Religião e formação de classes na antiga Judeia 4

4. Crise agrária, revolta dos camponeses e reforma de Neemias (446-432 a. C.)

4.1. O surgimento das cidades áticas, especialmente de Atenas…

:: Crise agrária na Judeia
4.2. Ne 5,1-5 narra um conflito social na Judeia. Há três grupos de queixosos:
. alguns empenharam seus filhos (escravidão por dívida) para receber alimentos
. outros hipotecaram suas terras na época da fome
. outros ainda, por não ter pago os impostos, tiveram que vender seus filhos como escravos

> Há determinada sequência na formação da dependência: primeiro penhoram-se os filhos (escravidão), depois a terra.

> A penhora dos filhos é a ‘ârab: o devedor insolvente tem que trabalhar para seu credor até saldar sua dívida. Mas se não for possível esta retribuição direta, ele e sua família podem ser vendidos a um terceiro como escravos por dívida e o credor recebe o seu preço.

4.3. Os casos de empobrecimento de um israelita e as respectivas soluções são as seguintes, segundo Lv 25,23-55:
. ele, o empobrecido, vende seu campo ou sua casa
. ele recebe dinheiro ou víveres como empréstimo
. ele é vendido a um israelita
. ele é vendido a um estrangeiro

4.4. Aí aparece o seguinte: a venda do campo ao goel agnático era o primeiro passo que levava um camponês à pobreza. A escravidão do chefe de família vem em segundo lugar. É o contrário de Ne 5.

4.5. Examinemos o caso 2 de Ne 5,1-5: o caso daqueles que têm campos, vinhas, casas e oliveiras (v. 11) e que tiveram que empenhá-los durante uma penúria. Trata-se de penhora cujo usufruto foi transferido ao credor. Ou seja: o credor tem direito aos produtos excedentes.

4.6. Como aparece também em Mq 2,1 (“Ai daqueles que planejam…”) os credores podiam se apropriar com facilidade dos campos e das casas dos outros. Se o camponês que penhora sua produção não produzir o suficiente, acaba na escravidão. A penhora permite ataque direto do credor à propriedade e à família do devedor. E, como nos mostra o papiro 10 de Cowley (papiros de Elefantina, séc. V a.C.) – cf. p. 55 – é desproporcional o tamanho da penhora em relação ao empréstimo feito.

4.7. A crise do tempo de Neemias, que aparece em Ne 5, pode ter tido vários motivos, como:
. piora da qualidade da terra
. mau tempo que prejudicou a colheita
. crescimento do número de familiares
. divisão e diminuição das terras por causa da herança
. exigências estatais de pagamentos de impostos sobre o terreno, de acordo com seu tamanho
. e pior: este imposto tinha que ser pago em moedas

> Daí: quem já tivesse hipotecado seus campos e sua produção precisava vender filhos e filhas como escravos.

4.8. A terminologia desta formação de classes:
. ‘ebed: escravo, servo: é o último grau de dependência, é quando uma pessoa se torna objeto de compra. Há distinção entre escravo estrangeiro (permanente) e escravo israelita, por dívida, que deve ser libertado no sétimo ano (Ex 21,2;Lv 25,39-41;Dt 15,12).
. sâkîr: operário: é o caso de quem perdeu suas terras e resgatou suas dívidas pelo trabalho.
. tôshâb: morador: é o estrangeiro domiciliado em Israel com situação jurídica e social específica.
. ‘ikkâr: lavrador: citado em 7 textos do AT, indica em três deles um camponês dependente do dono da terra: Is 61,5; 2Cr26,10 e Jl 1,11. É possível, por causa da data destes textos, que esta dependência só tenha acontecido no pós-exílio.

4.9. Voltemos à crise da época de Neemias, como aparece em Ne 5,6-12:
. v. 7: “repreendi os nobres (hôrîm) e os magistrados (seganîm)
. Estes são os credores, dos quais muitos judeus dependiam: são da classe alta, pessoas de posses. Por que a repreensão de Neemias? É que o endividamento tinha como objetivo levar à venda (ao estrangeiro) o judeu empobrecido. É que estava florescendo o comércio de escravos no Mediterrâneo.

4.10. As providências tomadas por Neemias:
. foi uma anistia: renúncia às rendas (pelos credores) das terras hipotecadas
. consequência: exclusão da escravidão do judeu ao estrangeiro (se a lei tiver funcionado…)
. mas: não houve distribuição de terras para os sem-terra.

:: Revolta dos camponeses e religião
4.11. A queixa dos camponeses era contra três tipos de dependência:
. serviço para pagar as dívidas
. obrigação de pagar juros e tributos
. escravidão

> A queixa era baseada no conceito de fraternidade/solidariedade judaica, fundamentado na relação de parentesco. Desapropriação e escravidão não são compatíveis com esta ordem jurídica. Os conceitos de ‘âh = irmão, ‘âmît = compatriota e rê’a = amigo não são puramente intelectuais, mas designam os membros de uma sociedade solidária.

4.12. O cap. 25 do Levítico trata desta questão, da igualdade entre irmãos para todos os judeus, ao falar do sábado e do ano jubilar.

4.13. Mas para se entender bem este capítulo é preciso considerar a situação de sacerdotes e levitas em Israel no pós-exílio.

> O culto e o sacerdócio não tinham propriedades, dependiam do tesouro do Estado (Esd 4,3;5,1-17;6,4-9 etc). Sacerdotes e levitas viviam da contribuição dos camponeses, estando eles mesmos isentos de contribuição (Esd 7,24). Prestavam serviços em Jerusalém só de tempos em tempos, morando, no mais, em suas cidades e aldeias (Ne 11,20.36; 1Cr 24,1-19). Segundo o Dt os levitas não têm herança, terra, e são juridicamente iguais aos gerîm (estrangeiros residentes): mas esta é a visão dos levitas sobre si mesmos, uma vez que há indícios de que alguns sacerdotes e levitas possuíam terras (Jr 1,1;32,6-15; Am 7,17: estes são da nobreza; Ne 11,20;13,10; Lv 27,21 etc.) Era permitido aos levitas usar os prados comunitários (migrâsh) das cidades (‘îr): Js 14,4; Lv 25,34; Nm 35,1-8; 1Cr 6,39-41.

4.14. Lv 25 determina que:
. se o irmão deve vender seu terreno, então o parente agnático mais próximo deve comprá-lo
. se isto não for possível, no 49º ou 50º ano o antigo dono deve receber de volta sua propriedade vendida
. se o irmão receber empréstimo em dinheiro ou víveres, não se deve cobrar dele nem juros, nem quantidade maior de víveres
. se é vendido a israelita, não deve prestar serviços de escravo, mas deve ser considerado como um tôshâb (estrangeiro residente) ou um diarista. No ano jubilar esta condição de empregado termina e ele deve voltar ao seu clã
. se o irmão for vendido a estrangeiros como escravo, deve ser resgatado pelo parente mais próximo. Caso contrário, deve ser libertado no ano jubilar

4.16. Todas as cláusulas tentam evitar a formação de classes. Exige-se a solidariedade na forma de resgate e de ajuda ao vizinho, mas também há duas concepções teológicas específicas: o ritual do ano jubilar e o direito sagrado à terra (a terra é de Iahweh).

4.17. Lv 25,23 liga a ideia de propriedade sagrada da terra à regra da organização do clã israelita:
. a posse da terra é direito de usufruto e não de propriedade: é uma relação de posse, não uma relação jurídica, baseada na posse concreta da terra
. segue-se que a dívida não confere ao credor direito de propriedade, nem da terra nem do homem, mas apenas uso limitado, como paga pelo empréstimo
. o tempo de uso é de 49 anos
. unem-se três normas com o postulado do direito de uso:
– a ge’ulla (resgate da terra): o direito preferencial de compra da terra
– o direito de resgate das casas
– o resgate de israelita que cai na escravidão estrangeira.

4.18. É provável que esta casuística jamais tenha funcionado. Mas o importante é: segundo estas formulações, a solidariedade não se baseia mais na relação de parentesco, mas na relação sagrada da propriedade da terra e do homem. Este é o conceito que preside à queixa dos camponeses em Ne 5: um amplo conceito de “irmão” que ultrapassa as normas estritas de parentesco.

4.19. A regra do ano jubilar está em contradição com a norma do resgate imediato da terra e do escravo e do ano sabático: é porque estas regras não funcionam mais que se tem de exigir a regra dos 49 anos.

> O ano jubilar, primitivamente, devia indicar a nova divisão das terras entre as famílias dos clãs. Se o clã, no pós-exílio, fosse igualitário, não haveria necessidade de leis de devolução da terra. É sinal, o ano jubilar, de estratificação social, onde uma aristocracia, criada no interior do clã, tende a excluir os mais pobres.

4.20. Agora, por que o sentido religioso, dado pelos sacerdotes, à posse da terra, propriedade de Iahweh? Coincidência de interesses dos camponeses e sacerdotes/levitas empobrecidos. A classe sacerdotal sem terras estava interessada no controle público das terras e não na privatização da propriedade da terra. Só assim ela poderia ter certeza das contribuições para o Templo e para os seus agentes.

4.21. A consequência ideológico-política: instituições camponesas de solidariedade adquiriram fundamento religioso e teológico [Diese Konstellation von Interessen hatte zur Folge, daß Institutionen bäuerlicher Solidarität religiös begründet wurden].

:: Constituição tradicional da Judeia no tempo de Neemias
4.22. A Judeia da época de Neemias é também obra dos dominadores persas, que favoreceram a criação de um Estado sacerdotal (em oposição a um Estado político) como forma de manter o controle.
. Nos documentos de Esdras/Neemias distinguem-se israelitas, sacerdotes e levitas como grupos específicos (Ne 11,9.14.22).
. Através de uma carta enviada de Elefantina aos judeus de Jerusalém em 410 a.C., sabemos que havia um governador persa, uma comunidade sacerdotal com o seu chefe e uma comunidade aristocrática com o seu chefe.

4.23. E aparece determinada ordem social em Ne 10,31-38 (cf. texto). Esta ordem se fundamenta na tradição religiosa judaica e reflete a resistência do povo contra os interesses da aristocracia quer desejava se desligar das instituições tradicionais da religião/sociedade judaicas.
Especialmente:
v. 32b: a restrição da penhora (Ne 5)
vv.33.36.37b: o dízimo para os levitas (Ne 13,10)
v. 32a: a proibição de negociar no sábado (Ne 13,15)
v. 31: a proibição do casamento com estrangeiras (Ne 13,23)
v. 32b: o descanso da terra a cada 7 anos (cf. p. 67 para os motivos)

> São normas que vão contra os interesses aristocráticos. A reforma de Neemias favoreceu os camponeses da tribo.

4.24. “Neemias, o governador persa da província, assumiu os ideais dos camponeses devedores. Em nome do poder central baixou normas que protegiam os camponeses nativos, bem como o Templo contra um capitalismo comercial do tipo das cidades gregas” (p. 71-72).

 

Leia em seguida:

Capítulo 5: Arrendamento estatal grego e luta dos Macabeus pela liberdade – Griechische Staatspacht und makkabäischer Freiheitskampf

Capítulo 6: Apresentação de sociedades asiáticas em etnografia helenística – Zur Interpretation asiatischer Gesellschaften in hellenistischer Ethnographie

Capítulo 7: A evolução de um domínio sem tradições na Judeia e a revolta crescente contra ele – Die Progression einer traditionsfreien Herrschaft in Judäa und des Widerstandes gegen sie

Capítulo 8: Estabelecimento da antiga relação de classes na Judeia – Die Etablierung der antiken Klassenverhältnisse in Judäa

Capítulo 9: Oposição da religião à política – Opposition der Religion gegen die Politik

Bibliografia – Literatur

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