Os essênios e os manuscritos do Mar Morto
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Em fins de 1946 três jovens beduínos da tribo dos ta’amireh, que pastoreavam seus rebanhos em um oásis próximo ao Mar Morto, na Palestina, descobriram acidentalmente alguns manuscritos antigos dentro de uma gruta. Foi apenas o começo da mais importante descoberta de manuscritos do século XX.
Divulgada a notícia da descoberta de preciosos manuscritos bíblicos anteriores à era cristã – quando os mais antigos textos do AT que possuíamos datam de 900 d.C. -, seguiram-se, em meio a muitas controvérsias e dificuldades, a busca de novos manuscritos nas muitas grutas da região e as escavações das ruínas de Qumran, situadas aproximadamente a 1 km a noroeste do Mar Morto.
No total, cerca de mil documentos foram recuperados em 20 grutas no deserto de Judá, entre os anos de 1946 e 1966. Destes, em 11 grutas próximas às ruínas de Qumran, foram encontrados 11 manuscritos mais ou menos completos e milhares de fragmentos de outros cerca de 600 a 800 manuscritos em pergaminho e papiro. Escritos em hebraico, aramaico e grego, cerca de 1/3 dos manuscritos são cópias de livros bíblicos, sendo o restante livros apócrifos, trabalhos exegéticos e escritos da comunidade que viveu em Qumran de 135 a.C. a 68 d.C. Acredita a maioria dos estudiosos que esta comunidade era formada pelos essênios, grupo judaico radical que saiu de Jerusalém por estar em conflito com o governo dos Macabeus.
Estes manuscritos não são importantes apenas porque através deles podemos conhecer melhor os essênios, mas também porque podemos conhecer melhor a complexidade do judaísmo desta época e os ambientes político e religioso onde nasceu o cristianismo. Questões como: Era João Batista um essênio? Teria Jesus entrado em contato com os essênios? são, a partir da descoberta dos manuscritos, frequentemente colocadas.
Hoje existe enorme bibliografia sobre os manuscritos do Mar Morto. A identificação e publicação dos manuscritos foi lenta. A equipe de pesquisadores, constituída originariamente somente por especialistas cristãos, foi, depois de muitos anos, ampliada com a inclusão de judeus, talvez os maiores interessados na compreensão destes textos.
O processo sempre gerou muita polêmica, com sugestões da mídia de ocultamento de prodigiosos segredos acerca do judaísmo e do cristianismo, da não originalidade do cristianismo – cujas ideias já estariam todas nos manuscritos dos essênios – da interferência de autoridades eclesiásticas que tentariam evitar a sua publicação e coisas do gênero.
A verdade é uma só: havia dificuldades técnicas enormes para a leitura de cerca de 80 mil pequenos fragmentos muito danificados e um certo ciúme de quem estava encarregado da pesquisa, que sempre os considerou como os “nossos” manuscritos. Foi dentro desta lógica que ocorreu, nas duas últimas décadas do século XX, um debate intenso em torno dos manuscritos do Mar Morto, gerando publicações em grande quantidade. Somente em novembro de 2001 a publicação dos manuscritos do Mar Morto foi concluída.
É preciso assinalar que em nenhum dos manuscritos aparece a palavra “essênio”. Este termo vem, provavelmente, do hebraico hassidim (= os piedosos), em aramaico hassayya, em grego essaioi, daí “essênios”.
Embora a quase totalidade dos estudiosos identifique a comunidade de Qumran com os essênios, são, às vezes, sugeridas outras possibilidades. Há a hipótese caraíta, judeu-cristã, zelota, saduceia e farisaica.
O testemunho dos autores antigos sobre os essênios é importante para a identificação da comunidade de Qumran. Localização geográfica, valores e modo de vida dos essênios são descritos pelos judeus Flávio Josefo e Fílon de Alexandria e pelos romanos Plínio, o Velho e Solino.
Fílon de Alexandria, por exemplo, nos diz que “a Síria Palestina, que ocupa uma parte importante da populosa nação dos judeus, não é, também ela, estéril em virtude. Alguns deles, que somam mais de quatro mil, são denominados essênios” (Quod omnis probus liber sit, § 75). Este número é confirmado por Flávio Josefo: “São mais de quatro mil homens a se comportarem dessa maneira” (Antiquitates Iudaicae XVIII, I, 20 ).
Tanto Flávio Josefo quanto Fílon de Alexandria noticiam a opção celibatária e a vida comunitária dos essênios, o que os manuscritos de Qumran confirmam, pelo menos para uma parte da organização. É que havia essênios que viviam nas cidades e aldeias da Palestina, e estes não eram celibatários, como os de Qumran.
Os líderes desta comunidade eram sacerdotes sadoquitas. Os assideus (= os piedosos) lutavam ao lado dos Macabeus contra a aristocracia filo-helênica a partir de 167 a.C. Mas, quando estes, que não eram sadoquitas, se apossaram indevidamente do sumo sacerdócio, rompendo uma tradição milenar, um sacerdote sadoquita do Templo de Jerusalém, conhecido nos manuscritos apenas como o Mestre da Justiça (Môreh hasedeq) rompeu com os Macabeus e liderou um grupo de sacerdotes e assideus que se afastou de Jerusalém. O enquadramento do Mestre da Justiça é importante para se reconstruir a história da comunidade, pois ele é apresentado como a figura mais importante entre os essênios e deve ter escrito a famosa Regra da Comunidade que orienta a vida do grupo.
O sistema de admissão na comunidade era bastante rigoroso. Temos as informações da Regra da Comunidade e de Flávio Josefo sobre o assunto. O candidato, que devia ser israelita, passava inicialmente por um rigoroso exame feito pelo líder da comunidade “quanto a seu entendimento e a seus atos”. Se fosse considerado apto, ele era instruído nas regras da comunidade e passava a viver como um deles durante um ano, mas fora da comunidade.
Após esse ano, caso fosse aprovado pela assembleia, o candidato ingressava na comunidade, mas durante um ano inteiro não participava de suas refeições comuns nem da comunhão de bens. Era um tempo de aprendizado, certamente guiado pelo “instrutor”, que era o encarregado da formação espiritual.
Ao término desse segundo ano, iniciava o candidato um terceiro ano no qual entregava seus bens ao tesoureiro da congregação e continuava sua formação, mas ainda sem participação integral. Só no fim desses três anos, se aceito pela assembleia, o candidato passava a participar integralmente da comunidade, com direito às purificações rituais, banquete, voz e voto nas assembleias e comunhão de bens.
O ideal dessa comunidade era o de caminhar “ao encontro de Deus de todo o coração e alma”; fazer “o que é bom e certo conforme o que Ele ordenou por intermédio de Moisés e seus servos os profetas”, diz a Regra da Comunidade.
Segundo os arqueólogos, viviam em Qumran entre 150 e 200 pessoas. Em dois séculos de existência da comunidade devem ter vivido ali cerca de 1200 pessoas. A partir das ferramentas encontradas e das instalações escavadas, sabe-se que eles cultivavam a terra, faziam cerâmica, curtiam peles e copiavam manuscritos.
Os essênios se viam como a comunidade da nova aliança, como o resto de Israel, os santos que permanecem fiéis a Deus, talvez inspirados em Jr 31,31-34, que propõe uma nova aliança, porque o projeto original faliu.
Um dos textos mais reveladores de sua visão de mundo é o trecho da Regra da Comunidade que trata dos dois espíritos. Segundo o documento, Deus criou o homem com dois espíritos, com os quais ele deve conviver: o espírito da verdade, que nasce de uma fonte de luz e o espírito da falsidade, que nasce de uma fonte de trevas.
Os filhos da justiça, que andam pelos caminhos da luz, têm um espírito de humildade, paciência, amor fraterno, bondade, compreensão, inteligência, discernimento, zelo pelas leis, pureza etc. Os filhos da falsidade, que andam pelos caminhos das trevas, têm um espírito de ganância, negligência, maldade, arrogância, orgulho, hipocrisia, crueldade, luxúria, insolência, engano e assim por diante.
Para os filhos da justiça o julgamento divino será de saúde, vida longa, abundância, bênçãos, alegria, enquanto que para os filhos da falsidade será de flagelos, maldição, tormentos e desgraça. Não é preciso dizer que, naturalmente, os essênios se julgavam portadores de uma porção maior de verdade que de falsidade, exatamente o contrário de seus inimigos, segundo seu julgamento.
Este dualismo teológico do texto sobre os dois espíritos oculta/revela o conflito social que se vivia na Palestina da época, e do qual os essênios participavam como atores extremamente ativos. Não é à toa que seu manual de guerra chama-se “Guerra dos filhos da luz contra os filhos das trevas”. Como acreditavam estar vivendo os momentos decisivos da História, os essênios elaboraram uma doutrina da guerra, codificada nesta Regra da Guerra. Nesta guerra, os essênios vencerão os israelitas desencaminhados da Lei e os estrangeiros que dominam o país, no caso, os romanos. Só que eles foram totalmente destruídos pelos romanos em 68 d.C.
Para finalizar, é bom lembrarmos que as ideias apocalípticas, que tão fortemente colorem a teologia essênia, pregam mesmo é a mudança da ordem social em vigor. Segundo os padrões apocalípticos, esse mudança social tem alcance mundial.
Só que os essênios tinham consciência de que os indivíduos isolados jamais poderiam desencadear a mudança social, daí a necessidade da ação comunitária; e de que o homem só é ainda incompetente para tal revolução cósmica, donde a necessidade das forças divinas. Os essênios tinham esperança de alcançar benefícios concretos dessa mudança, por isso romperam com a ordem social dominante e se organizaram segundo princípios alternativos.
A antiga solidariedade israelita baseada nas relações de parentesco tornou-se inviável na sociedade helenizada que dominou a Palestina. Mas a solidariedade torna-se independente e é racionalizada em normas éticas, cuja validade fica assegurada através de um pacto rigoroso que insiste na construção de relações pessoais e recíprocas. Esse era o projeto dos essênios.
Quem desejar conhecer melhor o assunto, pode ler Os essênios: a racionalização da solidariedade, onde há igualmente uma bibliografia atualizada.
> Este artigo foi publicado em Kerigma, Petrópolis, n. 5, p. 4-7, 1996. O texto está disponível também no Observatório Bíblico, publicado em 06.02.2015.
Última atualização: 04.09.2020 – 16h17