Observações sobre algumas leituras de Marcos
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A proposta deste artigo é a de servir ao leitor como orientação para a leitura de Marcos. Por isto comento dez das mais conhecidas obras sobre o evangelho de Marcos escritas entre 1966 e 1996, acessíveis em português e espanhol. A ordem seguida foi a da data da publicação original. É necessário observarmos que nem todas as publicações em português destes 30 anos são aqui comentadas.
TAYLOR, V. Evangelio según San Marcos. Madrid: Cristiandad, 1979, 848 p.
Este é um clássico e indispensável comentário a Marcos. Editado em inglês pela primeira vez em 1952, teve uma segunda edição publicada em 1966, com várias reimpressões. Seu título original é The Gospel According to St. Mark. The Greek Text with Introduction, Notes and Indexes. A edição espanhola utilizou a 8a reimpressão inglesa, feita em 1969.
É o próprio Vincent Taylor, exegeta metodista britânico, nascido em 1887 e falecido em 1968, que nos explica a estrutura do livro no prólogo à 1a edição, p. 24: “Na introdução estudei os problemas críticos, gramaticais, teológicos e históricos, para não ter que discuti-los sempre de novo. No comentário dividi o texto primeiro em grandes blocos e, em seguida, em seções que contêm diversas narrativas e ditos de Jesus, tudo precedido por curtas introduções; em notas separadas estudei problemas especiais. No final do volume acrescentei alguns excursos sobre problemas mais amplos, cuja solução tem que ser necessariamente de caráter mais geral e especulativo”.
O jesuíta espanhol Dionísio Mínguez, professor no Pontifício Instituto Bíblico de Roma, comenta, na apresentação à edição espanhola deste clássico: “A informação é exaustiva, a crítica perspicaz e equilibrada, a orientação um pouco conservadora”. No campo da filologia Taylor é um expoente da mais genuína tradição britânica, pois “discute quase todas as palavras, estuda suas raízes no grego clássico, nos papiros, na LXX (= tradução grega do AT), manuseia documentos e manuscritos, revisa as diversas traduções inglesas, aceitando-as ou propondo outras novas mais ajustadas ao significado original. Faz o mesmo com as construções, sobretudo quando analisa expressões típicas de Marcos que são difíceis, incorretas, ou simplesmente mal transmitidas pela tradição textual” (p. 18-19).
É livro de leitura lenta e difícil, portanto recomendado para especialistas, como se pode deduzir destas poucas palavras. Mas, necessária, conclui Mínguez, quando afirma na p. 20: “O comentário é uma obra extraordinária e ainda hoje imprescindível para o estudo sério de Marcos. Se tivesse que salvar para a posteridade apenas dois comentários a Marcos dentre os muitos aparecidos neste século pessoalmente eu não duvidaria sequer um momento: o comentário de Vincent Taylor seria imediatamente o primeiro contemplado”.
DELORME, J. Leitura do evangelho segundo Marcos. São Paulo: Paulinas, 1982 [Paulus e Academia Cristã: 2012] 148 p.
Em 1972, Jean Delorme, sacerdote da diocese de Annecy e professor nas Faculdades Católicas de Lyon, na França, fez uma palestra para sacerdotes sobre o evangelho de Marcos, do qual é especialista. Desta palestra nasceu o Lecture de l’Évangile selon Saint Marc. Paris: Du Cerf, 1972. Em português o livro está na Coleção Cadernos Bíblicos da então Paulinas (hoje Paulus), sob o número 11.
É um estudo perfeitamente acessível ao leigo, escrito com clareza e em estilo agradável. O autor nos conduz através do evangelho de Marcos, “convidando-nos a participarmos do drama que nele se desenrola”, explica E. Charpentier, editor da coleção francesa Cahiers d’Évangile, na qual a obra foi originariamente publicada.
J. Delorme propõe três leituras globais de Marcos, cada uma salientando um aspecto do evangelho:
A primeira leitura observa o evangelho de Marcos a partir dos deslocamentos de Jesus e procura seu plano a partir da geografia teológica de Marcos, observando-se uma dupla oposição: 1a) Galileia – Jerusalém: “É da Galileia que o Evangelho deve difundir-se, depois da Ressurreição, como foi da Galileia que Jesus começou a proclamá-lo. Jerusalém aparece como a cidadela da oposição, a cidade da qual vem o ataque mais hostil a Jesus (3,22) e na qual os responsáveis pela nação o condenarão à morte e o entregarão aos pagãos” (p. 14); 2a) Galileia, região habitada por judeus e por gentios: esta oposição se manifesta no deslocamento de Jesus entre as duas margens do lago de Genezaré, sendo que uma fica do lado dos judeus – e na qual Jesus enfrenta a oposição dos escribas e fariseus vindos de Jerusalém – e outra do lado dos gentios, onde Jesus prefere mover-se, por ser aí bem aceito. “Assim a Galileia de Marcos não tem fronteiras. Nela, opõem-se dois espaços, o dos fariseus e escribas, o qual se fecha em si mesmo, e o que Jesus vai abrindo, ao passar entre os pagãos [= gentios]” (p. 15). É uma geografia teológica, pois provavelmente Jesus jamais ultrapassou a fronteira judaica da Galileia, mas “Marcos insiste neste ponto porque vê nele a preparação da missão aos pagãos”(p. 15). Os deslocamentos de Jesus em Marcos nos propõe um evangelho que não deve deixar se encerrar nos limites de uma Jerusalém qualquer, ontem ou hoje.
A segunda leitura nos convida a participarmos do drama que se representa dentro deste espaço geográfico acima delineado. A primeira frase do evangelho de Marcos é: “Evangelho de Jesus, Cristo, Filho de Deus”. Mas, como Jesus manifesta que ele é o Cristo, o Filho de Deus? Curiosamente, Jesus oculta sua identidade (chamamos isso de “segredo messiânico”) até a cruz. Somente após a sua morte, um gentio, um centurião romano, é quem vai dizer: “De fato, este homem era Filho de Deus” (15,29). “Aqui o círculo se fecha. A partir deste momento, diz-nos Marcos, podeis dizer que Jesus é Filho de Deus, porque o vistes morrer. O fato de o crucificado ser aquele que vós proclamais Filho de Deus esvazia todos os mitos de filho de Deus que poderíeis aplicar a Jesus… Ele é o Cristo, mas de um modo todo seu, não como esperaríeis. É o crucificado que é Filho de Deus. Temos aqui o ponto culminante do evangelho de Marcos. É isto que ele quer pôr na cabeça dos cristãos” (p. 23-24).
A terceira leitura, que ocupa a maior parte do livro, nos convida a seguir “as relações que se estabelecem entre Jesus e os discípulos, entre Jesus e a multidão, entre Jesus e seus adversários” (p. 33). Segundo Delorme temos em Marcos “uma espécie de triângulo, formado pelas relações complexas entres esses três polos: multidão, adversários, discípulos” (p. 33). Os discípulos adquirem uma fisionomia própria, reunidos em torno de Jesus, na medida em que este se posiciona face à multidão e aos seus adversários. Jesus convoca os discípulos, prepara-os para compreenderem sua pessoa, sua obra e sua missão e, entretanto, acaba abandonado por eles e enfrenta sozinho seus juízes e algozes (cf. o quadro sinótico das três leituras na p. 35).
Importante para compreendermos a perspectiva do autor são suas observações na p. 7, na introdução: Marcos sempre foi preterido na Igreja em favor de Mateus e de Lucas. Somente no século XIX ele foi redescoberto. E hoje, o crescimento do interesse pela humanidade de Jesus é o principal motivo que nos leva à leitura e estudo desse evangelho que descreve um Jesus que ensina pouco e age mais.
CLÉVENOT, M. Enfoques materialistas da Bíblia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, 164 p.
O livro de Michel Clévenot, Approches matérialistes de la Bible, foi publicado pela Du Cerf, em Paris, no ano de 1976. O autor se inspira na famosa obra do português Fernando Belo, de orientação marxista, Lecture matérialiste de l’Évangile de Marc. Récit – Pratique – Ideologie, também editada pela Du Cerf em 1974.
Fernando Belo causou sensação na época ao ler Marcos através de Marx nas difíceis e complexas 415 páginas de sua obra. É que F. Belo combina o marxismo estruturalista de L. Althusser com a teoria de linguística e de semiótica social extraídas de F. de Saussure, R. Barthes e J. Derrida, exigindo do leitor “coragem e uma certa dose de conhecimento para lê-lo até o fim”, explica Clévenot no prólogo de sua obra, p. 17. E completa: “Responsável pela edição do ‘Belo’, pareceu-me útil apresentar aos numerosos leitores interessados por esse novo acesso à Bíblia um livro menor, mais modesto e, espero, mais abordável” (p. 17).
A 1a parte do livro de Clévenot, fruto de um seminário de dois anos, do qual participou também F. Belo, traz uma abordagem materialista das tradições Javista, Eloísta, Sacerdotal e Deuteronomista, vistas como produto da conjunção de fatores ideológicos, políticos e econômicos. A 2a parte faz uma leitura do evangelho de Marcos como um relato da prática de Jesus, seguindo os passos de F. Belo. Como explica Clévenot, na p. 22, “nós consideraremos os textos que compõem a Bíblia como produtos ideológicos. Nosso projeto será analisar as condições nas quais ele foi produzido”.
Mas o que vem a ser este enfoque materialista de Clévenot? Ele mesmo explica na p. 22: “Ao contrário da filosofia alemã (idealista), que desce dos céus à terra, aqui nós subiremos da terra para o céu. Quer dizer, nós não nos baseamos no que os homens dizem, pensam, representam, nem naquilo que eles são segundo as palavras, pensamentos, imaginação e representação de outros para então chegar aos homens em carne e osso; não, nós nos baseamos nos homens em suas atividades reais, quer dizer, é a partir do processo real de vida que podemos representar o próprio desenvolvimento dos reflexos e das repercussões ideológicas desse processo vital”.
Assim, “ler Marcos de modo materialista é tomá-lo como uma narração que não se pode compreender fora da situação social de seu autor e dos protagonistas (Jesus, seus amigos, seus adversários, a multidão…). É pôr o acento menos nas palavras de Jesus do que na sua prática; tanto mais que a narração de Marcos não é uma coleção de ‘palavras’ ou ‘discursos’, mas expõe práticas e estratégias”, confirma F. Belo em La Lettre 198 (fev. 1975), Paris, Temps Present, p. 11.
MATEOS, J. Los “Doce” y otros seguidores de Jesús en el Evangelio de Marcos. Madrid: Cristiandad, 1982, 304 p.
“Juan Mateos é professor dos Institutos Oriental e Bíblico de Roma. É autor de uma série de livros de grande rigor linguístico e exegético que abrem um novo caminho para a leitura e interpretação do NT”, informa-nos a “orelha” do livro.
De fato, o autor procura esclarecer, através de rigorosa análise linguística e exegética, a existência de diversos grupos de seguidores de Jesus: os Doze, os discípulos, os que estão em torno dele, a multidão e sua relação com Jesus…
Segundo Juan Mateos (cf. p. 247-258) há, em Marcos, dois grupos que acompanham Jesus:
:. os Doze/discípulos (3,14): representam o Israel institucional e se dividem em três subgrupos:
– Simão (Pedra = obstinado: 8,32), Tiago e João (Filhos do Trovão = autoritários e ambiciosos: 10,37)
– André e os outros (são 8): são os homens sem destaque
– Judas: o traidor.
:. os que estavam ao redor dele: são os não-israelitas, rompidos com a aliança, tipificados por Levi (2,14). É a nova família de Jesus (3,34-35).
Estes dois grupos se distinguem dos de fora (4,11), que é a multidão que escuta Jesus, mas não o segue.
Os dois grupos (Doze/discípulos e os que estavam ao redor dele) estão na casa (espaço da comunidade) e no barco. Os outros estão fora da casa ou na margem.
Quando se dirige aos Doze/discípulos, Jesus usa expressões do AT (batismo, Messias, ressurreição, aliança). Quando Jesus se dirige “aos que estavam ao redor dele”, usa outros termos equivalentes aos anteriores (o Filho do Homem, o Filho de Deus, salvar a vida = ressurreição, seguir Jesus = batismo e aliança).
Assim, Marcos amplia o evangelho para os não-judeus, os gentios. Basta que sigam a Jesus.
A incompreensão dos Doze/discípulos é repetida ao longo do evangelho (4,34; 8,18; 8,22-26; 10,46-52), enquanto que “os que estavam com ele”, por pertencerem ao judaísmo periférico e por seu pouco apego às tradições judaicas, compreendem logo, após a 1a vacilação (4,10). Veja-se a oposição entre os dois grupos em 9,33-37, onde a “criança” representa “os que estavam com ele”, em oposição aos Doze que discutiam quem era o mais importante.
Também a atitude de Simão Pedro (nega, foge) está em contraste com a de Simão Cirineu (segue, ajuda), este sim, símbolo dos que estavam com Jesus, pois ele é da diáspora.
No final do evangelho os Doze/discípulos (os judaizantes) não recebem o aviso para ir encontrar Jesus na Galileia (as mulheres se calam: 16,8): eles ficam presos a Jerusalém, ao ideal messiânico nacionalista… não existe para eles um Jesus vivo e ativo após a sua morte: são os judaizantes da época de Marcos! Mas os outros prosseguem, simbolizados em Simão Cirineu (pai de Alexandre, nome grego, e Paulo, latino, símbolos das comunidades cristãs que florescem na gentilidade).
O autor explica nas p. 29-31 que o estudo é feito unicamente a partir do texto de Marcos, único dado objetivo ao nosso alcance. A história de sua redação é deixada de lado, por seu caráter necessariamente hipotético, conduzindo a pontos de vista subjetivos e convidando o exegeta a resolver de modo não textual os problemas do texto.
CÁRDENAS PALLARES, J. Um pobre chamado Jesus. Releitura do evangelho de Marcos. São Paulo: Paulinas, 1988, 167 p.
José Cárdenas Pallares é um sacerdote mexicano. Un pobre llamado Jesús foi surgindo pouco a pouco, em palestras e cursos, fruto do trabalho pastoral do autor. Pallares decidiu publicar em 1982 estes trabalhos “porque demonstram o aspecto humano, radical e revelador das lutas de Jesus, o caráter libertador de sua práxis e a ‘parcialidade’ total de Deus a favor dos oprimidos. A causa de Jesus é a de Deus inseparavelmente unido com todos os explorados” (p. 7).
O autor explica na introdução à obra que estas páginas são o resultado de uma decepção, na medida em que ele, ao chegar à sua paróquia muito seguro de seus conhecimentos bíblicos, pensava que bastava transmitir ao povo o que havia aprendido para que este amadurecesse em seu compromisso cristão.
“O grande problema da exegese bíblica era e é o de tornar a palavra de Deus acessível ao homem moderno. Mas esse Homem não existe entre nós e, o que é pior, identifica-se – ao menos assim o percebem os pobres – com o opressor, com quem os trata como burros de carga ou como curiosidades de zoológico” (p. 8).
Colocando-se, assim, inteiramente do lado dos oprimidos em um país subdesenvolvido, o autor questiona a “isenção cientifica” da exegese atual, que se esqueceu de que “a linguagem do evangelho de são Marcos é linguagem simples, é literatura de gente pobre” e se pergunta angustiado: “A exegese está sendo elaborada em função de que projeto de sociedade, ou dizendo mais humildemente, em função de que tipo de pastoral? (…) Será o evangelho, antes de tudo e acima de tudo, Boa Nova para os satisfeitos? (…) Nós, os novos intérpretes da Bíblia, estaremos em sintonia, em afinidade sociológica com Jesus? E se nossa situação fosse mais semelhante à dos dirigentes fariseus ou à dos saduceus?” (p. 9).
Procurando responder, através da leitura do evangelho de Marcos, qual é a Boa Nova de Cristo para o homem humilhado e tiranizado da América Latina, o autor aborda em 11 capítulos os seguintes temas: o conflito de Jesus com as autoridades do judaísmo, o poder de Jesus expresso nos sinais de libertação (= milagres), a satanização de Jesus, a postura de Jesus face à opressão da mulher, Jesus e a riqueza, Jesus e o poder, Jesus e a máscara de santidade das autoridades religiosas, o que vale um pobre (Mc 12,41-44): o óbolo da viúva), o assassinato de Jesus, a ressurreição de um maldito e, finalmente, o triunfo da vida.
Confrontados com a morte de Jesus não devemos perguntar: “Diante da dor dos oprimidos é Deus derrotado e inútil?”, mas afirmar: “Se há futuro para Jesus, nada nem ninguém pode impedir o futuro, o triunfo definitivo dos oprimidos” (p. 163).
Este é um livro de leitura fácil e provocadora.
ALEGRE, X. Marcos ou a correção de uma ideologia triunfalista. Chave de leitura de um evangelho beligerante e comprometido. Belo Horizonte: CEBI, n. 8, 1988, 43 p.
Este livreto é a tradução de Marc o la correcció d’una ideologia trionfalista. Pautes de lectura d’un evangeli belligerant i compromès, texto da aula inaugural do ano letivo 1984-85 da Facultad de Teologia de Barcelona.
Xavier Alegre nos diz na p. 2 que “vivendo em El Salvador, uma igreja marcada por uma dura perseguição e regada pelo sangue de muitos mártires, entre os quais se destaca Dom Oscar Ranulfo Romero – São Romero da América, como o denomina Dom Pedro Casaldáliga – tornou-se mais claro, para mim, o teor que Marcos quis dar à sua obra”. Por isso o autor presta, através deste texto, “uma homenagem de gratidão às comunidades cristãs de El Salvador, sobretudo às pessoas simples e pobres que as compõem, os autênticos destinatários de uma obra como a de Marcos que, com seu testemunho de fé e esperança e amor, me ensinaram a ler com novos olhos o Evangelho de Jesus, morto e ressuscitado por ter vivido, com toda a radicalidade, a solidariedade com os pobres, como testemunho do infinito amor do Pai”.
Segundo Alegre, Marcos escreveu sua obra para corrigir uma interpretação triunfalista da figura de Jesus, interpretação esta “apoiada no poder de fazer milagres que era próprio de Jesus” (p. 6). É então que Marcos “nos apresenta a figura de Jesus e da comunidade cristã com traços mais críticos em relação a determinadas representações triunfalistas da fé que esquecem o conflito histórico de Jesus com os poderes políticos e religiosos do seu tempo” (p. 3-4).
O autor vai demostrar sua tese a partir de dois pontos:
- a estrutura do evangelho, que deixa a descoberto a cegueira dos homens do tempo de Jesus, dominados que são pela ideologia dominante
- os retoques redacionais que Marcos realiza em suas fontes – “sobretudo no que diz respeito aos milagres e exorcismos e nos textos em que aparecem os discípulos de Jesus – e que têm como denominador comum o que os especialistas convencionaram chamar ‘o segredo messiânico’ e ‘a incompreensão dos discípulos’” (p. 6).
Alegre defende que Marcos quer fazer a comunidade cristã de ontem e de hoje entender que só se pode saber quem é Jesus quem o segue no caminho da cruz.
É uma leitura genial do evangelho, muito coerente, com um raciocínio bem estruturado e um enfoque bem situado. Poder-se-ia, a partir desta ótica, desenvolver o que o autor chama de “caminho da cruz”. O texto trata do aspecto negativo apenas – a correção da ideologia triunfalista – quando pode-se mostrar o caminho a ser seguido. Como, por exemplo, através das oposições do bloco 8,31-10,52: criança/adulto, último/primeiro, servir/dominar etc, onde se definem as práticas messiânica e eclesial.
MYERS, C. O evangelho de São Marcos. São Paulo: Paulinas, 1992, 581 p.
Um ativista da paz, Ched Myers estudou S. Escritura em Berkeley, Califórnia. O original deste comentário a Marcos foi publicado pela Orbis Books, Maryknol, New York, em 1988 e tem como título Binding the Strong Man. A Political Reading of Mark’s Story of Jesus (“Amarrando o homem forte. Leitura política da história de Jesus de Marcos”).
A obra compõe-se de quatro partes: a primeira trata do texto e do contexto sócio-histórico do evangelho de Marcos, a segunda e a terceira leem o texto e a quarta traz as conclusões do trabalho. Um posfácio e um apêndice consideram as várias leituras sociopolíticas atuais da narrativa de Jesus.
O autor adota o modelo centro-periferia, que ele (norte-americano, escrevendo do centro imperial) considera adequado tanto para a produção do texto de Marcos quanto para a sua leitura atual.
“O mundo mediterrâneo antigo era dominado pela lei da Roma imperial. No entanto, se eu leio situando-me no centro [USA], Marcos escreveu da periferia palestina [na Galileia, entre 66 e 70 d.C. quando Roma destruía a Palestina]. Seu principal auditório era constituído por aqueles cujas vidas diárias suportavam o peso explorador do colonialismo, ao passo que os meus ouvintes são os que se acham em posição que lhes possibilita usufruir os privilégios do colonizador” (p. 29).
Assim, citando Dorothee Sölle, o autor reflete: “Nós que nos achamos no centro (…) não temos outra opção senão a de ‘fazer teologia na casa do faraó’, ou seja, ficar do lado dos hebreus mesmo sendo cidadãos do Egito” (p. 30). Privilegiada, para ler Marcos, é a situação de quem se situa na periferia e pode enfocar adequadamente temas de libertação, como o fazem os teólogos latino-americanos, emenda o autor.
Deste modo, mesmo situado no centro, o autor defende uma leitura libertadora de Marcos, considerando a chave apocalíptica a mais adequada para a leitura do texto, a partir de sua definição dos escritos apocalípticos, tais como Daniel e Apocalipse, como “manifestos políticos de movimentos não-violentos de resistência à tirania”. “Meu comentário” acrescenta Myers “demonstra que o mesmo pode ser dito a propósito de Marcos” (p. 491).
Ched Myers procura extrair três fios narrativos ou subtramas do evangelho de Marcos. “A primeira subtrama envolve tentativas de Jesus para criar e consolidar uma comunidade messiânica, tendo como sujeito evidentemente seus discípulos. Seu mandamento a eles dirigido deve levar avante a obra do reino (…) A segunda subtrama é o ministério de Jesus de cura, de exorcismo e de proclamação da libertação, tendo como sujeito os pobres e oprimidos, encarnados pela ‘multidão’ no Evangelho. O mandamento aparece no primeiro exorcismo da sinagoga, em que a multidão reconhece que a autoridade de Jesus supera a dos supersenhores, os escribas (…) A terceira subtrama é o confronto de Jesus com a ordem sociosimbólica dominante, tendo como sujeito os defensores desta obra: os escribas, os fariseus, os herodianos e o clero dirigente de Jerusalém. Jesus confia seu mandamento a eles diversas vezes na primeira campanha de ação direta, afirmando sua autoridade sobre o sistema de pureza e de débito (2,10.28) e desafiando as autoridades a optarem pela justiça e pela compaixão em vez da dominação” (p. 158-159).
Estas três subtramas levam Jesus à prisão e execução, com a deserção dos discípulos, a decepção da multidão e a hostilidade das autoridades. Jesus segue sozinho o caminho da cruz. “Essa tragédia, porém, é revertida pela promessa de que, como Jesus vive, a aventura do discipulado pode continuar (16,6s)” (p. 158).
Deste modo, o evangelho de Marcos é visto como um manifesto escrito para súditos do poder imperial romano “aprenderem a dura verdade sobre o seu mundo e sobre eles mesmos”. Para Ched Myers o relato de Marcos “é história feita pelos comprometidos, que versa sobre os comprometidos e que se dirige aos comprometidos com a obra de Deus, obra de justiça , de compaixão e de libertação no mundo”.
Aos teólogos modernos Marcos não “oferece sinais do céu” (Mc 8,11-12), como não os oferecem aos fariseus; aos exegetas que recusam um compromisso ideológico Jesus não dá resposta alguma, como não a deu aos sumos sacerdotes (Mc 11,30-33)… “Mas aos que querem provocar a ira do império, Marcos apresenta uma forma de “discipulado (8,34ss)” (p. 34). Um discipulado radical.
VV. AA. Ele caminha à vossa frente. O seguimento de Jesus pelo evangelho de Marcos. Estudos Bíblicos, Petrópolis, n. 22, 1989, 93 p.
O número 22 da revista Estudos Bíblicos foi preparado pelos “biblistas mineiros”, grupo que periodicamente se reúne em Belo Horizonte para colaborar com esta publicação da Vozes, como o fazem outros grupos espalhados pelo país. À época, 1989, coordenado por Alberto Antoniazzi, este grupo optou pelo estudo do evangelho de Marcos, com especial atenção à pedagogia de Jesus. Cientes de que Jesus ensinou mais pela vida do que pelas palavras, demos atenção “à prática (ou práxis) de Jesus, assim como Marcos a apresenta, e ao modo com que o mesmo evangelista fez da vida de Jesus o roteiro da caminhada de seus discípulos; roteiro válido para nós hoje”, explica o editorial assinado por A. Antoniazzi.
Duas visões de conjunto do evangelho abrem este n. 22: Airton José da Silva oferece, no primeiro artigo, um roteiro para uma leitura de Marcos, acompanhado o próprio texto do evangelho e relendo “o contexto conflitivo em que foi escrito e o seu objetivo de preservar uma memória proibida, que alimentava a luta dos oprimidos” (p. 8); Walmor Oliveira de Azevedo, no segundo artigo, “procura revelar ‘a força pedagógica da articulação global do Evangelho de Marcos’”, mostrando “como a leitura do Evangelho provoca e exige o envolvimento do leitor num processo que lhe abre perspectivas de ação libertadora” (p. 8).
A seguir são propostos dois exemplos do seguimento de Jesus em Marcos através da análise de temas específicos. Alberto Antoniazzi lê Mc 4,1-14, o capítulo das parábolas, enquanto Airton José da Silva explora o significado dos milagres em Marcos, através da leitura de Mc 6,30-44, relato da multiplicação dos pães”.
Após estes quatro artigos, dois instrumentos de trabalho são oferecidos ao leitor: “Uma experiência popular com Marcos” de Paulo Sérgio Soares, “explica como um grupo pode aprender a usar (na sua comparação bem ao gosto do povo) o facão para tirar a água do coco, ou a mensagem da Bíblia” (p.8); e em “Apresentação de alguns estudos sobre Marcos”, Emanuel Messias de Oliveira apresenta nove livros sobre Marcos, com a intenção de ajudar o leitor interessado a prosseguir suas pesquisas sobre Marcos.
Como brinde aos leitores, José Luiz Gonzaga do Prado “apresenta uma leitura original do conhecido texto de Paulo, Fl 2,6-11, mostrando que a perspectiva do caminho, tão importante para entender Marcos, ilumina também o famoso texto paulino”, explica A. Antoniazzi no editorial.
Uma notícia sobre o Mês da Bíblia e duas recensões encerram este número de Estudos Bíblicos, que recomendo vivamente ao leitor como útil instrumento para que faça, ele mesmo, a “sua” leitura de Marcos.
BALANCIN, E. M. Como ler o evangelho de Marcos. Quem é Jesus? 2. ed. São Paulo: Paulus, 1991, 183 p.
Este texto de Euclides Martins Balancin reutiliza o material pensado e apresentado para círculos bíblicos no semanário Bíblia-Gente e faz parte da coleção de sucesso da Paulus “Como ler a Bíblia”. Coleção que pretende ser “uma chave de leitura, uma espécie de lanterna que nos ajuda a focalizar e a enxergar, no seu conjunto, um ou mais livros bíblicos (…) e estimula a ler os textos com os pés no chão da existência, jamais perdendo de vista os anseios de vida e liberdade do nosso povo”, explica a editora na p. 5.
Lendo o primeiro versículo de Marcos (“Começo da Boa Notícia de Jesus, o Messias, o Filho de Deus”) Balancin nos explica que “todo o livro de Marcos é caracterizado como um simples começo” (p. 10): lendo Marcos, acompanhamos Jesus saindo de Nazaré da Galileia para ser batizado por João na Judeia e retornando à Galileia após a prisão deste. Na Galileia Jesus realiza suas ações, faz a caminhada com seus discípulos até Jerusalém, onde entra em choque com as autoridades judaicas, é crucificado e, após a ressurreição, promete encontrar-se com os discípulos na Galileia.
Segundo Balancin, “desse modo, o evangelista nos ensina que aquilo que Jesus realizou é apenas o início da atividade que seus discípulos deverão continuar em todos os tempos e lugares, a fim de trazer o Reino de Deus para dentro da humanidade e da história. Fazendo isso, os seguidores de Jesus têm certeza de sua presença viva e contínua no meio deles (p. 11).
Acontece que Marcos diz também ser o seu escrito uma Boa Notícia, um Evangelho. Mas Marcos nos mostra mais o que Jesus faz do que o seu ensinamento. “Com isso, ficamos sabendo que o grande ensinamento de Jesus é sua prática e que sua palavra é nova porque é sempre acompanhada por sua ação” (p. 12). Só que este conceito “evangelho” era aplicado, na época, ao César romano, cuja subida ao poder era divulgada como boa notícia. “Ao proclamar Jesus Filho de Deus, Marcos está dando a “Boa Notícia que constitui um desafio à organização da propaganda imperial dos romanos” (p. 13).
E mais: Marcos diz que Jesus é o Messias (o Cristo) em um momento em que havia muitas e diferentes ideias a respeito de quem seria o Messias, de onde ele viria e qual seria a sua missão. Marcos vai, ao longo de seu texto, explicar porque Jesus é o Messias. Assim, diz Balancin, Marcos “vai mostrar que a prática de Jesus entra em conflito com aquilo que muitos esperavam de um messias”, posicionando-se “na luta ideológica sobre o modo de entender adequadamente o Messias” (p. 13).
A partir deste ótica, sintetizada no primeiro versículo ou título do evangelho, é que Balancin lê Marcos. Para ele, este título nos coloca diante de grandes desafios, elencados na p. 14:
- “se quisermos ser discípulos de Jesus Ressuscitado, precisamos ser continuadores de sua prática;
- desmascarar os falsos messias que são criados pela propaganda e se apresentam como salvadores;
- desmistificar os ‘homens divinos’ que sustentam um ‘reino’ que explora e oprime;
- discernir entre a Boa Notícia e as outras notícias que são apresentadas como boas”.
CNBB Caminhamos na estrada de Jesus. O evangelho de Marcos. 2. ed. São Paulo: Paulinas, 1996, 128 p.
O Secretário Geral da CNBB, Dom Raymundo Damasceno Assis, nos explica na apresentação deste livro, às p. 5-8, terem os bispos brasileiros determinado que o tema central da preparação do grande Jubileu em 1997 – Jesus Cristo e a fé – “seja assumido, refletido e vivenciado principalmente a partir do evangelho de Marcos, lido aos domingos neste ano litúrgico.
Como está previsto no Projeto de Evangelização “Rumo ao Novo Milênio”, este subsídio “é uma introdução à leitura do evangelho de Marcos que destaca a figura de Jesus e os passos que todo discípulo – de ontem ou de hoje – deve dar para seguir o caminho de Jesus, ou seja, para viver sua fé” (p. 5).
Acrescenta Dom Raymundo Damasceno, na página 6, que o objetivo desse subsídio “é levar os leitores e suas comunidades a aprofundar a fé em Jesus, a renovar a adesão pessoal a Ele, a firmar o compromisso de segui-lo nos caminhos da vida. Marcos nos convida a refazer hoje os passos que Jesus faz na busca da vontade do Pai, desde a Galileia até Jerusalém, lugar da cruz e ressurreição”.
Caminhamos na estrada de Jesus, fruto do trabalho de uma equipe que assessorou a CNBB, é destinado aos animadores de círculos bíblicos e de grupos de reflexão, bem como aos padres e agentes de pastoral que deverão comentar este evangelho nas celebrações dominicais.
Já na Introdução (p. 9-11), o autor do livro explica que seu título é tirado da oração eucarística V, quando, após a consagração repetimos: “Caminhamos na Estrada de Jesus”, nos comprometendo, mais uma vez, com a Boa Nova de Jesus. Marcos nos oferece, em seu evangelho, o mapa e o roteiro desta Estrada. São 9 capítulos: o 10 é de introdução, o 80 “fala da importância da fé para quem assume caminhar na Estrada de Jesus”, o 90 “fala da terra e do povo por onde passa a Estrada de Jesus”, enquanto que “nos capítulos 2 a 7 percorremos as várias etapas deste caminho, desde o lago na Galileia até o Calvário em Jerusalém” (p. 9).
No capítulo primeiro o autor nos apresenta, de início, uma série de problemas que marcavam a vida das comunidades cristãs por volta do ano 70 – data em que Marcos escreve (p. 17). Os principais problemas seriam: a ameaça constante de perseguição dos cristãos por parte do Império Romano; a rebelião dos judeus da Palestina contra a invasão romana e a atitude dos cristãos que estavam sem saber se deviam entrar ou não nesta luta; como entender que um crucificado, considerado como “maldito de Deus”, poderia ser o Messias, e, ainda, como organizar adequadamente uma comunidade cristã…
E explica: “No meio de tantas preocupações, a preocupação maior continuava sempre a mesma: ‘Como ser discípulo ou discípula de Jesus no meio desta situação tão complicada e tão difícil?’ Esta ainda é a pergunta que, até hoje, nos leva a abrir os evangelhos e que, em toda parte, suscita grupos que se reúnem em torno da Palavra de Deus” (p. 20).
E mais adiante (p. 24) o autor nos esclarece que Marcos não quer apenas nos informar sobre o que Jesus fez no passado, “mas também quer que você se identifique com os discípulos de Jesus e se envolva com os problemas deles, sinta o entusiasmo deles e viva a crise que eles viveram. Que percorra o caminho que aqueles primeiros discípulos percorreram junto com Jesus, desde a Galileia até Jerusalém. E fazendo assim, que você elimine de dentro de si ‘o fermento dos fariseus e dos herodianos’ (Mc 8,15) e se torne melhor discípulo ou discípula de Jesus”.
A caminhada dos discípulos e das discípulas de Jesus no evangelho de Marcos é feita em quatro etapas:
1) Mc 1,16-6,13 : o entusiasmo no início da caminhada com Jesus
2) Mc 1,35-8,21 : o mistério da pessoa de Jesus aparece. Nos discípulos surge a crise do não entender
3) Mc 8,22-13,37: a cegueira causada pela luz escura da Cruz é combatida pela instrução de Jesus
4) Mc 14,1-16,8: o fracasso final é apelo para recomeçar tudo de novo.
Para terminar: “São estes os quatro passos da caminhada com Jesus. Eles indicam o roteiro que vamos seguir neste livrinho. Vamos olhar nele, como se fosse um espelho, onde vemos refletida nossa própria vida. Foi pensando na vida das comunidades, que Marcos recolheu e arrumou as palavras e gestos de Jesus” (p. 27-28).
Este artigo foi publicado em Cadernos do Cearp, Ribeirão Preto, n. 7, p. 44-57, 1997. Está disponível também no Observatório Bíblico, publicado em 12.02.2015.
Nota: O artigo foi escrito em 1997. Para textos mais recentes, confira aqui.
Última atualização: 07.08.2020 – 12h44