Resenhas na RBL – 30.01.2015

As seguintes resenhas foram recentemente publicadas pela Review of Biblical Literature:

Michael F. Bird
1 Esdras: Introduction and Commentary on the Greek Text in Codex Vaticanus
Reviewed by Bob Becking

Michael F. Bird
Jesus Is the Christ: The Messianic Testimony of the Gospels
Reviewed by Susan Wendel

Andrew Cain, ed.
Jerome’s Epitaph on Paula: A Commentary on the Epitaphium Sanctae Paulae with an Introduction, Text, and Translation
Reviewed by Matthew Kraus

Reinhard Feldmeier
Macht—Dienst—Demut: Ein neutestamentlicher Beitrag zur Ethik
Reviewed by William R. G. Loader

David E. Fredrickson
Eros and the Christ: Longing and Envy in Paul’s Christology
Reviewed by Scott S. Elliott
Reviewed by Elliott C. Maloney

Ronald F. Hock
The Chreia and Ancient Rhetoric: Commentaries on Aphthonius’s Progymnasmata
Reviewed by Christopher J. Kuhl

John R. Kohlenberger III, ed.
NIV Greek and English New Testament
Reviewed by Haley Goranson

Chee-Chiew Lee
The Blessing of Abraham, the Spirit, and Justification in Galatians: Their Relationship and Significance for Understanding Paul’s Theology
Reviewed by Chad Chambers

George Lyons
Galatians: A Commentary in the Wesleyan Tradition
Reviewed by Troy Martin

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Enciclopédia Digital: Theologica Latinoamericana

Theologica Latinoamericana. Enciclopédia Digital é uma iniciativa dos professores do Departamento de Teologia da FAJE, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. Em sua origem está uma inquietação importante: o lugar ocupado pela mídia digital na atual sociedade do conhecimento e a ausência de uma produção teológica consistente, fiel à tradição teológica inaugurada na América Latina no período pós-conciliar, que responda ao desejo dos que querem aprofundar a fé cristã ou buscam informações sobre ela na rede. Essa preocupação está na origem das primeiras discussões feitas pelo corpo de professores de teologia da FAJE, que em 2013 elaborou um pré-projeto, o qual foi discutido com teólogos e teólogas da UNICAP, da PUC-Rio e do Instituto Humanitas Unisinos, e depois submetido aos reitores de suas respectivas instituições. Ao aceitarem ser parceiras na construção conceitual e teológica de Theologica Latinoamericana. Enciclopédia Digital, essas instituições… (continue a ler a História da enciclopédia).

Seguindo a ideia da rede, a Enciclopédia terá oito grandes eixos temáticos, que reagrupam os principais conteúdos da teologia cristã. Cada eixo veiculará inicialmente verbetes “matriciais”, que darão origem a outros verbetes aprofundados, a serem inseridos na medida em que o projeto for sendo executado.

Os oito eixos temáticos – veja Índice analítico – são:

  • Ética teológica
  • História da teologia e do cristianismo 
  • Liturgia e sacramentos
  • Mística e espiritualidade        
  • Teologia bíblica        
  • Teologia fundamental        
  • Teologia prática e pastoral       
  • Teologia sistemática

Na Teologia Bíblica leio na apresentação feita por Johan Konings:

Em primeira linha são abordados, nesta enciclopédia, os assuntos referentes à Bíblia do judaísmo, chamada na tradição cristã de Antigo Testamento, e os referentes à parte de origem cristã, o Novo Testamento. Estes artigos iluminam, sobretudo, os aspectos históricos, culturais e literários. Nesse contexto é tratada também a recepção judaica e cristã da Bíblia.


O modo de ler e interpretar a Bíblia é tratado no verbete Leitura e hermenêutica bíblicas. No sentido da leitura contextual da Bíblia, atenção especial é dada à Bíblia na América Latina. Também são tratados alguns assuntos emergentes, como a Bíblia na perspectiva da mulher e a Bíblia e as culturas. Outras perspectivas atuais da leitura bíblica serão integradas progressivamente a esta enciclopédia.


A Bíblia representa também uma tradição de orientação prática da vida para pessoas e comunidades. Esse aspecto é abordado no artigo sobre teologia e ética na Bíblia.


Artigos específicos são dedicados aos temas relacionados com a fé, como sejam os conceitos em torno da veracidade da Bíblia: revelação, inspiração e inerrância bíblicas, Bíblia e Ciências e Bíblia e Magistério; e, por outro lado, aos aspectos históricos e culturais, como sejam a formação e extensão do “cânon bíblico”, as línguas bíblicas, as versões bíblicas antigas e modernas.

Embora ainda no começo, já podem ser lidos, sobre Bíblia, os seguintes verbetes:

  • Leituras e hermenêutica – Cássio Murilo Dias da Silva, PUC RS
  • Ética e Teologia no Novo Testamento – Jaldemir Vitório, FAJE
  • A Bíblia na América Latina – Valmor da Silva, PUC GO
  • Recepção judaica e cristã da Bíblia – Aíla Pinheiro, FCF
  • Bíblia como Palavra de Deus – Leonardo Agostini Fernandes, PUC-Rio
  • Introdução ao Antigo Testamento – Cássio Murilo Dias da Silva, PUC RS
  • Ética e teologia no Antigo Testamento – Jaldemir Vitório, FAJE
  • Novo Testamento (NT) – Johan Konings, FAJE

Agradeço ao Cássio Murilo, que me enviou a informação sobre a enciclopédia.

Quem somos nós? A visão judaica

Quem somos nós? Falam Autores Judeus do Século III ao Século I a.C. Artigo publicado na Ayrton’s Biblical Page em 1998.

A partir do século III a.C., com a assimilação da língua e dos gêneros literários gregos, vários judeus tentam explicar aos seus conterrâneos e aos gregos cultos, especialmente de Alexandria, que o judaísmo é uma religião respeitável e recomendável pela sua antiguidade e pelos feitos de seus líderes.

Escrevendo em grego, e em gêneros literários gregos – da historiografia à filosofia – autores como Aristeias, Artápano, Teodoto, Jasão de Cirene e outros nos legam uma literatura de apologia do judaísmo, mas que é, ao mesmo tempo, excelente testemunho da resistência e da submissão desse povo e dessa cultura ao dominador grego.

Neste artigo, proponho a abordagem, em um primeiro momento, desta literatura de um modo geral e, em seguida, da Carta de Aristeias a Filócrates e de alguns historiadores como Demétrio, Eupólemo, o Samaritano anônimo, Artápano e o Pseudo-Hecateu.

Naturalmente esta é apenas uma amostragem, mas creio que bastante significativa, do processo de helenização que avança inexoravelmente entre os judeus durante os últimos três séculos antes da era cristã.

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Segundo os gregos, quem são os judeus?

Quem são os judeus? Falam autores gregos do século IV a.C. ao século I d.C. Cadernos do Cearp, Ribeirão Preto, n. 9, p. 39-60, 1998.

Como é que os gregos antigos veem os judeus? Existe compreensão e aceitação de sua cultura ou não? Constituem os judeus um povo a ser respeitado ou “civilizado”? Como é de se esperar, não temos uma opinião abrangente dos gregos sobre os judeus. O homem grego comum não pode mais testemunhar nesta questão. Mas há os escritos de vários autores da época. E através deles podemos perguntar aos gregos: Quem são, para vocês, os judeus?

As respostas serão diferenciadas, mas nos 18 autores que analisarei a seguir aparecem alguns elementos comuns:

  • os judeus são vistos e julgados a partir dos padrões culturais e civilizatórios gregos, transformando-se assim a sua história em uma história muitas vezes mítica e absurda porque a diferença cultural não é respeitada
  • os costumes alimentares e cultuais judaicos, em geral causam profunda estranheza ao mundo grego
  • as origens de Israel são frequentemente desfiguradas por feroz anti-semitismo que tem sua origem nos conflitos da época do autor e que não deveria ser assim retroprojetado para o final do II milênio.

Do século V a.C. ao início do século II d.C., de Heródoto a Plutarco, são conhecidos 175 fragmentos de 57 autores gregos que falam dos judeus. Destes 57 autores vou apresentar apenas 18. São os mais interessantes quanto às suas opiniões e/ou informações sobre os judeus. Muitos dos outros que deixo de lado trazem apenas informações geográficas sobre a Palestina ou referências muito vagas aos judeus.

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Flávio Josefo, homem singular

Flávio Josefo, homem singular em uma sociedade plural. Cadernos de Teologia, Campinas, n. 5, p. 29-51, 1998.

Neste artigo, sem grandes pretensões de originalidade, mas que tem como objetivo estimular a leitura da obra de Flávio Josefo, importante historiador judeu  do século I d.C., gostaria de  destacar  6 momentos fundamentais:

1. A origem aristocrática de Josefo, sua ligação com os asmoneus, seus estudos e sua formação.

2. A  experiência do deserto na adolescência e a opção religiosa. Casamento e reintegração na vida da família em Jerusalém.

3. A viagem a Roma: o aristocrata provinciano que vê a grandeza e o poderio do Império. A influência deste fato no seu confronto posterior com Roma.

4. O comando da Galileia, a contemporização, a derrota, a suspeita sobrevivência, a “profecia” feita a Vespasiano.

5. De prisioneiro a amigo dos romanos no cerco de Jerusalém. Ao lado de Tito, sua teologia é: Deus abandonou os judeus e agora está com os romanos (traição teológica).

6. Sua condição privilegiada em Roma, as rivalidades e os ciúmes, a obra histórica: encomenda e defesa.

Procurarei sempre olhar Flávio Josefo como ator e intérprete: participa dos acontecimentos e depois os interpreta. Objetivamente Josefo é um traidor de seu povo: este é o nosso olhar crítico hoje. Entretanto, subjetivamente, ele não se vê como traidor, mas modelo: a visão de si mesmo que aparece  na sua obra será destacada.

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Pensar Deus a partir da Nova Física

Inventando o Universo. Pensar Deus a partir da Nova Física. Cadernos de Teologia, Campinas, n. 4, p. 7-24, 1997.

Einstein disse certa vez que  estava interessado mesmo era em saber como Deus criara este mundo. Ora, já se passou mais de um século desde que a teoria da relatividade e a mecânica quântica começaram a ajudar os homens a compreenderem melhor como é feito este mundo em que vivemos. Porém, muitos teólogos ainda encontram sensíveis dificuldades em pensar Deus e o homem a partir da cosmologia que surgiu com as descobertas da física do século XX. Em pleno terceiro milênio, teólogos há que, por razões diversas, ainda continuam a ler os textos bíblicos e a elaborar suas reflexões como se as cosmologias antiga e medieval fossem mais do que suficientes para explicar o universo e o lugar do homem nele. Tempo, espaço, matéria, Deus, causalidade, alma, criação, salvação, redenção, determinismo, livre-arbítrio e tantos outros conceitos precisam ser revisitados sob o olhar vigilante da nova física.

E há mais uma coisa: acontece de pessoas confundirem Teologia com Religião ou com Fé. Ora, a Teologia usa sistemas conceituais, trabalha a partir de regras bem – ou razoavelmente bem – definidas, se esforça em usar com o máximo rigor possível todos os recursos da razão e, assim, se diferencia do discurso religioso, enquanto este é altamente simbólico e tem uma preocupação direta e imediatamente prática, como os discursos catequéticos, homiléticos ou proféticos. Vai daí que discursos teológicos são mais eficazes quando são teorias sobre a Fé e não teorias da Fé. Uma Teologia responsável procura produzir conhecimento e não reconhecimento. Conclui-se, deste modo, que a melhor Teologia é aquela que não toma o lugar da Fé e nem deixa que esta tome o seu (cf. BOFF, Cl. Teologia e Prática: Teologia do Político e suas mediações. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1993, II parte, cap. III).

Pois bem. O que modestamente proponho neste artigo é descrever a postura de alguns cientistas sobre Deus e a religião de modo geral e apresentar algumas das questões da cosmologia científica colocadas por esta nova física, levando a sério os desafios que daí surgem para o biblista e para o teólogo.

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A cidade grega e a etnia judaica

Os impérios não têm coração. A cidade grega e a etnia judaica. Cadernos de Teologia, Campinas, n. 3, p. 16-31, 1997.

 

“Se numa província vês o pobre oprimido e o direito e a justiça violados, não fiques admirado: quem está no alto tem outro mais alto que o vigia, e sobre ambos há outros mais altos ainda” (Ecl 5,7).

 

No processo de conquista do Oriente pelo macedônio Alexandre Magno, no século IV a.C, a fundação de cidades constituir-se-á em instrumento fundamental para a helenização dos vários povos dominados, com o consequente fortalecimento do poder macedônio.

“A civilização arcaica e clássica tinha coincidido com o desenvolvimento da pólis e era nos grandes centros urbanos, tais como Mileto, Corinto, Atenas, Siracusa, que se tinha desenvolvido a civilização grega. Alexandre tinha mostrado bem ser o herdeiro da tradição, ao semear o Império que acaba de conquistar com numerosas Alexandrias”1.

Segundo Plutarco, Alexandre teria fundado 70 Alexandrias. Só que menos da metade pode ser testemunhada com certeza pelos dados históricos e arqueológicos.

A fundação de cidades tem, para Alexandre, objetivos estratégicos, econômicos e políticos: servem para guardar passagens de grandes vias de comunicação, tornam-se lugares de comércio e atraem os nômades para as suas vizinhanças, fazendo deles camponeses que sustentarão as cidades2 .

Os sucessores de Alexandre seguem a mesma política. Especialmente os Selêucidas, herdeiros de um império multinacional, recorrem à política da difusão da pólis.

“Os objetivos desta urbanização [dos Selêucidas] são bastante diversos. As cidades favorecem o desenvolvimento econômico, que acresce, na mesma proporção, a fortuna do rei. Elas permitem a implantação de tropas, que guardam os grandes eixos de circulação e as posições estratégicas (…) Elas diminuem as resistências indígenas, fragmentando as antigas satrapias entre as cidades”3.

É bom, entretanto, lembrarmo-nos de que a fundação das póleis gregas nem sempre começam do nada. Há vários modos de se criar uma pólis: a fundação de uma cidade grega dentro de uma antiga cidade oriental, dando-lhe um estatuto político e um nome grego; a recriação, com estrutura grega, de uma cidade arrasada pela guerra ou por um terremoto; a fusão entre cidades pequenas que não têm como se defender; ou, ainda, a fundação de uma cidade grega ao lado de uma cidade oriental4.

 

1. Antíoco III e Jerusalém

Após a morte prematura de Alexandre Magno em 323 a.C., os seus generais encarregam-se da administração do enorme Império por ele conquistado. Pouco a pouco, porém, envolvidos em lutas internas pela supremacia, estes sucessores de Alexandre (ou diádocos, como são conhecidos em grego) eliminam os herdeiros naturais do macedônio e dividem entre si o Império, coroando-se reis de seus respectivos territórios.

A Palestina, um dos territórios da Celessíria5, pertenceu durante 103 anos aos Ptolomeus, macedônios que governavam a partir de Alexandria, no Egito. Em 198 a.C., entretanto,  o Selêucida Antíoco III, o Grande (223-187 a.C.) vence os egípcios em Panion (Baniyas), junto às nascentes do Jordão, e expulsa definitivamente os Ptolomeus da Ásia. A anexação da Celessíria se dá a seguir, e a Palestina fica agora sob o domínio dos macedônios de Antioquia, na Síria.

Pressionados por Roma, com quem entram em conflito, os Selêucidas assistem aos progressivo declínio de seu Império. Para solidificar o fragmentado Império, os reis Selêucidas, e especialmente Antíoco IV Epífanes (175-164 a.C.), implantam um acelerado processo de helenização dos vários povos e cidades da região.

Quando Antíoco III, o Grande, vence os exércitos dos Ptolomeus, os judeus de Jerusalém o apoiam nesta luta, segundo Flávio Josefo. O partido selêucida em Jerusalém está mais forte do que o ptolomaico. Por isso, Jerusalém é contemplada com um decreto de Antíoco III, em 197 a.C.6

Examinemos um pouco o decreto. Além da reconstrução e do repovoamento da  cidade – que sofrera três assédios consecutivos, em 201, 199 e 198 a.C. – o governo selêucida toma as seguintes medidas:

  • que seja dada uma contribuição real para os sacrifícios, em animais, vinho, óleo, incenso, flor de farinha, trigo e sal
  • a madeira retirada da Judeia e do Líbano para os trabalhos de construção do Templo e dos pórticos está isenta de taxas
  • todos os membros do povo judeu devem viver segundo as leis de seus pais
  • o senado (gerousia), os sacerdotes, os escribas do Templo e os cantores do Templo, ficam isentos da capitação, do imposto coronário e da taxa sobre o sal
  • isenção de impostos durante três anos para os atuais habitantes da cidade e para aqueles que vierem nela morar até determinada data, para que a cidade seja repovoada mais depressa.

É interessante observarmos as medidas de Antíoco III sobre os impostos7.

A madeira para a restauração do Templo está isenta do imposto alfandegário, que incide sobre todas as mercadorias em circulação.

O senado e os funcionários do Templo ficam isentos da capitação, imposto pessoal recolhido dos adultos. Ficam isentos também do imposto coronário: a coroa de folhas é, para os gregos, o símbolo da vitória, concedida aos vencedores dos jogos ou a um rei vitorioso8. Com o tempo, as cidades começam a oferecer aos seus reis coroas de ouro ou uma soma equivalente em dinheiro. O que antes era espontâneo acaba institucionalizado e tornado obrigatório, podendo somente o rei conceder a isenção.

Ainda: o senado e o Templo ficam isentos da taxa sobre o sal. Esta taxa é conhecida na Palestina e na Babilônia. Provavelmente paga-se determinado valor ao governo, ou talvez, na Palestina, que tem boas salinas, se aceite o produto “in natura”.

Os habitantes da cidade, finalmente, são isentos durante 3 anos do phóros, o tributo, em prata ou em produtos, exigido de uma província, de um templo, de um éthnos ou de uma cidade, este último sendo o caso de Jerusalém.

Deve-se observar que, com este decreto, Antíoco III reforça o papel da aristocracia, associada há muito ao poder através da gerousia e que, sob outro aspecto, liga o destino do éthnos  judeu às decisões reais. Pois as leis dos antepassados (a Torá) devem ser obedecidas não porque assim o decidem os judeus, mas porque o quer o governo selêucida9.

Apesar de parecerem benevolentes, estas medidas não devem, entretanto, nos enganar, pois não superam as decisões comuns tomadas em relação a outras cidades, naquela época.

O que Antíoco III faz é seguir a velha política persa em relação aos judeus. H. G. Kippenberg observa que “este decreto tem paralelo no documento de administração persa (Esd 7,12-26). Na carta de nomeação de Artaxerxes a Esdras (do ano 398 a.C.), está incluída a ordem ao encarregado das finanças da província Transeufratiana, que regulamenta o apoio material ao culto, bem como a isenção de tributos para sacerdotes, levitas, cantores, porteiros e servos do templo (vv. 21-24)”10.

É preciso observar também que a reconstrução e o repovoamento da cidade são medidas necessárias para o fortalecimento do governo e dos interesses de Antíoco III naquela região disputada pelos Ptolomeus.

Entretanto, a expansão selêucida sob Antíoco III, o Grande, será impedida por Roma na medida em que seus interesses entram em choque com a forte república na Europa. Após muitas negociações frustradas, Roma enfrenta e vence Antíoco III na batalha de Magnésia, no começo de 189 a.C. O exército romano é comandado por Lucius Cornelius Cipião – depois cognominado “o Asiático” -, ajudado por seu irmão Cipião, o Africano. Antíoco, que tem 72 mil soldados, perde 50 mil homens de infantaria, 3 mil cavaleiros, 15 elefantes e Cipião faz 1400 prisioneiros. Os romanos perdem apenas 400 homens.

Em 188 a.C. a paz entre Roma e os Selêucidas é estabelecida em Apameia da Frígia, quando são impostas humilhantes condições a Antíoco III11.

Assim começa o declínio do império selêucida. Daqui para a frente, Antíoco III e seus sucessores debater-se-ão em crescentes lutas internas pelo poder, assistindo à fragmentação progressiva dos seus domínios e lutando com grandes dificuldades financeiras. Só a Roma Antíoco deve pagar 15.000 talentos euboicos. O talento euboico, do nome da ilha de Eubeia, pesa cerca de 26 kg. Logo, Antíoco deve pagar a Roma o equivalente a 390.000 kg de prata.

O que ocorrerá é que, em relação a cidades como Jerusalém, por exemplo, os sucessores de Antíoco III não terão condições de manter a prometida isenção tributária – ver decreto de 197 a.C – premidos que estarão por Roma. O próprio Antíoco III é morto em 187 a.C., pela população revoltada, quando saqueia um templo elamita, para conseguir dinheiro com que pagar aos romanos.

 

2. Antíoco IV e a pólis

Em 175 a.C. Selêuco IV, filho e sucessor de Antíoco III é assassinado. Assume o poder o seu irmão Antíoco IV Epífanes (175-164 a.C.), que voltava de Roma, onde era refém desde 188 a.C., quando seu pai perdera a batalha de Magnésia e assinara o tratado de Apameia.

A instabilidade do reino selêucida aumenta e Antíoco IV toma medidas helenizantes como forma de consolidar o seu poder. Concede o status de pólis a várias cidades, promove a adoração de Zeus e reivindica para si prerrogativas divinas12.

As dificuldades econômicas enfrentadas por Antíoco IV Epífanes, geradas pela pressão romana, a quem deve pagar mil talentos por ano, leva-o a sobrecarregar seus súditos e o instiga ao saque de templos para a obtenção de fundos.

Enquanto isto, em Jerusalém, o processo de helenização avançara bastante desde o século anterior, especialmente entre a aristocracia sacerdotal e leiga. Forma-se um forte partido pró-helênico, que pretende incrementar o avanço civilizatório grego e, por isso, está em luta com os judeus tradicionais e fiéis à Lei.

Estes helenizantes defendem urgente revogação do decreto de Antíoco III, que os impede de se integrarem totalmente no modo de vida grego.

F.-M. Abel observa, por exemplo, que a Judeia está cada vez mais cercada por cidades helenizadas e é impossível ao judeu não tomar contato com o seu modo de vida. Quem vai a Ptolemaida passa por Samaria ou Dora; se alguém negocia na Galileia não pode fugir de Citópolis ou Filotéria; ou na Transjordânia é necessário ir a Pella, a Gadara ou a Filadélfia. Do lado do mar? Marisa está na rota de Gaza ou Askalon. Jam­nia, Gazara e Jope também não podem ser evitadas13.

A ocasião favorável aos partidários da helenização surge quando Onias III, o conservador sumo sacerdote, está em Antioquia cuidando dos interesses de seu povo e Antíoco IV assume o poder.

Um irmão de Onias III, Jasão (Joshua), oferece ao rei alta soma em dinheiro e um rápido programa de helenização dos judeus em troca do cargo de sumo sacerdote. 1Mc 1,11-13 comenta o caso do seguinte modo: “Por esses dias apareceu em Israel uma geração de perversos (paránomoi) que seduziram a muitos com estas palavras: ‘Vamos, façamos aliança com as nações circunvizinhas, pois muitos males caíram sobre nós desde que delas nos separamos’. Agradou-lhes tal modo de falar. E alguns de entre o povo apressaram-se em ir ter com o rei, o qual lhes deu autorização para observarem os preceitos (dikaiômata) dos gentios”.

O termo paránomoi indica, segundo Dt 13,14, pessoas que fazem propostas de apostasia da Lei. Daí que “fazer aliança com as nações” indica renegar a Lei e seguir costumes gentios.

Também o dikaiômata tôn éthnôn (preceitos dos gentios) é significativo. Dika­íôma é usado pelos LXX para traduzir o hebraico derek ou mishpat (caminho, direito) significando obrigações legais. Observar os preceitos dos gentios significa, portanto, abandonar as normas da Lei e seguir leis gentias14.

Antíoco IV Epífanes aceita a oferta de Jasão, pois precisa de dinheiro, tem urgência em helenizar a região para garantir sua fronteira sul e, ao que parece, suspeita de tendências pró-ptolomaicas em Onias III.

Assim, em 174 a.C. é instalado um ginásio em Jerusalém, aos pés da acrópole, contíguo à esplanada do Templo. 2Mc 4,7-10 descreve do seguinte modo os fatos: “Entrementes, tendo passado Selêuco à outra vida e assumindo o reino Antíoco, cognominado Epífanes, Jasão, irmão de Onias, começou a manobrar para obter o cargo de sumo sacerdote. Durante uma audiência, ele prometeu ao rei trezentos e sessenta talentos de prata e ainda, a serem deduzidos de uma renda não discriminada, mais oitenta talentos. Além disso, empenhava-se em subscrever-lhe outros cento e cinquenta talentos15, se lhe fosse dada a permissão, pela autoridade real, de construir uma praça de esportes e uma efebia, bem como de fazer o levantamento dos antioquenos de Jerusalém. Obtido, assim, o consentimento do rei, ele, tão logo assumiu o poder, começou a fazer passar os seus irmãos de raça para o estilo de vida dos gregos”.

Um ginásio grego não é mera praça de esportes. É uma instituição cultural das mais importantes, usada no processo de helenização de várias cidades orientais. Além dos esportes gregos, praticados nus – o que causa embaraço aos jovens judeus circuncidados -, o ginásio implica a presença de divindades protetoras, como Héracles (= Hércules) e Hermes e ensina a maneira grega de se viver e de se ver o mundo. Falar o grego corretamente, vestir-se à moda grega, conhecer e discutir a cultura grega, são algumas das atividades praticadas no ginásio. Consta que o rei Antíoco IV vai a Jerusalém nesta época, sendo recebido pelos filo-helenistas com grande entusiasmo.

Além do que, “o ginásio parece ter sido realmente uma corporação separada de judeus helenizados, com direitos cívicos e legais definidos, estabelecida dentro da cidade de Jerusalém”16. Estes judeus são chamados de “antioquenos” nos documentos da época, como se vê em 2Mc 4,9.19. Certamente porque estão sob a proteção real, ou mesmo porque são considerados como “cidadãos de Antioquia”, segundo alguns. 2Mc 4,12-14a fala do ginásio de Jerusalém com grande desgosto.

A situação, entrementes, se complica, quando um sacerdote não-sadoquita, chamado Menelau, apoiado pela poderosa família dos Tobíadas, faz uma oferta maior a Antíoco IV e obtém o sumo sacerdócio. Menelau oferece a Antíoco 300 talentos de prata (cerca de 7.800 kg) suplementares na época de pagar o tributo (2Mc 4,23-24).

Isto se dá em fins de 172 a.C., início de 171 a.C. Jasão foge para a Transjordânia, para o feudo de Hircano, o Tobíada dissidente e pró-Lágida, já morto nesta época.

Como protestasse contra a venda de vasos sagrados do Templo (vendidos por Menelau para conseguir o dinheiro prometido a Antíoco IV), Onias III é assassinado a mando de Menelau. A população de Jerusalém, revoltada com as ações de Menelau, vê três membros da gerousia serem executados por Antíoco IV, quando oficialmente denunciam as arbitrariedades cometidas pelo sumo sacerdote.

Em 169 a.C., na volta de sua primeira campanha egípcia, campanha vitoriosa, Antíoco IV saqueia o Templo de Jerusalém, com a aprovação de Menelau. 1Mc 1,21-23 narra este saque do Templo, do qual se desconhece a causa. Talvez seja a sempre crescente necessidade de dinheiro.

No começo de 167 a.C. Antíoco IV envia a Jerusalém Apolônio, o misarca (comandante das tropas mísias), com forte contingente. Ataque, assassinatos em massa, escravidão. Muralhas demolidas e construção de poderosa fortaleza em Jerusalém, conhecida, em grego, como Acra (= cidadela), sede de uma guarnição e verdadeira pólis, no coração de Jerusalém, encostada no Templo. Durante cerca de 25 anos a Acra será o braço armado selêucida em Jerusalém, espinho atravessado na garganta dos judeus fiéis (2Mc 5,23b-24). 1Mc 1,33-35 descreve a construção da Acra.

É nesta época que começa verdadeira caçada aos Oníadas e a seus partidários. Como é de praxe em tais circunstâncias, suas propriedades são confiscadas e transferidas para os Tobíadas ou para as colônias militares reais.

Desencadeia-se feroz perseguição a todos os inimigos de Menelau. Os habitantes do distrito judaico transformam-se em cidadãos sem direitos. Os fiéis seguidores da Lei, os assideus (= piedosos) são obrigados a fugir para os desertos e montanhas. Jerusalém é, enfim, uma cidade contaminada: os gentios controlam a sua população.

 

3. Antíoco IV e a proibição do judaísmo

Acredita-se que tenha sido para vencer a, por enquanto pacífica, resistência judaica ao programa de helenização é que Antíoco IV decide proibir a prática do judaísmo, no verão de 167 a.C.

Acontece, então, como norma geral, duas coisas (1Mc 1,41-53):

  • a abolição da Torá, com seus mandamentos e suas proibições: ficam proibidas as práticas do sábado, das festas, da circuncisão, da distinção de alimentos puros e impuros. Todos os manuscritos da Lei devem ser destruídos. Qualquer violação destas normas tem a morte por punição
  • uma reforma do culto em toda a Judeia: a abolição dos sacrifícios e da sacralidade do santuário e dos sacerdotes, a ereção de altares em todo o país e o sacrifício de porcos e outros animais impuros a deuses estrangeiros.

Para completar, em dezembro de 167 a.C., é introduzido o culto de Zeus Olímpico no Templo de Jerusalém, com respectiva imagem e sacrifício.

Explica C. Saulnier que “deus eminente dos gregos, Zeus representava os valores do poder e da autoridade; o epíteto Olímpico recordava suas prerrogativas sobre as outras divindades e seu aspecto uraniano (isto é, de deus do céu); na Síria ele fora assimilado a Baal Shâmin, deus soberano, senhor das tempestades e da fecundidade. Tais aspectos podiam aparentemente aproximá-lo de Iahweh que, desde a época persa, era designado nos textos judaicos como “o Deus dos céus”. Nestas condições, podemos admitir que Antíoco IV quisesse introduzir em Jerusalém uma divindade sincrética, que permitisse a judeus, sírios e gregos reconhecer nela a emanação de um deus sobera­no”17.

A introdução deste culto no Templo é a “abominação da desolação”, segundo Dn 11,31. 1Mc 1,54-57.64 assim descreve a “abominação da desolação”: “No décimo quinto dia do mês de Casleu do ano de cento e quarenta e cinco [8 de dezembro de 167 a.C.], o rei fez construir, sobre o altar dos holocaustos, a Abominação da desolação. Também nas outras cidades de Judá erigiram-se altares e às portas das casas e sobre as praças queimava-se incenso. Quanto aos livros da Lei, os que lhes caíam nas mãos eram rasgados e lançados ao fogo. Onde quer se encontrasse em casa de alguém um livro da Aliança ou se alguém se conformasse à Lei, o decreto real o condenava à morte (…) Foi sobremaneira grande a ira que se abateu sobre Israel”.

Os judeus são também obrigados a participar da festa de Dionísio e do sacrifício mensal em honra do aniversário do rei (2Mc 6,7). Enfim, uma verdadeira cruzada contra a Lei. Por detrás disso tudo podemos ver as tristes figuras de Menelau e dos Tobíadas18.

 

4. As causas da helenização

Com muita frequência, têm-se colocado as razões religiosa e cultural como motivo para a helenização da Judeia e consequente resistência macabeia. Claro que, na típica visão teocrática do judaísmo de então, as motivações religiosas é que oferecerão os conceitos para a leitura dos fatos (1Mc 1,41-42;Dn 11,31-32.36-37). Apesar de tudo isso, é preciso ir além na interpretação dos fatos. Além das razões estratégicas e políticas dos Selêucidas para incentivar a helenização dos judeus, razões já apresentadas, há motivos econômicos para o conflito que o processo desen­cadeia19.

É que o sistema político grego tradicional, como adotado pelos Selêucidas, não dispõe de um mecanismo fiscal para o recolhimento do tributo. Ou seja: não há uma burocracia profissional que administra as finanças do Estado. Em Atenas, por exemplo, o cidadão se dedica à administração da cidade sem receber recompensa alguma, a não ser a satisfação do dever cumprido e o sentimento de contribuir para o bem comum. Assim, nos reinos helenísticos a função de recolher o tributo é arrendado à aristocracia dos povos dominados, proporcionando-lhe lucros financeiros e influência política junto ao governo estrangeiro, como vimos no caso dos Tobíadas.

Por outro lado, deve-se levar em conta que a noção grega de Estado é concretizada no Oriente:

  • ou na pólis, uma associação de cidadãos livres e autônomos baseada na vizinhança
  • ou no éthnos, uma relação de parentesco baseada na solidariedade dos laços de sangue.

M. Rodrigues explica que “três grandes princípios presidem à formação da pólis: eleuteria (independência), autonomia (poder próprio) e autarquia (autogestão). A cidade era tudo para o cidadão grego. O verbo politeyestaí, que significava ‘tomar parte nos negócios públicos’, também significava simplesmente ‘viver'”20.

Ora, Judá é e permanece um éthnos também na administração selêucida. Mas o próprio Antíoco III, o Grande, com seu decreto de 197 a.C., reforça os privilégios da aristocracia, criando as condições para a sua emancipação da hierocracia e para o predomínio da pólis sobre o éthnos. “A autonomia étnica, que foi concedida oficialmente à Judeia, trouxe em si elementos que ofereciam à aristocracia das cidades novas possibilidades”21.

A lei, baseada na vontade do rei Selêucida – que reivindica tal direito como “direito de lança” por ser o conquistador – e não nas tradições dos antepassados codificadas na Torá, cria condições para que a aristocracia judaica substitua as leis étnicas por leis políticas.

O texto de 1Mc 10,29-31, que trata de uma isenção de impostos concedida aos judeus mais tarde, em 152 a.C., por Demétrio I, dá-nos uma ideia dos tributos recolhidos pelos Selêucidas na Judeia: “Desde agora desobrigo-vos, e declaro isentos todos os judeus, dos tributos (phóroi), do imposto sobre o sal e do ouro das coroas. Igualmente renuncio à terça parte da semeadura e à metade dos frutos das árvores, que me caberiam de direito: de hoje em diante deixo de arrecadá-los à terra de Judá e aos três distritos que lhe foram anexos, bem como à Samaria e à Galileia. Isto a partir do dia de hoje e para todo o tempo. Jerusalém seja considerada santa e isenta, assim como seu território, sem dízimos e sem tributos”.

Os três primeiros impostos citados, já os conhecemos do decreto de Antíoco III: trata-se do phóros, do imposto sobre o sal e do imposto coronário.

Agora, o que aqui nos interessa é perceber como se faz o recolhimento do tributo na Judeia. A aristocracia – por exemplo, os Tobíadas e seus associados – recolhe dos camponeses 1/3 do produto das colheitas e metade da produção das frutas. Vende, certamente com ganhos, estes produtos e paga aos seus senhores Selêucidas determinada quantia em prata. Talvez cerca de 300 talentos anuais segundo 1Mc 11,28.

Daí ser significativo que a primeira notícia a respeito do nascente conflito com o helenismo, aponte uma razão econômica. Vamos lembrar o que diz 2Mc 3,4: “Ora, certo Simão, da estirpe de Belga, investido no cargo de superintendente do Templo, entrou em desacordo com o sumo sacerdote a respeito da administração dos mercados da cidade”.

Assim, a aristocracia começa a pressionar sempre mais na direção da helenização total, como modo de quebrar as barreiras da tradição de solidariedade baseada na aliança. Seu enriquecimento fácil, baseado na tributação e na manutenção de seus privilégios, choca-se com as normas da Lei. A solução será pedir a Antíoco IV Epífanes a eliminação da Lei. Some-se a isso a precariedade financeira dos Selêucidas e o mecanismo começa a ficar claro.

Segundo as leis israelitas, a terra é dom de Iahweh ao povo. Israel tem a posse da terra, mas não é seu proprietário. O livro do Deuteronômio, escrito a partir do século VII a.C., repete isto sempre (Dt 12,1.9.10.20.29;13,13;16,5.18.20 etc). Dt 12,1, por exemplo, diz: “São estes os estatutos e as normas que cuidareis de pôr em prática na terra cuja posse Iahweh, Deus de teus pais te dará, durante todos os dias em que viverdes sobre a terra”.

A terra em Israel é classificada como nahala (= herança, posse), como em Dt 12,9.10;19,10;20,16 e tantos outros lugares.

Pode-se até negociar a terra, mas somente dentro de determinadas normas. O direito que regulamenta a venda da terra é a chamada ge’ulla (= resgate da terra). Quem tem o direito de compra é apenas o parente do lado masculino da família.

A venda da terra pode proteger o proprietário empobrecido de pagar tributos e impostos a estrangeiros, como pode protegê-lo também de ser vendido como escravo permanente a estrangeiros.

O resgate da terra é baseado no conceito de hesed (= fidelidade), uma solidariedade que sustenta a relação comunitária no nível do clã.

H. G. Kippenberg assim resume a relação de parentesco em Israel:

  • a estrutura de parentesco determina a reprodução das famílias e as relações sociais dentro da família
  • a estrutura de parentesco une as famílias em uma hierarquia baseada nas prerrogativas dos irmãos mais velhos sobre os mais novos, mas cria laços de solidariedade entre eles
  • a terra pode ser negociada entre parentes, mas não com estranhos ao círculo de parentesco. Entretanto, este princípio leva ao acúmulo de terras pelas famílias mais ri­cas22.

Compare-se esta concepção israelita da posse da terra com a concepção grega, onde a terra pode ser dada a quem o rei determinar, porque ela lhe pertence por direito de conquista. O conflito jurídico é evidente.

Ora, como no interior do clã a estratificação social avança bastante nos períodos persa e grego, a aristocracia judaica que aí surge tende a excluir os mais pobres. Por outro lado, a manutenção das regras do parentesco exigida pela Lei e confirmada por Antíoco III prejudica os interesses da aristocracia.

Entretanto, os sacerdotes Macabeus, líderes da resistência judaica, e seus partidários assideus, defendem a manutenção dos laços de parentesco, da solidadriedade étnica contra a instalação do regime da pólis em Jerusalém.

Enquanto os partidários da helenização seguem as ordens do rei (1Mc 2,19-20;6,21-27), os revolucionários Macabeus fazem valer os antigos mandamentos (1Mc 2,29-38: o sábado; 2,42-48: a circuncisão; 4,36-51: a purificação do Templo).

Que os motivos desta luta são também econômicos, gerados pelo arrendamento estatal dos impostos à aristocracia, não resta dúvida, se observarmos que em 142 a.C., quando  o rei selêucida Demétrio II concede aos judeus a isenção dos tributos, isto é festejado como libertação da escravidão e começo de uma nova era (1Mc 13,36-42).

É que, com o desaparecimento do arrendamento, a aristocracia não é mais identificada com o Estado, dando aos camponeses maior folga em relação aos senhores da terra. A desigualdade permanece a mesma, mas os camponeses conseguem controle sobre o excedente23.

A lógica grega deste arrendamento é a de reduzir o direito de cidadania a pequena faixa aristocrática, mantendo os produtores como simples moradores, objeto de conquista, sem direito a cidadania.

E esta lógica está funcionando, até que, em Jerusalém, uma camada aristocrática força a helenização e entra em choque com o direito sagrado tradicional do povo judeu. Aí vem o conflito com os Macabeus, que não tem objetivos religiosos: o que se quer é uma reforma da constituição da Judeia. Mas será a simbologia religiosa que exprimirá os interesses igualitários de sacerdotes e camponeses24.

 

Bibliografia

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> Este artigo foi publicado em Cadernos de Teologia, Campinas, n. 3, p. 16-31, 1997. Está disponível também na Ayrton’s Biblical Page, publicado em 06.08.2020.


1. LÉVÊQUE, P. O mundo helenístico. Lisboa: Edições 70, 1987,  p. 59.

2. Cf. PRÉAUX, C.  Le monde hellénistique. La Grèce et l’Orient (323-146 av. J.-C.) II. 2. ed. Paris: Presses Universitaires de France, 1988, p. 401-403.

3. LÉVÊQUE, P. o. c., p. 61.

4. Cf. PRÉAUX, C. Le monde hellénistique II, p. 403-408.

5. Celessíria significa “Síria Côncava” e compreende os territórios do sul da Síria, da Fenícia e da Palestina. A origem do nome é controvertida. É possível que venha do semítico, algo assim como o hebraico kl sûryh, “toda a Síria”, que teria se tornado, em grego, por assonância, koílê syrîa. Originariamente a Celessíria compreendia toda a Síria, mas na época helenística já se distingue entre a Syrîa hê ánô (Síria do norte) e a koílê Syrîa. “Celessíria”, entretanto, só se torna designação oficial da região sob o governo dos Selêucidas, após 198 a.C. Os Ptolomeus chamavam a região de Síria e Fenícia. Cf. STERN, M. Greek and Latin Authors on Jews and Judaism I. Jerusalem: The Israel Academy of Sciences and Humanities, 1976, p. 14.

6. Cf. JOSEFO, F. Antiquitates Iudaicae XII, 138-144. São  Paulo: Editora das  Américas, 1956.

7. Cf., sobre os impostos selêucidas, SAULNIER, C. Histoire d’Israel III. De la conquête d’Alexandre à la destruction du temple (331a.C.-135 a.D.). Paris: Du Cerf, 1985, p. 456-458; PRÉAUX, C. Le monde hellénistique. La Grèce et l’Orient (323-146 av. J.-C.) I. 2. ed. Paris: Presses Universitaires de France, 1987, p. 384-388.

8. Há quatro grandes jogos pan-helênicos: os Jogos Olímpicos, em Olímpia; os Jogos Ístmicos, em Corinto; os Jogos Píticos, em Delfos e os Jogos Nemeus, no vale de Nemeia.

9. Cf. KIPPENBERG, H. G. Religião e formação de classes na antiga Judeia. São Paulo: Paulinas, 1988, p. 77-81; BICKERMAN, E. The God of Maccabees. Studies on the Meaning and Origin of the  Maccabean Revolt. Leiden: Brill, 1979, p. 32-34.

10. KIPPENBERG, H. G. o. c., p. 78.

11. Cf. SAULNIER, C. Histoire d’Israel III, p. 102-104; PRÉAUX, C. Le monde hellénistique I, p.153-163; WILL, E. Histoire politique du monde hellénistique II. 2. ed. Nancy: Presses Universitaires de Nancy, 1982, p. 210-215;221-224.

12. Cf., para o reinado de Antíoco IV e seu confronto com os judeus, BRIGHT, J. História de Israel. São Paulo: Paulinas, 1978, p. 570-576; ABEL, F.-M. Histoire de la Palestine depuis la conquête d’Alexandre jusqu’a l’invasion arabe I. Paris: Gabalda, 1952, p. 109-132; HENGEL, M. Judaism and Hellenism . Studies in their Encounter in Palestine during the Early Hellenist Period I. London: SCM Press, 1981, p. 277-290; SAULNIER, C. Histoire d’Israel III, p. 105-121; Idem, A revolta dos Macabeus. São Paulo: Paulinas, 1987, p. 21-31; WILL, E. Histoire politique du monde hellénistique (323-30 av. J.-C.) II. 2. ed. Nancy: Presses Universitaires de Nancy, 1982, p. 326-341.

13. Cf. ABEL, F.-M. Histoire de la Palestine depuis la conquête d’Alexandre jusqu’a l’invasion arabe I, p. 109.

14. Cf. SAULNIER, C. Histoire d’Israel III, p. 110-111.

15. Jasão oferece a Antíoco 590 talentos, o equivalente a cerca de 15.340 kg de prata. Um talento ático pesa 26,2 kg.

16. BRIGHT, J. História de Israel, p. 572.

17. SAULNIER, C. A revolta dos Macabeus, p. 26.

18. Cf. HENGEL, M. Judaism and Hellenism I, p. 292-303; BRIGHT, J. História de Israel, p. 574-576.

19. Cf. KIPPENBERG, H. G., Religião e formação de classes na antiga Judeia, pp. 73-87; GRUEN, W., Religião e formação de classes sociais no Judá pós-exílico, segundo H. G. KIPPENBERG, em Atualização 171-172, março/abril de 1984, pp. 152-161.

20. RODRIGUES, A. M. As utopias gregas. São Paulo: Brasiliense, 1988, p. 76. Cf. também GIORDANI, M. C. História da Grécia. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 1986, p. 151-183; MOSSÉ, C. As instituições gregas. Lisboa: Edições 70,1985; GLOTZ, G. A cidade grega. São Paulo: Difel, 1980.

21. KIPPENBERG, H. G. o. c., p. 80.

22. Cf. KIPPENBERG, H. G., o. c., p. 39.

23. Cf. Idem, ibidem, p. 86.

24. Cf. Idem, ibidem, p. 86-87.

Sandri fala sobre a oposição da Cúria a Francisco

Imagino que, no Brasil, — mas também em qualquer outro país da América Latina ou da Ásia ou da África e do Norte do mundo! — as pessoas nada saibam das brigas curiais e tenham outros problemas para se preocuparem. Todavia, um discurso como aquele do dia 22 de dezembro, retomado por muitos meios de comunicação, sugere também aos mais distraídos e às pessoas mais distantes de Roma que na Cúria — isto é, no órgão que auxilia o Papa no governo da Igreja Católica — está crescendo uma dura oposição a Bergoglio. Em suma, terminou, na Cúria e no establishment católico, a lua de mel  – se é que tenha existido – com Jorge Mario Bergoglio (Luigi Sandri).

Como a cúpula da Igreja obstrui a mensagem do Papa de dentro do Vaticano – Marcela Belchior: Adital – 13/02/2015

Em uma atitude que nenhum pontífice jamais havia ousado ter na história recente da Igreja Católica, o Papa Francisco pegou a Cúria Romana despreparada e falou claramente da necessidade de mudança na cúpula do Vaticano. Em discurso proferido no último dia 22 de dezembro, o primeiro papa latino-americano tornou público que não sente na equipe da Santa Sé fidelidade às suas diretivas e solidariedade às perspectivas de seu pontificado [cf. o discurso de Francisco aqui].

Os 2.300 curiais se dividem em três grupos: os que estão do lado de Francisco, se empenhando por atender às suas indicações; os que não se opõem, mas se limitam a um trabalho burocrático, deixando a máquina lenta; e, finalmente, aqueles profundamente contrários à forma de agir de Jorge Mario Bergoglio, sua teologia, seu estilo de vida e seu próprio magistério.

São esses dois últimos grupos que formam a grande maioria da Cúria e atuam, deliberadamente, obstruindo a mensagem libertadora do Papa. Operando em torno da manutenção do establishment católico, complicando o caminho das reformas imaginadas pelo Papa, essa oposição também tem motivações políticas e financeiras, associada a interesses dos que defendem os privilégios dos ricos pelo sistema neoliberal em detrimento das causas estruturais que geram a pobreza, denunciadas por Francisco.

“Pode haver um órgão como a Cúria Romana que não seja dominado pelas tentações do poder?”. Com essa pergunta, o jornalista, vaticanista e escritor italiano Luigi Sandri nos ajuda a compreender o que se passa no Vaticano e como isso reflete em toda a comunidade católica do mundo. Autor dos livros Cronache dal futuro (em português, “Crônicas do futuro”) e Dal Gerusalemme I al Vaticano III. I Concili nella storia tra Vangelo e potere (em português, “De Jerusalém I ao Vaticano III. Os Concílios na história entre o Evangelho e o poder”), Sandri, em entrevista exclusiva para a Adital, defende que é preciso, sim, uma reforma dentro cúpula da Igreja Católica.

Para o escritor, essa reforma é o passo decisivo para uma reformulação subsequente da Igreja Católica Apostólica Romana. “Mas o caminho não será fácil, e serão inevitáveis as tensões, sofrimentos e contradições”, adverte. Atualmente, a estrutura da Santa Sé remonta (acredite) à reforma lançada pelo Papa Sisto V, ainda de 1588, época em que toda a América Latina, principal reduto católico no mundo, mal brotava nos mapas do globo. Somente com uma equipe que reflita sua mentalidade, o Papa pode tornar real uma mudança nos rumos da Igreja Católica. Caso contrário, Francisco corre o risco de continuar sozinho na luta pela libertação dos povos.

Leia Mais:
Francisco entre lobos
Boff apoia Francisco contra Messori

Sobre algumas leituras de Marcos

Observações sobre algumas leituras atuais de Marcos. Cadernos do Cearp, Ribeirão Preto, n. 7, p. 44-57, 1997.

Nota: O artigo foi escrito em 1997. Para textos mais recentes sobre Bíblia, confira aqui. Este artigo está disponível também na Ayrton’s Biblical Page.

 

A proposta deste artigo é a de servir ao leitor como orientação para a leitura de Marcos. Por isto comento dez das mais recentes e conhecidas obras escritas nos últimos anos, acessíveis em português e espanhol, sobre o evangelho de Marcos. A ordem seguida foi a da data da publicação original. Começamos assim em 1966 e terminamos em 1996. É necessário observarmos que nem todas as publicações em português destes últimos 30 anos são aqui comentadas.

 

TAYLOR, V. Evangelio según San Marcos. Madrid: Cristiandad, 1979, 848 p.

Este é um clássico e indispensável comentário a Marcos. Editado em inglês pela primeira vez em 1952, teve uma segunda edição publicada em 1966, com várias reimpressões. Seu título original é The Gospel According to St. Mark. The Greek Text with Introduction, Notes and Indexes. A edição espanhola utilizou a 8a reimpressão inglesa, feita em 1969.

É o próprio Vincent Taylor, exegeta metodista britânico, nascido em 1887 e falecido em 1968, que nos explica a estrutura do livro no prólogo à 1a edição, p. 24: “NaTAYLOR, V. Evangelio según San Marcos. Madrid: Cristiandad, 1979, 848 p. introdução estudei os problemas críticos, gramaticais, teológicos e históricos, para não ter que discuti-los sempre de novo. No comentário dividi o texto primeiro em grandes blocos e, em seguida, em seções que contêm diversas narrativas e ditos de Jesus, tudo precedido por curtas introduções; em notas separadas estudei problemas especiais. No final do volume acrescentei alguns excursos sobre problemas mais amplos, cuja solução tem que ser necessariamente de caráter mais geral e especulativo”.

O jesuíta espanhol Dionísio Mínguez, professor no Pontifício Instituto Bíblico de Roma, comenta, na apresentação à edição espanhola deste clássico: “A informação é exaustiva, a crítica perspicaz e equilibrada, a orientação um pouco conservadora”. No campo da filologia Taylor é um expoente da mais genuína tradição britânica, pois “discute quase todas as palavras, estuda suas raízes no grego clássico, nos papiros, na LXX (= tradução grega do AT), manuseia documentos e manuscritos, revisa as diversas traduções inglesas, aceitando-as ou propondo outras novas mais ajustadas ao significado original. Faz o mesmo com as construções, sobretudo quando analisa expressões típicas de Marcos que são difíceis, incorretas, ou simplesmente mal transmitidas pela tradição textual” (p. 18-19).

É livro de leitura lenta e difícil, portanto recomendado para especialistas, como se pode deduzir destas poucas palavras. Mas, necessária, conclui Mínguez, quando afirma na p. 20: “O comentário é uma obra extraordinária e ainda hoje imprescindível para o estudo sério de Marcos. Se tivesse que salvar para a posteridade apenas dois comentários a Marcos dentre os muitos aparecidos neste século pessoalmente eu não duvidaria sequer um momento: o comentário de Vincent Taylor seria imediatamente o primeiro contemplado”.

 

DELORME, J. Leitura do evangelho segundo Marcos. São Paulo: Paulinas, 1982, 148 p.

Em 1972, Jean Delorme, sacerdote da diocese de Annecy e professor nas Faculdades Católicas de Lyon, na França, fez uma palestra para sacerdotes sobre o evangelho de Marcos, do qual é especialista. Desta palestra nasceu o Lecture de l’Évangile selon Saint Marc. Paris: Du Cerf, 1972. Em português o livro está na Coleção Cadernos Bíblicos da então Paulinas (hoje Paulus), sob o número 11.

DELORME, J. Leitura do evangelho segundo Marcos. São Paulo: Paulinas, 1982, 148 p.É um estudo perfeitamente acessível ao leigo, escrito com clareza e em estilo agradável. O autor nos conduz através do evangelho de Marcos, “convidando-nos a participarmos do drama que nele se desenrola”, explica E. Charpentier, editor da coleção francesa Cahiers d’Évangile, na qual a obra foi originariamente publicada.

J. Delorme propõe três leituras globais de Marcos, cada uma salientando um aspecto do evangelho:

A primeira leitura observa o evangelho de Marcos a partir dos deslocamentos de Jesus e procura seu plano a partir da geografia teológica de Marcos, observando-se uma dupla oposição: 1a) Galileia – Jerusalém: “É da Galileia que o Evangelho deve difundir-se, depois da Ressurreição, como foi da Galileia que Jesus começou a proclamá-lo. Jerusalém aparece como a cidadela da oposição, a cidade da qual vem o ataque mais hostil a Jesus (3,22) e na qual os responsáveis pela nação o condenarão à morte e o entregarão aos pagãos” (p. 14); 2a) Galileia, região habitada por judeus e por gentios: esta oposição se manifesta no deslocamento de Jesus entre as duas margens do lago de Genezaré, sendo que uma fica do lado dos judeus – e na qual Jesus enfrenta a oposição dos escribas e fariseus vindos de Jerusalém – e outra do lado dos gentios, onde Jesus prefere mover-se, por ser aí bem aceito. “Assim a Galileia de Marcos não tem fronteiras. Nela, opõem-se dois espaços, o dos fariseus e escribas, o qual se fecha em si mesmo, e o que Jesus vai abrindo, ao passar entre os pagãos [= gentios]” (p. 15).  É uma geografia teológica, pois provavelmente Jesus jamais ultrapassou a fronteira judaica da Galileia, mas “Marcos insiste neste ponto porque vê nele a preparação da missão aos pagãos”(p. 15). Os deslocamentos de Jesus em Marcos nos propõe um evangelho que não deve deixar se encerrar nos limites de uma Jerusalém qualquer, ontem ou hoje.

A segunda leitura nos convida a participarmos do drama que se representa dentro deste espaço geográfico acima delineado. A primeira frase do evangelho de Marcos é: “Evangelho de Jesus, Cristo, Filho de Deus”.  Mas, como Jesus manifesta que ele é o Cristo, o Filho de Deus? Curiosamente, Jesus oculta sua identidade (chamamos isso de “segredo messiânico”) até a cruz. Somente após a sua morte, um gentio, um centurião romano, é quem vai dizer: “De fato, este homem era Filho de Deus” (15,29). “Aqui o círculo se fecha. A partir deste momento, diz-nos Marcos, podeis dizer que Jesus é Filho de Deus, porque o vistes morrer. O fato de o crucificado ser aquele que vós proclamais Filho de Deus esvazia todos os mitos de filho de Deus que poderíeis aplicar a Jesus… Ele é o Cristo, mas de um modo todo seu, não como esperaríeis. É o crucificado que é Filho de Deus. Temos aqui o ponto culminante do evangelho de Marcos. É isto que ele quer pôr na cabeça dos cristãos” (p. 23-24).

A terceira leitura, que ocupa a maior parte do livro, nos convida a seguir “as relações que se estabelecem entre Jesus e os discípulos, entre Jesus e a multidão, entre Jesus e seus adversários” (p. 33). Segundo Delorme temos em Marcos “uma espécie de triângulo, formado pelas relações complexas entres esses três polos: multidão, adversários, discípulos” (p. 33). Os discípulos adquirem uma fisionomia própria, reunidos em torno de Jesus, na medida em que este se posiciona face à multidão e aos seus adversários. Jesus convoca os discípulos, prepara-os para compreenderem sua pessoa, sua obra e sua missão e, entretanto, acaba abandonado por eles e enfrenta sozinho seus juízes e algozes (cf. o quadro sinótico das três leituras na p. 35).

Importante para compreendermos a perspectiva do autor são suas observações na p. 7, na introdução: Marcos sempre foi preterido na Igreja em favor de Mateus e de Lucas. Somente no século XIX ele foi redescoberto. E hoje, o crescimento do interesse pela humanidade de Jesus é o principal motivo que nos leva à leitura e estudo desse evangelho que descreve um Jesus que ensina pouco e age mais.

 

CLÉVENOT, M. Enfoques materialistas da Bíblia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, 164 p.

O livro de Michel Clévenot, Approches matérialistes de la Bible, foi publicado pela Du Cerf, em Paris, no ano de 1976. O autor se inspira na famosa obra do português Fernando Belo, de orientação marxista, Lecture matérialiste de l’Évangile de Marc. Récit – Pratique – Ideologie, também editada pela Du Cerf em 1974.

Fernando Belo causou sensação na época ao ler Marcos através de Marx nas difíceis e complexas 415 páginas de sua obra. É que F. Belo combina o marxismoCLÉVENOT, M. Enfoques materialistas da Bíblia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, 164 p. estruturalista de L. Althusser com a teoria de linguística e de semiótica social extraídas de F. de Saussure, R. Barthes e J. Derrida, exigindo do leitor “coragem e uma certa dose de conhecimento para lê-lo até o fim”, explica Clévenot no prólogo de sua obra, p. 17. E completa: “Responsável pela edição do ‘Belo’, pareceu-me útil apresentar aos numerosos leitores interessados por esse novo acesso à Bíblia um livro menor, mais modesto e, espero, mais abordável” (p. 17).

A 1a parte do livro de Clévenot, fruto de um seminário de dois anos, do qual participou também F. Belo, traz uma abordagem materialista das tradições Javista, Eloísta, Sacerdotal e Deuteronomista, vistas como produto da conjunção de fatores ideológicos, políticos e econômicos. A 2a parte faz uma leitura do evangelho de Marcos como um relato da prática de Jesus, seguindo os passos de F. Belo. Como explica Clévenot, na p. 22, “nós consideraremos os textos que compõem a Bíblia como produtos ideológicos. Nosso projeto será analisar as condições nas quais ele foi produzido”.

Mas o que vem a ser este enfoque materialista de Clévenot? Ele mesmo explica na p. 22: “Ao contrário da filosofia alemã (idealista), que desce dos céus à terra, aqui nós subiremos da terra para o céu. Quer dizer, nós não nos baseamos no que os homens dizem, pensam, representam, nem naquilo que eles são segundo as palavras, pensamentos, imaginação e representação de outros para então chegar aos homens em carne e osso; não, nós nos baseamos nos homens em suas atividades reais, quer dizer, é a partir do processo real de vida que podemos representar o próprio desenvolvimento dos reflexos e das repercussões ideológicas desse processo vital”.

Assim,  “ler Marcos de modo materialista é tomá-lo como uma narração que não se pode compreender fora da situação social de seu autor e dos protagonistas (Jesus, seus amigos, seus adversários, a multidão…). É pôr o acento menos nas palavras de  Jesus do que na sua prática; tanto mais que a narração de Marcos não é uma coleção de ‘palavras’ ou ‘discursos’, mas expõe práticas e estratégias”, confirma F. Belo em La Lettre 198 (fev. 1975), Paris, Temps Present, p. 11.

 

MATEOS, J. Los “Doce” y otros seguidores de Jesús en el Evangelio de Marcos. Madrid: Cristiandad, 1982, 304 p.

“Juan Mateos é professor dos Institutos Oriental e Bíblico de Roma. É autor de uma série de livros de grande rigor linguístico e exegético que abrem um novo caminho para a leitura e interpretação do NT”, informa-nos a “orelha” do livro.

De fato, o autor procura esclarecer, através de rigorosa análise linguística e exegética, a existência de diversos grupos de seguidores de Jesus: os Doze, os discípulos, os que estão em torno dele, a multidão e sua relação com Jesus…

MATEOS, J. Los “Doce” y otros seguidores de Jesús en el Evangelio de Marcos. Madrid: Cristiandad, 1982, 304 p.Segundo Juan Mateos (cf. p. 247-258) há, em Marcos, dois grupos que acompanham Jesus:

  • os Doze/discípulos (3,14): representam o Israel institucional e se dividem em três subgrupos:

– Simão (Pedra = obstinado: 8,32), Tiago e João (Filhos do Trovão = autoritários  e ambiciosos: 10,37)
– André e os outros (são 8): são os homens sem destaque
– Judas: o traidor.

  • os que estavam ao redor dele: são os não-israelitas, rompidos com a aliança, tipificados por Levi (2,14). É a nova família de Jesus (3,34-35).

Estes dois grupos se distinguem dos de fora (4,11), que é a multidão que escuta Jesus, mas não o segue.

Os dois grupos (Doze/discípulos e os que estavam ao redor dele) estão na casa (espaço da comunidade) e no barco. Os outros estão fora da casa ou na margem.

Quando se dirige aos Doze/discípulos, Jesus usa expressões do AT (batismo, Messias, ressurreição, aliança). Quando Jesus se dirige “aos que estavam ao redor dele”, usa outros termos equivalentes aos anteriores (o Filho do Homem, o Filho de Deus, salvar a vida = ressurreição, seguir Jesus = batismo e aliança).

Assim, Marcos amplia o evangelho para os não-judeus, os gentios. Basta que sigam a Jesus.

A incompreensão dos Doze/discípulos é repetida ao longo do evangelho (4,34; 8,18; 8,22-26; 10,46-52), enquanto que “os que estavam com ele”, por pertencerem ao judaísmo periférico e por seu pouco apego às tradições judaicas, compreendem logo, após a 1a  vacilação (4,10). Veja-se a oposição entre os dois grupos em 9,33-37, onde a “criança” representa “os que estavam com ele”, em oposição aos Doze que discutiam quem era o mais importante.

Também a atitude de Simão Pedro (nega, foge) está em contraste com a de Simão Cirineu (segue, ajuda), este sim, símbolo dos que estavam com Jesus, pois ele é da diáspora.

No final do evangelho os Doze/discípulos (os judaizantes) não recebem o aviso para ir encontrar Jesus na Galileia (as mulheres se calam: 16,8): eles ficam presos a Jerusalém, ao ideal messiânico nacionalista… não existe para eles um Jesus vivo e ativo após a sua morte: são os judaizantes da época de Marcos! Mas os outros prosseguem, simbolizados em Simão Cirineu (pai de Alexandre, nome grego, e Paulo, latino, símbolos das comunidades cristãs que florescem na gentilidade).

O autor explica nas p. 29-31 que o estudo é feito unicamente a partir do texto de Marcos, único dado objetivo ao nosso alcance. A história de sua redação é deixada de lado, por seu caráter necessariamente hipotético, conduzindo a pontos de vista subjetivos e convidando o exegeta a resolver de modo não textual os problemas do texto.

 

CÁRDENAS PALLARES, J. Um pobre chamado Jesus. Releitura do evangelho de Marcos. São Paulo: Paulinas, 1988, 167 p.

José Cárdenas Pallares é um sacerdote mexicano. Un pobre llamado Jesús foi surgindo pouco a pouco, em palestras e cursos, fruto do trabalho pastoral do autor. Pallares decidiu publicar em 1982 estes trabalhos “porque demonstram o aspecto humano, radical e revelador das lutas de Jesus, o caráter libertador de sua práxis e a ‘parcialidade’  total de Deus a favor dos oprimidos. A causa de Jesus é a de Deus inseparavelmente unido com todos os explorados” (p. 7).

O autor explica na introdução à obra que estas páginas são o resultado de uma decepção, na medida em que ele, ao chegar à sua paróquia muito seguro de seus conhecimentos bíblicos, pensava que bastava transmitir ao povo o que havia aprendido para que este amadurecesse em seu compromisso cristão.

“O grande problema da exegese bíblica era e é o de tornar a palavra de Deus acessível ao homem moderno. Mas esse Homem não existe entre nós e, o que é pior, identifica-se – ao menos assim o percebem os pobres – com o opressor, com quem os trata como burros de carga ou como curiosidades de zoológico” (p. 8).

Colocando-se, assim, inteiramente do lado dos oprimidos em um país subdesenvolvido, o autor questiona a “isenção cientifica” da exegese atual, que se esqueceu de que “a linguagem do evangelho de são Marcos é linguagem simples, é literatura de gente pobre” e se pergunta angustiado: “A exegese está sendo elaborada em função de que projeto de sociedade, ou dizendo mais humildemente, em função de que tipo de pastoral? (…) Será o evangelho, antes de tudo e acima de tudo, Boa Nova para os satisfeitos? (…) Nós, os novos intérpretes da Bíblia, estaremos em sintonia, em afinidade sociológica com Jesus? E se nossa situação fosse mais semelhante à dos dirigentes fariseus ou à dos saduceus?” (p. 9).

Procurando responder, através da leitura do evangelho de Marcos, qual é a Boa Nova de Cristo para o homem humilhado e tiranizado da América Latina, o autor aborda em 11 capítulos os seguintes temas: o conflito de Jesus com as autoridades do judaísmo, o poder de Jesus expresso nos sinais de libertação (= milagres), a satanização de Jesus, a postura de Jesus face à opressão da mulher, Jesus e a riqueza, Jesus e o poder, Jesus e a máscara de santidade das autoridades religiosas, o que vale um pobre (Mc 12,41-44): o óbolo da viúva), o assassinato de Jesus, a ressurreição de um maldito e, finalmente, o triunfo da vida.

Confrontados com a morte de Jesus não devemos perguntar: “Diante da dor dos oprimidos é Deus derrotado e inútil?”, mas afirmar: “Se há futuro para Jesus, nada nem ninguém pode impedir o futuro, o triunfo definitivo dos oprimidos” (p. 163).

Este é um livro de leitura fácil e provocadora.

 

ALEGRE, X. Marcos ou a correção de uma ideologia triunfalista. Chave de leitura de um evangelho beligerante e comprometido. Belo Horizonte: CEBI, n. 8, 1988, 43 p.

Este livreto é a tradução de Marc o la correcció d’una ideologia trionfalista. Pautes de lectura d’un evangeli belligerant i compromès, texto da aula inaugural do ano letivo 1984-85 da Facultad de Teologia de Barcelona.

Xavier Alegre nos diz na p. 2 que “vivendo em El Salvador, uma igreja marcada por uma dura perseguição e regada pelo sangue de muitos mártires, entre os quais se destaca Dom Oscar Ranulfo Romero – São Romero da América, como o denomina Dom Pedro Casaldáliga – tornou-se mais claro, para mim, o teor que Marcos quis dar à sua obra”. Por isso o autor presta, através deste texto, “uma homenagem de gratidão às comunidades cristãs de El Salvador, sobretudo às pessoas simples e pobres que as compõem, os autênticos destinatários de uma obra como a de Marcos que, com seu testemunho de fé e esperança e amor, me ensinaram a ler com novos olhos o Evangelho de Jesus, morto e ressuscitado por ter vivido, com toda a radicalidade, a solidariedade  com os pobres, como testemunho do infinito amor do Pai”.

Segundo Alegre, Marcos escreveu sua obra para corrigir uma interpretação triunfalista da figura de Jesus, interpretação esta “apoiada no poder de fazer milagres que era próprio de Jesus” (p. 6). É então que Marcos “nos apresenta a figura de Jesus e da comunidade cristã com traços mais críticos em relação a determinadas representações triunfalistas da fé que esquecem o conflito histórico de Jesus com os poderes políticos e religiosos do seu tempo” (p. 3-4).

O autor vai demostrar sua tese a partir de dois pontos:

  • a estrutura do evangelho, que deixa a descoberto a cegueira dos homens do tempo de Jesus, dominados que são pela ideologia dominante
  • os retoques redacionais que Marcos realiza em suas fontes – “sobretudo no que diz respeito aos milagres e exorcismos e nos textos em que aparecem os discípulos de Jesus – e que têm como denominador comum o que os especialistas convencionaram chamar ‘o segredo messiânico’ e ‘a incompreensão dos discípulos’” (p. 6).

Alegre defende que Marcos quer fazer a comunidade cristã de ontem e de hoje entender que só se pode saber quem é Jesus quem o segue no caminho da cruz.

É uma leitura genial do evangelho, muito coerente, com um raciocínio bem estruturado e um enfoque bem situado. Poder-se-ia, a partir desta ótica, desenvolver o que o autor chama de “caminho da cruz”. O texto trata do aspecto negativo apenas – a correção da ideologia triunfalista – quando pode-se mostrar o caminho a ser seguido. Como, por exemplo, através das oposições do bloco 8,31-10,52: criança/adulto, último/primeiro, servir/dominar etc, onde se definem as práticas messiânica e eclesial.

 

MYERS, C. O evangelho de São Marcos. São Paulo: Paulinas, 1992, 581 p.

Um ativista da paz, Ched Myers estudou S. Escritura em Berkeley, Califórnia. O original deste comentário a Marcos foi publicado pela Orbis Books, Maryknol, New York, em 1988 e tem como título Binding the Strong Man. A Political Reading of Mark’s Story of Jesus (“Amarrando o homem forte. Leitura política da história de Jesus de Marcos”).

A obra compõe-se de quatro partes: a primeira trata do texto e do contexto sócio-histórico do evangelho de Marcos, a segunda e a terceira leem o texto e a quarta traz as conclusões do trabalho. Um posfácio e um apêndice consideram as várias leituras sociopolíticas atuais da narrativa de  Jesus.

O autor adota o modelo centro-periferia, que ele (norte-americano, escrevendo do centro imperial) considera adequado tanto para a produção do texto de Marcos quanto para a sua leitura atual.

“O mundo mediterrâneo antigo era dominado pela lei da Roma imperial. No entanto, se eu leio situando-me no centro [USA], Marcos escreveu da periferia palestina [naMYERS, C. O evangelho de São Marcos. São Paulo: Paulinas, 1992, 581 p. Galileia, entre 66 e 70 d.C. quando Roma destruía a Palestina]. Seu principal auditório era constituído por aqueles cujas vidas diárias suportavam o peso explorador do colonialismo, ao passo que os meus ouvintes são os que se acham em posição que lhes possibilita usufruir os privilégios do colonizador” (p. 29).

Assim, citando Dorothee Sölle, o autor reflete: “Nós que nos achamos no centro (…) não temos outra opção senão a de ‘fazer teologia na casa do faraó’, ou seja, ficar do lado dos hebreus mesmo sendo cidadãos do Egito” (p. 30). Privilegiada, para ler Marcos, é a situação de quem se  situa na periferia e pode enfocar adequadamente temas de libertação, como o fazem os teólogos latino-americanos, emenda o autor.

Deste modo, mesmo situado no centro, o autor defende uma leitura libertadora de Marcos, considerando a chave apocalíptica a mais adequada para a leitura do texto, a partir de sua definição dos escritos apocalípticos, tais como Daniel e Apocalipse, como “manifestos políticos de movimentos não-violentos de resistência à tirania”. “Meu comentário” acrescenta Myers “demonstra que o mesmo pode ser dito a propósito de Marcos” (p. 491).

Ched Myers procura extrair três fios narrativos ou subtramas do evangelho de Marcos. “A primeira subtrama envolve tentativas de Jesus para criar e consolidar uma comunidade messiânica, tendo como sujeito evidentemente seus discípulos. Seu mandamento a eles dirigido deve levar avante a obra do reino (…) A segunda subtrama é o ministério de Jesus de cura, de exorcismo e de proclamação da libertação, tendo como sujeito os pobres e oprimidos, encarnados pela ‘multidão’ no Evangelho. O mandamento aparece no primeiro exorcismo da sinagoga, em que a multidão reconhece que  a autoridade de Jesus supera  a dos supersenhores, os escribas (…) A terceira subtrama é o confronto de Jesus com a ordem sociosimbólica dominante, tendo como sujeito os defensores desta obra: os escribas, os fariseus, os herodianos e o clero dirigente de Jerusalém. Jesus confia seu mandamento a eles diversas vezes na primeira campanha de ação direta, afirmando sua autoridade sobre o sistema de pureza e de débito (2,10.28) e desafiando as autoridades a optarem pela justiça e pela  compaixão em vez da dominação” (p. 158-159).

Estas três subtramas levam Jesus à prisão e execução, com a deserção dos discípulos, a decepção da multidão e a hostilidade das autoridades. Jesus segue sozinho o caminho da cruz. “Essa tragédia, porém, é revertida pela promessa de que, como Jesus vive, a aventura do discipulado pode continuar (16,6s)” (p. 158).

Deste modo, o evangelho de Marcos é visto como um manifesto escrito para súditos do poder imperial romano “aprenderem a dura verdade sobre o seu mundo e sobre eles mesmos”. Para Ched Myers o relato de Marcos “é história feita pelos comprometidos, que versa sobre os comprometidos e que se dirige aos comprometidos com  a obra de Deus, obra de justiça , de compaixão e de libertação no mundo”.

Aos teólogos modernos Marcos não “oferece sinais do céu” (Mc 8,11-12), como não os oferecem aos fariseus; aos exegetas que recusam um compromisso ideológico Jesus não dá resposta alguma, como não a deu aos sumos sacerdotes (Mc 11,30-33)… “Mas aos que querem provocar a ira do império, Marcos apresenta uma forma de “discipulado (8,34ss)” (p. 34). Um discipulado radical.

 

VV. AA. Ele caminha à vossa frente. O seguimento de Jesus pelo evangelho de Marcos. Estudos Bíblicos, Petrópolis, n. 22, 1989, 93 p.

O número 22 da revista Estudos Bíblicos foi preparado pelos “biblistas mineiros”, grupo que periodicamente se reúne em Belo Horizonte para colaborar com esta publicação da Vozes, como o fazem outros grupos espalhados pelo país. À época, 1989, coordenado por Alberto Antoniazzi, este grupo optou pelo estudo do evangelho de Marcos, com especial atenção à pedagogia de Jesus. Cientes de que Jesus ensinou mais pela vida do que pelas palavras, demos atenção “à prática (ou práxis) de Jesus, assim como Marcos a apresenta, e ao modo com que o mesmo evangelista fez da vida de Jesus o roteiro da caminhada de seus discípulos; roteiro válido para nós hoje”, explica o editorial assinado por A. Antoniazzi.

Duas visões de conjunto do evangelho abrem este n. 22: Airton José da Silva oferece, no primeiro artigo, um roteiro para uma leitura de Marcos, acompanhado o próprio texto do evangelho e relendo “o contexto conflitivo em que foi escrito e o seu objetivo de preservar uma memória proibida, que alimentava a luta dos oprimidos” (p. 8); Walmor Oliveira de Azevedo, no segundo artigo, “procura revelar ‘a força pedagógica da articulação global do Evangelho de Marcos’”, mostrando “como a leitura do Evangelho provoca e exige o envolvimento do leitor num processo que lhe abre perspectivas de ação libertadora” (p. 8).

A seguir são propostos dois exemplos do seguimento de Jesus em Marcos através da análise de temas específicos. Alberto Antoniazzi lê Mc 4,1-14, o capítulo das parábolas, enquanto Airton José da Silva explora o significado dos milagres em Marcos, através da leitura de Mc 6,30-44, relato da multiplicação dos pães”.

Após estes quatro artigos, dois instrumentos de trabalho são oferecidos ao leitor: “Uma experiência popular com Marcos” de Paulo Sérgio Soares, “explica como um grupo pode aprender a usar (na sua comparação bem ao gosto do povo) o facão para tirar a água do coco, ou a mensagem da Bíblia” (p.8); e em “Apresentação de alguns estudos sobre Marcos”, Emanuel Messias de Oliveira apresenta nove livros sobre Marcos, com a intenção de ajudar o leitor interessado a prosseguir suas pesquisas sobre Marcos.

Como brinde aos leitores, José Luiz Gonzaga do Prado “apresenta uma leitura original do conhecido texto de Paulo, Fl 2,6-11, mostrando que a perspectiva do caminho, tão importante para entender Marcos, ilumina também o famoso texto paulino”, explica A. Antoniazzi no editorial.

Uma notícia sobre o Mês da Bíblia e duas recensões encerram este número de Estudos Bíblicos, que recomendo vivamente ao leitor como útil instrumento para que faça, ele mesmo,  a “sua” leitura de Marcos.

 

BALANCIN, E. M. Como ler o evangelho de Marcos. Quem é Jesus?  2. ed. São Paulo: Paulus, 1991, 183 p.

Este texto de Euclides Martins Balancin reutiliza o material pensado e apresentado para círculos bíblicos no semanário Bíblia-Gente e faz parte da coleção de sucesso da Paulus “Como ler a Bíblia”. Coleção que pretende ser “uma chave de leitura, uma espécie de lanterna que nos ajuda a focalizar e a enxergar, no seu conjunto, um ou mais livros bíblicos (…) e estimula a ler os textos com os pés no chão da existência, jamais perdendo de vista os anseios de vida e liberdade do nosso povo”, explica a editora na p. 5.

Lendo o primeiro versículo de Marcos (“Começo da Boa Notícia de Jesus, o Messias, o Filho de Deus”)  Balancin nos explica que “todo o livro de Marcos é caracterizado como um simples começo” (p. 10): lendo Marcos, acompanhamos Jesus saindo de Nazaré da Galileia para ser batizado por João na Judeia e retornando à Galileia após a prisão deste. Na Galileia Jesus realiza suas ações, faz a caminhada com seus discípulos até Jerusalém, onde entra em choque com as autoridades judaicas, é crucificado e, após a ressurreição, promete encontrar-se com os discípulos na Galileia.

BALANCIN, E. M. Como ler o evangelho de Marcos. Quem é Jesus?  2. ed. São Paulo: Paulus, 1991, 183 p.Segundo Balancin, “desse modo, o evangelista nos ensina que aquilo que Jesus realizou é apenas o início da atividade que seus discípulos deverão continuar em todos os tempos e lugares, a fim de trazer o Reino de Deus para dentro da humanidade e da história. Fazendo isso, os seguidores de Jesus têm certeza de sua presença viva e contínua no meio deles (p. 11).

Acontece que Marcos diz também ser o seu escrito uma Boa Notícia, um Evangelho. Mas Marcos nos mostra mais o que Jesus faz do que o seu ensinamento. “Com isso, ficamos sabendo que o grande ensinamento de Jesus é sua prática e que sua palavra é nova porque é sempre acompanhada por sua ação” (p. 12). Só que este conceito “evangelho” era aplicado, na época, ao César romano, cuja subida ao poder era divulgada como boa notícia. “Ao proclamar Jesus Filho de Deus, Marcos está dando a “Boa Notícia que constitui um desafio à organização da propaganda imperial dos romanos” (p. 13).

E mais: Marcos diz que Jesus é o Messias (o Cristo) em um momento em que havia muitas e diferentes ideias a respeito de quem seria o Messias, de onde ele viria e qual seria a sua missão. Marcos vai, ao longo de seu texto, explicar porque Jesus é o Messias. Assim, diz Balancin, Marcos “vai mostrar que a prática de Jesus entra em conflito com aquilo que muitos esperavam de um messias”, posicionando-se “na luta ideológica sobre o modo de entender adequadamente o Messias” (p. 13).

A partir deste ótica, sintetizada no primeiro versículo ou título do evangelho, é que Balancin lê Marcos. Para ele, este título nos coloca diante de grandes desafios, elencados na p. 14:

  • “se quisermos ser discípulos de Jesus Ressuscitado, precisamos ser continuadores de sua prática;
  • desmascarar os falsos messias que são criados pela propaganda e se apresentam como salvadores;
  • desmistificar os ‘homens divinos’ que sustentam um ‘reino’ que explora e oprime;
  • discernir entre a Boa Notícia e as outras notícias que são apresentadas como boas”.

CNBB Caminhamos na estrada de Jesus. O evangelho de Marcos. 2. ed. São Paulo: Paulinas, 1996, 128 p.

O Secretário Geral da CNBB, Dom Raymundo Damasceno Assis, nos explica na apresentação deste livro, às p. 5-8, terem os bispos brasileiros determinado que o tema central da preparação do grande Jubileu em 1997 – Jesus Cristo e a fé – “seja assumido, refletido e vivenciado principalmente a partir do evangelho de Marcos, lido aos domingos neste ano litúrgico.

Como está previsto no Projeto de Evangelização “Rumo ao Novo Milênio”, este subsídio “é uma introdução à leitura do evangelho de Marcos que destaca a figura de Jesus e os passos que todo discípulo – de ontem ou de hoje – deve dar para seguir o caminho de Jesus, ou seja, para viver sua fé” (p. 5).

Acrescenta Dom Raymundo Damasceno, na página 6, que o objetivo desse subsídio “é levar os leitores e suas comunidades a aprofundar a fé em Jesus, a renovar a adesão pessoal a Ele, a firmar o compromisso de segui-lo nos caminhos da vida. Marcos nos convida a refazer hoje os passos que Jesus faz na busca da vontade do Pai, desde a Galileia até Jerusalém, lugar da cruz e ressurreição”.

Caminhamos na estrada de Jesus, fruto do trabalho de uma equipe que assessorou a CNBB, é destinado aos animadores de círculos bíblicos e de grupos de reflexão, bem como aos padres e agentes de pastoral que deverão comentar este evangelho nas celebrações dominicais.

Já na Introdução (p. 9-11), o autor do livro explica que seu título é tirado da oração eucarística V, quando, após a consagração repetimos: “Caminhamos na Estrada de Jesus”, nos comprometendo, mais uma vez, com a Boa Nova de Jesus. Marcos  nos oferece, em seu evangelho, o mapa e o roteiro desta Estrada. São 9 capítulos: o 10 é de introdução, o 80 “fala da importância da fé para quem assume caminhar na Estrada de Jesus”, o 90 “fala da terra e do povo por onde passa a Estrada de Jesus”, enquanto que “nos capítulos 2 a 7 percorremos as várias etapas deste caminho, desde o lago na Galileia até o Calvário em Jerusalém” (p. 9).

No capítulo primeiro o autor nos apresenta, de início, uma série de problemas que marcavam a vida das comunidades cristãs por volta do ano 70 – data em que Marcos escreve (p. 17). Os principais problemas seriam: a ameaça constante de perseguição dos cristãos por parte do Império Romano; a rebelião dos judeus da Palestina contra a invasão romana e a atitude dos cristãos que estavam sem saber se deviam entrar ou não nesta luta; como entender que um crucificado, considerado como “maldito de Deus”, poderia ser o Messias, e, ainda, como organizar adequadamente uma comunidade cristã…

E explica: “No meio de tantas preocupações, a preocupação maior continuava sempre a mesma: ‘Como ser discípulo ou discípula de Jesus no meio desta situação tão complicada e tão difícil?’ Esta ainda é a pergunta que, até hoje, nos leva a abrir os evangelhos e que, em toda parte, suscita grupos que se reúnem em torno da Palavra de Deus” (p. 20).

E mais adiante (p. 24) o autor nos esclarece que Marcos não quer apenas nos informar sobre o que Jesus fez no passado, “mas também quer que você se identifique com os discípulos de Jesus e se envolva com os problemas deles, sinta o entusiasmo deles e viva a crise que eles viveram. Que percorra o caminho que aqueles primeiros discípulos percorreram junto com Jesus, desde a Galileia até Jerusalém. E fazendo assim, que você elimine de dentro de si ‘o fermento dos fariseus e dos herodianos’ (Mc 8,15) e se torne melhor discípulo ou discípula de Jesus”.

A caminhada dos discípulos e das discípulas de Jesus no evangelho de Marcos é feita em quatro etapas:
1) Mc 1,16-6,13 : o entusiasmo no início da caminhada com Jesus
2) Mc 1,35-8,21 : o mistério da pessoa de Jesus aparece. Nos discípulos surge a crise do não entender
3) Mc 8,22-13,37: a cegueira causada pela luz escura da Cruz é combatida pela instrução de Jesus
4) Mc 14,1-16,8: o fracasso final é apelo para recomeçar tudo de novo.

Para terminar: “São estes os quatro passos da caminhada com Jesus. Eles indicam o roteiro que vamos seguir neste livrinho. Vamos olhar nele, como se fosse um espelho, onde vemos refletida nossa própria vida. Foi pensando na vida das comunidades, que Marcos recolheu e arrumou as palavras e gestos de Jesus” (p. 27-28).

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