Para conhecer o mundo babilônico do I milênio a.C.: NaBuCCo

Sobre o projeto

Neo-Babylonian Cuneiform Corpus (NaBuCCo) é um site que pretende colocar metadados textuais online de cerca de 20.000 documentos neobabilônicos publicados, incluindo registros legais, administrativos e epistolares. Estes documentos foram criados no I milênio a. C. e se originaram principalmente de cinco grandes cidades da Mesopotâmia durante esse período: Babilônia, Borsippa, Nippur, Sippar e Uruk. O site coleta todos os dados meta textuais das fontes, parafraseia seu conteúdo, disponibiliza os dados online e os liga, através de sites parceiros, aos documentos originais dos quais são extraídos. Além do catálogo de texto, o projeto oferece uma bibliografia detalhada e abrangente sobre a Babilônia no primeiro milênio a. C.

Espera-se que o projeto beneficie os pesquisadores. Na verdade, o banco de dados, com sua ferramenta de pesquisa avançada, páginas interligadas e extensa bibliografia, permitirá que estudiosos do campo da assiriologia e também de outros campos da pesquisa histórica de todo o mundo trabalhem com uma coleção abrangente de textos babilônicos em seus próprios projetos. Espera-se também que o catálogo, a bibliografia e o portal NaBuCCo sejam ferramentas úteis para levar o mundo da Babilônia até os não especialistas. Este portal fornecerá informações consistentes sobre cronologia e eventos históricos, principais cidades e topografia, vários aspectos da sociedade e da economia da Babilônia do I milênio a. C. e estabelece as bases para a compreensão dos próprios textos apresentados. O usuário comum também encontrará explicações básicas sobre os tipos e a origem dos textos apresentados.

A equipe é formada por pesquisadores da Universidade Católica de Leuven, Bélgica, da Universidade de Viena, Áustria, e da Universidade de Tel Aviv, Israel.

Tablet n.: BM 30912

About the project

NaBuCCo is a text-oriented website that aims at putting online textual metadata of an estimated 20,000 published Babylonian documentary sources including legal, administrative and epistolary records. These documents have been created between roughly 800 and the end of the pre-Christian era and primarily originate from the five large cities of Mesopotamia during that time: Babylon, Borsippa, Nippur, Sippar and Uruk along with their agrarian hinterland. The website collects all meta-textual data from the sources, paraphrases their content, makes the data available online, and links them (via partner websites) to the original source documents from which they are extracted.

In addition to the text catalogue, the project offers a comprehensive up-to-date bibliography on Babylonia in the first millennium BCE.

We hope that the project will benefit the research community. Indeed, the database with its advanced search tool, interlinked pages and extensive bibliography will enable scholars from within the field of Assyriology and also from other historical fields from all over the world to work with a comprehensive collection of Babylonian texts for their own research projects.

At the same time we hope that NaBuCCo’s catalogue, bibliography and to be developed portal will be a useful tool to delve into the Babylonian world for non-specialists. While the main addressees are specialist and non-specialists scholars, the project also aims at approaching those stakeholders who are not scientifically involved in this kind of source material. Being freely accessible online, the NaBuCCo database can not only be searched through and experienced by any historically interested individual, but – most importantly – provides proper tools, namely the paraphrases, to understand the archival texts from Babylonia also without background knowledge. The access to and the basic understanding of the Babylonian world and its thousands of texts will, furthermore, be eased by the 1st Millennium BC Babylon Portal to be provided on the NaBuCCo website in the future. This portal will provide profound information about chronology and historical events, main cities and topography, various aspects of society and economy of 1st-millinium-BCE Babylonia and lays the foundation for an understanding of the presented texts themselves. The common user will also find basic explanations about the types and origin of the texts presented.

NaBuCCo, short for Nabucodonosor (English Nebuchadnezzar), is the title of an opera by Verdi in which the Babylonian king Nebuchadnezzar II and the exile of the Judean population induced by him play a central role. We choose this name as acronym for a scientific project coined the Neo-Babylonian Cuneiform Corpus (NaBuCCo) that aims to make available clay tablets with cuneiform script originating from Babylonia or its immediate vicinity and dated to the Age of Empires (c. 770 BCE – 75 CE), a.o. tablets dated to the reign of Nebuchadnezzar II (c. 605-562 BCE), who is no doubt the most famous king of one of the empires, the Neo-Babylonian (Chaldean) Empire.

The NaBuCCo project was created as part of the research project Greater Mesopotamia: Reconstruction of its Environment and History (GMREH), whose funding is provided by the Belgian Science Policy Office – BELSPO in the framework of the Interuniversity Attraction Poles (IAP) (2012-2017).

Principal investigators: Kathleen Abraham, KU Leuven; Michael Jursa, University of Vienna, and Shai Gordin, Ariel University / Tel Aviv University.

Ele que o abismo viu: a Epopeia de Gilgámesh

Descobri hoje que saiu no dia 10 passado o livro de Jacyntho Lins Brandão com a tradução e comentário da Epopeia de Gilgámesh. Utilizei artigos dele em meu estudo sobre as Histórias de criação e dilúvio na antiga Mesopotâmia.

BRANDÃO, J. L. Ele que o abismo viu: Epopeia de Gilgámesh. Belo Horizonte: Autêntica, 2017, 336 p. – ISBN 9788551302835. Uma edição em capa dura, sem notas e comentários, saiu em 2021.

Esta é uma tradução comentada do poema comumente denominado “Epopeia de Gilgámesh” – cujo título original é Ele que o abismo viu (ša naqba īmuru) e cuja autoriaBRANDÃO, J. L. Ele que o abismo viu: Epopeia de Gilgámesh. Belo Horizonte: Autêntica, 2017 se atribui a Sin-léqi-unnínni –, trabalho que procura beneficiar-se de tudo que, nos últimos anos, permitiu que se ampliasse nosso conhecimento, em primeiro lugar, do próprio texto, mas por igual da tradição literária e das poéticas mesopotâmicas.

O que nele se narra é como Gilgámesh, o quinto rei de Úruk depois do dilúvio, passa por experiências existenciais marcantes que o levam a compreender os limites da natureza humana, os quais se impõem mesmo para alguém, como ele, filho de uma deusa e, por isso, dois terços divino e apenas um terço humano. É provável que ele tenha reinado de fato, por volta do século XXVII a.C., e que, em vista de seus grandes feitos, em especial a construção das muralhas de Úruk, se tenha desenvolvido em torno de seu nome as diversas narrativas heroicas que se conhecem a partir do século XXII a.C., inicialmente em sumério, em seguida em acádio. O texto que aqui se apresenta encontra-se no ápice do desenvolvimento desse ciclo heroico, devendo-se ao sábio Sin-léqi-unnínni a concatenação de tradições e narrativas anteriores num poema marcado por profunda reflexão antropológica.

De início, após louvar os feitos tradicionalmente atribuídos a Gilgámesh, na condição de alguém que repôs o que foi destruído pelo dilúvio, apresentam-se os seus excessos como rei – o desafio constante aos jovens de Úruk para disputas e o direito de dormir a primeira noite com as noivas (ele antes, o marido depois). Essa desmedida, que deixa clara quanto sua natureza é superior à do comum dos mortais, leva a que os habitantes da cidade se dirijam aos deuses em busca de uma solução. Como resposta, decidem eles criar um companheiro à altura de Gilgámesh, do que se encarrega a deusa Arúru, que o faz usando de argila. Assim surge Enkídu, uma espécie de personificação do homem primitivo, que vive desnudo junto dos animais, com eles comendo relva e bebendo água na cacimba. Inteirado da presença desse ser estranho na estepe, Gilgámesh encarrega uma prostituta sagrada, Shámhat, de ir até ele para que, com ela tendo relações sexuais, Enkídu seja atraído para a cidade. É assim que ele aprende a comer pão e beber cerveja, marcas da vida civilizada, sendo conduzido por Shámhat até a cidade de Úruk, onde enfrenta Gilgámesh no momento em que, dirigindo-se à câmara nupcial, o rei se prepara para exercer seu direito à primeira noite. Lutam os dois na rua, de um modo espetacular, o que serve para selar sua profunda amizade. Enfim, Gilgámesh encontrou um igual.

Os passos seguintes narram dois grandes feitos heroicos. O primeiro, o modo como Gilgámesh e Enkídu vencem Humbaba, o guardião da Floresta de Cedros (que se diz estar localizada no Líbano). Esse foi um feito intencionalmente buscado, em nome da fama, pois, sabem eles que “do homem os dias são contados, tudo que ele faça é vento”. Já a proeza seguinte é provocada pela deusa Ishtar – cuja esfera de atuação é tanto o sexo quanto a guerra: depois do regresso da Floresta de Cedros, apresentando-se Gilgámesh em sua glória de rei, atrai ele os olhos da deusa, que lhe propõe casamento. Ele a rechaça com extrema dureza, arrolando o destino infeliz de seus amantes, o que a leva a pedir a seu pai, o deus Ánu, que lhe entregue o Touro do Céu (isto é, a constelação do Touro), para que devaste Úruk. De novo os dois amigos enfrentam o perigo, vencendo e matando o Touro. A primeira metade do poema termina, assim, com a grande festa com que se comemora a vitória de Gilgámesh. Conforme se proclama, ele é o melhor dentre os moços, o mais ilustre dentre os varões!

A segunda parte principia de um modo lúgubre. Mesmo que o texto esteja muito fragmentado nessa passagem, pode-se saber que os deuses, reunidos em assembleia, determinam que, por haverem matado Humbaba e o Touro, um dos dois companheiros deve morrer, a escolha caindo sobre Enkídu. Abatido por grave doença, ele vem a falecer, provocando em Gilgámesh enorme dor, a qual se manifesta em prolongados lamentos. Depois de prestadas as honras fúnebres com toda pompa possível, Gilgámesh parte em viagem, em busca de Uta-napíshti, o herói que, tendo sobrevivido ao dilúvio por ter fabricado uma arca, conforme as instruções do deus Ea, foi também recompensado pelos deuses com o dom da imortalidade. O que atormenta Gilgámesh é a certeza de que, como Enkídu, seu destino é a morte. Conforme suas próprias palavras, mais de uma vez repetidas:

Como calar, como ficar eu em silêncio?

O amigo meu, que amo, tornou-se barro,

Enkídu, o amigo meu, que amo, tornou-se barro!

E eu: como ele não deitarei

E não mais levantarei de era em era?

BRANDÃO, J. L. Epopeia de Gilgámesh. Belo Horizonte: Autêntica, 2021Na rota até Uta-napíshti, Gilgámesh ultrapassa as fronteiras do mundo, indo além de onde nasce o sol, enfrentando perigos e tendo contato com seres extraordinários: os homens-escorpião, a taberneira Shidúri, o barqueiro Ur-shánabi, com quem cruza as águas da morte, e “os de pedra”, seres enigmáticos que ele destroça. Atingindo seu objetivo, Gilgámesh ouve de Uta-napíshti o relato do dilúvio e de como, na assembleia dos deuses, ao final, a ele e a sua esposa foi concedido o dom da imortalidade – com a observação de que isso aconteceu apenas uma vez, numa situação de todo extraordinária, não sendo de esperar que se repita com relação a nenhum outro homem.

Assim é que Gilgámesh deve voltar para a casa sem nada. A esposa de Uta-napíshti, contudo, intercede por ele, fazendo com que o marido lhe releve a localização da planta da juventude, no fundo das águas. Gilgámesh mergulha, traz consigo a planta, mas, ao parar junto de uma fonte para banhar-se, uma serpente a rouba, mudando imediatamente de pele. Nesse momento, Gilgámesh senta-se e chora, por considerar que fracassou em sua busca. A ação se fecha então como se abrira: com a descrição de Úruk e suas muralhas, sugerindo-se que aquilo que o herói traz consigo na volta não é algo material, mas sim a certeza de que a vida humana, ainda que breve, tem seu lugar no espaço de convivência com outros homens, configurado pela cidade. A glória de Gilgámesh é também a glória de Úruk e vice-versa.

 

A descoberta do poema

O texto de Sin-léqui-unnínni recebeu uma nova edição crítica, feita pelo assiriólogo inglês Andrew George e publicada em 2003, a qual levou em conta todos os manuscritos até então conhecidos. Isso significa, antes de tudo, que todas as traduções anteriores se encontram ultrapassadas, exigindo novas empreitadas, como a que aqui se apresenta ao leitor.

Mas mesmo depois disso outros dois importantes documentos foram dados à luz: o primeiro, um manuscrito descoberto na antiga Ugarit, no litoral da Síria, por Daniel Arnaud e por ele mesmo publicado em 2007, o qual permitiu completar de modo bastante significativo o prólogo do texto;o segundo, um novo testemunho da tabuinha 5, contendo grandes porções do texto antes só precariamente conhecidas ou mesmo de todo ignoradas foi identificado em 2011 por Farouk Al-Rawi, no Museu de Suleimaniyah, no Iraque, tendo sido publicado por ele próprio e por Andrew George em 2014. Depois da publicação dos textos de Ugarit e Suleimaniyah, a própria edição de 2003 deve ser posta em dia e, consequentemente, mais uma vez, as traduções.

Contudo, não se trata apenas de mudanças de ordem textual. O manuscrito de Ugarit, por exemplo, embaralha bastante o que se acreditava ser o poema em suas fases média e recente, já que, por exemplo, o prólogo geralmente atribuído a Sin-léqi-unnínni, a quem se acredita que se deve a última versão, revela-se agora anterior à época a ele tradicionalmente atribuída (séculos XIV-XIII a.C.). Pode-se dizer, num certo sentido, que cada novo dado tem como consequência ampliar nossos conhecimentos só para mostrar que a história do texto é sempre mais complexa do que se imaginava.

Essas circunstâncias decorrem do fato de que não só o poema que aqui se traduz como toda a matéria de Gilgámesh têm uma longuíssima história antiga e uma não maisJacyntho Lins Brandão - Rio Espera, MG, 1952 que breve história contemporânea, separadas uma da outra por um vazio de praticamente vinte séculos. A história antiga estende-se, de um lado, por quase dois mil anos, desde cerca de 2100 a.C., em que se data o fragmento mais antigo, em sumério, do poema hoje conhecido como Bilgames e o touro do céu, procedente de Níppur, até o século II. a.C., quando foi escrita a última tabuinha conhecida de Ele que o abismo viu. A história contemporânea, por sua vez, tem início apenas em 1872 – ou seja, não soma ainda exíguos cento e cinquenta anos –, quando o assiriólogo inglês George Smith, em conferência na Society of Biblical Archaeology, em Londres, apresentou a narrativa do dilúvio que integra Ele que o abismo viu, lida por ele em tabuinha procedente da biblioteca de Assurbanípal, descoberta na metade do século XIX pela expedição conduzida por Henry Austen Layard na colina de Quyunjik, perto de Mossul, no Iraque, onde foi encontrado o “palácio sem igual” construído por Senaqueribe na antiga Nínive. Da biblioteca de Assurbanípal foram recuperadas mais de vinte mil tabuinhas ou fragmentos, depositadas hoje no Museu Britânico, que financiou a expedição arqueológica. Consta que, ao ler a tabuinha do dilúvio, George Smith, “homem ordinariamente reservado”, como um bom britânico, teria gritado: “Sou o primeiro a ler este texto após dois mil anos de esquecimento!”.

Esse é um aspecto importante de nosso poema: faz pouco mais de um século que a matéria de Gilgámesh se introduziu no nosso cânone da literatura antiga, juntamente com outros poemas em sumério e acádio procedentes das civilizações mesopotâmicas. Trata-se de algo realmente extraordinário, que trouxe milênios esquecidos para o cômputo da história da humanidade – e o que é mais relevante: acrescentou ao corpus de suas tradições literárias um número considerável de textos cuja existência era antes, para nós, modernos, insuspeitada (Trecho da Introdução).

Histórias de criação e dilúvio na antiga Mesopotâmia

Uma versão do artigo que será publicado na revista Estudos Bíblicos em 2021 pode ser lida aqui.

Milhares de tabuinhas de barro com escrita cuneiforme foram recuperadas nas escavações arqueológicas da antiga Mesopotâmia. Algumas delas narram histórias deEságil: templo de Marduk em Babilônia. Pergamonmuseum, Berlin criação e dilúvio. Neste artigo vamos olhar mais de perto três dessas histórias: o Enuma Elish, a Epopeia de Gilgámesh e a Epopeia de Atrahasis. Algumas dessas histórias são chamadas hoje de cosmogonias.

Saiba mais em Histórias do Antigo Oriente Médio: uma bibliografia e em Algumas observações sobre a reunião dos Biblistas Mineiros em 2017.

Akitu – Festival do Ano Novo na Babilônia

O Festival do Ano Novo na Babilônia herdou seu nome, Akitu, de um festival agrário sumério do III milênio a.C., o Akiti, celebrado na época da colheita e da semeadura da cevada.

Dois festivais do ano novo eram celebrados na cidade de Babilônia: um durante o primeiro mês do ano, Nisannu (março-abril), na primavera, e o outro durante o sétimo mês do ano, o Tashritu (setembro-outubro), no outono. São dois momentos importantes no calendário agrícola da Mesopotâmia: em Nisannu começavam as colheitas e em Tashritu os campos eram arados e semeados.

A duração do festival variava de cidade para cidade, obedecendo particularidades cultuais e sociais. A festa celebrada no mês de Nisannu é a melhor preservada em escritos recuperados da época helenística. Vamos ver como ela acontecia na cidade de Babilônia.

Eságil: templo de Marduk em Babilônia. Pergamonmuseum, Berlin

São 12 dias de festa.

Do primeiro dia da festa, no primeiro dia do mês de Nisannu, temos poucas informações.

No segundo dia do mês de Nisannu o sumo sacerdote de Marduk levantava-se antes do nascer do sol, banhava-se no rio, dirigia-se ao templo do deus, o Eságil, retirava a cortina que cobria a estátua de Marduk e recitava uma oração. Depois abria as portas do templo e o pessoal do culto entrava para realizar suas tarefas cotidianas.

No terceiro dia o sumo sacerdote recitava uma oração para Marduk e depois deixava entrar o resto do pessoal, tal como fizera no dia anterior. Algumas horas depois, um grupo de artesãos chega ao templo e o sumo sacerdote lhes dá pedras preciosas, ouro e madeira procedentes do tesouro de Marduk para que eles confeccionem estatuetas que serão utilizadas no sexto dia da festa.

No quarto dia, depois da purificação ritual no rio, o sumo sacerdote abria a cortina que protegia as estátuas de Marduk e de sua esposa Zarpanítum e  recitava uma série de orações. Mais tarde neste dia o Enuma Elish era recitado do começo ao fim pelo sumo sacerdote. Enquanto isso, o rei se dirige de barco a Borsippa, onde está a estátua do deus Nabú, filho de Marduk. Ele a acompanhará até Babilônia.

No quinto dia o sumo sacerdote repete os rituais dos dias anteriores: purificação no rio, orações diante de Marduk e Zarpanítum e abertura das portas para entrada do pessoal do templo. Em seguida chega um exorcista que purifica o templo de Marduk com incenso e água procedente dos rios Tigre e Eufrates. Purifica também a capela de Nabú que fica dentro do templo de Marduk. Unge as portas da capela com resina de cedro, deposita um incensório no centro da capela e espalha ervas aromáticas. Em seguida, um açougueiro mata uma ovelha cortando-lhe a cabeça e o exorcista purifica o templo com o corpo de animal enquanto recita um exorcismo. Depois ele se dirige ao rio e atira o corpo do animal na água, o mesmo sendo feito pelo açougueiro com a cabeça da ovelha. Depois disto tanto o açougueiro quanto o exorcista abandonam a cidade até o final da festa. O sumo sacerdote cobre a capela de Nabú com um dossel dourado, faz uma oração a Marduk e prepara uma série de oferendas alimentícias. Na sequência o rei, que presumivelmente trouxe Nabú de Borsippa para Babilônia, é escoltado até o Eságil, onde o sumo sacerdote o priva de todos os símbolos do poder real – como o cetro, a cimitarra, o anel e a coroa, deixados diante de Marduk – e o leva diante de Marduk. Ali o sumo sacerdote, golpeia o rosto do rei, o puxa pela orelha até que ele se ajoelhe, ou seja, o coloca na posição de um acusado. Então o rei se declara inocente, dizendo que não negligenciou os deuses, a cidade de Babilônia, o templo de Marduk e nem seus súditos. Depois deste ritual de penitência, o sumo sacerdote, que recita uma oração e garante ao rei que Marduk ampliará o seu senhorio, exaltará seu reinado e destruirá seus inimigos, restitui-lhe os símbolos de poder. Mas, ainda uma vez, dá outro tapa no rosto do rei: se este chora, Marduk está satisfeito; se não chora, Marduk está irritado e seu reinado corre perigo. O dia termina com um sacrifício de um touro branco, feito pelo rei e pelo sumo sacerdote.

No sexto dia Nabú é levado ao templo Ehur-sagtila onde as cabeças das estatuetas fabricadas pelos artesãos, no terceiro dia da festa, são cortadas e estas são queimadas na presença de Nabú. Depois Nabú é levado para o templo de Marduk e é colocado diante de Marduk, em um altar chamado “Altar dos Destinos”.

Nada sabemos do que acontecia no sétimo dia.

No oitavo dia o sumo sacerdote aspergia o rei e o público com água “sagrada” e, em seguida, a estátua de Marduk e as estátuas das outras divindades saem em procissão, indo do Eságil até um templo situado fora da cidade, chamado Akitu. Não sabemos o que ocorria durante a procissão e que tipo de cerimônia se celebrava no templo Akitu. É possível que fosse uma comemoração da vitória de Marduk sobre Tiámat – veja-se o Enuma Elish – quando os deuses que acompanhavam Marduk lhe ofereciam presentes e comemoravam sua vitória.

Nada sabemos do nono dia.

No décimo dia Marduk e os deuses continuavam reunidos em assembleia no templo Akitu.

No décimo primeiro dia os deuses retornam em procissão para Babilônia e, dentro do Eságil se reúnem Marduk, Nabú e os outros deuses e ali determinam os destinos do ano vindouro. Em seguida Nabú volta para Borsippa e temos lacunas sobre o que ainda acontecia na festa, talvez ocorresse alguma cerimônia de casamento ritual entre Marduk e Zarpanítum.

No décimo segundo dia a festa terminava.

O Akitu é um ritual de forte conotação política, no qual o rei exerce função importante.

O ano novo celebra, na primavera, a renovação da natureza. Com a representação da vitória de Marduk sobre Tiámat, como narrado no Enuma Elish – que era recitado  – a ordem cósmica fica assegurada sobre a possibilidade do caos, e a ordem política, garantida pelo rei que é fiel a Marduk, é legitimada. O ano que está começando será de prosperidade.

Marduk e seu dragão

 

Trechos de algumas das fontes usadas

A declaração de inocência do rei e a resposta do sumo sacerdote, em tradução de COHEN, M. E. The Cultic Calendars of the Ancient Near East. Bethesda, Maryland: CDL Press, 1993, p. 447:

I have not sinned, Lord of all Lands! I have not neglected your divinity!
I have not caused the destruction of Babylon! I have not ordered its dissolution!
[I have not . . . ] the Esagil! I have not forgotten its rituals!
I have not struck the cheek of those under my protection!
. . . I have not belittled them!
[I have not . . . ] the walls of Babylon! I have not destroyed its outer fortications!

(break of approximately five lines)

[… the High Priest recites:] […]

Have no fear …
… which Bel has uttered …
Bel [listens to] your prayer, …
He will glorify your dominion, …
He will exalt your kingship, …
On the day of the eshesh-festival…
Cleanse your hands at the Opening-of-the-Door, …
Day and night …
He, whose city is Babylon, …
Whose temple is the Esagil, …
The citizens of Babylon, those under his protection, …
Bel will bless you … forever!
He will destroy your enemy, smite your adversary!

 

Diz CARAMELO, F. O ritual de Akitu – O significado político e ideológico do Ano Novo na Mesopotâmia. Revista da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, n. 17, Lisboa, 2005, p. 160:

Em conclusão, podemos dizer que este festival constituía um ciclo ritual longo e complexo, apresentando duas dimensões complementares: uma privada e secreta e uma pública e colectiva. A primeira tinha lugar nos espaços reservados, como o templo ou a bit akiti, intervindo o rei e os sacerdotes; a segunda abrangia e envolvia a população da cidade, fazendo-a participar na renovação da ordem.

 

Dizem FELIU MATEU, L. ; MILLET ALBÀ, A. Enuma Elish y otros relatos babilónicos de la Creación. Madrid: Trotta, 2014, p. 34:

Esta fiesta del Año Nuevo de primavera de la Babilonia del primer milenio tenía, como el Enuma Elish, un trasfondo político e ideológico. Posiblemente, el rey de Babilonia representaba simbólicamente a Marduk en su victoria sobre Tiámat. De la misma manera, el rey asumía el compromiso de preeminencia de Babilonia por encima de sus enemigos. Todo el ritual se enmarca en un periodo de renacimiento político de Babilonia empezado por Nabucodonosor I. Es en este momento cuando —posiblemente— se compuso el Enuma Elish. El retrato que tenemos de la fiesta del Año Nuevo en Babilonia ya nos presenta el estadio final del proceso de entronización de Marduk, por un lado, y la inserción del Enuma Elish dentro de un acto ritual concreto, por otro. La revolución teológica ya se ha producido, la composición del Enuma Elish fue una pieza más y su inclusión dentro de la fiesta más importante del calendario cultual de Babilonia significó la culminación de esta reforma religiosa, desencadenada por un nuevo orden político que intentaba imponer a Babilonia por encima de sus vecinos. Hay que destacar que los símbolos de Anum y Enlil se cubrían durante la recitación del Enuma Elish a lo largo del cuarto día. Este acto es la visualización de las contradicciones teológicas que desencadenó esta reforma religiosa. Los dioses principales, tradicionales del panteón sumero-acadio, no pueden «escuchar» ni «contemplar» la entronización en lo más alto del panteón de un recién llegado como es Marduk.

 

Diz VAN DER TOORN, K. The Babylonian New Year Festival: New Insights from the Cuneiform Texts and their Bearing on Old Testament Study. In EMERTON, J. A. (ed.) Congress Volume Louven 1989 [Thirteenth Congress of the International Organization for the Study of the Old Testament]. Leiden: Brill, 1991, p. 334-335:

The political significance of the festival is evident, too, from a number of attendant observations. The divine approval of the king was proclaimed on 4, 8 and 11 Nisan, all public holidays. Documents from Southern Babylonia show that officials from outlying areas assisted at the ceremonies as well. This was the time when the king decided about any necessary changes in the administration. According to Assyrian evidence, treaties regulating the royal succession could be concluded on the same occasion. In connection with the festival, amnesty was granted to political prisoners, as Jehoiachin was to experience. Such events are usually connected with the accession to the throne; we know, however, that the installation of a new king might take place at any appropriate time of the year and did not need to be postponed to the beginning of the new year. The Nisan ceremonies are a divine ratification of the royal mandate, annually renewed. In view of its propagandistic effects, it is no wonder that kings attached great importance to the uninterrupted occurrence of the festival, especially in the first full year of their reign.

 

NOTIZIA, P. Review of BIDMEAD, J. The Akitu Festival: Religious Continuity and Royal Legitimation in Mesopotamia. 2. ed. Piscataway, NJ: Gorgias Press, 2004:

Il capitolo sulla storia degli studi relativi alla festività per l’akitu è esemplare di quanto siano state contrastanti le teorie elaborate a partire dall’inizio del secolo scorso. In principio gli studiosi si concentrarono sul valore teologico del rito (Langdon, Zimmern) che si supponeva celebrare la morte e la resurrezione del dio (e l’identificazione tra l’antico dio Tammuz/Dumuzi con Marduk) o la “magia” dello hieros-gamos che infondeva fertilità alla terra per un nuovo anno. In seguito studiosi come Hooke e Frankfort evidenziarono lo stretto rapporto che legava le pratiche rituali per la festività del Nuovo Anno e gli eventi narrati nel mito dell’Enuma eliå, composto verso la metà del secondo millennio, che descrive l’ascesa di Marduk a sovrano degli dei, l’ordinamento dell’universo e la creazione dell’uomo; arricchirono inoltre le tesi fino ad allora elaborate con concetti nuovi quali quello di “dramma cultuale” e sottolinearono l’importanza del combattimento rituale del dio (Marduk) che trionfa sul Caos (Tiamat) riportando l’ordine nel mondo e quella del sovrano che presiedeva alla processione lungo la Via Sacra. T. Jacobsen successivamente affermò che ad un antico akÎtu di natura agreste (valore fondativo) era stato affiancato il tema della “battaglia cultuale”, trasformandolo in un nuovo veicolo per trasmettere l’ideologia politica e sancire il potere di Babilonia. Lo storico delle religioni Eliade si è soffermato sul valore della ciclicità del tempo, della morte e della rinascita all’interno del rito, suggerendo che la lettura del mito cosmogonico (Enuma elish) servisse a rigenerare il tempo, e contribuisse alla ciclica rinascita del mondo. Gli studiosi più recenti hanno evidenziato il valore sociale e politico della celebrazione dell’akitu, riconoscendo (Van der Toorn) una serie di “riti di passaggio” che portavano al rinnovamento non cosmologico, ma dell’ordine religioso, politico e sociale della Babilonia, mentre Pongratz-Leisten ha analizzato la processione dell’akitu, dimostrando come esigenze politiche e cultuali diverse portassero a celebrazioni differenziate da luogo in luogo.

 

Fontes
BIDMEAD, J. The Akitu Festival: Religious Continuity and Royal Legitimation in Mesopotamia. 2. ed. Piscataway, NJ: Gorgias Press, 2014.

CARAMELO, F. O ritual de Akitu – O significado político e ideológico do Ano Novo na Mesopotâmia. Revista da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, n. 17, Lisboa, 2005, p. 157-160.

COHEN, M. E. The Cultic Calendars of the Ancient Near East. Bethesda, Maryland: CDL Press, 1993, p. 400-453.

FELIU MATEU, L. ; MILLET ALBÀ, A. Enuma Elish y otros relatos babilónicos de la Creación. Madrid: Trotta, 2014, p. 31-35.

LINSSEN, M. J. H. The Cults of Uruk and Babylon: The Temple Ritual Texts as Evidence for Hellenistic Cult Practice. Leiden: Brill, 2004, p. 78-84.

PONGRATZ-LEISTEN, B. Festzeit und Raumverstandnis in Mesopotamien am Baispiel der akitu-Prozession. Kodikas / Code Ars Semeiotica, vol. 20, n. 1-2, Tübingen, 1997, p. 53-67.

SOMMER, B. The Babylonian Akitu Festival: Rectifying the King or Renewing the Cosmos? The Journal of the Ancient Near Eastern Society, vol. 27, 2000, p. 81-95.

VAN DER TOORN, K. The Babylonian New Year Festival: New Insights from the Cuneiform Texts and their Bearing on Old Testament Study. In EMERTON, J. A. (ed.) Congress Volume Louven 1989 [Thirteenth Congress of the International Organization for the Study of the Old Testament]. Leiden: Brill, 1991, p. 331-344.

Recursos online
Akitu Festival

Como os povos do Antigo Oriente Médio lidavam com a derrota?

Culture of defeat: the submission in written sources and the Archaeological record of the Ancient Near East

Cultura da derrota: a submissão segundo fontes escritas e registros arqueológicos do Antigo Oriente Médio

Seminário da Universidade Hebraica de Jerusalém e da Universidade de Viena: dias 22 e 23 de outubro de 2017. Na Universidade Hebraica de Jerusalém.

War and conquest figures prominently in all disciplines of ancient Near Eastern studies. They are usually reflected in textual sources as military campaigns and/or narratives of victory, and preserved in the archaeological record most commonly as destruction layers. In general, the successful agent in a conflict, his motivations, strategies and method is often the focus of the analysis.

To date, little attention has been given to the defeated party in conflicts. This can be ascribed both to a bias or ambivalence of both historical and archaeological records, where the response to defeat rarely constitutes the focus of the respective source, as well as to an intrinsically human preference to focus on ‘successful’ events, such as conquest, innovation, growth and expansion, thus reinforcing, or even skewing the historical account towards the successful party. However, the defeated entity often experiences a much more significant, often traumatic, and enduring impact. Different response mechanisms emerge, depending on the magnitude and type of defeat, and the cultural context in which this event is in embedded.

This workshop aims to focus on conflicts from the Late Bronze, the Iron Age Near East up to the Babylonian period, exploring (cultural) responses of defeated parties. Participants are asked to examine major sources of their field of expertise, such as the Biblical narrative, Assyrian administrative records, royal inscriptions and iconographic representations, as well as the archaeological record in light of accounts on conflict, focusing on the responses of the defeated party. This seminar intends shedding new light on the consequences and reactions to defeat and gaining a more nuanced and complete picture of conflicts. It further aims to initiate a more in-depth dialogue between interconnected disciplines, from Archaeology, Assyriology and Bible Studies, which far too often remain isolated.

Veja o livro.

Sargão II, rei da Assíria

Um artigo:

Sargon II, “King of the World”

By Josette Elayi – The Bible and Interpretation – September 2017

He believed he had been endowed by the gods with an exceptional intelligence, superior to that of the previous kings, including the famous Sargon of Akkad himself. He was convinced that his gods approved his policies. He was a king of justice and, therefore, his wars were just. He was a warlord, who personally led numerous military campaigns, but sometimes delegated the command of an expedition to one of his generals, contrary to what is written. It was natural decorum for him to describe the atrocities as normal episodes in battle descriptions. He used intimidation tactics, a kind of “psychological” warfare in the modern sense of the term: for example, to demoralize the inhabitants of the city that he wanted to conquer, he would display decapitated or flayed victims. He was highly effective in terms of military intelligence and strategy in his quest for victory.

O livro:

ELAYI, J. Sargon II, King of Assyria. Atlanta: SBL, 2017, 298 p. – ISBN 9781628371772 [gratuito no projeto ICI da SBL].

ELAYI, J. Sargon II, King of Assyria. Atlanta: SBL Press, 2017, 298 p.

Among the most important questions addressed in the book are the following: what was his precise role in the disappearance of the kingdom of Israel? How did he succeed in enlarging the borders of the Assyrian Empire by several successful campaigns? How did he organize his empire (administration, trade, agriculture, libraries)?

Josette Elayi

Josette Elayi est une historienne de l’Antiquité, auteur de nombreux ouvrages dont une remarquable Histoire de la Phénicie (Perrin, 2013). Chercheuse et enseignante, elle a vécu de nombreuses années au Proche Orient.

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Sargon II

A importância das várias criações no Enuma Elish

E Marduk tornou-se Enlil

Andrea Seri observa no final de seu artigo The Role of Creation in Enuma Elish. Journal of Ancient Near Eastern Religions, v. 12, 2012, p. 25-26:

Enuma Elish é um texto com várias camadas, composto com habilidade, de modo que pode ser lido em diferentes níveis. Em um nível básico, o enredo contém todos os ingredientes de uma história de sucesso: uma teogonia, uma batalha épica impressionante com magias, monstros, criaturas impiedosas, um deus heroico, a criação do universo, bem como a etiologia da cidade de Babilônia e do templo principal de Marduk, o Eságil. A combinação de motivos épicos e religiosos com alusões claras a outros temas literários facilmente reconhecíveis parece ter estabelecido o tom dramático certo para a recitação ou a promulgação da história durante o Festival do Ano Novo na Babilônia [Akitu]. Em nível textual, Enuma Elish também é uma exibição de erudição dos escribas, porque inclui trocadilhos, etimologias literárias, empréstimos diretos e alusões a vários gêneros e tópicos da tradição mitológica e literária mesopotâmica.

Marduk e seu dragão Mušḫuššu

As sete tabuinhas do Enuma Elish contêm várias criações que servem a diferentes propósitos e que são introduzidas progressivamente ao longo do texto. Inicialmente, a reprodução biológica traz à existência os personagens principais na forma de uma geração de deuses que preparam o palco para o nascimento de Marduk. A criação biológica é interrompida quando ocorre o primeiro assassinato e Ea constrói seu santuário sobre o cadáver de Apsu. Este episódio apresenta a destruição como um meio de criação, e também inicia uma série de eventos que apresentam tensão recorrente entre criações biológicas e artificiais e entre destruição e criação. Certamente não é por acaso que foi Ea quem realizou a primeira criação artificial, porque ele é conhecido na tradição mesopotâmica por sua engenhosidade. Nisto Marduk segue os passos de seu pai, e na preparação para a batalha, ele modela artefatos (o arco e a rede), enquanto Tiámat produz onze seres terríveis. As criações de Marduk mostram que enquanto Tiámat gera criaturas vivas, ele fabrica instrumentos poderosos. Como Ea tinha feito antes dele, Marduk cria o mundo matando Tiámat e usando seu corpo como matéria-prima. A narrativa da criação de diferentes níveis do universo é engenhosamente equiparada à criação de santuários cósmicos para as três principais divindades tradicionais do panteão babilônico: Anu, Enlil e Ea. O último ato criativo de Marduk consiste em modelar ornamentos com as onze criaturas de Tiámat para decorar os portões da habitação de seu pai Ea no Apsu. Então ocorre a segunda criação de Ea, a da humanidade, mas, nesse caso, a ideia não é dele. É de Marduk. Mais uma vez, uma criatura viva, Qingu neste caso, é sacrificada para criar. Isso fecha o círculo: no início, Ea cria sua morada cósmica depois de matar Apsu, e, quase no final, ele modela a humanidade depois que Qingu é imolado. Finalmente, os planos de Marduk e a construção de Babilônia e do Eságil implica a sua apropriação da esfera cósmica antes pertencente a Enlil.

A seção cosmogônica do Enuma Elish é central porque permite a Marduk ter o controle total do que ele criou, mas também porque representa o ápice da ascensão de Marduk. Na verdade, depois que ele cria a Terra, Marduk se torna um deus fisicamente inativo, pois ele agora dá ideias que outros realizam. A capacidade de criar proporcionou-lhe o tipo de maturidade dos reis que governam sabiamente do conforto de seus palácios, enquanto seus subordinados executam seus  planos. As várias criações que aparecem ao longo da história – especialmente a do universo – incorporam temas literários já existentes. Mas empréstimos e alusões são quase sempre modificados para se adequar à exaltação de Marduk. Por exemplo, a separação do céu e da terra, geralmente atribuída a Enlil, agora é realizada por Marduk. O poeta ousa tanto que faz Marduk criar a morada cósmica de Enlil para, em seguida, dela se apropriar. Embora existam histórias independentes do Mundo Inferior (por exemplo, A Ascensão de Ishtar; Nergal e Ereshkigal; Gilgámesh, Enkidu e o Mundo Inferior), ele não é mencionado no Enuma Elish. Em vez disso, é substituído pela proeminente posição dada ao Apsu, o santuário do pai de Marduk e o lugar onde Marduk nasceu. A criação do universo no Enuma Elish é peculiar. A sua inserção no lugar que ocupa na composição é estratégica, pois permite que Marduk se torne Enlil.

Enūma eliš is a multilayered and skillfully composed text that can be read at different levels. At the basic register, the plot contains all the ingredients of a successful story: a theogony, an awesome epic battle with spells, monsters, merciless creatures, a heroic god, the creation of the universe, as well as the aetiology of the city of Babylon and of Marduk’s main temple, Esaĝila. The combination of epic and religious motives with clear allusions to other, easily recognizable, literary themes seems to have set the right dramatic tone for the recitation or the enactment of the story during the New Year Festival in Babylon (see, e.g., Çarğirgan and Lambert 1991–3: 91; Toorn 1991; Bidmead 2002: 66–76). At the textual level Enūma eliš is also a display of scribal erudition because it includes puns, literary etymologies, direct borrowings and allusions to various genres and topics of the Mesopotamian mythological and literary tradition.

The seven tablets of Enūma eliš contain various creations that serve different purposes and that are introduced progressively throughout the text. Initially biological reproduction brings the dramatis personae into existence in the manner of a generation of gods that set the stage for the birth of Marduk. Biological creation is interrupted when the first slaying occurs and Ea builds his shrine upon Apsû’s corpse. This episode introduces destruction as a means of creation, and it also initiates a series of events that show recurrent tension between biological and artificial creations and between destruction and creation. It is certainly not by chance that it was Ea who brought about the first artificial creation, because he is notorious in Mesopotamian tradition for his ingenious ways. In this, Marduk follows in the footsteps of his father, and in preparation for the battle he fashions artifacts (the bow and the net); while Tiʾamat produces eleven fearsome beings. Marduk’s creations show that whereas Tiʾamat generates living creatures, he manufactures powerful instruments. As Ea had done before him, Marduk creMarduk e seu dragão Mušḫuššuates the world by killing Tiʾamat and by using her body as the raw material. The narrative of the creation of different levels of the universe is ingeniously equated with the creation of cosmic shrines for the three traditional main deities of the Babylonian pantheon: Anu, Enlil, and Ea (see Ragavan 2010: 108–110). Marduk’s last creative act consists of modeling ornaments out of Tiʾamat’s eleven creatures to decorate the gates of his father’s dwelling, the Apsû. Then follows Ea’s second creation, that of mankind, but in this case the idea is not his. It is Marduk’s. Once again, a living creature, Qingu in this case, is sacrificed in order to create. This ties the circle neatly: at the beginning Ea creates his cosmic abode after killing Apsû, and towards the end he fashions mankind after Qingu is immolated. Finally, Marduk’s plans and the building of Babylon and Esaĝila imply his appropriation of Enlil’s cosmic sphere.

The cosmogony section of Enūma eliš is central because it enables Marduk to have full control of what he created, but also because it represents the zenith in Marduk’s ascent. Indeed, after he creates the Earth, Marduk becomes a physically inactive god, for he now gives ideas that others carry out. The ability to create provided him with the kind of maturity of those kings who rule wisely from the comfort of the palace while their subordinates set plans in motion. The various creations that appear throughout the story—and that of the universe in particular—incorporate already existing literary themes. But borrowings and allusions are almost always twisted to suit Marduk’s exaltation. For example, the separation of Heaven and Earth, usually attributed to Enlil, is now performed by Marduk. The poet goes so far as to have Marduk create Enlil’s cosmic abode and take it away from him. Although there are independent stories about the Netherworld (e.g., Ištar’s Descent; Nergal and Ereškigal; and Gilgameš, Enkidu and the Netherworld), the Underworld is not even mentioned in Enūma eliš. It is instead replaced by the prominent position given to Apsû, the shrine of Marduk’s father and the place where Marduk was born. The creation of the universe in Enūma eliš is idiosyncratic. Its insertion in the place it occupies in relation to the entire composition is strategic, for it enables Marduk to become Enlil.

Enuma Elish ou poema babilônico da criação?

SERI, A. The Role of Creation in Enuma Elish. Journal of Ancient Near Eastern Religions, v. 12, p. 4-29, 2012.

A caracterização do Enuma Elish como “O” poema babilônico da criação é resultado da história intelectual da assiriologia. A história começou em Londres em 1872, quando George Smith leu diante de uma seleta plateia, que incluiu o primeiro-ministro britânico William Gladstone, a primeira tradução da Narrativa Caldeia do Dilúvio. No ano seguinte, o editor do London Daily Telegraph, Edwin Arnold, ajudou Smith a visitar as ruínas da antiga Nínive e encontrar os fragmentos para completar a história babilônica do dilúvio. Em 1873, o mesmo jornal anunciou a descoberta feita por George Smith da Narrativa Caldeia do Gênesis, que foi publicada sob o mesmo título três anos mais tarde, em 1876. Após o impacto da história do Dilúvio Caldeu, chamar o Enuma Elish de O Gênesis Caldeu deve ter parecido natural, pois esta foi a primeira vez na história moderna que textos precursores das narrativas do Antigo Testamento foram encontrados.

A maioria dos assiriólogos concorda que o título Epopeia ou Poema da Criação é inadequado. Mas eles também admitem que as palavras iniciais Enuma Elish (literalmente, “Quando acima”) são obscuras para um público não especializado. Além disso, o título moderno não é totalmente adequado porque, quando considerado em sua totalidade, torna-se evidente que o Enuma Elish foi composto para justificar a instalação de Marduk como chefe do panteão mesopotâmico, desbancando o deus Enlil. Embora exista um consenso sobre o objetivo final da composição, é inquestionável que o tema da criação – ou melhor a recorrência de múltiplas criações – ocupa um lugar fundamental no poema. Neste artigo, exploro as várias criações entrelaçadas no enredo do Enuma Elish e as razões pelas quais a criação como topos literário é fundamental para a narrativa.

 

The characterization of Enūma eliš as “The” Babylonian Poem of Creation is a result of the intellectual history of Assyriology. The story began in London in 1872 when George Smith read before a distinguished audience which included the British Prime Minister William Gladstone the first translation of the Chaldean Account of the Great Flood (Hoberman 1983). The following year the editor of the London Daily Telegraph, Edwin Arnold, helped Smith visit the ruins of ancient Nineveh (modern Kuyunjik) and find the fragments to complete the Babylonian flood story. In 1873 the same newspaper announced George Smith’s discovery of The Chaldean Account of Genesis, which was published under the same title three years later (Smith 1876). After the sensation of the Chaldean Flood story, dubbing Enūma eliš The Chaldean Genesis must have seemed natural, for this was the first time ever in modern history that forerunners of Old Testament narratives were found.

Most Assyriologists agree that the title Epic or Poem of Creation is misleading. But they also concede that the incipit enūma eliš (literally, “When above”) is obscure for a non-specialized audience. The modern title is not fully suitable because, when considered in its entirety, it becomes apparent that Enūma eliš was composed to justify the installation of Marduk as the head of the Mesopotamian pantheon by displacing the god Enlil. Although there is a consensus about the ultimate goal of the composition, it is unquestionable that the theme of creation—or better the recurrence of multiple creations—occupies a fundamental place in the poem. In this paper I explore the various creations interwoven in the plot of Enūma eliš and the reasons why creation as a literary topos is central to the narrative.

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Enuma Elish e outras histórias de criação

FELIU MATEU, L. ; MILLET ALBÀ, A. Enuma Elish y otros relatos babilónicos de la Creación. Madrid: Trotta, 2014, 128 p. – ISBN  9788498794762.

FELIU MATEU, L. ; MILLET ALBÀ, A. Enuma Elish y otros relatos babilónicos de la Creación. Madrid: Trotta, 2014, 128 p.

El Poema babilónico de la Creación, conocido como Enuma eliš, constituye junto con el Poema de Gilgamesh y el Athrasis una de las grandes obras de la literatura mítico-épica de Babilonia y Asiria. Este poema de finales del segundo milenio, escrito en acadio, es tanto por su extensión como por su valor literario el texto más significativo de entre los diversos relatos de temática cosmogónica legados por la civilización sumeroacadia. Pieza clásica de poesía religiosa, el Enuma eliš recoge viejos mitemas de tradiciones más antiguas y los refunde en una nueva narración construida para ensalzar y glorificar la figura de Marduk y su ciudad, Babilonia. Describe el origen del universo; la lucha entre el dios Marduk y su antagonista, la diosa Tiamat; la entronización de Marduk, el gran demiurgo, y la ordenación del cosmos por este. La presente edición recoge otras narraciones cosmogónicas menores, también escritas en acadio, que ayudan a completar la visión de las diferentes tradiciones míticas existentes en la Mesopotamia preclásica.Lluís Feliu Mateu

Lluís Feliu Mateu

Lluís Feliu Mateu: investigador en el Instituto del Próximo Oriente Antiguo de la Universidad de Barcelona, es especialista en las culturas de la Mesopotamia antigua.

Adelina Millet Albà

Adelina Millet Albà: Profesora de lenguas semíticas, literatura bíblica y literatura comparada en la Universidad de Barcelona. Investigadora y actualmente directora del Instituto del Próximo Oriente Antiguo.

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O Enuma Elish e outras histórias: notas de leitura

Notas aleatórias de leitura do clássico de W. G. Lambert. Para quem quer saber mais sobre o Enuma Elish esta obra é muito boa.

LAMBERT, W. G. Babylonian Creation Myths. Winona Lake, Indiana: Eisenbrauns, 2013, XVI + 640 p. – ISBN 9781575062471.

 

p. 9

Data de composição do Enuma Elish

Cerca de 1100 a.C. Mas, sobre isso não há acordo. Estudiosos competentes já opinaram por datas que vão de 1700 a 750 a.C.

Even if there was so precise a date of composition, there is as yet no agreement when it was. Competent scholars have expressed opinions ranging from 1700 to 750 b . c . Even if our date of c. 1100 b . c . is accepted, it is not a very helpful conclusion in this connection, since we have no contemporary copies of original compositions from this period to show what our Epic might have looked like, orthographically and grammatically, when new.

p. 34

Poesia?

Só podemos dizer que o Enuma Elish está escrito em uma forma métrica relativamente regular.

In conclusion we can only say that the Epic is written in a relatively strict metrical form, and sofar as present knowledge goes, there is no lack of parallels in either the second or the first millennium.

p. 147

O climax: os 50 nomes de Marduk

Embora o leitor ocidental moderno possa pensar que o clímax do Enuma Elish consiste na vitória de Marduk sobre Tiamat e na criação do homem, é provável que o autor babilônico tenha considerado como clímax do texto os 50 nomes de Marduk. Pelo menos ele dedicou mais espaço a este item do que a qualquer outro na epopeia.

Although to a modern Western reader, the climax of the Epic might seem to consist of Marduk’s victory over Tiāmat and the creation of man, one may suspect that the Babylonian author considered the giving of Marduk’s fifty names as the true climax. At least more space is devoted to this than to any other single item in the Epic. The listing of a deity’s names is known in other literary works.

p. 160-161

Obviamente nenhum deus precisava de 50 nomes para ser identificado. O que conta são os significados teológicos dos nomes.

No god of course needed 50 names for purposes of identification. It was the meanings of the names which accounts for the interest in collecting and handing down so many. The names became loaded with theological meaning, which could be read straight out of many of the secondary titles, but which often had to be read into the older names.

p. 169

Sobre a organização do Universo

Além do Enuma Elish, não há outra abordagem sistemática da cosmologia na literatura acádica. O texto mais longo que lida com este aspecto é a Epopeia de Atrahasis, mas ela é muito mais uma história babilônica da humanidade do que uma cosmologia. Mas isto não significa que o Enuma Elish contém tudo o que é conhecido da cosmologia babilônica. Pelo contrário, o Enuma Elish faz apenas uma seleção de material já disponível. A ideia de que originalmente céu e terra eram unidos é muito difundida na mitologia mundo afora.

Other than Enūma Eliš, there is no systematic treatment of cosmology in Sumero-Babylonian literature. The longest literary text dealing with any aspect of this topic is the Atra-ḫasis Epic, but this has rightly been called “a Babylonian history of mankind,”  for it begins with the universe in essentially its present form and takes up the circumstances which led to the creation of man, with subsequent history up to the flood. But this does not mean that Enūma Eliš presents all that is known of Babylonian cosmology. On the contrary, the Epic uses only a selection of the wealth of available material, as will be seen in the case of the theogony (see pp. 405–426). Here, too, parallels to Marduk’s work have to be collected from allusions and incidental comments.

The idea that originally heaven and earth had been joined, or were closely connected, is very widespread in world mythology. This is not the place to pursue every attestation of the idea, and attention will be restricted to those expressions of the idea which could have been a factor in the intellectual background of the author of the Epic.

p. 172

Quando trata da organização dos céus, o autor do Enuma Elish está mais preocupado em fixar o calendário do que expor princípios astronômicos: com as estrelas ele regulamenta o ano; com a lua, o mês; com o sol, o dia.

The ordering of the heavens in Enūma Eliš proceeds on what might at first sight seem astronomical principles. More careful study shows that the real interest of the author lay in fixing the calendar rather than in astronomy per se. The stars with which he deals fix the year, then he passes to the moon, by which the month is fixed, and he concludes this part of his work by treating the sun, the regulator of the day. This orderly treatment and the neglect of anything else astronomical shows where his real interests lay. A contrast is offered by the account of Berossus, according to which Bēl stationed the stars, sun, moon, and the five planets. The planets offer no guide to fixing the calendar.

p. 192

A seção que trata da organização da terra é bem mais curta do que a parte que trata dos céus.

The section dealing with Marduk’s arrangement of the lower part of Tiāmat’s body is both briefer than that about heaven, and fewer parallels can be adduced. This is a not unexpected phenomenon, as the organization of heaven was a traditional topic of mythology, as demonstrated, though none of the examples has any connection with Tiāmat’s body. Thus, in Enūma Eliš the only part of the body named in connection with the heavens is Tiāmat’s belly (kabattu: V 11), where Marduk located the height of heaven. The organization of earth was much more an invention of the author of the Epic, and here all the parts of Tiāmat’s body turn up: head, eyes, nostrils, udder, and tail. Sofar as the present writer has been able tofind, only the eyes are mentioned elsewhere.

p. 202

Os conflitos

Dois conflitos são contados no Enuma Elish: o primeiro, entre Ea e Apsu; o segundo, entre Marduk e Tiamat.

Two conflicts are recounted in Enūma Eliš. The first, in Tablet I, is between Ea and Apsû; the second, in Tablet IV, is between Marduk and Tiāmat. Their backgrounds are immensely complicated. The related material is of two types: (1) written myths and allusions, and (2) iconographic material. The latter consists of both surviving representations and textual references to images and similar things which have since disappeared. Visual representations of mythical creatures and scenes need not have been entirely secondary to myths in narrative form. A relief, for example, could have influenced the compiler of a mythological narrative, though evidence is not likely ever to survive. The general picture of conflict myths in ancient Mesopotamia is of a mass of data. Different traditions and varying forms of the same tradition are constantly merging and separating. At one moment, a group of unrelated items coalesce into a concrete scheme, then an individual item has attention and the others are forgotten. Some will appear in other groupings and may in the process change their identity while keeping their names. The basic mythological themes will appear at different times and places in a quite different garb. The dangers of such study are very obvious. One may insist on a rigorous fragmentation except where specific evidence compels the acknowledgement of a connection, or one may operate with such vague “themes” that everything becomes a manifestation of them. The treatment of the topic here will be to present first the evidence for three groups of mythological conflicts: Ninurta’s victories, conflicts in expository texts and groups of defeated gods. The first are acts of valour alone, while the second and third are concerned with succession: battles among gods resulting in new dynasts. After this background material has been presented, the individual powers and groups who participate in the conflicts in Enūma Eliš will be dealt with in turn.

p. 217

Apsû

Apsu aparece em muitos lugares como o nome das águas primordiais sob a terra, de onde brotam as nascentes. Como nome de uma divindade viva, uma personificação das águas, ele é muito mais raro. No Enuma Elish Tiamat e Apsu começam como um casal primordial, mas, ainda no começo, Apsu, o princípio masculino, é morto por Ea e se torna um elemento impessoal.

“Apsû” occurs everywhere as the name of the cosmic water beneath the earth on which springs draw, the abode of Ea. It is also the name of a cultic installation in temples.  As the name of a living deity, a personification of these waters, it is much less well known. Enūma Eliš begins with Tiāmat and Apsû as the prime pair, but very early in the story Apsû, the male, was killed by Ea and thereupon became an impersonal element in which Ea took up residence. In third-millennium Sumerian documents, a personal Apsû is attested.

p. 236

Tiamat

No Enuma Elish Tiamat é o oceano primordial, o monstro dos monstros, e aquele cujo corpo é dividido para formar os céus e a terra. A concepção do autor varia de vez em quando: numa hora, ela é um corpo aquoso, noutra hora um monstro com corpo e membros de um animal. Apesar de sua importância no Enuma Elish, Tiamat é extremamente esquiva em outras passagens da literatura cuneiforme.

In the Epic, Tiāmat is prominent as the primaeval sea, the monster of monsters, and the one whose body was split to form heaven and earth. The author’s concept of her varies from time to time. Now she is a body of water, now a corporeal monster with animal limbs. Despite her importance in the Epic, she is extremely elusive elsewhere in cuneiform literature. The reason is not far to seek. The cosmographic great sea beneath the earth is replaced in most Sumero-Akkadian thought by the Apsû, the body of water over which Ea presided.

p 248

A ascensão de Marduk no panteão sumero-babilônico

Já que o propósito do Enuma Elish é mostrar como Marduk substituiu Enlil como chefe do panteão sumero-babilônico, um estudo sobre a ascensão de Marduk no seu contexto histórico é relevante, indispensável mesmo, para uma compreensão das razões de nosso texto. Os fatos básicos são: no período sumério, sua cidade, Babilônia, e seu culto tinham pouca importância, mas na época do império babilônico Marduk tornou-se o chefe do panteão e seu culto era o mais importante. O difícil é determinar em que época do império babilônico Marduk tornou-se o deus supremo do panteão. A data geralmente aceita até anos atrás de que o Enuma Elish pertence ao período mais antigo da Babilônia, época de Hamurabi (1792-1750), está sendo revista ultimamente. Muitos especialistas preferem hoje falar da época de Nabucodonosor I: 1125-1104 a.C.

Since the purpose of the Epic was to show that Marduk had replaced Enlil as head of the pantheon, a study of the rise of Marduk in its historical framework is clearly relevant, not to say indispensable, for an understanding of the milieu from which our text springs. Fortunately, there is no dispute about the basic facts: that the god, his city Babylon, and its cult were utterly unimportant in Sumerian times, but under the Late Babylonian empire Marduk was head of the pantheon and his cult was, if not unchallenged, at least de facto supreme. The outstanding problem is to know when this elevation of Marduk took place. If this question can be answered, it will provide us with a terminus a quo for the Epic’s date of composition. It is hardly likely that the author was centuries ahead of his time in holding ideas which were otherwise not in general currency. But the period of Marduk’s elevation will not supply a terminus ante quem. It is hardly possible to judge from the text of the Epic whether it was composed as part of the movement which instated Marduk above the other gods or whether it was a literary expression of views which had been current for centuries.
The procedure of this investigation will be to examine the abundant dated, or datable, documents which give some description of Marduk and to note especially the phrases which bear on his relationship to the other gods. Investigations along these lines have been undertaken before and will be summarized here to save repetition of the material covered. A general opinion which once prevailed was that Marduk became head of the pantheon when Babylon under Hammurabi became the political capital of southern Mesopotamia. It had seemed a logical development that the god of the ruling city should lord it over the other deities. The opening sentence of the prologue to Hammurabi’s laws was commonly cited as proof of this. We shall examine the precise content of the wording in due course. There had in fact been two opponents of the view that Marduk’s rise dates from Hammurabi’s time.

p. 439-440

George Smith em 1876 colocou a data da composição do Enuma Elish “provavelmente em torno de 2000 a.C.” Dois autores discordaram: Aage Schmidt e A. Schott. Já em 1911 Aage Schmidt afirmava: a posição de Marduk como chefe dos deuses, assumindo o lugar de Enlil como chefe do panteão, aconteceu por volta de 1200 a.C. e, portanto, o Enuma Elish, na forma como o conhecemos, não pode ser anterior a esta época. No Código de Hamurabi, por exemplo, Marduk aparece como subordinado aos deuses Anu e Enlil. Mas como Schmidt estava claramente à frente de sua época, sua opinião acabou ignorada pelos estudiosos da área.

George Smith in 1876 put the date of composition as “probably near b . c . 2000,”  which was no doubt a round figure based on an informed guess. When, by a . d . 1900, knowledge of Babylonian history had increased and chronologies were being worked out, it appeared that the First Dynasty of Babylon was ruling at about 2000 b . c . and that the great Hammurabi, through whom it achieved political supremacy, had reigned during the preceding century. Thus, on the  assumption that the Epic reflected the recent rise of Babylon and its god, George Smith’s date seemed to be vindicated, though he had put Hammurabi c. 1550, and for the first half of the 20th century, the Old Babylonian dating was an orthodox opinion, asserted in varying degrees of probability or certainty, very rarely declared unproven, and only twice controverted. The two dissenters were Aage Schmidt and A. Schott. Schmidt, in his Thoughts on the Development of Religion on the Basis of Babylonian Sources, published in 1911, used the unimpeachable historical method and, observing that Marduk was in the older texts an unimportant god and that even in the Code of Hammurabi he was still subordinate to Anu and Enlil, he concluded that Marduk’s usurpation of Enlil’s place in the pantheon must have occurred about 1200 b . c . and that Enūma Eliš in the form known to us cannot be earlier.

p. 442-443

O Enuma Elish foi escrito na época de Nabucodonosor I. Mas com que finalidade? Foi para incentivar um movimento que queria colocar Marduk como chefe do panteão? Ou foi escrito para celebrar a ascensão de Marduk recentemente conseguida? Ou, ainda, para justificar uma doutrina há muito tempo estabelecida?

Marduk’s position as king of the gods is first asserted officially in the time of Nebuchadnezzar I, and thereafter it becomes the standard doctrine, whereas previously, with equal consistency, Anu and Enlil or Enlil alone had headed the pantheon. In sources lacking official character, there is a single earlier attestation of Marduk’s supremacy, a personal name from the reign of Kudur-Enlil (c. 1250 b . c .), “Marduk-is-king-of-the-gods.” This type of name was common in the Old Babylonian period, during which it occurs with seven other deities but never yet with Marduk. This evidence suggests that the idea arose during the latter part of the Cassite rule and was officially adopted under Nebuchadnezzar I. There is circumstantial evidence which supports this conclusion. With Enūma Eliš, the question is whether it was ahead of, abreast of, or behind the times. Was it written to support and further a movement to secure recognition of Marduk’s kingship over the gods, was it a flourish of trumpets to celebrate a victory just won, or was it a theoretical justification of a long-established doctrine? No doubt, some measure of personal feeling enters into a consideration of these questions, but the present writer rules out of court any suggestion that the author was a visionary with ideas centuries ahead of his time. The blasé manner in which he twists older myths and ideas to his own use and the self-assurance displayed throughout oppose any suggestion that this was all a wild dream or pious hope. If Marduk had not yet been crowned king of the gods, the coronation must have been in view. Thus it seems to us that the reign of  Nebuchadnezzar I is the earliest possible date.

p. 458-459

Outro aspecto que deve ser considerado é a proposta que Marduk faz, e os deuses concretizam, para a construção da cidade de Babilônia como o centro do Universo, onde ele reside como rei em seu santuário e onde os deuses se reunem em assembleia. Na época suméria os deuses se reuniam em Nippur. No período babilônico recente eles se reunem em Babilônia onde se celebra o Festival do Ano Novo, o Akitu. Nesta festa o Enuma Elish era lido diante da estátua de Marduk por um sacerdote no quarto dia de Nisan. O Enuma Elish servia para mostrar ao povo a grandeza de Marduk.

Another aspect of the author’s motive has so far not received the attention it deserves. It is his doctrine of the city Babylon. In Tablet V 119–30, Marduk proposes to his fathers the building of Babylon as the central point in the  universe, in which he will reside as king, and where the gods from heaven above and Apsû beneath may stay when they convene for an asssembly. The gods give their assent. After man’s creation, the gods in gratitude offer to build a shrine devoted to these purposes (VI 49–54). This is done; the gods build Esagil, Marduk’s temple in Babylon and, seated therein for their first assembly, they give Marduk his fifty names. The interval between the proposal and its achievement only emphasises the point, since the matter is repeated. The centrality of Babylon in the universe is neither unexpected nor of much consequence in itself, but the divine assembly is. In Sumerian times, the gods were believed to meet in Nippur to “decree the destinies.”  In Late Babylonian times, this was believed to take place in Babylon in the course of the New Year festival. The transfer of this assembly from Nippur to Babylon was an essential point of Marduk’s  elevation, and the author is therefore either urging or heralding its achievement. This same New Year festival witnessed a battle between Marduk and Tiāmat in the Akītu house, and the whole question of the relationship of Enūma Eliš and the New Year rites celebrated in Babylon under the late empire must be considered. One of the few things known about Enūma Eliš in the ancient world is that it was read complete to the statue of Marduk by a priest on the fourth day of Nisan (and the same day of Kislimu).

p. 463

Existiu um Ur-Enuma Elish?

The question involved in the first of these is whether the text as we know it had slightly different antecedent forms. Was there an Ur-Enūma Eliš?

… the present writer doubts the whole idea. Marduk’s supremacy in the pantheon, around which the whole Epic revolves, is unattested from the Old Babylonian period so that there is nothing to encourage the assumption of an earlier form of that antiquity. In only two cases does a study of the known text favour the idea of dependence on a previous writing. The 50 names and their expositions, as already commented, agree so badly with the author’s own story that we have to suppose that he merely incorporated them. The other case is the account of the birth of the monsters.

p. 464-465

A cosmogonia? A principal história da criação babilônica, como queria George Smith em 1876? Não…

In modern times, the fundamental misunderstanding has been the common assumption that this text contains the Babylonian cosmology. In the very first publication of any part of the text (in translation, as it happened), George Smith spoke of it as “the principal story of the Creation.”  In the sense that it is the longest and best-preserved Babylonian text of this category, the statement is unexceptionable. But those factors do not constitute it a norm of Babylonian thinking. They merely reflect the situation that it was popular in the period when the libraries were formed from which most Babylonian literature has reached us. A thorough scrutiny of second-millennium materials of all kinds has only sofar revealed traces of the raw materials from which the Epic is composed. It appears that toward the end of this millennium, the author, either starting or following a new trend among the priests of Marduk, composed a highly original work which ran counter to previously accepted opinion in most of the country.

Terminei a leitura em 14.04.2017 – 17h10