Algumas observações sobre a reunião dos Biblistas Mineiros em 2017

Ontem, após ler o relatório da reunião dos Biblistas Mineiros em 2017, encaminhei ao Telmo José Amaral de Figueiredo o e-mail abaixo e sugeri fosse redistribuído a todo o grupo. O que foi feito. E hoje, depois de escrever um post sobre a reunião, pareceu-me proveitoso publicar também este e-mail [suprimindo, no final, poucas linhas de teor mais pessoal].

Telmo,

Acabei de ler o seu relato da reunião dos Biblistas Mineiros em 2017. Muito interessante. Até amanhã vou publicar um post sobre a reunião, como sempre tenho feito, tenha ou não participado. Creio ser mais uma maneira de divulgar a revista Estudos Bíblicos e dar a conhecer aos interessados a existência e/ou continuidade do “quase lendário” (por sua persistência e consistência – com louvores a Alberto Antoniazzi, o primeiro e grande articulador) grupo dos Biblistas Mineiros.

Algumas observações:

1. Sobre meu artigo

a. Para tornar o assunto mais leve, penso em utilizar uma forma mais narrativa, menos técnica, por ser realmente árido o tema para o leitor culto mas sem conhecimento específico nesta área.

b. Planejo tratar, em meu texto, exclusivamente dos textos mesopotâmicos, sem trabalhar a relação destes com o mundo bíblico. Esta tarefa eu a deixaria com o Jacir (Gn 1), para o caso do Enuma Elish e com a Rita Maria Gomes (Gn 6,5-9,17) para a Epopeia de Gilgámesh [e Atrahasis?]. Espero que o meu texto seja útil ao clarear para o leitor o pano de fundo das culturas mesopotâmicas sobre o qual são escritos os textos bíblicos, especialmente o relato sacerdotal (P) de criação e dilúvio. Agora, isto precisa ser combinado para não dar problema de lacuna ou de repetição no tratamento do tema. Você pode repassar para eles a minha proposta.

c. Por ser uma área apenas secundária em nossos estudos bíblicos, corremos o risco de utilizar textos desatualizados para os estudos do Antigo Oriente Médio. Precisamos ficar atentos a isto e também, na elaboração do artigo, ter uma coerência na citação das fontes hoje utilizadas pela academia. Basicamente, em termos de tradução de textos literários acádicos, devemos evitar quase tudo o que foi publicado antes de 1980 ou até mais para cá. O que estou querendo dizer? Explico nos itens seguintes.

d. Nossa referência como coletânea de textos do ANE era tradicionalmente o  PRITCHARD, J. B. (ed.) Ancient Near Eastern Texts Relating to the Old Testament (ANET). 3. ed. Princeton: Princeton University Press, 1969. Ainda podemos utilizar vários dos textos ali presentes, mas não os do Enuma Elish e da Epopeia de Gilgámesh, por exemplo, porque foram feitas descobertas posteriores de textos e traduções e estudos muito melhores foram realizados, especialmente no final do século XX e início do XXI. O substituto natural do Pritchard é o HALLO, W. W. ; YOUNGER, K. L. (eds.) The Context of Scripture: Canonical Compositions, Monumental Inscriptions and Archival Documents from the Biblical World.  3 vols. Leiden: Brill, 2003. Com a desvantagem de ser muito caro, mais de 300 dólares pelos três volumes.

Confira mais sobre isso clicando aqui.

e. O texto acadêmico padrão do Enuma Elish é atualmente o de LAMBERT, W. G. Babylonian Creation Myths. Winona Lake, Indiana: Eisenbrauns, 2013. A reconstrução de W. G. Lambert, o mais importante assiriologista britânico do final do século XX e começo do XXI, professor da Universidade de Birmingham, falecido em 2011, está publicada em outros livros e parcialmente na web, como no CDLI – Cuneiform Digital Library Initiative.

Sobre o Enuma Elish vale consultar o artigo de BRANDÃO, J. L. No princípio era a água. Rev. UFMG, Belo Horizonte, v. 20, n. 2, p. 22-41, 2013. Disponível online.

Confira mais sobre isso clicando aqui.

f. O texto acadêmico padrão da Epopeia de Gilgámesh é atualmente o de GEORGE, A. R. The Babylonian Gilgamesh Epic: Introduction, Critical Edition and Cuneiform Texts. 2 vols. Oxford: Oxford University Press, 2003. Esta tradução da Epopeia de Gilgámesh, feita por Andrew R. George, professor de babilônico na Universidade de Londres, assim como a de W. G. Lambert para o Enuma Elish, é uma unanimidade entre os assiriólogos. E interessante: está disponível para download na instituição em que A. R. George leciona.

Ainda: do mesmo autor, com a mesma tradução, em publicação para o público culto, e não para a academia, como o anterior, existe GEORGE, A. R. The Epic of Gilgamesh: The Babylonian Epic Poem and Other Texts in Akkadian and Sumerian. Rev. ed. Harmondsworth: Penguin, 2016.

Sobre a Epopeia de Gilgámesh recomendo consultar, sem dúvida, dois artigos de J. L. Brandão, da UFMG. Confira aqui. J. L. Brandão vai publicar um livro sobre a Epopeia de Gilgámesh, que poderá se tornar o texto padrão em português.

Diz J. L. Brandão em Sîn-lēqi-unninni, Ele o abismo viu (Série de Gilgámesh 1). Nuntius Antiquus, Belo Horizonte, v. X, n. 2, jul.-dez., p. 125-159, 2014:

“Esta não constitui a primeira tradução para o português, pois contamos com o livro de Ordep Trindade Serra, A mais antiga epopeia do mundo: a gesta de Gilgamesh, publicado pela Fundação Cultural do Estado da Bahia, em 1985, trabalho de excelente qualidade e atualizado com relação à época em que foi escrito. O aparecimento da edição crítica de Andrew R. George, The Babylonian Gilgamesh Epic: introduction, critical edition and cuneiform texts (Oxford: Oxford University Press, 2003), marca, contudo, uma nova etapa para o conhecimento do poema, impondo por igual novos esforços de tradução. O texto crítico de George substitui as edições anteriores, em especial a de R. Campbell Thompson, publicada ainda em 1930, primando pelo detalhe, pela exatidão e pelo domínio dos métodos críticos em todas as suas dimensões. Acrescente-se que foram compulsados por ele todos os manuscritos descobertos ou disponibilizados depois de 1930, o que provê um considerável volume de leituras e informações novas. Esta é uma das razões de minha tradução, o dispormos agora de um novo texto crítico, o que exige, em certo sentido, que todas as traduções sejam refeitas, a outra, dela decorrente, sendo a possibilidade de traduzir não um apanhado de textos distintos muitíssimo fragmentados a fim de apresentar um fio narrativo mínimo, como se fez no passado, mas um poema inteiro, o que se intitula Ele o abismo viu, de que conhecemos inclusive o “autor”, Sîn-lēqi-unninni”.

Considerando esta perspectiva, creio que o texto sugerido para o Jacir, o de HEIDEL, Alexander. The Gilgamesh Epic and Old Testament Parallels. 2nd edition. Chicago (IL): University of Chicago Press, 1963, disponível gratuitamente no site da Universidade de Chicago, foi ultrapassado pelas novas descobertas, pois, na verdade, ele é de 1949 [primeira edição: 1946; segunda edição: 1949]. Todas as referências bibliográficas param na década de 40. Heidel faleceu em 1955. Consultei o texto e optei por deixá-lo de lado. Mas, como tradução, não sei avaliá-lo. Quanto ao estudo do texto, há alternativas ótimas e mais recentes e há mudanças de perspectiva em vários pontos daquela época para hoje.

Confira mais sobre isso clicando aqui.

g. Para a Epopeia de Atrahasis recomendo os textos de FOSTER, B. R. Before the Muses: An Anthology of Akkadian Literature. 3. ed. Bethesda, Md.: CDL Press, 2005 e BOTTÉRO, J. ; KRAMER, S. N. Lorsque les dieux faisaient l’homme: Mythologie Mésopotamienne. Paris: Gallimard, 1993.

Confira mais sobre isso clicando aqui e aqui.

h. Conheço o trabalho de Marcelo Rede, que estudou também com Bouzon, mas não detectei nenhuma publicação diretamente ligada ao tema das cosmogonias e outras histórias literárias da antiga Mesopotâmia. Nem mesmo o livro mencionado: Família e Patrimônio na Antiga Mesopotâmia, 2007, que é um estudo de outra área.

i. Tenho quase todos os estudos mencionados em minha bibliografia. Em formato digital, em pdf. Desde 1999 venho estudando o tema, quando orientei um seminário no CEARP sobre “Cosmogonias antigas e cosmologias modernas”. Para 15 alunos que se inscreveram, do primeiro ao quarto ano, durante um ano inteiro. Na ocasião usei como guia para as cosmogonias antigas o estudo de CLIFFORD, R. J. Creation Accounts in the Ancient Near East and in the Bible. Washington: The Catholic Biblical Association of America, 1994, além dos textos de Pritchard. Clifford ainda é válido para uma boa parte dos textos. Usei também trechos traduzidos em português, mas os considero muito precários e pouco confiáveis.

2. Quem seria o leitor de Estudos Bíblicos hoje?

Uma dificuldade que tenho, de uns anos para cá, é a de definir quem seria o leitor da Estudos Bíblicos atualmente. Nossos alunos de graduação em Teologia, pelo menos por estas bandas, estão lendo cada vez menos livros e revistas impressas e cada vez mais textos online, e isto de maneira fragmentada, não linear. Talvez por isso, o interesse na Estudos Bíblicos, segundo minhas limitadas observações, seja muito pequeno, diria até que quase inexistente onde leciono, a não ser quando uso textos publicados como bibliografia em sala de aula. E digo mais: não sei se é mais amplo, mas não vejo meus colegas de outras áreas da Teologia interessados em ler o que estamos produzindo. Quanto a estudantes de pós-graduação e pessoas cultas interessadas, estas por causa da atividade pastoral ou por qualquer outra motivação, não sei dizer. Estamos alcançando este público? A urgência de um formato digital, online, aberto a todos, é enorme, no meu entender.

3. Sobre o livro com o tema do número 88 da Estudos Bíblicos

Se o projeto de publicar o livro com o material do número 88 da Estudos Bíblicos vingar, preciso refazer meu artigo sobre a bibliografia comentada para a OHDtr. Ou eliminá-lo. Isto porque a bibliografia para em 2006 e está desatualizada, precisa chegar até hoje, penso. E há livros, como um do Thomas Römer, que depois da escrita do artigo, já foi até traduzido para o português: RÖMER, T.  A chamada história deuteronomista: Introdução sociológica, histórica e literária. Petrópolis: Vozes, 2008. Original: RÖMER, T. The So-Called Deuteronomistic History: A Sociological, Historical and Literary Introduction. London: T&T Clark, 2006.

E em meu artigo sobre “O Contexto da Obra Histórica Deuteronomista”, o outro que está neste número, há um provável erro na p. 14 – provável porque a questão ainda é discutida – quando digo que Sargão II é filho de Salmanasar V. É mais provável que seja irmão. Talvez seja um dos filhos mais novos de Tiglat-Pileser III e as circunstâncias em que seu irmão Salmanasar V morreu são obscuras. Um golpe de Estado através de um assassinato planejado por Sargão II? De qualquer maneira, é preciso mudar de “filho” para “irmão”, correção pequena. Mas, veja que curioso: na cronologia da Bíblia de Jerusalém está errado, diz “filho”… Se quiser ler sobre o assunto, um bom texto online está aqui.

É isto. Seria útil se você repassasse este texto para os colegas do grupo, não acha? Quanto mais coordenado for nosso trabalho, melhor será a publicação.

Obs.: Telmo encaminhou hoje o texto acima para o grupo dos Biblistas Mineiros, com algumas recomendações [cito Telmo, com algumas modificações]:

Segue abaixo, mensagem recebida do Prof. Airton José da Silva, membro de nosso grupo de biblistas.

Ele nos faz algumas recomendações e observações muito pertinentes e que deveriam ser levadas em consideração por todos que escreverão artigos para o próximo número da revista Estudos Bíblicos sob a nossa responsabilidade, cujo título será: «Gênesis – Apocalipse sem fundamentalismos».

Qualquer necessidade de maiores esclarecimentos, podemos nos dirigir a ele por meio do e-mail airtonjo[at]airtonjo[dot]com

Importante: comprovando a atualidade do tema que escolhemos para este número de Estudos Bíblicos, convido todos a ler um interessante artigo publicado pela revista jesuíta italiana La Civiltà Cattolica e traduzido pelo IHU Online: Fundamentalismo evangélico e integralismo católico: um “ecumenismo do ódio”. O texto em italiano é: Fondamentalismo evangelicale e integralismo cattolico: un sorprendente ecumenismo.

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