneticismo na pesquisa do AT
1.2. Abordagem do autor: olhar o Pentateuco na sua forma final
1.3. O desenvolvimento da abordagem, capítulo por capítulo

2. Definições do tema
2.1. Tema: uma conceptualização do enredo de uma obra narrativa
2.2. Tema: a ideia dominante de uma obra literária
2.3. Tema: a exposição do conteúdo, estrutura e desenvolvimento da obra
2.4. Para que serve o estabelecimento de um tema?

  • para orientar o leitor quanto à melhor aproximação da obra
  • para evitar mal-entendidos sobre uma obra
  • para evidenciar que a obra é coerente, sistemática
  • para formular a mensagem de uma obra em seu contexto

2.5. O que tema não é:

  • intenção do autor
  • motivo, topos, modelo normativo
  • assunto da obra

2.6. Quatro questões relevantes para este estudo

  • pode haver mais de um tema em uma obra literária? Não
  • como se pode demonstrar a existência de um dado tema  numa obra literária? É a afirmação que leva mais em conta o conteúdo, a estrutura e o desenvolvimento da obra
  • é necessário que o tema esteja na mente do autor? Não necessariamente
  • Como um tema pode ser descoberto? Por tentativa e erro

2.7. Duas questões quanto ao Pentateuco:

  • o Pentateuco tem uma unidade e, portanto, um tema? M. Noth e G. Von Rad admitem a possibilidade de um tema no Pentateuco
  • o redator final do Pentateuco pôde impor um tema ao material recebido? Pôde.

3. Indicadores
3.1. Observando o final de cada um dos livros do Pentateuco nota-se que existe um movimento dinâmico que é preparado e antecipado propositadamente na direção da promessa aos patriarcas
3.2. Sete elementos, pertencentes a três grupos, podem ser detectados na promessa aos patriarcas:

  • a promessa de um filho
  • a promessa de descendentes
  • a promessa da presença de Deus
  • a promessa da bênção de Deus
  • a promessa da aliança
  • a promessa de nova pastagem
  • a promessa de uma terra agriculturável

São três grupos:

  • posteridade
  • relacionamento com Deus
  • terra

4. Afirmação
4.1. O tema do Pentateuco é o cumprimento parcial da PROMESSA ou BÊNÇÃO feita/dada aos patriarcas
4.2. A promessa tem três elementos:

  • posteridade
  • relacionamento divino-humano
  • terra

4.3. Predominam:

  • em Gn 12-50 a posteridade
  • em Êxodo e Levítico o relacionamento divino-humano
  • em Números e Deuteronômio a terra

* Gn 1-11: cf. capítulo 7

5.Formulações
Relação dos textos onde aparecem os três elementos: cf. p. 38-43

6. Exposição
Exposição dos três elementos livro por livro: cf. p. 45-60

7. Tema preparatório (Gn 1-11)
7.1. O tema de Gn 1-11: sugestão de três temas:
a) culpa-fala-mitigação-punição
b) difusão da culpa – difusão da graça
c) criação – caos – recriação
7.2. Combinando o b) e o c):
a) mesmo quando Deus perdoa o homem e alivia a punição, este continua a produzir a culpa até levar o mundo ao caos
ou
b) mesmo levando o homem o mundo ao caos, a graça de Deus nunca falta para livrar o homem das consequências de sua culpa (pecado)
7.3. O tema de Gn 1-11 relacionado com o tema do Pentateuco:

  • não há ruptura entre a história das origens e a história patriarcal, entre Babel e Abraão
  • logo, a sugestão b) é a mais provável e apropriada:

* mesmo quando o homem leva o mundo ao caos, a graça de Deus sempre está presente para resgatá-lo das conseqüências de seu pecado
* lido isoladamente, Gn 1-11 levaria à sugestão a), mas, ao ser inserido no conjunto do Pentateuco, leva a b)

8. Divergências do autor com Von Rad e B. T. Dahlberg12
8.1. A abordagem de Von Rad tem três estágios:

  • a estrutura da obra JE é dominada pelas duas alianças mencionadas em JE, a patriarcal e a sinaítica, tendo um elemento uma função estrutural: a promessa da terra (da promessa aos antepassados a seu cumprimento sob Josué)
  • P dá nova ênfase ao Pentateuco ao falar das alianças com Noé e Abraão (e não das alianças patriarcal e sinaítica). A Aliança com Abraão tem três elementos:

* Abraão tornar-se-á um povo
* haverá um novo relacionamento com Deus
*Abraão e sua posteridade tomarão posse da terra

  • quando JE e P são combinados no Hexateuco, emerge uma divisão em três períodos:

* da criação ao dilúvio
* da aliança com Noé à vocação de Abraão
* da aliança com Abraão à ocupação de Canaã.
– neste terceiro período está o cumprimento das três promessas:
. a promessa da posteridade é cumprida no Egito
. a promessa da relação com Deus é cumprida no Sinai
. a promessa da terra é cumprida sob Josué
8.2. A abordagem do autor (Clines)

  • começa da forma final do texto e não de suas (hipotéticas) fontes
  • organiza o material do Pentateuco segundo os elementos temáticos contidos na promessa e não em períodos, cada um introduzido por uma aliança
  • não vê a terra como o item mais importante na aliança patriarcal. E se não houver um Hexateuco?
  • vê como problemática a existência de um Hexateuco
  • o Pentateuco já é uma realidade concreta no pós-exílio e não termina a sua narrativa com a conquista da terra. O Hexateuco é apenas uma hipótese dos especialistas
  • a análise de Von Rad trabalha apenas alguns eventos do Pentateuco, enquanto que a do autor dá conta do conteúdo e da estrutura de cada livro e do tema do Pentateuco como um todo

8.3. A abordagem de B. T. Dahlberg

  • como a do autor, é holística,  “macroanálise”
  • sem hostilidade em relação às fontes
  • seu “insight”: Gn 37-50 (a história de José) é um elemento que equilibra e contrasta Gn 1-11: José é o anti-tipo de Adão e de outros personagens de Gn 1-11. Gn 37-50 não é uma ponte entre as narrativas patriarcais e o material do êxodo, mas uma inclusão para o livro do Gênesis

8.4. O autor discorda, pois:

  • Gênesis deve ser visto como o 10 elemento da promessa divina
  • a história de José é mais do que um contraponto de Gn 1-11, é uma ponte para o restante do Pentateuco

8.5. Um exemplo: os comentaristas de Números e o método do autor (Clines)

  • os comentaristas não conseguem ver uma coerência nos materiais tão diversificados de Números. Ex.: B. A. Levine, N. H. Snaith, G. B. Gray, H. Holzinger, A. R. S. Kennedy
  • o autor vê em números o elemento temático da terra, meta para a qual todo o seu material está orientado

9. História literária
Chegado a este ponto, o autor acredita que já se pode perguntar como este tema específico tornou-se o tema de todo o Pentateuco. E observa que isto está sendo feito a partir da hipótese das fontes JEP + D, pois tudo mudaria se a abordagem fosse feita a partir das tendências mais recentes de Van Seters, Rendtorff e outros.

Dois pontos merecem ser observados: o conceito de promessa e o conceito de cumprimento parcial desta promessa:

  • o conceito de promessa é atribuído pela maioria dos autores ao J, quase sempre terminando com a promessa da terra (cf. Gn 12,1-3)
  • no D (mais ou menos identificado com o livro do Deuteronômio) a lembrança da promessa da terra feita aos antepassados está sempre presente (Dt 1,8; 6,3.10.18.23)
  • no P é interessante observar Gn 1,28, onde a bênção de Deus ao homem comporta a promessa da terra: “Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra…”.

Mas, podemos observar que em nenhuma das três tradições acima mencionadas o cumprimento da promessa é plenamente realizado. É sempre uma possibilidade futura.

10. Função
Parece conclusivo, em base aos relatos sobre Esdras e Neemias, que o Pentateuco já existia como tal aí pelo final do século V a.C., sendo, entretanto, um produto exílico, afirmação possível quando se entende que o exílio não terminou em 538 a.C. de fato, pois muitos judeus voltaram para a sua terra bem mais tarde.

Se a redação final do Pentateuco foi feita na Babilônia, entre os exilados, ele reflete a sua própria situação, que é a mesma das tribos israelitas no final do Deuteronômio: a promessa de Deus está às suas costas e a promessa da terra à sua frente.

Neste sentido, Gn 1-11 não é uma história universal da humanidade, mas a sua própria história: a dispersão dos povos é a sua diáspora (Gn 11), o dilúvio é o caos advindo com a destruição de Jerusalém, os julgamentos de Deus na história das origens é o julgamento de Israel ao longo de sua história…

Do mesmo modo as narrativas patriarcais não falam, para os exilados, de um passado, mas de um presente: as promessas de Deus a Abraão e descendentes correspondem à sua ansiedade de voltar da Mesopotâmia para a sua própria terra. O êxodo do Egito é agora a necessidade de um êxodo da Babilônia, enquanto Números e Deuteronômio funcionam não como histórias passadas, mas como o sonho de sua existência futura. “O tema do Pentateuco, em suas diversas formas, funciona entre os exilados como uma interpretação de sua própria história, um apelo à obediência no presente e uma esperança que conduz à ação”, reflete o autor13.

Finalmente, nas páginas finais de seu estudo (p.101-118) Clines faz uma série de reflexões sobre o Pentateuco lido como história e promessa, defendendo  a sua atualidade para os homens de qualquer época.

Notas

1. NEGRI, A. Revoluções de Kuhn. In: Folha de São Paulo, 28.07.96, 5.11. Cf. KUHN, T. S., A estrutura das revoluções científicas. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1978, especialmente as páginas 217-257.

2. Cf. NEGRI, A. idem, ibidem.

3. Bons estudos globais sobre o tema são DE PURY, A.(ed.) Le Pentateuque en question: les origines et la composition des cinq premiers livres de la Bible à la lumière de recherches récentes. Genève: Labor et Fides, 1989; HAUDEBERT, P. (ed.) Le Pentateuque: débats et recherches: quatorzième congrès de l’ACFEB, Angers (1991), Paris: Du Cerf, 1992.

4. Citado por D. L. SMITH-CHRISTOPHER, em The Catholic Biblical Quarterly (CBQ) 55/4 (October, 1993), p. 751.

5. Estudos na mesma linha são os de COOTE, R. B.; ORD, D.R. The Bible’s First History. Philadelphia: Fortress Press, 1989 e FRIEDMAN, R. E. Who Wrote the Bible? New York: Summit, 1987.

6. Cf. sobre VAN SETERS, J. Prologue to History: The Yahwist as Historian in Genesis. Louisville: Westminster John Knox Press, 1992,  CBQ 57/3 (July, 1995), p. 579-580.

7. Cf. CRÜSEMANN, F. Die Tora: Theologie und Sozialgeschichte des alttestamentlichen Gezetzes. München: Gütersloher Verlagshaus, 1992, 496 p.

8. Na mesma linha de estudos deve ser conferido SCHMID, H. H. Der sogennante Jahwist: Beobachtungen und Fragen zur Pentateuchforschung. Zurich: Theologischer Verlag, 1976.

9. Cf. a resenha de Jean Louis Ska feita na CBQ 58/1 (January, 1996), p. 140-141.

10. A resenha do livro de Blum é feita na CBQ 54/2 (April, 1992), p. 312-313 por Joseph Blenkinsopp. Numa linha semelhante à de Blum podem ser lidas as obras de RENDTORFF, P. The Problem of the Process of Transmission of Pentateuch. Sheffield: Sheffield Academic Press, 1990 e DOZEMAN, T. God on the Mountain: A Study of Redaction, Theology and Canon in Exodus 19-24. Atlanta: Scholars Press, 1989.

11. Cf a resenha feita na CBQ 56/2 (April, 1994), p. 329-391 por  Robert B. Robinson. Estudos que se enquadram dentro desta tendência sincrônica são também os de MOBERLY, R. W. L. At the Mountain of God: Story and Theology in Exodus 32-34, Sheffield: Sheffield Academic Press, 1983; BRICHTO, H. C. Toward a Grammar of Biblical Poetics: Tales of the Prophets. New York: Oxford University Press, 1992, 313 p.

12. Cf. VON RAD, G. Theology of the Old Testament. Edinburgh: Oliver and Boyd, 1965; DAHLBERG, B.T. On recognizing the unity of Genesis. In Theology Digest 24, p. 360-367, 1977.

13. CLINES, D. J. A. The Theme of Pentateuch, p. 100.

Bibliografia

BLENKINSOPP, J. The Pentateuch: An Introduction to the First Books of the Bible. New York: Doubleday, 1992.
BLUM, E. Studien zur Komposition des Pentateuch. Berlin: de Gruyter, 1990.
BRICHTO, H. C. Toward a Grammar of Biblical Poetics: Tales of the Prophets. New York: Oxford University Press, 1992.
CLINES, D. J. A. The Theme of the Pentateuch. Sheffield: Sheffield Academic Press, 1986.
COOTE, R. B. In Defense of Revolution: The Elohist History. Philadelphia: Fortress Press, 1991.
COOTE, R. B.; ORD, D. R. The Bible’s First History. Philadelphia: Fortress Press, 1989.
CRÜSEMANN, F. Die Tora: Theologie und Sozialgeschichte des alttestamentlichen Gezetz. München: Gütersloher Verlagshaus, 1992.
DAHLBERG, B. T. On recognizing the unity of Genesis. Theology Digest 24, p. 360-367, 1977.
DAVIES,  G. F. Israel in Egypt: Reading Exodus 1-2, Sheffield: Sheffield Academic Press , 1992.
DE PURY, A. (ed.) Le Pentateuque en question: les origines et la composition des cinq premiers livres de la Bible à la lumière du recherches récents. Genève: Labor et Fides, 1989.
DOZEMAN, T. God on the Mountain: A Study of Redaction, Theology and Canon in Exodus 19-24. Atlanta: Scholars Press, 1989.
FRIEDMAN, R. E. Who Wrote the Bible? New York: Summit, 1987.
HAUDEBERT, P. (ed.) Le Pentateuque: débats et recherches: quatorzième congrès de l’ACFEB, Angers (1991). Paris: Du Cerf, 1992.
KUHN, T. S. A estrutura das revoluções científicas. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1978.
MOBERLY, R. W. L. At the Mountain of God: Story and Theology in Exodus 32-34. Sheffield: Sheffield Academic Press, 1983.
NEGRI, A. Revoluções de Kuhn. In: Folha de São Paulo, 28.07.96, 5.11.
RENDTORFF, P. The Problem of the Process of Transmission of Pentateuch. Sheffield: Sheffield Academic Press, 1990.
SCHMID, H. H. Der sogennante Jahwist: Beobachtungen un Fragen zur Pentateuchforschung. Zurich: Theologischer Verlag, 1976.
The Catholic Biblical Quarterly (CBQ). Washington DC: The Catholic University of America.
VAN SETERS, J. Prologue to History: The Yahwist as Historian in Genesis. Louisville: Westminster John Knox Press, 1992.
VAN SETERS, J. The Life of Moses: The Yahwist as Historian in Exodus-Numbers. Louisville: Westminster John Knox Press, 1994.
VON RAD, G. Theology of the Old Testament. Edinburgh: Oliver and Boyd, 1965.

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Judaísmo e Helenismo III

Judaísmo e Helenismo: encontro e conflito. Estudos Bíblicos, Petrópolis, n. 48, p. 9-18, 1996.

Refletir sobre a história, mesmo a muito antiga, antes de Cristo, pode ser extremamente atual. Pode dar-nos uma nova dimensão da realidade, sugerir analogias, ajudar-nos a compreender o homem no mundo e sua história. Por isso estou falando de judaísmo e helenismo.

Mais atenção ainda deve dar ao tema o cristão que milita hoje neste nosso mundo tão dinâmico e tão pluralista, refletindo-o à luz da fé. É preciso lembrar que nós somos “netos” dos gregos e “herdeiros” dos judeus em nossas práticas culturais e religiosas.

A minha proposta é a seguinte:

  • olhar os acontecimentos históricos, de maneira breve e resumida, desde a época de Alexandre Magno até a época de Pompeu
  • verificar a importância de alguns agentes do helenismo na Palestina
  • conferir frutos da helenização na Palestina, a partir de alguns textos de judeus em grego
  • finalmente, seguir algumas linhas de desenvolvimento do pensamento judaico em seu encontro e conflito com o mundo grego.

O artigo prossegue com os seguintes itens:

1. A Palestina de Alexandre a Pompeu
2. Os agentes do helenismo na Palestina
3. Frutos da helenização na Palestina
4. As tendências do pensamento judaico em seu confronto com o helenismo
Conclusão
Leituras recomendadas

Vou transcrever aqui apenas o item 4, as tendências do pensamento judaico em seu confronto com o helenismo (omitindo as 5 notas de rodapé deste trecho) e a conclusão.

4. As tendências do pensamento judaico em seu confronto com o helenismo

É bastante difícil demonstrar influências helenísticas diretas nos escritos judaicos da época grega.

Por razões diversas. A dificuldade linguística, em primeiro lugar. Os conceitos gregos são imperfeitamente transmitidos em construções literárias  semitas. Mas não é só. Há ainda incerteza quanto às datas de composição de várias obras, a influência de contatos com os gregos anteriores à época de Alexandre Magno e a parcialidade dos combativos escritos anti-helênicos conservados, como os documentos essênios recuperados na região do Mar Morto ou os escritos dos grupos apocalípticos.

Por outro lado, entre o fim do domínio persa e a chegada de Roma à região, chama a atenção a quantidade e a variedade da literatura produzida pelos judeus. Isto indica surpreendente efervescência na minúscula comunidade judaica.

Por isso, mais do que traçar possíveis influências, procura-se seguir certas linhas de desenvolvimento do pensamento judaico em sua controvérsia com a pressão cultural da época helenística.

De imediato, observa-se o aparecimento de novos gêneros literários, todos típicos do mundo grego, incomuns entre os judeus. Como a epístola, o romance histórico, a narrativa aretológica (= elogio do comportamento virtuoso) e a pseudoepigrafia na literatura apocalíptica.

Mas, de modo geral, duas correntes de pensamento podem ser percebidas nesta época: a corrente sapiencial, desenvolvida nas várias “escolas de sabedoria”, com múltiplas tendências, e a corrente apocalíptica, filha da enfraquecida profecia, leitura camuflada e simbólica, mas contundente, da nova realidade.

Talvez o ponto comum mais evidente nas tendências predominantes de pensamento seja o uso de uma incipiente racionalidade. Que se manifesta, entre outras possibilidades, na absorção de termos abstratos – desconhecidos na estrutura mental semita, mas centrais no pensamento grego – e no começo de uma certa sistematização e regularidade nas descrições da natureza, da história e da própria existência humana.

Isto é mais evidente, é claro, nos escritos sapienciais. Uma forte tendência das escolas de sabedoria, por exemplo, é a de realizar a fusão da sabedoria internacional com a piedade tradicional, como pode ser visto no Eclesiástico ou em Provérbios 1-9. Ou ainda a tendência crítica e universalista de Jó e Eclesiastes.

Procurou-se, durante muito tempo, estabelecer a possível influência da filosofia grega clássica sobre a sabedoria judaica. Talvez seja mais correto falarmos de um estágio “pré-filosófico” da sabedoria judaica, com maiores afinidades com a filosofia popular grega. Há aí, claro, fortes tendências sincréticas, mas o pensamento grego que mais fortemente penetra nos arraiais judaicos é o estoicismo, em suas versões mais populares.

Um dos aspectos mais populares do estoicismo é a sua pregação de uma fraternidade universal entre os homens, onde não haveria distinção entre gregos e bárbaros, nem entre livres e escravos.

Segundo o estoicismo  “o essencial é distinguir  ‘o que depende de nós’ e  ‘o que não depende de nós’. No segundo grupo fica tudo o que depende das paixões, e o que é preciso aprender a renunciar através de uma longa ascese que vai conduzir ao domínio sobre si mesmo, à apatia (ausência de paixão). O que depende de nós é precisamente a vontade, que faz do sábio um igual a Deus. Moral dura, mas exaltante, que torna o homem independente das circunstâncias, e, em particular, da sua classe e da sua situação. Mas esta moral estoica é fatalista, pois sustenta o conformismo a uma dada ordem.

Falávamos da sabedoria. Contudo, mesmo os escritos apocalípticos mais antigos, provenientes dos círculos dos assideus que combatem a helenização na Palestina, só se tornam possíveis através da assimilação de variados elementos sincréticos estrangeiros, como os babilônios, os persas e gregos.

Conclui-se, portanto, que, pelo menos nos primeiros tempos, o helenismo não causou rupturas graves no desenvolvimento do pensamento judaico. Há, isto sim, uma progressiva assimilação e relativa filtragem, que pode ser rastreada desde a metade do séc. III. a.C.

Abordo aqui, a título de exemplo e demonstração do que vem sendo dito sobre a influência grega, com toda a provisoriedade exigida, apenas alguns aspectos da corrente sapiencial, exemplificada através do Eclesiastes  e do Eclesiástico.

No Eclesiastes ou Qohélet observam-se evidentes indícios da nova realidade greco-palestina. A obra é escrita pela metade do séc. III a.C., portanto, no período do boom econômico ptolomaico.

Chama a atenção do leitor o frio ceticismo do autor, sua racionalidade extremamente objetiva, sua desilusão com a teologia otimista da sabedoria tradicional. O sentido do governo divino sobre o mundo não é óbvio e a justiça javista não funciona. O homem fica nas mãos de um destino desconhecido e hostil. Ecl 2,17 afirma: “Detesto a vida, pois vejo que a obra que se faz debaixo do sol me desagrada: tudo é vaidade e correr atrás do vento”.

J. Guinsburg acredita que o Qohélet rejeita três tendências de sua época: o conservadorismo sapiencial do estrato social a que pertence, o radicalismo messiânico e o misticismo apocalíptico – mais tarde típico dos essênios – e o racionalismo filosófico e o ecletismo cosmopolita, defendidos pelos adeptos da helenização.

M. Hengel, por outro lado, opina que a ética do Qohélet é “burguesa”. Por “burguesia” ele entende aquele estrato social que forma a força dominante do mundo helenístico, a “nata social”, que vive de seus investimentos em terras ou outros negócios. Na vida, este grupo busca segurança e prazer. Tem um pensamento racional, mas é basicamente conservador.

Neste contexto, Qohélet representaria o primeiro momento da crise gerada pela helenização. Vê-se a fragmentação e a falência da teologia e da piedade tradicionais, mas sua formação aristocrática e tradicional o impede de romper com Iahweh, a quem ele confirma como o senhor de tudo o que existe e acontece. Embora a lógica da vida seja absurda e desumana.

O Qohélet faz severas críticas ao sistema opressivo do domínio estrangeiro em 4,1: “Observo ainda as opressões todas que se cometem debaixo do sol: aí estão as lágrimas dos oprimidos e não há quem os console; e força do lado dos opressores, e não há quem os console”. É possível que em 5,7-8 ele esteja aludindo às injustiças cometidas pelos seus próprios conterrâneos em nome dos dominadores estrangeiros dentro da típica administração ptolomaica: “Se numa província vês o pobre oprimido e o direito e a justiça violados, não fiques admirado: quem está no alto tem outro mais alto que o vigia, e sobre ambos há outros mais altos ainda”.

R. Michaud, por sua vez, adota interessante hipótese de N. Lohfink acerca do Qohélet. Quando, por volta de 248 a.C., o rico José, o Tobíada, torna-se o coletor de impostos da Celessíria, em nome dos Ptolomeus, ele vem morar em Jerusalém, acelerando a implantação da educação grega na cidade. Além de filho do poderoso Tobias, ele é sobrinho do sumo sacerdote Onias II. Os mestres tradicionais do Templo vão se enfrentar, então, com os inúmeros filósofos ambulantes que invadem a cidade, segundo o costume grego. Nesta ocasião, para escândalo dos tradicionalistas, um dos mestres judeus, o nosso inovador sábio, resolve ir para as ruas, acompanhado por seus discípulos. Adota o mesmo método dos gregos para poder enfrentá-los. Ele se transforma em um sábio ambulante que observa os acontecimentos do cotidiano e tira suas conclusões a partir da fé javista.

Já o Eclesiástico (= Sirácida), escrito no início do séc. II a.C., polemiza com a aristocracia de Jerusalém que está abandonando a fé de seus antepassados em decorrência de sua assimilação da cultura grega. O Eclesiástico considera os grupos da alta sociedade de Jerusalém como apóstatas da Lei e descrentes das ações de Iahweh em favor dos homens.

Contra tal tendência ele justifica a retribuição divina. E desenvolve, sob influência provável das filosofias mais populares da época, uma teodiceia da criação. O mundo foi criado por Iahweh para a salvação do homem com um profundo sentido de harmonia: “Todas as obras do Senhor são magníficas, todas as suas ordens são executadas pontualmente”, afirma Eclo 39,16.

O centro da humanidade é Israel, com sua única e miraculosa história guiada por Iahweh. Na Lei de Moisés, Israel recebe a sabedoria divina, o poder que regula toda a criação. Além disso, ele admoesta os filhos do sumo sacerdote Simão que estão em luta pelo poder, intercede em favor do pobre oprimido – “Escasso alimento é o sustento do pobre, quem dele o priva é um homem sanguinário. Mata o próximo o que lhe tira o sustento, derrama sangue o que priva do salário o diarista” (Eclo 34,21-22) – e pede, à maneira dos antigos profetas, a realização da salvação escatológica para Israel.

O Sirácida identifica a sabedoria à Lei mosaica – “Saí da boca do Altíssimo e como neblina cobri a terra”, diz Eclo 24,3; e 24,23: “Tudo isto é o livro da Aliança do Deus Altíssimo, a Lei que Moisés promulgou, a herança para as assembleias de Jacó” -, garantindo não só que o mundo foi criado por Iahweh para a salvação do homem, mas que Israel é o centro da humanidade com sua exclusiva história comandada por ele.

Ou seja: em sua polêmica com o racionalismo secular grego, o Eclesiástico procura salientar a superioridade da fé e da tradição israelitas codificadas na Lei.

Conclusão

Certamente esse é apenas um rápido e insuficiente tratamento do problema. Mas, para terminar, quero chamar a atenção, neste jogo de assimilação e combate às ideias helênicas, para a tendência absolutizante da Torá.

Quando, na tradição farisaica, é feita a identificação da Lei com a sabedoria “divina”, revelada a Israel e ocultada à razão humana, o que está em ação é uma ontologização da Torá, que terá múltiplas consequências históricas e teológicas.

Há, no judaísmo pós-exílico, uma perda evidente da consciência histórica, levando à segregação progressiva do judaísmo rabínico, especialmente após a dispersão do ano 70 d.C.

A ação eficaz do “fazer justiça”, construindo uma sociedade solidária, tão típica da teologia mosaica e profética, perde seu impulso. No seu lugar desenvolve-se a ideia do “ser justo”. Ser judeu, agora, na época greco-romana, é ser justo. E ser justo é observar com o maior rigor possível os preceitos da Torá. Especialmente as regras da pureza ritual, as obras de piedade e de misericórdia, o sábado, a circuncisão, as festas.

É a falência do projeto javista, pois o judeu poderá manter sua identidade sem precisar construir uma sociedade nova, onde o direito, a justiça e a solidariedade regem as estruturas políticas, sociais e econômicas.

É, por outro lado, o preço pago para salvar a raça, realimentada pelo despertar de uma consciência que liga fortemente o povo de Israel à religião judaica.

É o bloqueio das dissidências e do sincretismo, pelo menos na Judeia, concretizado na ruptura com os grupos que apresentavam projetos sociais alternativos, tais como os cristãos primitivos.

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Os Essênios e os Manuscritos do Mar Morto

Os Essênios e os Manuscritos do Mar Morto. Kerigma, Petrópolis, n. 5, p. 4-7, 1996.

Em fins de 1946 três jovens beduínos da tribo dos ta’amireh, que pastoreavam seus rebanhos em um oásis próximo ao Mar Morto, na Palestina, descobriram acidentalmente alguns manuscritos antigos dentro de uma gruta. Foi apenas o começo da mais importante descoberta de manuscritos deste século [Obs.: século XX].

Divulgada a notícia da descoberta de preciosos manuscritos bíblicos anteriores à era cristã – quando os mais antigos textos do AT que possuíamos datam de 900 d.C. -, seguiram-se, em meio a muitas controvérsias e dificuldades, a busca de novos manuscritos nas muitas grutas da região  e as escavações das ruínas de Qumran, situadas aproximadamente a 1 km a noroeste do Mar Morto.

No total, cerca de mil documentos foram recuperados em 20 grutas no deserto de Judá, entre os anos de 1946 e 1966. Destes, em 11 grutas próximas às ruínas de Qumran, foram encontrados 11 manuscritos mais ou menos completos e milhares de fragmentos de outros cerca de 600 a 800 manuscritos em pergaminho e papiro. Escritos em hebraico, aramaico e grego, cerca de 1/3 dos manuscritos são cópias de livros bíblicos, sendo o restante livros apócrifos, trabalhos exegéticos e escritos da comunidade que viveu em Qumran de 135 a.C. a 68 d.C. Acredita a maioria dos estudiosos que esta comunidade era formada pelos essênios, grupo judaico radical que saiu de Jerusalém por estar em conflito com o governo dos Macabeus.

Estes manuscritos não são importantes apenas porque através deles podemos conhecer melhor os essênios, mas também porque podemos conhecer melhor a complexidade do judaísmo desta época e os ambientes político e religioso onde nasceu o cristianismo. Questões como: Era João Batista um essênio? Teria Jesus entrado em contato com os essênios? são, a partir da descoberta dos manuscritos, frequentemente colocadas.

Hoje existe enorme bibliografia sobre os manuscritos do Mar Morto. E, passados quase 50 anos da descoberta, a maioria dos fragmentos ainda não pôde ser decifrada e publicada [Obs.: em novembro de 2001 a publicação dos Manuscritos do Mar Morto foi concluída]. A equipe de pesquisadores, constituída originariamente somente por especialistas cristãos, já foi ampliada com a inclusão de judeus, talvez os maiores interessados na compreensão destes textos.

Mas isso sempre gerou muita polêmica, com sugestões da mídia de ocultamento de prodigiosos segredos acerca do judaísmo e do cristianismo, da não originalidade do cristianismo – cujas ideias já estariam todas nos manuscritos dos essênios – da interferência de autoridades eclesiásticas que tentariam evitar a sua publicação e coisas do gênero.

A verdade é uma só: há dificuldades técnicas enormes para a leitura de cerca de 80 mil pequenos fragmentos muito danificados e um certo ciúme de quem está encarregado da pesquisa, que sempre os considerou como os “nossos” manuscritos. É dentro desta lógica que hoje há um debate intenso em torno dos manuscritos do Mar Morto, gerando publicações em grande quantidade.

É preciso assinalar que em nenhum dos manuscritos até agora publicados aparece a palavra “essênio”. Este termo vem, provavelmente, do hebraico hassidim (= os piedosos), em aramaico hassayya, em grego essaioi, daí “essênios”.

Embora a quase totalidade dos estudiosos identifique a comunidade de Qumran com os essênios, são, às vezes, sugeridas outras possibilidades. Há a hipótese caraíta, judeu-cristã, zelota, saduceia e farisaica.

O testemunho dos autores antigos sobre os essênios é importante para a identificação da comunidade de Qumran. Localização geográfica, valores e modo de vida dos essênios são descritos pelos judeus Flávio Josefo e Fílon de Alexandria e pelos romanos Plínio, o Velho e Solino.

Fílon de Alexandria, por exemplo, nos diz que “a Síria Palestina, que ocupa uma parte importante da populosa nação dos judeus, não é, também ela, estéril em virtude. Alguns deles, que somam mais de quatro mil, são denominados essênios”. Este número é confirmado por Flávio Josefo: “São mais de quatro mil homens a se comportarem dessa maneira”.

Tanto Flávio Josefo quanto Fílon de Alexandria noticiam a opção celibatária e a vida comunitária dos essênios, o que os manuscritos de Qumran confirmam, pelo menos para uma parte da organização. É que havia essênios que viviam nas cidades e aldeias da Palestina, e estes não eram celibatários, como os de Qumran.

Os líderes desta comunidade eram sacerdotes sadoquitas. Os assideus (= os piedosos) lutavam ao lado dos Macabeus contra a aristocracia filo-helênica a partir de 167 a.C. Mas, quando estes, que não eram sadoquitas, se apossaram indevidamente do sumo sacerdócio, rompendo uma tradição milenar,  um sacerdote sadoquita do Templo de Jerusalém, conhecido nos manuscritos apenas como o Mestre da Justiça (Môreh hasedeq) rompeu com os Macabeus e liderou um grupo de sacerdotes e assideus que se afastou de Jerusalém. O enquadramento do Mestre da Justiça é importante para se reconstruir a história da comunidade, pois ele é apresentado como a figura mais importante entre os essênios e deve ter escrito a famosa Regra da Comunidade que orienta a vida do grupo.

O sistema de admissão na comunidade era bastante rigoroso. Temos as informações da Regra da Comunidade e de Flávio Josefo sobre o assunto. O candidato, que devia ser israelita, passava inicialmente por um rigoroso exame feito pelo líder da comunidade “quanto a seu entendimento e a seus atos”. Se fosse considerado apto, ele era instruído nas regras da comunidade e passava a viver como um deles durante um ano, mas fora da comunidade.

Após esse ano, caso fosse aprovado pela assembleia, o candidato ingressava na comunidade, mas durante um ano inteiro não participava de suas refeições comuns nem da comunhão de bens. Era um tempo de aprendizado, certamente guiado pelo “instrutor”, que era o encarregado da formação espiritual.

Ao término desse segundo ano, iniciava o candidato um terceiro ano no qual entregava seus bens ao tesoureiro da congregação e continuava sua formação, mas ainda sem participação integral. Só no fim desses três anos, se aceito pela assembleia, o candidato passava a participar integralmente da comunidade, com direito às purificações rituais, banquete, voz e voto nas assembleias e comunhão de bens.

O ideal dessa comunidade era o de caminhar “ao encontro de Deus de todo o coração e alma”; fazer “o que é bom e certo conforme o que Ele ordenou por intermédio de Moisés e seus servos os profetas”, diz a Regra da Comunidade.

Segundo os arqueólogos, viviam em Qumran entre 150 e 200 pessoas. Em dois séculos de existência da comunidade devem ter vivido ali cerca de 1200 pessoas. A partir das ferramentas encontradas e das instalações escavadas, sabe-se que eles cultivavam a terra, faziam cerâmica, curtiam peles e copiavam manuscritos.

Os essênios se viam como a comunidade da nova aliança, como o resto de Israel, os santos que permanecem fiéis a Deus, certamente inspirados em Jr 31,31-34, que propõe uma nova aliança, porque o projeto original faliu.

Um dos textos mais reveladores de sua visão de mundo é o trecho da Regra da Comunidade que trata dos dois espíritos. Segundo o documento, Deus criou o homem com dois espíritos, com os quais ele deve conviver: o espírito da verdade, que nasce de uma fonte de luz e o espírito da falsidade, que nasce de uma fonte de trevas.

Os filhos da justiça, que andam pelos caminhos da luz, têm um espírito de humildade, paciência, amor fraterno, bondade, compreensão, inteligência, discernimento, zelo pelas leis, pureza etc. Os filhos da falsidade, que andam pelos caminhos das trevas, têm um espírito de ganância, negligência, maldade, arrogância, orgulho, hipocrisia, crueldade, luxúria, insolência, engano e assim por diante.

Para os filhos da justiça o julgamento divino será de saúde, vida longa, abundância, bênçãos, alegria, enquanto que para os filhos da falsidade será de flagelos, maldição, tormentos e desgraça. Não é preciso dizer que, naturalmente, os essênios se julgavam portadores de uma porção maior de verdade que de falsidade, exatamente o contrário de seus inimigos, segundo seu julgamento.

Este dualismo teológico do texto sobre os dois espíritos oculta/revela o conflito social que se vivia na Palestina da época, e do qual os essênios participavam como atores extremamente ativos. Não é à toa que seu manual de guerra chama-se “Guerra dos filhos da luz contra os filhos das trevas”. Como acreditavam estar vivendo os momentos decisivos da História, os essênios elaboraram uma doutrina da guerra, codificada nesta Regra da Guerra. Nesta guerra, os essênios vencerão os israelitas desencaminhados da Lei e os estrangeiros que dominam o país, no caso, os romanos. Só que eles foram totalmente destruídos pelos romanos em 68 d.C.

Para finalizar, é bom lembrarmos que as ideias apocalípticas, que tão fortemente colorem a teologia essênia, pregam mesmo é a mudança da ordem social em vigor. Segundo os padrões apocalípticos, esse mudança social tem alcance mundial.

Só que os essênios tinham consciência de que os indivíduos isolados jamais poderiam desencadear a mudança social, daí a necessidade da ação comunitária; e de que o homem só é ainda incompetente para tal revolução cósmica, donde a necessidade das forças divinas. Os essênios tinham esperança de alcançar benefícios concretos dessa mudança, por isso romperam com a ordem social dominante e se organizaram segundo princípios alternativos.

A antiga solidariedade israelita baseada nas relações de parentesco tornou-se inviável na sociedade helenizada que dominou a Palestina. Mas a solidariedade torna-se independente e é racionalizada em normas éticas, cuja validade fica assegurada através de um pacto rigoroso que insiste na construção de relações pessoais e recíprocas. Esse era o projeto dos essênios.

Até aqui o texto. Quem desejar conhecer melhor o assunto, pode ler online um texto meu, detalhado e documentado, sobre o assunto em: Os essênios: a racionalização da solidariedade.

Mais recursos sobre os Essênios e os Manuscritos do Mar Morto podem ser encontrados aqui e aqui.

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Leituras da Bíblia no Brasil ontem e hoje II

Ler a Bíblia no Brasil hoje. Cadernos do Cearp, Ribeirão Preto, n. 3, p. 23-36, 1995.

Este artigo está disponível online, na íntegra, em minha página. Foi atualizado em agosto de 2015. Clique aqui.

Lembro, por outro lado, que este é um texto mais resumido de um artigo anteriormente publicado na REB, em 1990, como se pode ver aqui.

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Judaísmo e Helenismo II

Judaísmo e Helenismo: resistência e submissão. Cadernos do Cearp, Ribeirão Preto, n. 2, p. 32-33, 1994.

Na sociedade israelita tradicional as relações sociais são reguladas pelo sistema de parentesco. As famílias se agrupam numa formação hierarquizada de tipo patriarcal conhecida como mishpaha (= clã). A reprodução das famílias, a posse da terra, a defesa das propriedades, as festas cultuais e a memória coletiva, por exemplo, são organizadas no interior da estrutura clânica, gerando forte coesão social e intensa solidariedade entre seus membros.

Teologicamente, esta estrutura se expressa no tema do êxodo, que é o caminho do Egito para a terra de Israel, mas que também é a passagem da escravidão para a liberdade, caracterizada na destruição de uma engrenagem de opressão e na construção de uma sociedade soberana e solidária.

Porém, com o restabelecimento do domínio estrangeiro a partir do exílio, este projeto social vai se encontrar num tremendo impasse. Especialmente a partir dos domínios grego e romano que helenizam inexoravelmente a Palestina.

Em 332 a.C. o macedônio Alexandre Magno anexa a Palestina ao seu império. Mas morre pouco depois e seus generais travam acirrada luta pela sucessão. O distrito de Judá pertencerá a senhores diversos até 301 a.C., quando será controlado pelos Ptolomeus, reis macedônios que governam a partir de Alexandria, no Egito.

A partir de 198 a.C. a Palestina passa para o domínio dos Selêucidas, reis macedônios que governam a partir de Antioquia, na Síria.

A aristocracia judaica sente-se prejudicada, no seu processo de enriquecimento, pela limitação imposta pelas leis judaicas que continuam em vigor. Aproveitando momento favorável, negocia com os Selêucidas a implantação dos valores e do modo de vida gregos na região da Judeia. A lei judaica é abolida e a prática do judaísmo é proibida. Os judeus fiéis à tradição são perseguidos e mortos.

Isto provoca um levante armado de sacerdotes e camponeses, que, chefiados pelos Macabeus, conseguem tomar o poder no século II a.C.  Durante 79 anos a Judeia será independente e governada pelos Macabeus, que concentram em suas mãos os poderes político, militar e religioso.

A breve e conturbada independência da Judeia encontra seu fim quando o general Pompeu anexa a Roma, em 63 a.C., os territórios do decadente reino selêucida.

A pesquisa em andamento* quer exatamente enfocar qual é a relação entre a Religião e a Sociedade neste contexto específico do judaísmo entre 332 a.C. (anexação da Judeia por Alexandre) e 63 a.C. (anexação da Judeia por Roma).

Como acontecia a resistência e a submissão à nova realidade grega através da mesma religião judaica? O que faz o judaísmo ser o que é? Sua força não viria do papel simbólico da religião que cria identidade através da diferença?

E uma questão muito próxima a nós: como podem as tradições e práticas religiosas de um povo servir como instrumento de resistência à dominação imperialista e classista hoje?

O estudo se desenvolve em duas partes: na primeira abordo a questão histórica em cinco capítulos: a conquista de Alexandre, o governo dos Ptolomeus, a helenização promovida pelos Selêucidas, a resistência dos Macabeus e a independência por eles conseguida até a chegada de Roma.

Na segunda parte, abordo em cinco capítulos, os instrumentos da helenização (tais como o exército, a pólis, a língua grega comum, os cultos reais e o ginásio), a visão grega dos judeus, a visão judaica dos gregos, a apocalíptica e os essênios.

Gostaria de salientar estes dois últimos elementos: o pensamento apocalíptico, tendência presente em variados grupos, como assideus, fariseus, essênios e cristãos é de grande importância para a compreensão da produção bíblica deste período; o outro é mais específico, estranho e fascinante: é o caso dos essênios que desenvolvem uma teologia mais elaborada, recentemente descoberta em Qumran.

Enfim, uma chave de leitura: frequentemente, o helenismo, consequência das conquistas de Alexandre, tem sido lido como uma fusão de culturas e um processo glorioso que favoreceu o desenvolvimento da dominante cultural ocidental via Império Romano e seus herdeiros. Prefiro enfocar o helenismo como um processo imperialista grego, depois romano, que descaracterizou as culturas orientais dominadas, gerando variadas formas de resistência do povo sofrido daquele tempo naqueles países.

* Esta pesquisa, que foi concluída, deveria ter sido publicada em livro, mas isto nunca aconteceu. Entretanto, o material foi publicado, de maneira dispersa, em meu site – na História de Israel e nos artigos – e em artigos na revista Estudos Bíblicos da Vozes.

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Judaísmo e Helenismo I

Judaísmo e Helenismo: resistência e submissão – O ambiente do querigma cristão. Estudos Bíblicos, Petrópolis, n. 39, p. 10-19, 1993.

Na sociedade israelita tradicional as relações sociais são reguladas pelo sistema de parentesco. As famílias se agrupam numa formação hierarquizada de tipo patriarcal conhecida como mishpaha (= clã). A reprodução das famílias, a posse da terra, a defesa das propriedades, as festas cultuais e a memória coletiva, por exemplo, são organizadas no interior da estrutura clânica, gerando forte coesão social e intensa solidariedade entre seus membros.

Teologicamente, esta estrutura se expressa no tema do êxodo, que é o caminho do Egito para a terra de Israel, mas que também é a passagem da escravidão para a liberdade, caracterizada na destruição de uma engrenagem de opressão e na construção de uma sociedade soberana e solidária.

Porém, com o restabelecimento do domínio estrangeiro a partir do exílio, este projeto social vai se encontrar num tremendo impasse. Especialmente a partir dos domínios grego e romano que helenizam inexoravelmente a Palestina.

Minha proposta é a de observar este processo para situarmos melhor o ambiente judeu-helenista no qual a mensagem cristã é anunciada pela primeira vez.

Isto pode ser feito em três momentos:

  1. a história de 586 a.C. a 135 d.C.
  2. o processo de helenização visto nos seus aspectos de submissão e resistência
  3. o estudo de dois casos: o da apocalíptica e o dos essênios*.

O artigo prossegue com os seguintes itens:

1. De Babel a Roma: a história
1.1. O domínio persa
1.2. O domínio grego
1.3. O domínio romano

2. Judaísmo e Helenismo face a face: o processo
2.1. Leis étnicas x leis políticas
2.2. O bloqueio da solidariedade

3. A apocalíptica e os essênios: a busca de alternativas
3.1. A apocalíptica, filha e herdeira da profecia
3.2. Os essênios, comunidade da nova aliança

Conclusão

* Sobre a apocalíptica, confira o artigo Apocalíptica: busca de um tempo sem fronteiras. Sobre os essênios, confira o artigo Os essênios: a racionalização da solidariedade.

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