Trechos do capítulo 8, Cosmologia e cosmogonia, do livro de WALTON, J. H. O pensamento do Antigo Oriente Próximo e o Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2021.
Para entendermos ideias antigas sobre trazer o cosmo à existência (cosmogonia / cosmologia da criação), é essencial entender ideias antigas sobre o que constitui a existência (ontologia da criação).
No mundo antigo algo vinha a existir quando era separado como uma entidade distinta, recebia uma função e um nome. Para efeitos de estudo, chamarei essa abordagem de “ontologia orientada pela função”. Isso está em contraste gritante com a ontologia moderna, muito mais interessada no que poderia ser chamado de estrutura ou substância dos objetos juntamente com suas propriedades físicas. No pensamento popular moderno (em oposição à análise filosófica técnica), a existência do mundo é percebida em termos físicos e materiais. Para nossa análise, darei a essa abordagem o nome de “ontologia orientada pela substância”.
O cosmo funcionava por meio do desempenho do papel dos deuses. Qualquer que fosse a estrutura física dos céus, isso não era uma prioridade para eles. Descrever o processo da criação é descrever o estabelecimento do cosmo funcional, ordenado com propósitos específicos — não é descrever as origens da estrutura ou substância material do cosmo. A substância material tinha relativamente quase nenhuma importância ou relevância para eles entenderem o mundo.
Se no mundo antigo a ontologia é orientada pela função, então criar algo (i.e., trazê-lo à existência) significava dar-lhe uma função ou um papel em um sistema ordenado.
Os principais verbos acádicos para “criar” são banû e bašāmu. O primeiro é geralmente usado com toda uma gama de significados, incluindo os de “construir, erigir, formar, fazer, fabricar”, e às vezes é traduzido por “criar”
Nos textos do Egito ou da Mesopotâmia, não há nenhuma palavra ou expressão que concentre, exclusiva ou mesmo principalmente, a atenção nos “objetos”. Mesmo naquelas ocasiões em que o objeto do verbo é uma coisa, em geral o contexto indica interesse em ordenamento.
Uma ontologia/cosmologia orientada pela função não se preocupa com perguntas que, com frequência, estudiosos modernos fazem sobre o mundo antigo: Acaso eles tinham um conceito de “criação a partir do nada”? Será que acreditavam na existência eterna da matéria? Essas perguntas têm importância apenas em uma ontologia material. Aqueles que pressupõem a criação a partir do nada querem saber se objetos materiais (matéria) foram criados sem o uso de materiais preexistentes. Caso a criação seja vista como algo que não diz respeito à criação física das coisas, essas perguntas não podem ser analisadas por meio dos textos.
O resultado desse estudo é a sugestão de que, no antigo Oriente Próximo, “criar” significava envolver-se no processo de ordenar — atribuir papéis e funções —, e não de dar substância aos objetos materiais que formam o universo.
In the ancient world something came into existence when it was separated out as a distinct entity, given a function, and given a name. For purposes of discussion I will label this approach to ontology as “function oriented.” This is in stark contrast to modern ontology, which is much more interested in what might be called the structure or substance of objects along with their physical properties. In modern popular thinking (as opposed to technical philosophical discussion), the existence of the world is perceived in physical, material terms. For discussion I will designate this approach to ontology as “substance oriented.”
The cosmos functioned by means of the gods playing out their roles. Whatever the physical structure of the heavens, it was not a priority to them. To describe creation is to describe the establishment of the functioning cosmos, ordered with particular purposes, not the origins of the material structure or substance of the cosmos. Material substance had relatively little importance or relevance to their understanding of the world.
If ontology in the ancient world is function oriented, then to create something (i.e., bring it into existence) would mean to give it a function or a role within an ordered system.
The main Akkadian verbs for “create” are banû and bašāmu. The former is used generally with a whole range of meanings, including “build, construct, form, make, manufacture,” and is sometimes translated as “create.”
These data demonstrate that there is no language for creation in the literatures of Egypt or Mesopotamia that focuses attention solely or even primarily on “objects.” Even on those occasions where the object of the verb is a thing, the context often indicates an interest in ordering.
A function-oriented ontology/cosmology bypasses the questions that modern scholars often ask of the ancient world: Did they have a concept of “creation out of nothing”? Did they believe in the eternal existence of matter? These questions have significance only in a material ontology. Those who posit creation out of nothing want to know whether material objects (matter) were created without using preexistent materials. If creation is not viewed as concerned with the physical making of things, these questions cannot be approached through the texts.
The result of this study is the suggestion that in the ancient Near East to “create” meant to engage in ordering—assigning roles and functions rather than giving substance to the material objects that make up the universe.