O Codex Amiatinus 2

O Codex Amiatinus 1
O Codex Amiatinus 2
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O Codex Amiatinus 4
O Codex Amiatinus 5

 

Uma Bíblia Vulgata é levada para Roma

Uma nova Bíblia Vulgata para cada igreja, a de Wearmouth e a de Jarrow, é um fato compreensível, conquanto impressionante, mas uma terceira cópia? Quanto a isso só podemos especular.

Talvez houvesse planos que nunca se materializaram para a criação de uma terceira casa nortumbriana, tão distinta e tão indivisível quanto a Trindade (conceito do qualCodex Amiatinus - Biblioteca Medicea Laurenziana, Firenze, Italia eles gostariam); ou talvez — e ele não seria o único no que concerne a isso — Ceolfrido se perguntasse secretamente se sua carreira não o levaria ainda mais longe, talvez como arcebispo da Cantuária com a morte de Teodoro, ou mesmo como papa, e talvez guardasse um volume de reserva para qualquer promoção que lhe fosse oferecida em outro lugar.

Mas o anônimo Vita Ceolfridi e Beda nos contam o que aconteceu depois. Com a avançada idade de 74 anos, Ceolfrido decidiu ir de novo a Roma e levar consigo a terceira pandecta, a reserva, como um presente para São Pedro, o príncipe dos apóstolos. (Era comum a prática medieval de se referir a uma igreja com o nome de seu santo padroeiro, como se ainda estivesse vivo: isso significava, é claro, a corte papal.) A implicação é que esse anúncio veio como uma surpresa para a comunidade de Wearmouth-Jarrow.

Não sabemos qual foi seu motivo, não mais do que sabia Beda. Será que Ceolfrido ainda esperava, em seu íntimo, uma nomeação em Roma, caso em que poderia precisar da Bíblia para facilitar as negociações? O papa Constantino tinha morrido em 9 de abril de 715, e provavelmente a decisão de viajar foi tomada por Ceolfrido mais ou menos quando a notícia chegou à Inglaterra. Ou teria havido em 679 algum tácito entendimento de que ele podia levar livros de Roma para a Nortúmbria em troca de transcrições posteriores? Ambas as hipóteses são possíveis.

A Vita Ceolfridi registra as palavras exatas de uma inscrição que foi inserida no início do tomo, dedicatória a São Pedro da parte de Ceolfrido, abade dos ingleses dos mais distantes confins da Terra (“extremis de finibus”).

Portanto, em junho de 716, como nos diz o relato, essa terceira pandecta, convenientemente já com a dedicatória, foi levada declive abaixo, da igreja de Jarrow para um navio no rio Don, para o Tyne e para o mar, acompanhada de Ceolfrido e um séquito de monges. Foi a primeira exportação documentada de uma obra de arte da Inglaterra.

Mas para nossa lástima, Ceolfrido morreu durante a viagem, em Langres, França central, em setembro, e isso, por mais de mil anos, representou o fim da história.

 

O Codex Amiatinus na abadia de San Salvatore

Há um famoso manuscrito antigo da Bíblia na Itália conhecido como Codex Amiatinus. Era um antigo tesouro do mosteiro de San Salvatore, no monte Amiata, no sul da Toscana, de onde tirou seu nome. Está registrado na lista das relíquias da abadia, datada de 1036, que o descreve como sendo o Antigo e o Novo Testamento “escritos pela mão do abençoado papa Gregório”. Essa atribuição a são Gregório, o Grande (c. 540-604), não era desarrazoada, uma vez que fora escrito em unciais italianizadas, muito parecidas com as do Livro dos Evangelhos de Santo Agostinho, e nunca se duvidou de que tinha sido feito na Itália.

Ele abre com uma dedicatória de página inteira, na qual o livro é presenteado ao mosteiro do Salvador (Salvator) por um certo Pedro, abade dos lombardos, “dos mais distantes confins da Terra”. Mesmo hoje em dia, os toscanos consideram todos os lombardos pessoas de um reino alienígena que fica além das mais afastadas fronteiras da civilização (e vice-versa), e essa inscrição de redação estranha foi aceita com satisfação em San Salvatore em seu valor nominal.

O livro é o mais antigo manuscrito completo sobrevivente da Vulgata e ainda é a principal referência para o estabelecimento do texto da Bíblia latina.

Constantin Tischendorf editou o texto em latim do Novo Testamento no Codex Amiatinus em 1854. Ele anunciou que tinha havido pequenas alterações na dedicatória inserida, e que os nomes de Pedro, abade dos lombardos, e do mosteiro ao qual era dedicado pareciam ter sido escritos cobrindo rasuras.

Trinta anos depois, o epigrafista Giovanni Battista de Rossi (1822-94) por fim decifrou os nomes que estavam por trás e revelou que o manuscrito tinha sido originalmente dedicado a São Pedro por um chamado Ceolfrido, “abade dos ingleses”.

Logo depois, um professor de teologia em Cambridge, F. J. A. Hort (1828-92), relembrou que essas palavras batiam com a transcrição na Vita Ceolfridi e se constatou pela primeira vez que devia ser na realidade a pandecta de Wearmouth-Jarrow, da qual se perdera a pista desde que deixara a Nortúmbria, em 716.

Quando estourou a notícia, em fevereiro de 1887, ela causou sensação, especialmente na Grã-Bretanha. Foi uma década excitante de descobertas bíblicas no Oriente Médio e em Oxirrinco, no Egito, mas poucos anúncios tinham sido tão inesperados quanto a revelação de que a mais antiga cópia completa da Bíblia latina fora na verdade feita na Inglaterra.

Em 1890, H. J. White, mais tarde deão da Igreja de Cristo, em Oxford, disse, com um toque de exagero patriótico, que ela era “talvez o mais belo livro no mundo”.

 

A abadia de San Salvatore

O mosteiro de San Salvatore não fica no cume, mas num platô na encosta leste do monte Amiata, na Toscana, Itália. Em torno dele há uma cidade medieval, e o conjunto é conhecido como Abadia de San Salvatore, pois se desenvolveu como um adjunto à vida do mosteiro, o qual ele cerca e protege.

A história documentada da abadia remonta a 742. Ela se incorporou à Ordem Cisterciense em 1228. Consta que Carlos Magno esteve aqui em 800, em seu caminho em direção ao sul para sua coroação como imperador em Roma. O papa Pio II — Enea Silvio Piccolomini, o erudito humanista — morou aqui durante os meses de verão de 1462. É bem possível que o precioso códex tenha sido mostrado ao imperador e, com certeza, ao papa.

Como o manuscrito era (e ainda é) a referência primordial para o texto em latim da Vulgata, ele assumiu grande importância durante a Contrarreforma. Os assediados católicos do século XVI sentiam-se ameaçados pelas traduções protestantes da Bíblia, que agora eram feitas diretamente das línguas originais das Escrituras, enquanto eles só tinham os textos em latim. O Codex Amiatinus, no entanto, dava a isso uma resposta, ao que parecia, incontestável. Essa “Bíblia de são Gregório” em latim, reputada como do século VI, era substancialmente mais antiga do que qualquer manuscrito em hebraico conhecido e na época só era igualada por um em grego (no Vaticano). Era, portanto, uma grande peça de propaganda na batalha pela precedência de texto.

Em 1572, o capítulo geral dos cistercienses mandou buscá-lo, para consulta; o mesmo fizeram os conselheiros de Gregório XIII. O mosteiro recusou-se a emprestá-lo.

Mais tarde ele foi sumariamente requisitado pelo papa Sisto V, para ser usado como principal fonte na preparação de uma nova edição papal da Bíblia, e o mosteiro não teve escolha. O livro foi para Roma em 12 de julho de 1587 e foi devolvido a San Salvatore em 19 de janeiro de 1590. A Vulgata sistina, nele baseada, foi publicada em 1590 e depois revista como a monumental edição clementina de 1592, a resposta católica a Lutero; é publicada até hoje.

Assim como muitos mosteiros italianos atingidos pela política secular de modernização do Sacro Império Romano no final do século XVIII, a Abadia de San Salvatore foi extinta por completo em junho de 1782.

O Codex Amiatinus na Biblioteca Medicea Laurenziana, em Florença

A existência do Codex Amiatinus foi informada em 1789 ao grão-duque da Toscana, Pedro Leopoldo (1747-92, mais tarde imperador Leopoldo II), como tendo estado “entre as sombras e sob o pó, desconhecido como que perdido”. Ele ordenou que fosse levado do monte Amiata para Florença, primeiro sob a custódia de um seminário, e logo depois para a Biblioteca Laurenziana, onde está agora como Cod. Amiat. 1, provavelmente o mais famoso manuscrito da biblioteca.

A Biblioteca Laurenziana está entre as glórias arquitetônicas e literárias de Florença, uma das mais extasiantes cidades do mundo. Seu cerne é o acervo humanista a princípio reunido por Cosimo de’ Medici, “il Vecchio” (1389-1464), que foi suplementado sobretudo com as aquisições de seu neto Lorenzo, “o Magnífico” (1449-92).

Após a morte de Lorenzo os livros foram saqueados, vendidos e readquiridos pelos Medici, que agora viviam em Roma. Posteriormente as coleções foram devolvidas a Florença por Clemente VII (Giulio di Giuliano de’ Medici, 1478-1534), que encomendou ao próprio Michelangelo o projeto de uma biblioteca nobre para eles acima do claustro da basílica de San Lorenzo, a igreja da família Medici desde 1419. Foi completada em 1571 por Cosimo I de’ Medici (1519-74), grão-duque da Toscana e parente não consanguíneo do papa, e tinha então cerca de 3 mil manuscritos. Ela ainda mantinha algo do caráter de uma biblioteca dinástica quando o grão-duque Pedro Leopoldo ordenou que o Amiatinus fosse levado para lá do extremis finibus de seu ducado, na década de 1780.

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