Roteiro para uma leitura de Marcos

O relato de uma prática: Roteiro para uma leitura de Marcos. Estudos Bíblicos, Petrópolis, n. 22, p. 11-21, 1989.

Convido o leitor para uma visita ao Evangelho de Marcos. E recomendo um roteiro para uma leitura contínua do texto. Mas, que critérios seguir?

Com frequência, a leitura que se faz do Evangelho procura a Palavra de Deus dirigida ao eu que leio, em cada passagem. E, sem mais, de tal passagem, tira-se uma mensagem, dita espiritual, que é imediatamente aplicada ao nosso tempo, para dar resposta aos nossos problemas.1

Tal leitura deve ser questionada, pois o texto funciona como um mecanismo que só adquire sentido quando olhado no seu conjunto. E também porque a sociedade em que o Evangelho foi escrito era muito diferente da nossa sociedade atual. Eram outras suas coordenadas econômicas, políticas, sociais e ideológicas. Ora, o texto do Evangelho não escapa destas instâncias concretas onde foi produzido. Pelo contrário, ele se posiciona em relação a tais situações.2

Portanto, é preciso identificar o posicionamento do texto acerca de seu tempo, o tempo da comunidade, em Roma [observo hoje, em 2015: ou, mais provavelmente, em Antioquia; ou mesmo na Galileia], por volta dos anos 70, como também as atitudes assumidas por Jesus e seus seguidores, na Palestina, por volta do ano 30. Com isto, o leitor fica mais preparado para compreender e atualizar a mensagem evangélica.

Assim, proponho seguirmos os passos de Jesus e dos personagens que se movimentam ao seu redor, segundo o relato de Marcos. Descobriremos que a Boa-Nova foi anunciada em um contexto de intenso conflito e expectativa, e que o Evangelho foi escrito para preservar uma memória proibida que alimentava a luta dos oprimidos.3

O relato de uma prática
Olhando o Evangelho de Marcos, uma coisa logo chama a atenção do leitor. Ainda no seu início, em Mc 1,21-22, diz o texto que Jesus ensinava4 na sinagoga de Cafarnaum. Os seus ouvintes ficaram assombrados com o seu ensinamento. E logo no v. 23 o texto passa a contar uma ação de Jesus.

E o que ele ensinava? O texto não diz. Mas o interessante é que casos como este vão se repetir ao longo do Evangelho, ou pelo menos, de parte dele, como, por exemplo, em Mc 2,13; 4,1-2; 6,2.6.34. Só a partir de 8,31 é que se indica mais clara e sistematicamente o conteúdo deste ensinamento, como em Mc 8,31; 9,31; 12,35 etc.

O que significa isto? É que Marcos, ao contrário de Mateus e Lucas, preocupa-se muito mais com a prática de Jesus do que com o seu discurso. A narração de Marcos não é, na verdade, uma coleção de palavras ou de discursos de Jesus, mas a exposição de suas práticas e estratégias. Para Marcos, o ensinamento de Jesus é a sua própria prática. Jesus ensina fazendo.5

Os atores do texto
Então, a partir desta constatação, é bom a gente começar a se preocupar com as atitudes do protagonista do texto, Jesus, e também com as atitudes dos outros personagens que se movimentam ao seu redor ao longo desses 16 capítulos.

Quem são estes personagens? O protagonista, sem sombra de dúvida, é Jesus. Ao redor dele movem-se os seus seguidores: os discípulos/os Doze, que representam o Israel institucional, e aqueles que estavam o redor dele, que não pertencem ao Israel institucional.6

Por sinal, o Jesus de Marcos está sempre acompanhado por seus seguidores, exceto em duas ocasiões: quando eles partem em missão e quando Jesus é condenado e morto.

Outro grupo que se destaca é a multidão que procura Jesus, porque o admira e precisa de seus milagres. Finalmente, do outro lado da trincheira, estão os representantes do poder judaico: fariseus, escribas, herodianos, anciãos, sumos sacerdotes, saduceus. E romanos. São os seus adversários, gente que o procura para vigiar, investigar, prender e matar.

Um esquema para Marcos
E, de repente, aparece o problema da divisão ou esquema adequado a uma leitura do Evangelho de Marcos.

Cada autor apresenta um sistema diferente. Alguns dividem o Evangelho segundo um esquema histórico-geográfico, outros preferem uma divisão por temas, outros ainda evocam elementos literários para justificar esta ou aquela estrutura do texto. Muitos usam sistemas mistos.7

Há, entretanto, grande consenso  entre os especialistas quanto a ser Mc 8,27-30 o núcleo decisivo do Evangelho, dividindo-o em duas etapas.

O esquema deste roteiro pode ser representado por uma escada de dois lanços, cada um respondendo a uma questão fundamental, degrau por degrau:
1. Quem é Jesus?
2. Que tipo de Messias Ele é?

O patamar entre os dois lanços é ocupado pela confissão de Pedro: “Tu és o Cristo (= o Messias)” [segue-se um desenho da “escada”].

O artigo prossegue com os seguintes tópicos:

  1.  A proposta do texto
  2. O anúncio da libertação
  3. Amostras da prática de Jesus
  4. A incompreensão dos adversários
  5. A incompreensão da família e dos conterrâneos
  6. A incompreensão dos discípulos
  7. Quem é Jesus? A definição dos discípulos
  8. A subida a Jerusalém: a opção de Jesus
  9. O confronto com o poder judaico
  10. Jesus frente à morte: derrota ou vitória?

A bibliografia utilizada no artigo, que tem 22 notas de rodapé, foi a seguinte:

ALEGRE, X. Marcos ou a correção de uma ideologia triunfalista: Chave de leitura de um Evangelho beligerante e comprometido. Belo Horizonte: CEBI, 1988.
BELO, F. Lecture matérialiste de l’Évangile de Marc. 2. ed. Paris: Seuil, 1975.
BRAVO GALLARDO, C. Jesús, hombre en conflicto. El relato de Marcos en América Latina. Santander: Sal Terrae, 1986.
CHARPENTIER, E. Dos evangelhos ao Evangelho. São Paulo: Paulinas, 1977.
CLÉVENOT, M. Enfoques materialistas da Bíblia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
DE LA CALLE, F. A teologia de Marcos. São Paulo: Paulinas, 1978.
DELORME, J., Leitura do evangelho segundo Marcos. São Paulo: Paulinas, 1982.
KÜMMEL, W. G. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Paulinas, 1982.
LOHSE, E. Introdução ao Novo Testamento. São Leopoldo: Sinodal, s/d.
MATEOS, J. Los “Doce” y otros seguidores de Jesús en el Evangelio de Marcos. Madrid: Cristiandad, 1982.
METZ, J. B. A fé em história e sociedade. São Paulo: Paulinas, 1981.
PESCH, R. Il Vangelo di Marco. Parte prima. Brescia: Paideia, 1980; parte seconda, Brescia: Paideia, 1982.
TAYLOR, V. Evangelio según San Marcos. Madrid: Cristiandad, 1979.
VÉLEZ, N. A leitura bíblica nas Comunidades Eclesiais de Base. RIBLA, Petrópolis, n. 1, 1988.

Notas de rodapé

1. Um dos resultados mais desastrosos da leitura idealista da Escritura é a fuga da realidade e a consequente construção mítica de um mundo totalmente dualista onde se opõem espírito e matéria, alma e corpo, religioso e secular, sagrado e profano, história da salvação e história humana etc. O espiritualismo é fruto deste processo: ao considerar o espírito superior à matéria, ele ignora os vínculos materiais através dos quais os homens se relacionam concretamente e conduz ao isolamento individualista e à negação da história. Entretanto, distingo aqui entre espiritual e espiritualismo. Para o sentido positivo da chamada leitura espiritual da Escritura, cf. VÉLEZ, N. A leitura bíblica nas Comunidades Eclesiais de Base. Em Ribla n. 1, Petrópolis/São Paulo/São Leopoldo 1988, Vozes/Metodista/Sinodal, p. 36-37.

2. Geralmente atribui-se a autoria do evangelho em questão a João Marcos, judeu de Jerusalém, companheiro de Paulo e Barnabé e também de Pedro, em Roma. Mas o texto mesmo não menciona o nome de seu autor: é a tradição que atribui este Evangelho a Marcos (cf., por exemplo, o testemunho de Papias, do século II) O que é certo, entretanto é só isso: o autor foi um cristão da segunda geração. Quanto ao local e data de composição alguns estudiosos de Marcos defendem, apoiados em certos indícios do próprio texto, que o Evangelho foi escrito, talvez em Roma, para uma comunidade cristã predominantemente gentia, por volta dos anos 70 [anoto em 2015: Antioquia, na Síria, ou mesmo a Galileia, são locais hoje considerados mais prováveis]. Cf. LOHSE, E. Introdução ao Novo Testamento. São Leopoldo: Sinodal, s/d (original alemão, 1972), p. 141-145; KÜMMEL, W. G. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Paulinas, 1982, p. 112-117.

3. “Não é por acaso que a destruição de recordações é uma medida típica da dominação totalitária. A escravização do homem começa com o fato de se lhe tirarem as recordações. Toda a colonização tem aí o seu princípio. E toda insurreição contra a opressão nutre-se da força subversiva do sofrimento recordado. A memória do sofrimento opõe-se, sempre de novo, aos cínicos modernos do poder político” (METZ, J. B. A fé em história e sociedade. São Paulo: Paulinas, 1981, p. 128).

4: O verbo didáskein = ensinar, é usado por Mc 17 vezes; dessas, 15 descrevem a  atividade de Jesus. O ensinamento de Jesus acontece só em ambiente judaico, pois implica uma doutrina exposta a partir da Lei (Torá), enquanto a proclamação da Boa-Nova (kêrússein = proclamar, 14 vezes em Mc), nunca se situa na Judeia e em Jerusalém, mas na Galileia e entre os gentios. A proclamação é para os judeus (fora de Jerusalém) e para os gentios, o ensinamento é só para os judeus. Cf. MATEOS, J. Los “Doce” y otros seguidores de Jesús en el Evangelio de Marcos. Madrid: Cristiandad, 1982, p. 24-25.

5. Cf. BELO, F. Lecture matérialiste de l’Évangile de Marc. 2. ed. Paris: Seuil, 1975, p. 326-356; CHARPENTIER, E. Dos evangelhos ao Evangelho. São Paulo: Paulinas, 1977, p. 163; CLÉVENOT, M. Enfoques materialistas da Bíblia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 81-82.

6. J. MATEOS, em interessante estudo de 304 páginas, Los “Doce” y otros seguidores de Jesús en el Evangelio de Marcos, distingue os dois grupos de seguidores mencionados e esclarece: ao ser chamado de Doze, o grupo simboliza o Israel escatológico-messiânico, a totalidade do povo, enquanto o conceito de discípulos expressa sua decisão de segui-lo. Sobre a relação entre os Doze/discípulos e os outros seguidores que estavam com Jesus, o autor demonstra que não há diferença de posição entre eles. Ambos estão próximos a Jesus, recebem a mesma missão, os mesmo avisos, as mesmas propostas. Cf. as conclusões das p. 247-258. Cf. também as opiniões dos autores que distinguem entre os Doze e os discípulos nas p. 9-20 [do artigo].

7. Cf., por exemplo, DE LA CALLE, F. A teologia de Marcos. São Paulo: Paulinas, 1978, p. 32-38, que utiliza elementos literários e geográficos, em composição bastante harmoniosa. Ou DELORME, J., Leitura do evangelho segundo Marcos. São Paulo: Paulinas, 1982, p. 35, que oferece três organizações possíveis para o texto: segundo a geografia, segundo o desenvolvimento do drama, segundo as relações entre as pessoas.

Se por acaso, alguém ficou curioso querendo saber mais sobre esta abordagem de Marcos, vou propor outra coisa. Clique aqui.

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