O Codex Amiatinus 1

No começo deste ano li um livro de Christopher De Hamel, Manuscritos Notáveis. Fiquei impressionado.

Estava procurando mais informações sobre manuscritos da Vulgata. O capítulo 2 trata do Codex Amiatinus, considerado o manuscrito mais bem preservado da versão latina da Bíblia feita por Jerônimo, conhecida como Vulgata. DE HAMEL, C. Manuscritos notáveis. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, 680 p.

Publiquei no Observatório Bíblico, em 02.02.2024, um post sobre o Codex Amiatinus. Entre as obras indicadas está o livro de Christopher De Hamel. E um link para um resumo que fiz do capítulo 2.

Agora decidi colocar aqui em 5 posts o resumo, ali disponível em pdf, mas pouco visível.

O livro é: DE HAMEL, C. Manuscritos notáveis. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, 680 p. – ISBN ‎ 9788535929867. Em inglês é: Meetings with Remarkable Manuscripts: Twelve Journeys Into the Medieval World. New York: Penguin Press, 2017.

 

O Codex Amiatinus 1
O Codex Amiatinus 2
O Codex Amiatinus 3
O Codex Amiatinus 4
O Codex Amiatinus 5

 

Os mosteiros de Wearmouth-Jarrow e o abade Bento Biscop

Da Inglaterra do século VII, muito pouca coisa restou sobre o solo. Vestígios da arquitetura do período ainda podem ser vistos na extremidade oeste da igreja paroquial de São Pedro em Monk Wearmouth, no moderno condado de Tyne and Wear, extremo nordeste da Inglaterra, onde era a antiga Nortúmbria.

Há claras marcações no gramado ao sul da igreja indicando o perímetro de escavações arqueológicas recentes, mas é preciso muita imaginação para conceber isso como uma paisagem selvagem da Idade das Trevas, perto de onde o grande rio Wear desemboca no mar do Norte (nenhum dos quais se avista hoje da igreja), num terreno ofertado em 674 por Egfrido, rei da Nortúmbria, para a fundação de um grande mosteiro no modelo dos da Roma clássica tardia.

O primeiro abade e fundador dessa nova abadia do norte foi Bento Biscop (c. 628-90), um nobre local que visitou Roma nada menos que cinco vezes em sua vida. Essas experiências tiveram claramente um enorme impacto em sua percepção cultural. Ele decidiu tornar-se um monge. Em sua terceira viagem, em 669, acompanhou na volta à Inglaterra o sétimo arcebispo da Cantuária, na sucessão a Santo Agostinho, Teodoro de Tarso (602-90), a quem se credita ter instituído o ensino de grego no sul da Inglaterra. Em troca, Teodoro nomeou Bento abade efetivo do mosteiro vizinho na Cantuária, depois conhecido como Abadia de Santo Agostinho.

Quando, vários anos depois, em 674, o rei Egfrido ofereceu o terreno à margem do Wear para um mosteiro, Bento foi o candidato óbvio a ser enviado de volta à Nortúmbria. Conhecemos os detalhes disso a partir das incomparáveis histórias de Beda (c. 672-735), gênio preeminente entre os escritores anglo-saxões.

 

Bento Biscop e Ceolfrido em Roma e as Bíblias levadas para a Nortúmbria

Após estabelecer a nova casa em Wearmouth, Bento viajou de novo para Roma em 679, acompanhado pelo jovem monge Ceolfrido (c. 642-716). Os dois viajantes compraram lá, ou de algum modo obtiveram, “uma imensurável quantidade de livros de todos os tipos”, como expressou Beda, fato que terá destaque na história que se segue. Beda, que conhecia os dois, deixa implícito que foi Ceolfrido e não Bento quem adquiriu em Roma o texto da nova tradução da Bíblia (isto é, a Vulgata de Jerônimo) em três manuscritos, junto com uma vasta pandecta — ou seja, um volume abrangente — da Bíblia inteira, descrita como uma “antiga” versão das Escrituras. Esses e outros livros, bem como relíquias e objetos sacros, foram todos enviados e vieram junto com Bento e Ceolfrido para Wearmouth.

Os monges ingleses também cooptaram pessoas em Roma, inclusive um chantre chamado João, que veio para ensinar a prática de canto romana, e provavelmente artífices praticantes. As informações para visitantes no exterior da igreja em Monk Wearmouth hoje registram como as escavações no sítio revelaram vestígios de vidro e argamassa romana, técnicas que não eram conhecidas no norte da Europa naquele tempo.

Christopher De Hamel (1950-)Os livros trazidos de Roma, muito valorizados na época de Beda, há muito desapareceram, exceto (talvez) um pequeno fragmento italiano do século VI, tradução feita por Jerônimo do livro dos Macabeus para o latim, que sobreviveu por sorte, ao ser reutilizado como folha de guarda num manuscrito medieval na biblioteca da Catedral de Durham.

Em 682, o rei Egfrido deu aos monges mais terras, em Jarrow, cerca de onze quilômetros a noroeste, próximo da foz de outro grande rio nortumbriano, o Tyne. Os monges decidiram construir uma segunda igreja. O abade Bento Biscop confiou essa tarefa a Ceolfrido, que se mudou para o novo local com vinte membros do mosteiro, inclusive Beda, que era então adolescente e um monge iniciante.

Os dois estabelecimentos eram tidos como uma só comunidade, a uma distância um do outro que se podia percorrer a pé. Historiadores modernos referem-se comumente aos mosteiros gêmeos como “Wearmouth-Jarrow”, como se fossem um único local, e é costumeiro se referirem “à biblioteca” ou “ao scriptorium” de Wearmouth-Jarrow como sendo entidades indistinguíveis. Wearmouth foi dedicada a São Pedro, e Jarrow a São Paulo, os patronos conjuntos da Roma cristã.

É provável que Ceolfrido tenha transferido para Jarrow os manuscritos que ele mesmo tinha adquirido em Roma, já que Beda, claramente, continuou tendo acesso a eles, mas assim mesmo continuaram a ser propriedade conjunta de ambas as igrejas. Em 686 Ceolfrido foi nomeado abade das duas casas, e continuou a viver em Jarrow por mais trinta anos.

 

Ceolfrido encomenda três Bíblias completas

Há dois relatos do início do século VIII relacionados com a cópia de mais manuscritos bíblicos sob o patrocínio de Ceolfrido. Tendo em vista a raridade de quaisquer referências documentais à produção anglo-saxã de livros, eles merecem ser examinados com cuidado.

O primeiro refere-se a uma biografia anônima de Ceolfrido, decerto escrita por um de seus monges. Ele registra que Ceolfrido enriqueceu muito o acervo da igreja em Jarrow e que aumentou consideravelmente a coleção de livros que ele e Bento Biscop tinham trazido de Roma. O autor explica que Ceolfrido encomendou mais três Bíblias completas (ou pandectas), das quais uma foi deixada em cada igreja dos mosteiros gêmeos, de modo que quem quer que desejasse ler uma passagem de qualquer um dos testamentos poderia fazê-lo sem dificuldade. Não consta uma data certa para eles, exceto que aconteceram durante o abadado de Ceolfrido, mas esses manuscritos provavelmente tiveram início nas últimas décadas do século VII, e o trabalho deve ter continuado no início do século VIII.

Beda, que sem dúvida estava muito familiarizado com a cópia exibida na igreja de Jarrow, faz um ligeiro complemento desse relato em sua Historia abbatum. Ele descreve como Ceolfrido trouxe uma pandecta de uma “antiga” tradução da Bíblia de Roma e depois ampliou esse benefício fazendo mais três cópias dela, mas com um “novo” texto em vez do primeiro. Essa última observação é de importância. É característico de Beda ter noticiado e registrado qual tradução estava sendo usada. Os escribas sob a direção de Ceolfrido modelavam suas cópias no formato da grande pandecta que tinham recebido da Itália, mas agora eles substituíram o texto para que fosse o da mais moderna Vulgata de Jerônimo. Esse fato vai se tornar significativo na história.

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