Por que milagres? O caso dos pães em Marcos

Por que milagres? O caso da multiplicação do pães. Estudos Bíblicos, Petrópolis, n. 22, p. 43-53, 1989.*

Hoje, quando ouvimos dizer que aconteceu um milagre, o que pensamos? Pensamos logo na excepcionalidade do fato, no extraordinário da ocorrência, no impossível que se tornou possível por alguma força estranha, um mecanismo oculto, além da nossa compreensão, um poder sobrenatural que, por alguma razão, se manifestou. Ou duvidamos da coisa toda.

Nesta costumeira definição de milagre pode o leitor observar que o ponto de referência é a violação do modo natural das coisas acontecerem. Pois o milagre é visto como algo acima ou contra as leis que regem o mundo e as nossas vidas. As oposições em jogo esclarecem o raciocínio: excepcional x normal, extraordinário x ordinário, impossível x possível, estranho x comum, oculto x conhecido, sobrenatural x natural.1

Para as pessoas que professam alguma crença religiosa, o milagre, estando do lado do sobrenatural, está do lado de Deus ou dos seus intermediários, em oposição ao  mundo natural dos homens. É visto, neste caso, como uma intervenção divina vinda de fora, alterando a ordem natural dos acontecimentos.

E na Bíblia? Será essa a noção de milagre? Será que a visão corrente de mundo na época de Jesus, por exemplo, coincide com a de hoje? Por que será que naquele tempo havia tanto milagre e hoje não? O que é milagre na Bíblia?

O desafio que lanço ao leitor é o seguinte: lermos juntos o milagre da multiplicação dos pães, de Mc 6,30-44, para entendermos o texto e, talvez, respondermos a algumas destas perguntas.

Para isto, creio que devemos fazer cinco coisas:

1. A primeira é uma leitura de Mc 6,30-44. Mas não aquela leitura mal acostumada, onde vemos tudo o que está em nossa cabeça, mas não se enxerga uma linha do próprio texto. E é preciso ler mais de uma vez. Já disse R. Barthes, um especialista no assunto: “Aqueles que não releem são obrigados a ler sempre e em todos os textos a mesma história”.2

2. Em seguida leremos mais cinco textos, onde aparecem os outros relatos da multiplicação dos pães. No próprio Marcos e nos outros evangelhos. Aí, já estaremos com muitos elementos para abordarmos o texto pela comparação dos vários modos de contar de cada evangelista.

3. Agora é a hora certa de se perguntar a Marcos por que ele contou este episódio neste lugar do Evangelho e não em outro. Afastando-nos um pouco e olhando de longe, verificaremos o plano geral do Evangelho de Marcos e o contexto em que está o milagre em questão.

4. Por falar em milagre, é bem possível que houvesse naquele tempo uma maneira costumeira de contar um fato desse tipo, diferente, por exemplo, do modo de contá-lo hoje em dia. Ver isso pode ser nossa quarta tarefa.

5. Mas agora não podemos mais parar. É preciso perguntar imediatamente: o que se esconde por trás deste modo de contar? Ou, qual é o recado que Marcos quer dar à sua comunidade e ao seu leitor?

Só então é que talvez possamos descobrir o sentido do texto para nós, leitores a quase dois mil anos de distância. Vamos lá?

O artigo tem os seguintes itens:

  1. Qual é o assunto do texto?
  2. Os outros relatos de multiplicação dos pães
  3. Quem é Jesus?
  4. Jesus fez mesmo o milagre?
  5. O recado de Marcos

Notas:
* Uma primeira versão deste texto foi publicada em Vida Pastoral, São Paulo, n. 120, p. 2-8, 1985. Veja o artigo, na íntegra, aqui. Esta versão na Estudos Bíblicos amplia a da Vida Pastoral.

1. WEISER, A. O que é milagre na Bíblia: Para você entender os relatos dos Evangelhos. São Paulo: Paulinas, 1978, p. 12-13, resume muito bem este aspecto, quando diz: “A característica básica a partir da qual se designa alguma coisa por milagre é o elemento excepcionalidade. Mas as opiniões divergem quando se trata de definir em que consiste esta excepcionalidade: para alguns basta somente que o fato aconteça de modo inesperado, enquanto para outros o grau de excepcionalidade exigido para que haja milagres só se verifica quando o fato não pode ser explicado pela ciência. O que se observa, portanto, em primeiro plano, é que se toma a lei natural de modo mais ou menos consciente como ponto de referência”

2. BARTHES, R. S/Z. Torino: Einaudi, 1973, p. 20.

O artigo tem 15 notas de rodapé.

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