O Codex Amiatinus 1
O Codex Amiatinus 2
O Codex Amiatinus 3
O Codex Amiatinus 4
O Codex Amiatinus 5
Características do Codex Amiatinus
Da mesma forma que Amiata é uma grande montanha, não há como negar que o Codex Amiatinus é um colosso. Ele tem uma espessura quase inimaginável. Cada página tem uns cinquenta centímetros de altura, mas a lombada — tente imaginar isso — tem cerca de trinta centímetros de espessura. O livro vai afinando ligeiramente até a borda lateral.
O manuscrito está encadernado numa capa muito moderna de couro de bezerro cor de bronze aplicado sobre madeira, com tiras de couro penduradas na borda inferior, costuradas com fio amarelo e dotadas de fechos modernos de latão que se encaixam em pinos de metal afixados na borda superior da capa. Francamente, ele parece uma grande e cara maleta de couro italiana.
São mais de 34 quilos, ou, com a encadernação, acessórios, caixa para transporte, uma estimativa de mais de quarenta quilos.
As primeiras oito folhas são ligeiramente menores que as do resto do livro e pródigas em ornamentos.
Há aquela preciosa inscrição dedicatória, embaixo de um arco, no verso da primeira folha, com os nomes que substituíram os anteriores bem aparentes numa tinta de um marrom muito mais escuro, e nem de longe tão bem executados quanto a escrita que não foi alterada.
Na página adjacente está o soberbo e famoso retrato de Esdras, a mais antiga pintura inglesa à qual se pode atribuir qualquer data absoluta (isto é, não posterior a 716).
A maior parte do restante do enorme manuscrito, mais de 2 mil páginas, é formada por um texto austero, mas elegante, em duas colunas, geralmente com ornamentação insignificante.
Impressiona o espantoso frescor de seu estado. A maioria dos manuscritos antigos traz a marca do uso de muitos diferentes períodos, leitores, anotações em várias escritas, emendas e sinais de consultas e referências durante séculos. Afora algumas correções contemporâneas e marcações litúrgicas, provavelmente oriundas do scriptorium original na Nortúmbria, o manuscrito quase não apresenta sinais de uso. É como se tivesse sido embrulhado e jamais aberto. Talvez tenha ocorrido exatamente isso, caso os monges em San Salvatore o tenham considerado antes uma relíquia sagrada de são Gregório do que um livro de uso prático.
Os Salmos agora estão numerados numa caligrafia pós-medieval e há uma numeração discreta dos capítulos de acordo com o sistema moderno, e para mim é fácil acreditar que isso date possivelmente da época do exílio do manuscrito nos escritórios dos editores da Vulgata, em Roma, entre 1587 e 1590.
O manuscrito é construído em sua maior parte de cadernos com oito folhas cada um. Em certo momento, os estudiosos do Amiatinus especularam que seu exótico caderno preliminar poderia ter sido transferido de outro manuscrito, talvez de origem italiana, por ser tão diferente do resto do volume ou de qualquer coisa que se conhecesse em qualquer outra Bíblia medieval existente. Duas das folhas são tingidas de púrpura e uma de amarelo, típicas técnicas clássicas. No entanto, hoje se aceita em todo o mundo que essas páginas são componentes integrais, se bem que muito incomuns, do volume, feitas pelos mesmos escribas e iluminadores ingleses, usando os mesmos pigmentos da figura de Cristo em Majestade, no Novo Testamento, fólio 796v, a qual é parte inquestionável do livro, como demonstra seu alceamento.
A biblioteca de Cassiodoro na Vivarium
A presença dessas páginas de abertura nos leva a um outro nível de extraordinária coincidência com aquele relato segundo o qual Bento Biscop e Ceolfrido obtiveram uma “imensurável quantidade de livros” em sua visita à Itália em 679. Isso envolve uma biblioteca de livros que tinham sido reunidos por Cassiodoro (c. 485-580), cônsul na fase final do Império Romano, filósofo e autor prolífico, convertido ao cristianismo e figura gigantesca na história da erudição bíblica.
Quando se retirou de cena, Cassiodoro estabeleceu uma espécie de fundação de pesquisa monástica na Calábria, extremo sudeste da Itália, chamada Vivarium à qual ele doou sua biblioteca particular.
Além disso, nas Institutiones, seu compêndio sobre estudo teológico e secular, Cassiodoro não apenas explicou seu método para subdivisão e interpretação da Bíblia como também descreveu em detalhes como tinha incorporado esse seu sistema bíblico único a alguns de seus próprios manuscritos.
Os detalhes apresentados correspondem com tamanha exatidão ao material existente nessas primeiras folhas do Codex Amiatinus que parece ser inescapável a explicação de que são cópias diretas, e de que de algum modo naquela “imensurável quantidade de livros” obtidos em Roma deviam estar incluídos alguns dos manuscritos do próprio Cassiodoro, antes na Vivarium, agora de volta ao mercado.
Como acontece com muita frequência com bibliotecas pobremente dotadas, a Vivarium não conseguiu sobreviver muito tempo após a morte de seu fundador, e seus livros, com acerto, foram dispersos ou vendidos.
Se alguns (pelo menos) foram depois comprados por Ceolfrido, eles estariam por sua vez disponíveis como exemplos para os escribas de Wearmouth-Jarrow, na Nortúmbria. Beda, cujo conhecimento dos estudos clássicos era assombrosamente vasto, talvez tenha tido a sorte de ter acesso às aquisições feitas de uma das mais qualificadas coleções privadas de livros do final do Império Romano, e pode nem mesmo ter se dado conta de que os manuscritos em Jarrow já tinham sido do grande Cassiodoro em pessoa.
Cassiodoro e o Codex Grandior
Em suas Institutiones, Cassiodoro afirma possuir uma enorme pandecta com uma tradução latina da Bíblia, que ele chamou de seu “Codex Grandior”, “o manuscrito maior”. Seu texto do Antigo Testamento, ele diz, foi tirado da primeira revisão do grego por Jerônimo, e não da versão posterior da Vulgata mais recentemente traduzida do hebraico. Supõe-se que compreendia 380 folhas.
Considerando a extrema raridade, na época, de quaisquer versões abrangentes da Bíblia em um só volume em latim, esse manuscrito muito provavelmente não era outro senão aquela mesma pandecta de uma “antiga” tradução que fora trazida da Itália por Ceolfrido.
O Codex Grandior e o Codex Amiatinus
Cassiodoro diz que tinha inserido em seu Codex Grandior um diagrama com a planta do Templo de Jerusalém, conforme descrita em Êxodo 26. Um esboço exatamente com esses detalhes aparece numa página dupla entre as folhas de abertura do Codex Amiatinus (fólios 6v-7r). Mostra o interior do templo, o próprio Tabernáculo. No centro está o Santo dos Santos, com a Arca da Aliança. Mais adiante Cassiodoro relata (tudo isso está no livro I, capítulo 14, das Institutiones) que ele também incluíra no Codex Grandior diagramas com diferentes maneiras de dividir o texto da Bíblia de acordo com os santos Hilário, Jerônimo e Agostinho, respectivamente. É exatamente isso que encontramos nos fólios 3r, 4r e 8r de Amiatinus.
A mais famosa e estranha das páginas preliminares é o assim chamado retrato de Esdras, já mencionado, agora posto no frontispício. Ele mostra um homem aureolado em vestimentas sacerdotais judaicas sentado num banquinho, encurvado, quase de perfil, escrevendo num livro meio aberto em seu colo. Tem os pés num pedestal baixo. Espalhados a sua volta estão vários instrumentos da profissão de escriba — cálamos, compassos, penas, potes de tinta e o que provavelmente é um prato com pigmentos numa mesa em separado. Atrás dele há um armário aberto com as portas apaineladas bem escancaradas para mostrar cinco prateleiras inclinadas nas quais estão arrumados nove livros encadernados em capas ornamentadas vermelho-escuras. Os detalhes da marcenaria nos móveis e os ornamentos entalhados em torno do armário no Codex Amiatinus são extraordinariamente delicados e sofisticados. Há uma hábil tentativa de um desenho em perspectiva. O pote de tinta lança uma sombra no chão, e vale a pena notar isso só pelo fato de com frequência se dizer que não aparecem sombras na arte europeia até o século XV.
É uma cena estranha, aparentemente mostrando um autor que rascunha um texto e não um escriba que copia um. As palavras em seu livro são indicadas por rabiscos desunidos, que às vezes se alega serem na verdade notas tironianas, tipo de antiga estenografia medieval, mas decerto não passa da forma como o artista representou um texto inespecífico. No topo da página, fora da moldura da figura, há um dístico escrito em maiúsculas rústicas: “Codicibus sacris hostili clade perustis/ Esdra deo fervens hoc reparavit opus”, que significa (mais ou menos) “Tendo os Livros Sagrados sido destruídos num desastre hostil, Esdras, comprometido com Deus, restaurou esta obra”.
Isso alude à ocasião, após o exílio dos judeus na Babilônia, por volta de 457 a.C., em que Esdras foi enviado de volta a Jerusalém e descobriu que as Escrituras hebraicas tinham sido esquecidas e perdidas, e sob orientação divina ele as reconstituiu de memória. É essa legenda, bem como sua vestimenta sacerdotal do Antigo Testamento, que identifica o homem apresentado como Esdras.
Retratos preambulares de autor eram provavelmente uma característica de textos gregos desde a Antiguidade clássica.
Esdras não era propriamente um autor. Sua contribuição, se a considerarmos de modo literal, foi na preservação de textos da primeira parte do Antigo Testamento — não, é claro, toda a inteireza das Escrituras cristãs, a maior parte das quais data de muito depois da época em que ele viveu.
De muitas maneiras, um frontispício mais adequado a uma pandecta de Vulgata inteira teria sido uma imagem de São Jerônimo escrevendo, o que de fato aparece, com frequência, na abertura de muitas Bíblias medievais mais tardias.
O estilo aqui é tão mediterrâneo que deve ter sido copiado de um exemplar importado da Itália, o que também é, presumivelmente, o caso do Codex Grandior, embora Cassiodoro não mencione nele a presença de uma figura assim.
Com frequência se sugere que a pintura no Amiatinus seja na verdade uma figura, que foi mal-entendida, do próprio Cassiodoro, que como Jerônimo (e Esdras, e Ceolfrido) estava comprometido com a preservação e a transmissão da Bíblia após um período de caos. Cassiodoro viveu o saque a Roma pelos ostrogodos em 546, e seu pequeno oásis cristão na Vivarium se dedicava a manter as Escrituras em segurança durante as tormentas da barbárie e da apostasia.
Em suas Institutiones, Cassiodoro descreve não só seu Codex Grandior como também o que ele chama de “novem codices”, os nove volumes separados nos quais ele tinha dividido e copiado o texto da Bíblia. As prateleiras no armário atrás de Esdras na figura mostram exatamente isso: nove tomos bíblicos com títulos na lombada.
Nas reproduções da página esses nomes são quase impossíveis de ler, mas posicionando o manuscrito original de modo que reflita a luz, os nove títulos ficam visíveis com seu brilho contra um campo opaco — o Octateuco, Reis e Crônicas com Jó, oito livros de história, os Salmos, os livros de Salomão, os Profetas, os Evangelhos, as Epístolas e (por fim) Atos e Apocalipse.
No melhor dos casos, apenas a primeira prateleira poderia ser atribuída a Esdras na realidade histórica, mas todas as nove estavam na biblioteca da Vivarium. Faria mais sentido se o modelo para essa figura tivesse sido um retrato de Cassiodoro. É discutível que Cassiodoro tivesse encomendado um retrato de si mesmo, mas seus sucessores e bibliotecários póstumos poderiam facilmente ter inserido um frontispício hagiográfico no Codex Grandior, o favorito de seu falecido patrão.