Mês da Bíblia 2015: O Evangelho de João

Permanecei no meu amor para dar muitos frutos – Jo 15,8-9

:: Mês da Bíblia 2015: Discípulos Missionários a partir do Evangelho de João. Brasília: CNBB, 2015, 60 p. – ISBN 9788579723704.

:: Bíblia Gente: O livro de João: roteiros para encontros – 2015  —  Download do Folheto Bíblia Gente 2015

:: CENTRO BÍBLICO VERBO, Permanecei no meu amor para dar muitos frutos (15,8-9). Entendendo o Evangelho de João. São Paulo: Paulus, 2015, 128 p. – ISBN 9788534941662.

:: SAB, Mês da Bíblia 2015. Discípulos missionários a partir do Evangelho de João. São Paulo: Paulinas, 2015.

:: VIDA PASTORAL n. 305, set.-out. 2015: Mês da Bíblia: Evangelho de João.

Sobre o Mês da Bíblia, leia aqui e aqui.

 

Para aprofundamento:

:: BARRETO, J.; MATEOS, J. O Evangelho de São João: análise linguística e comentário exegético. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2021, 960 p. – ISBN 9786555622461.

Diz a editora:BARRETO, J. ; MATEOS, J. O Evangelho de São João: análise linguística e comentário exegético. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2021
Os autores fazem um comentário completamente original do quarto Evangelho. O ponto de partida é a consideração do texto como obra unitária, onde cada parte só pode ser compreendida na sua relação com o todo. O método usado é o da análise linguística e literária, para chegar ao significado da obra no seu conjunto. Os autores lêem o texto a partir do próprio texto, levando em consideração a linguagem e o ambiente cultural judaico da época em que foi redigido este Evangelho. Da análise dos termos e das estruturas lingüísticas e literárias, os autores chegam ao sentido teológico do quarto Evangelho de João, finalizando com uma hermenêutica objetiva, livre de fantasias e preconceitos doutrinais. Obra imprescindível para o aprofundamento do evangelho joanino.

O original espanhol: MATEOS, J; BARRETO, J. El Evangelio de Juan: análisis lingüístico y comentario exegético. 3. ed.  Madrid: Cristiandad, [1979], 1992, 956 p. – ISBN 9788470572616.

Li este livro quando foi traduzido do espanhol (2. ed., 1982) para o português em 1989. Nunca tinha lido nada tão extraordinário e estimulante sobre João. Recomendo para quem tiver fôlego.

:: MATEOS, J. ; BARRETO, J. Vocabulário teológico do evangelho de São João. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2019, 296 p. – ISBN 9788534950701.

Diz a editora:
Inicialmente concebido como resumo-índice do comentário ao IV evangelho, este vocabulário acabou se tornando um volume independente, que é de grande ajuda para familiarizar-se com a linguagem de João, para relacionar os termos próprios do IV evangelho e entender o pano de fundo judaico e o sentido simbólico desses termos.

 

Informação de Ediciones Cristiandad sobre Juan Mateos:

Juan Mateos (1917-2003)Juan Mateos (fallecido en Málaga el 23 de septiembre de 2003 a los 86 años de edad) Jesuita. Biblista. Antes de dedicarse a la traducción de la Escritura [la traducción castellana del Nuevo Testamento de la Nueva Biblia Española -Madrid 1975], Mateos era conocido como uno de los mejores y más prestigiosos especialistas en liturgias orientales del mundo. Residió en Roma durante muchos años, enseñando en el Pontificio Instituto Oriental y en el Instituto Bíblico, periodo durante el cual alternaba la enseñanza académica con conferencias y cursos de estudio en muchas naciones. Hombre de gran apertura hacia las distintas expresiones de la fe, Mateos creó un método exegético propio para el estudio del Nuevo Testamento, basado en el análisis filológico y semántico de cada palabra. Tras la elección al Pontificado del Papa Wojtyla, Mateos dejó Roma. Allí [Granada] prosiguió su investigación en torno al evangelio de Marcos. En 1982 publicó su estudio Los “Doce” y otros seguidores de Jesús en el Evangelio de Marcos, que le costó la pérdida de la enseñanza en las Universidades Pontificias de Roma.

Da tradução do Novo Testamento para o espanhol, para a Nueva Biblia Española, junto com Luis Alonso Schökel, disse o linguista Eugene A. Nida, ser a melhor tradução de todas até então feitas em uma língua europeia.

Eugene A. Nida, — especialista en lingüística aplicada a la traducción de la Biblia y Presidente durante muchos años de las Sociedades Bíblicas Unidas (American Bible Societies) — ha dicho que es “la mejor traducción de cuantas se han hecho a las lenguas europeas”.

Informações mais detalhadas sobre Juan Mateos podem ser lidas aqui e aqui.

O Pai Nosso trata da fome, do endividamento, da opressão

A atuação de Jesus foi intensamente política. O Pai Nosso, a Oração do Senhor, fala, no seu contexto original, da opressão, do endividamento, da fome, da insegurança social. Jesus pregava o perdão das dívidas na sociedade palestina do século primeiro. Por isso foi preso e crucificado.

Quem diz isso?

OAKMAN, D. E. Jesus, Debt, and the Lord’s Prayer: First-Century Debt and Jesus’ Intentions.  Eugene, OR: Cascade Books, 2014, xx + 144 p.  – ISBN 9781498222518.OAKMAN, D. E. Jesus, Debt, and the Lord’s Prayer: First-Century Debt and Jesus’ Intentions. Eugene, OR: Cascade Books, 2014

The Lord’s Prayer in Social Perspective, o terceiro capítulo deste livro, foi publicado pela primeira vez em CHILTON, B.; EVANS, C. E. (eds.) Authenticating the Words of Jesus. Leiden: Brill, 1999, p. 137-186. O texto pode ser lido aqui. Ou aqui.

 

Certa vez mencionei, em um artigo, os estudos de Douglas E. Oakman sobre o Pai Nosso:

Douglas E. Oakman, em um estudo sobre as condições de vida dos camponeses palestinos da época de Jesus, mostra que a violência que sofriam era brutal. Fraudes, roubos, trabalhos forçados, endividamento, perda da terra através da manipulação das dívidas atingiam a muitos. Existia uma violência epidêmica na Palestina.

E é neste contexto que Oakman propõe uma leitura radical do Pai Nosso. “Ele sugere” – diz R. L. Rohrbaugh – “que o pedido ‘perdoa-nos as nossas dívidas’ (Mt 6,12) refere-se aos processos nos quais os camponeses perdiam sua terra para os credores urbanos que sistematicamente exploravam as condições econômicas precárias em que viviam.

Além disso, argumenta Oakman, a prece final (Mt 6,13) ‘não nos ponha em teste’ – normalmente traduzida com a ideia anacrônica de não cair em tentação – é o apelo do camponês para que não seja levado a um tribunal de cobrança de dívidas e colocado diante de um juiz corrupto (‘mas livra-nos do Maligno’) cujo veredicto daria à expropriação de sua terra força de lei” (ROHRBAUGH, R. L. (ed.) The Social Sciences and New Testament Interpretation. Grand Rapids: Baker Academic, 2003, p. 6).

Mt 6,12-13 diz: καὶ ἄφες ἡμῖν τὰ ὀφειλήματα ἡμῶν, ὡς καὶ ἡμεῖς ἀφήκαμεν τοῖς ὀφειλέταις ἡμῶν· καὶ μὴ εἰσενέγκῃς ἡμᾶς εἰς πειρασμόν, ἀλλὰ ῥῦσαι ἡμᾶς ἀπὸ τοῦ πονηροῦ. εἰσενέγκῃς é um aoristo ingressivo e pode significar que alguém é arrastado e levado perante um juiz ou um tribunal (cf. Lc 12,11: “Quando vos conduzirem [εἰσφέρωσιν] às sinagogas, perante os principados e perante as autoridades, não fiqueis preocupados como ou com o que vos defender”). O genitivo πονηροῦ pode vir do neutro, significando o mal em geral, como a tradição latina o leu, influenciada por Santo Agostinho, ou pode vir do masculino, o Maligno, opção mais adequada à mentalidade dos primeiros cristãos. Assim o leram os Padres Orientais. É que o uso do neutro τὸ πονηρόν no sentido de “o mal” não pertence ao vocabulário do Novo Testamento, nem combina com a mentalidade semítica, que foge das abstrações. Cf. também HANSON, K. C.; OAKMAN, D. E. Palestine in the Time of Jesus: Social Structures and Social Conflicts. 2. ed. Minneapolis: Augsburg Fortress, 2008. Apesar da fascinante leitura de D. Oakman, a maioria dos especialistas lêem τοῦ πονηροῦ, tanto no masculino como no neutro em sentido escatológico, como no seguinte texto: “A decisão em favor de um ou de outro não modifica essencialmente a intenção do que foi dito por Mateus, porque aqui trata-se da realidade atual urgente e da realidade e atividade escatológica iminente do mal…” BALZ, H. ; SCHNEIDER, G. (eds.) Diccionario Exegético del Nuevo Testamento II. Salamanca: Sígueme, 1998, verbete πονηρός.

 

Na avaliação de Philip F. Esler, University of Gloucestershire, Cheltenham, Gloucestershire UK:

While the Lord’s Prayer is foundational for Christian belief and identity, no other scholar has done more in recent decades than Douglas Oakman to explore its original meaning in the context of Jesus’s life and ministry. With Oakman’s incisive and wide-ranging understanding of the first-century Palestinian world, that meaning comes to life in this volume as the inspiring and hope-filled expression of someone deeply and compassionately invested in the plight of the poor… Oakman brings the Lord’s Prayer to life for our world.

 

Da resenha de David A. Fiensy, publicada na RBL em 16.07.2015:

Since the author’s first publication of his essay “Jesus and Agrarian Palestine: The Factor of Debt” (Society of Biblical Literature 1985 Seminar Papers), his thesis of widespread indebtedness in the Galilee of Jesus’s time has been resonating in scholarly circles. Later Oakman added presentations on the Lord’s Prayer and on Jesus as a tax resister. These three essays are now collected here along with an introduction and brief conclusion to form his current offering.

Oakman’s thesis is that Jesus wanted debt forgiveness in first-century Palestinian society. Jesus had an explicitly “subversive revolutionary agenda” (41) that “attracted a following of people victimized by debt” (41). In addition, developing this theme further, Oakman maintains that Jesus was a tax resister who tried to alleviate indebtedness by avoiding payment of taxes and by distortion of the tax records (100). He compares Jesus with Judas of Gamla, both of whom were tax resisters (61, 101). Jesus was a political revolutionary, albeit not a violent one (117). Jesus’s ministry/activity was political and not about “religion or theology” (117). The  Lord’s Prayer was originally about “oppression, indebtedness, hunger, and social insecurity” (90).

Jesus advocated tax resistance as the “concrete expression of the kingdom of God” (94) and that, because of his tax resistance, Jesus was crucified.

 

Quem é Douglas E. Oakman?

Douglas E. Oakman has been with the faculty of Pacific Lutheran University since 1988. Prior to that he taught at Santa Clara University, the University of San Francisco, and San Francisco Theological Seminary. He was chair of the Religion Department from 1996-2003 and Dean of Humanities from 2004-2010.

Oakman has published numerous articles applying the social sciences to biblical studies. He is the author of Jesus and the Economic Questions of His Day (1986), with K. C. Hanson the award-winning Palestine in the Time of Jesus (second edition, 2008), Jesus and the Peasants (Cascade Books, 2008), The Political Aims of Jesus (2012), and Jesus, Debt, and the Lord’s Prayer (Cascade Books, 2014).

A visita dos Magos

A visita dos Magos: Mt 2,1-12. Artigo publicado na Ayrton’s Biblical Page em 2002. A bibliografia foi atualizada em 2016.

Abordo o assunto da seguinte maneira:

1. O Método: Prestar Atenção a Três Momentos
2. Como é Construído Mt 2,1-12?
3. Impossibilidade Histórica
4. Mateus, um Evangelho Antissemita?
5. O Sentido de Mt 1-2
6. Os Elementos Mais Importantes de Mt 2,1-12
6.1. Herodes Magno
6.2. A Data do Nascimento de Jesus
6.3. Jesus Nasceu em Belém ou em Nazaré?
6.4. Os Magos
6.5. A Estrela de Belém
Bibliografia

Leia Mais:
Sobre minhas publicações [links para todos os artigos publicados]

Marcos, hoje aclamado, já foi negligenciado

Hoje aclamado pelos especialistas, o evangelho de Marcos foi negligenciado na época patrística. Como ele conseguiu sobreviver?

Michael J.  Kok, que mantém um blog dedicado ao estudo acadêmico de Marcos, escreve, neste fevereiro, em The Bible and Interpretation, um artigo que aborda o tema de seu recente livro.

O artigo: Why Did the Gospel of Mark Survive?

A revista explica:
In spite of the virtually unanimous ecclesiastical tradition that the evangelist Mark was the interpreter of Peter, the most prestigious leader among the Apostles in Christian memory, the Gospel of Mark was mostly neglected in the Patristic period. Moreover, the explicit Patristic comments about the evangelist Mark reveal some ambivalence about the Gospel’s literary and theological value. This paper will explore the reasons why some later Christian intellectuals were hesitant to embrace Mark, especially highlighting their concerns that Mark could be read as amenable to the theological views of their opponents.

 

O livro: The Gospel on the Margins: The Reception of Mark in the Second Century. Minneapolis: Fortress Press, 2015, 240 p. – ISBN 9781451490220. Para Kindle, aqui.

Diz a editora:
Scholars of the Gospel of Mark usually discuss the merits of patristic references to the Gospel’s origin and Mark’s identity as the “interpreter” of Peter. But while the question of the Gospel’s historical origins draws attention, no one has asked why, despite virtually unanimous patristic association of the Gospel with Peter, one of the most prestigious apostolic founding figures in Christian memory, Mark’s Gospel was mostly neglected by those same writers. Not only is the text of Mark the least represented of the canonical Gospels in patristic citations, commentaries, and manuscripts, but the explicit comments about the Evangelist reveal ambivalence about Mark’s literary or theological value. Michael J. Kok surveys the second-century reception of Mark, from Papias of Hierapolis to Clement of Alexandria, and finds that the patristic writers were hesitant to embrace Mark because they perceived it to be too easily adapted to rival Christian factions. Kok describes the story of Mark’s Petrine origins as a second-century move to assert ownership of the Gospel on the part of the emerging Orthodox Church.

 

Este livro é o resultado de sua tese de doutorado na Universidade de Sheffield, Reino Unido, concluída em 2013, sob a orientação do Professor James G. Crossley:

Kok, Michael J (2013) The Gospel on the Margins: The Ideological Function of the Patristic Tradition on the Evangelist Mark. PhD thesis, University of Sheffield.

O texto da tese, em pdf, pode ser baixado gratuitamente, assim como outras interessantes teses disponíveis neste site.

Leia Mais:
Marcos na Ayrton’s Biblical Page e no Observatório Bíblico

Sobre algumas leituras de Marcos

Observações sobre algumas leituras atuais de Marcos. Cadernos do Cearp, Ribeirão Preto, n. 7, p. 44-57, 1997.

Nota: O artigo foi escrito em 1997. Para textos mais recentes sobre Bíblia, confira aqui. Este artigo está disponível também na Ayrton’s Biblical Page.

 

A proposta deste artigo é a de servir ao leitor como orientação para a leitura de Marcos. Por isto comento dez das mais recentes e conhecidas obras escritas nos últimos anos, acessíveis em português e espanhol, sobre o evangelho de Marcos. A ordem seguida foi a da data da publicação original. Começamos assim em 1966 e terminamos em 1996. É necessário observarmos que nem todas as publicações em português destes últimos 30 anos são aqui comentadas.

 

TAYLOR, V. Evangelio según San Marcos. Madrid: Cristiandad, 1979, 848 p.

Este é um clássico e indispensável comentário a Marcos. Editado em inglês pela primeira vez em 1952, teve uma segunda edição publicada em 1966, com várias reimpressões. Seu título original é The Gospel According to St. Mark. The Greek Text with Introduction, Notes and Indexes. A edição espanhola utilizou a 8a reimpressão inglesa, feita em 1969.

É o próprio Vincent Taylor, exegeta metodista britânico, nascido em 1887 e falecido em 1968, que nos explica a estrutura do livro no prólogo à 1a edição, p. 24: “NaTAYLOR, V. Evangelio según San Marcos. Madrid: Cristiandad, 1979, 848 p. introdução estudei os problemas críticos, gramaticais, teológicos e históricos, para não ter que discuti-los sempre de novo. No comentário dividi o texto primeiro em grandes blocos e, em seguida, em seções que contêm diversas narrativas e ditos de Jesus, tudo precedido por curtas introduções; em notas separadas estudei problemas especiais. No final do volume acrescentei alguns excursos sobre problemas mais amplos, cuja solução tem que ser necessariamente de caráter mais geral e especulativo”.

O jesuíta espanhol Dionísio Mínguez, professor no Pontifício Instituto Bíblico de Roma, comenta, na apresentação à edição espanhola deste clássico: “A informação é exaustiva, a crítica perspicaz e equilibrada, a orientação um pouco conservadora”. No campo da filologia Taylor é um expoente da mais genuína tradição britânica, pois “discute quase todas as palavras, estuda suas raízes no grego clássico, nos papiros, na LXX (= tradução grega do AT), manuseia documentos e manuscritos, revisa as diversas traduções inglesas, aceitando-as ou propondo outras novas mais ajustadas ao significado original. Faz o mesmo com as construções, sobretudo quando analisa expressões típicas de Marcos que são difíceis, incorretas, ou simplesmente mal transmitidas pela tradição textual” (p. 18-19).

É livro de leitura lenta e difícil, portanto recomendado para especialistas, como se pode deduzir destas poucas palavras. Mas, necessária, conclui Mínguez, quando afirma na p. 20: “O comentário é uma obra extraordinária e ainda hoje imprescindível para o estudo sério de Marcos. Se tivesse que salvar para a posteridade apenas dois comentários a Marcos dentre os muitos aparecidos neste século pessoalmente eu não duvidaria sequer um momento: o comentário de Vincent Taylor seria imediatamente o primeiro contemplado”.

 

DELORME, J. Leitura do evangelho segundo Marcos. São Paulo: Paulinas, 1982, 148 p.

Em 1972, Jean Delorme, sacerdote da diocese de Annecy e professor nas Faculdades Católicas de Lyon, na França, fez uma palestra para sacerdotes sobre o evangelho de Marcos, do qual é especialista. Desta palestra nasceu o Lecture de l’Évangile selon Saint Marc. Paris: Du Cerf, 1972. Em português o livro está na Coleção Cadernos Bíblicos da então Paulinas (hoje Paulus), sob o número 11.

DELORME, J. Leitura do evangelho segundo Marcos. São Paulo: Paulinas, 1982, 148 p.É um estudo perfeitamente acessível ao leigo, escrito com clareza e em estilo agradável. O autor nos conduz através do evangelho de Marcos, “convidando-nos a participarmos do drama que nele se desenrola”, explica E. Charpentier, editor da coleção francesa Cahiers d’Évangile, na qual a obra foi originariamente publicada.

J. Delorme propõe três leituras globais de Marcos, cada uma salientando um aspecto do evangelho:

A primeira leitura observa o evangelho de Marcos a partir dos deslocamentos de Jesus e procura seu plano a partir da geografia teológica de Marcos, observando-se uma dupla oposição: 1a) Galileia – Jerusalém: “É da Galileia que o Evangelho deve difundir-se, depois da Ressurreição, como foi da Galileia que Jesus começou a proclamá-lo. Jerusalém aparece como a cidadela da oposição, a cidade da qual vem o ataque mais hostil a Jesus (3,22) e na qual os responsáveis pela nação o condenarão à morte e o entregarão aos pagãos” (p. 14); 2a) Galileia, região habitada por judeus e por gentios: esta oposição se manifesta no deslocamento de Jesus entre as duas margens do lago de Genezaré, sendo que uma fica do lado dos judeus – e na qual Jesus enfrenta a oposição dos escribas e fariseus vindos de Jerusalém – e outra do lado dos gentios, onde Jesus prefere mover-se, por ser aí bem aceito. “Assim a Galileia de Marcos não tem fronteiras. Nela, opõem-se dois espaços, o dos fariseus e escribas, o qual se fecha em si mesmo, e o que Jesus vai abrindo, ao passar entre os pagãos [= gentios]” (p. 15).  É uma geografia teológica, pois provavelmente Jesus jamais ultrapassou a fronteira judaica da Galileia, mas “Marcos insiste neste ponto porque vê nele a preparação da missão aos pagãos”(p. 15). Os deslocamentos de Jesus em Marcos nos propõe um evangelho que não deve deixar se encerrar nos limites de uma Jerusalém qualquer, ontem ou hoje.

A segunda leitura nos convida a participarmos do drama que se representa dentro deste espaço geográfico acima delineado. A primeira frase do evangelho de Marcos é: “Evangelho de Jesus, Cristo, Filho de Deus”.  Mas, como Jesus manifesta que ele é o Cristo, o Filho de Deus? Curiosamente, Jesus oculta sua identidade (chamamos isso de “segredo messiânico”) até a cruz. Somente após a sua morte, um gentio, um centurião romano, é quem vai dizer: “De fato, este homem era Filho de Deus” (15,29). “Aqui o círculo se fecha. A partir deste momento, diz-nos Marcos, podeis dizer que Jesus é Filho de Deus, porque o vistes morrer. O fato de o crucificado ser aquele que vós proclamais Filho de Deus esvazia todos os mitos de filho de Deus que poderíeis aplicar a Jesus… Ele é o Cristo, mas de um modo todo seu, não como esperaríeis. É o crucificado que é Filho de Deus. Temos aqui o ponto culminante do evangelho de Marcos. É isto que ele quer pôr na cabeça dos cristãos” (p. 23-24).

A terceira leitura, que ocupa a maior parte do livro, nos convida a seguir “as relações que se estabelecem entre Jesus e os discípulos, entre Jesus e a multidão, entre Jesus e seus adversários” (p. 33). Segundo Delorme temos em Marcos “uma espécie de triângulo, formado pelas relações complexas entres esses três polos: multidão, adversários, discípulos” (p. 33). Os discípulos adquirem uma fisionomia própria, reunidos em torno de Jesus, na medida em que este se posiciona face à multidão e aos seus adversários. Jesus convoca os discípulos, prepara-os para compreenderem sua pessoa, sua obra e sua missão e, entretanto, acaba abandonado por eles e enfrenta sozinho seus juízes e algozes (cf. o quadro sinótico das três leituras na p. 35).

Importante para compreendermos a perspectiva do autor são suas observações na p. 7, na introdução: Marcos sempre foi preterido na Igreja em favor de Mateus e de Lucas. Somente no século XIX ele foi redescoberto. E hoje, o crescimento do interesse pela humanidade de Jesus é o principal motivo que nos leva à leitura e estudo desse evangelho que descreve um Jesus que ensina pouco e age mais.

 

CLÉVENOT, M. Enfoques materialistas da Bíblia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, 164 p.

O livro de Michel Clévenot, Approches matérialistes de la Bible, foi publicado pela Du Cerf, em Paris, no ano de 1976. O autor se inspira na famosa obra do português Fernando Belo, de orientação marxista, Lecture matérialiste de l’Évangile de Marc. Récit – Pratique – Ideologie, também editada pela Du Cerf em 1974.

Fernando Belo causou sensação na época ao ler Marcos através de Marx nas difíceis e complexas 415 páginas de sua obra. É que F. Belo combina o marxismoCLÉVENOT, M. Enfoques materialistas da Bíblia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, 164 p. estruturalista de L. Althusser com a teoria de linguística e de semiótica social extraídas de F. de Saussure, R. Barthes e J. Derrida, exigindo do leitor “coragem e uma certa dose de conhecimento para lê-lo até o fim”, explica Clévenot no prólogo de sua obra, p. 17. E completa: “Responsável pela edição do ‘Belo’, pareceu-me útil apresentar aos numerosos leitores interessados por esse novo acesso à Bíblia um livro menor, mais modesto e, espero, mais abordável” (p. 17).

A 1a parte do livro de Clévenot, fruto de um seminário de dois anos, do qual participou também F. Belo, traz uma abordagem materialista das tradições Javista, Eloísta, Sacerdotal e Deuteronomista, vistas como produto da conjunção de fatores ideológicos, políticos e econômicos. A 2a parte faz uma leitura do evangelho de Marcos como um relato da prática de Jesus, seguindo os passos de F. Belo. Como explica Clévenot, na p. 22, “nós consideraremos os textos que compõem a Bíblia como produtos ideológicos. Nosso projeto será analisar as condições nas quais ele foi produzido”.

Mas o que vem a ser este enfoque materialista de Clévenot? Ele mesmo explica na p. 22: “Ao contrário da filosofia alemã (idealista), que desce dos céus à terra, aqui nós subiremos da terra para o céu. Quer dizer, nós não nos baseamos no que os homens dizem, pensam, representam, nem naquilo que eles são segundo as palavras, pensamentos, imaginação e representação de outros para então chegar aos homens em carne e osso; não, nós nos baseamos nos homens em suas atividades reais, quer dizer, é a partir do processo real de vida que podemos representar o próprio desenvolvimento dos reflexos e das repercussões ideológicas desse processo vital”.

Assim,  “ler Marcos de modo materialista é tomá-lo como uma narração que não se pode compreender fora da situação social de seu autor e dos protagonistas (Jesus, seus amigos, seus adversários, a multidão…). É pôr o acento menos nas palavras de  Jesus do que na sua prática; tanto mais que a narração de Marcos não é uma coleção de ‘palavras’ ou ‘discursos’, mas expõe práticas e estratégias”, confirma F. Belo em La Lettre 198 (fev. 1975), Paris, Temps Present, p. 11.

 

MATEOS, J. Los “Doce” y otros seguidores de Jesús en el Evangelio de Marcos. Madrid: Cristiandad, 1982, 304 p.

“Juan Mateos é professor dos Institutos Oriental e Bíblico de Roma. É autor de uma série de livros de grande rigor linguístico e exegético que abrem um novo caminho para a leitura e interpretação do NT”, informa-nos a “orelha” do livro.

De fato, o autor procura esclarecer, através de rigorosa análise linguística e exegética, a existência de diversos grupos de seguidores de Jesus: os Doze, os discípulos, os que estão em torno dele, a multidão e sua relação com Jesus…

MATEOS, J. Los “Doce” y otros seguidores de Jesús en el Evangelio de Marcos. Madrid: Cristiandad, 1982, 304 p.Segundo Juan Mateos (cf. p. 247-258) há, em Marcos, dois grupos que acompanham Jesus:

  • os Doze/discípulos (3,14): representam o Israel institucional e se dividem em três subgrupos:

– Simão (Pedra = obstinado: 8,32), Tiago e João (Filhos do Trovão = autoritários  e ambiciosos: 10,37)
– André e os outros (são 8): são os homens sem destaque
– Judas: o traidor.

  • os que estavam ao redor dele: são os não-israelitas, rompidos com a aliança, tipificados por Levi (2,14). É a nova família de Jesus (3,34-35).

Estes dois grupos se distinguem dos de fora (4,11), que é a multidão que escuta Jesus, mas não o segue.

Os dois grupos (Doze/discípulos e os que estavam ao redor dele) estão na casa (espaço da comunidade) e no barco. Os outros estão fora da casa ou na margem.

Quando se dirige aos Doze/discípulos, Jesus usa expressões do AT (batismo, Messias, ressurreição, aliança). Quando Jesus se dirige “aos que estavam ao redor dele”, usa outros termos equivalentes aos anteriores (o Filho do Homem, o Filho de Deus, salvar a vida = ressurreição, seguir Jesus = batismo e aliança).

Assim, Marcos amplia o evangelho para os não-judeus, os gentios. Basta que sigam a Jesus.

A incompreensão dos Doze/discípulos é repetida ao longo do evangelho (4,34; 8,18; 8,22-26; 10,46-52), enquanto que “os que estavam com ele”, por pertencerem ao judaísmo periférico e por seu pouco apego às tradições judaicas, compreendem logo, após a 1a  vacilação (4,10). Veja-se a oposição entre os dois grupos em 9,33-37, onde a “criança” representa “os que estavam com ele”, em oposição aos Doze que discutiam quem era o mais importante.

Também a atitude de Simão Pedro (nega, foge) está em contraste com a de Simão Cirineu (segue, ajuda), este sim, símbolo dos que estavam com Jesus, pois ele é da diáspora.

No final do evangelho os Doze/discípulos (os judaizantes) não recebem o aviso para ir encontrar Jesus na Galileia (as mulheres se calam: 16,8): eles ficam presos a Jerusalém, ao ideal messiânico nacionalista… não existe para eles um Jesus vivo e ativo após a sua morte: são os judaizantes da época de Marcos! Mas os outros prosseguem, simbolizados em Simão Cirineu (pai de Alexandre, nome grego, e Paulo, latino, símbolos das comunidades cristãs que florescem na gentilidade).

O autor explica nas p. 29-31 que o estudo é feito unicamente a partir do texto de Marcos, único dado objetivo ao nosso alcance. A história de sua redação é deixada de lado, por seu caráter necessariamente hipotético, conduzindo a pontos de vista subjetivos e convidando o exegeta a resolver de modo não textual os problemas do texto.

 

CÁRDENAS PALLARES, J. Um pobre chamado Jesus. Releitura do evangelho de Marcos. São Paulo: Paulinas, 1988, 167 p.

José Cárdenas Pallares é um sacerdote mexicano. Un pobre llamado Jesús foi surgindo pouco a pouco, em palestras e cursos, fruto do trabalho pastoral do autor. Pallares decidiu publicar em 1982 estes trabalhos “porque demonstram o aspecto humano, radical e revelador das lutas de Jesus, o caráter libertador de sua práxis e a ‘parcialidade’  total de Deus a favor dos oprimidos. A causa de Jesus é a de Deus inseparavelmente unido com todos os explorados” (p. 7).

O autor explica na introdução à obra que estas páginas são o resultado de uma decepção, na medida em que ele, ao chegar à sua paróquia muito seguro de seus conhecimentos bíblicos, pensava que bastava transmitir ao povo o que havia aprendido para que este amadurecesse em seu compromisso cristão.

“O grande problema da exegese bíblica era e é o de tornar a palavra de Deus acessível ao homem moderno. Mas esse Homem não existe entre nós e, o que é pior, identifica-se – ao menos assim o percebem os pobres – com o opressor, com quem os trata como burros de carga ou como curiosidades de zoológico” (p. 8).

Colocando-se, assim, inteiramente do lado dos oprimidos em um país subdesenvolvido, o autor questiona a “isenção cientifica” da exegese atual, que se esqueceu de que “a linguagem do evangelho de são Marcos é linguagem simples, é literatura de gente pobre” e se pergunta angustiado: “A exegese está sendo elaborada em função de que projeto de sociedade, ou dizendo mais humildemente, em função de que tipo de pastoral? (…) Será o evangelho, antes de tudo e acima de tudo, Boa Nova para os satisfeitos? (…) Nós, os novos intérpretes da Bíblia, estaremos em sintonia, em afinidade sociológica com Jesus? E se nossa situação fosse mais semelhante à dos dirigentes fariseus ou à dos saduceus?” (p. 9).

Procurando responder, através da leitura do evangelho de Marcos, qual é a Boa Nova de Cristo para o homem humilhado e tiranizado da América Latina, o autor aborda em 11 capítulos os seguintes temas: o conflito de Jesus com as autoridades do judaísmo, o poder de Jesus expresso nos sinais de libertação (= milagres), a satanização de Jesus, a postura de Jesus face à opressão da mulher, Jesus e a riqueza, Jesus e o poder, Jesus e a máscara de santidade das autoridades religiosas, o que vale um pobre (Mc 12,41-44): o óbolo da viúva), o assassinato de Jesus, a ressurreição de um maldito e, finalmente, o triunfo da vida.

Confrontados com a morte de Jesus não devemos perguntar: “Diante da dor dos oprimidos é Deus derrotado e inútil?”, mas afirmar: “Se há futuro para Jesus, nada nem ninguém pode impedir o futuro, o triunfo definitivo dos oprimidos” (p. 163).

Este é um livro de leitura fácil e provocadora.

 

ALEGRE, X. Marcos ou a correção de uma ideologia triunfalista. Chave de leitura de um evangelho beligerante e comprometido. Belo Horizonte: CEBI, n. 8, 1988, 43 p.

Este livreto é a tradução de Marc o la correcció d’una ideologia trionfalista. Pautes de lectura d’un evangeli belligerant i compromès, texto da aula inaugural do ano letivo 1984-85 da Facultad de Teologia de Barcelona.

Xavier Alegre nos diz na p. 2 que “vivendo em El Salvador, uma igreja marcada por uma dura perseguição e regada pelo sangue de muitos mártires, entre os quais se destaca Dom Oscar Ranulfo Romero – São Romero da América, como o denomina Dom Pedro Casaldáliga – tornou-se mais claro, para mim, o teor que Marcos quis dar à sua obra”. Por isso o autor presta, através deste texto, “uma homenagem de gratidão às comunidades cristãs de El Salvador, sobretudo às pessoas simples e pobres que as compõem, os autênticos destinatários de uma obra como a de Marcos que, com seu testemunho de fé e esperança e amor, me ensinaram a ler com novos olhos o Evangelho de Jesus, morto e ressuscitado por ter vivido, com toda a radicalidade, a solidariedade  com os pobres, como testemunho do infinito amor do Pai”.

Segundo Alegre, Marcos escreveu sua obra para corrigir uma interpretação triunfalista da figura de Jesus, interpretação esta “apoiada no poder de fazer milagres que era próprio de Jesus” (p. 6). É então que Marcos “nos apresenta a figura de Jesus e da comunidade cristã com traços mais críticos em relação a determinadas representações triunfalistas da fé que esquecem o conflito histórico de Jesus com os poderes políticos e religiosos do seu tempo” (p. 3-4).

O autor vai demostrar sua tese a partir de dois pontos:

  • a estrutura do evangelho, que deixa a descoberto a cegueira dos homens do tempo de Jesus, dominados que são pela ideologia dominante
  • os retoques redacionais que Marcos realiza em suas fontes – “sobretudo no que diz respeito aos milagres e exorcismos e nos textos em que aparecem os discípulos de Jesus – e que têm como denominador comum o que os especialistas convencionaram chamar ‘o segredo messiânico’ e ‘a incompreensão dos discípulos’” (p. 6).

Alegre defende que Marcos quer fazer a comunidade cristã de ontem e de hoje entender que só se pode saber quem é Jesus quem o segue no caminho da cruz.

É uma leitura genial do evangelho, muito coerente, com um raciocínio bem estruturado e um enfoque bem situado. Poder-se-ia, a partir desta ótica, desenvolver o que o autor chama de “caminho da cruz”. O texto trata do aspecto negativo apenas – a correção da ideologia triunfalista – quando pode-se mostrar o caminho a ser seguido. Como, por exemplo, através das oposições do bloco 8,31-10,52: criança/adulto, último/primeiro, servir/dominar etc, onde se definem as práticas messiânica e eclesial.

 

MYERS, C. O evangelho de São Marcos. São Paulo: Paulinas, 1992, 581 p.

Um ativista da paz, Ched Myers estudou S. Escritura em Berkeley, Califórnia. O original deste comentário a Marcos foi publicado pela Orbis Books, Maryknol, New York, em 1988 e tem como título Binding the Strong Man. A Political Reading of Mark’s Story of Jesus (“Amarrando o homem forte. Leitura política da história de Jesus de Marcos”).

A obra compõe-se de quatro partes: a primeira trata do texto e do contexto sócio-histórico do evangelho de Marcos, a segunda e a terceira leem o texto e a quarta traz as conclusões do trabalho. Um posfácio e um apêndice consideram as várias leituras sociopolíticas atuais da narrativa de  Jesus.

O autor adota o modelo centro-periferia, que ele (norte-americano, escrevendo do centro imperial) considera adequado tanto para a produção do texto de Marcos quanto para a sua leitura atual.

“O mundo mediterrâneo antigo era dominado pela lei da Roma imperial. No entanto, se eu leio situando-me no centro [USA], Marcos escreveu da periferia palestina [naMYERS, C. O evangelho de São Marcos. São Paulo: Paulinas, 1992, 581 p. Galileia, entre 66 e 70 d.C. quando Roma destruía a Palestina]. Seu principal auditório era constituído por aqueles cujas vidas diárias suportavam o peso explorador do colonialismo, ao passo que os meus ouvintes são os que se acham em posição que lhes possibilita usufruir os privilégios do colonizador” (p. 29).

Assim, citando Dorothee Sölle, o autor reflete: “Nós que nos achamos no centro (…) não temos outra opção senão a de ‘fazer teologia na casa do faraó’, ou seja, ficar do lado dos hebreus mesmo sendo cidadãos do Egito” (p. 30). Privilegiada, para ler Marcos, é a situação de quem se  situa na periferia e pode enfocar adequadamente temas de libertação, como o fazem os teólogos latino-americanos, emenda o autor.

Deste modo, mesmo situado no centro, o autor defende uma leitura libertadora de Marcos, considerando a chave apocalíptica a mais adequada para a leitura do texto, a partir de sua definição dos escritos apocalípticos, tais como Daniel e Apocalipse, como “manifestos políticos de movimentos não-violentos de resistência à tirania”. “Meu comentário” acrescenta Myers “demonstra que o mesmo pode ser dito a propósito de Marcos” (p. 491).

Ched Myers procura extrair três fios narrativos ou subtramas do evangelho de Marcos. “A primeira subtrama envolve tentativas de Jesus para criar e consolidar uma comunidade messiânica, tendo como sujeito evidentemente seus discípulos. Seu mandamento a eles dirigido deve levar avante a obra do reino (…) A segunda subtrama é o ministério de Jesus de cura, de exorcismo e de proclamação da libertação, tendo como sujeito os pobres e oprimidos, encarnados pela ‘multidão’ no Evangelho. O mandamento aparece no primeiro exorcismo da sinagoga, em que a multidão reconhece que  a autoridade de Jesus supera  a dos supersenhores, os escribas (…) A terceira subtrama é o confronto de Jesus com a ordem sociosimbólica dominante, tendo como sujeito os defensores desta obra: os escribas, os fariseus, os herodianos e o clero dirigente de Jerusalém. Jesus confia seu mandamento a eles diversas vezes na primeira campanha de ação direta, afirmando sua autoridade sobre o sistema de pureza e de débito (2,10.28) e desafiando as autoridades a optarem pela justiça e pela  compaixão em vez da dominação” (p. 158-159).

Estas três subtramas levam Jesus à prisão e execução, com a deserção dos discípulos, a decepção da multidão e a hostilidade das autoridades. Jesus segue sozinho o caminho da cruz. “Essa tragédia, porém, é revertida pela promessa de que, como Jesus vive, a aventura do discipulado pode continuar (16,6s)” (p. 158).

Deste modo, o evangelho de Marcos é visto como um manifesto escrito para súditos do poder imperial romano “aprenderem a dura verdade sobre o seu mundo e sobre eles mesmos”. Para Ched Myers o relato de Marcos “é história feita pelos comprometidos, que versa sobre os comprometidos e que se dirige aos comprometidos com  a obra de Deus, obra de justiça , de compaixão e de libertação no mundo”.

Aos teólogos modernos Marcos não “oferece sinais do céu” (Mc 8,11-12), como não os oferecem aos fariseus; aos exegetas que recusam um compromisso ideológico Jesus não dá resposta alguma, como não a deu aos sumos sacerdotes (Mc 11,30-33)… “Mas aos que querem provocar a ira do império, Marcos apresenta uma forma de “discipulado (8,34ss)” (p. 34). Um discipulado radical.

 

VV. AA. Ele caminha à vossa frente. O seguimento de Jesus pelo evangelho de Marcos. Estudos Bíblicos, Petrópolis, n. 22, 1989, 93 p.

O número 22 da revista Estudos Bíblicos foi preparado pelos “biblistas mineiros”, grupo que periodicamente se reúne em Belo Horizonte para colaborar com esta publicação da Vozes, como o fazem outros grupos espalhados pelo país. À época, 1989, coordenado por Alberto Antoniazzi, este grupo optou pelo estudo do evangelho de Marcos, com especial atenção à pedagogia de Jesus. Cientes de que Jesus ensinou mais pela vida do que pelas palavras, demos atenção “à prática (ou práxis) de Jesus, assim como Marcos a apresenta, e ao modo com que o mesmo evangelista fez da vida de Jesus o roteiro da caminhada de seus discípulos; roteiro válido para nós hoje”, explica o editorial assinado por A. Antoniazzi.

Duas visões de conjunto do evangelho abrem este n. 22: Airton José da Silva oferece, no primeiro artigo, um roteiro para uma leitura de Marcos, acompanhado o próprio texto do evangelho e relendo “o contexto conflitivo em que foi escrito e o seu objetivo de preservar uma memória proibida, que alimentava a luta dos oprimidos” (p. 8); Walmor Oliveira de Azevedo, no segundo artigo, “procura revelar ‘a força pedagógica da articulação global do Evangelho de Marcos’”, mostrando “como a leitura do Evangelho provoca e exige o envolvimento do leitor num processo que lhe abre perspectivas de ação libertadora” (p. 8).

A seguir são propostos dois exemplos do seguimento de Jesus em Marcos através da análise de temas específicos. Alberto Antoniazzi lê Mc 4,1-14, o capítulo das parábolas, enquanto Airton José da Silva explora o significado dos milagres em Marcos, através da leitura de Mc 6,30-44, relato da multiplicação dos pães”.

Após estes quatro artigos, dois instrumentos de trabalho são oferecidos ao leitor: “Uma experiência popular com Marcos” de Paulo Sérgio Soares, “explica como um grupo pode aprender a usar (na sua comparação bem ao gosto do povo) o facão para tirar a água do coco, ou a mensagem da Bíblia” (p.8); e em “Apresentação de alguns estudos sobre Marcos”, Emanuel Messias de Oliveira apresenta nove livros sobre Marcos, com a intenção de ajudar o leitor interessado a prosseguir suas pesquisas sobre Marcos.

Como brinde aos leitores, José Luiz Gonzaga do Prado “apresenta uma leitura original do conhecido texto de Paulo, Fl 2,6-11, mostrando que a perspectiva do caminho, tão importante para entender Marcos, ilumina também o famoso texto paulino”, explica A. Antoniazzi no editorial.

Uma notícia sobre o Mês da Bíblia e duas recensões encerram este número de Estudos Bíblicos, que recomendo vivamente ao leitor como útil instrumento para que faça, ele mesmo,  a “sua” leitura de Marcos.

 

BALANCIN, E. M. Como ler o evangelho de Marcos. Quem é Jesus?  2. ed. São Paulo: Paulus, 1991, 183 p.

Este texto de Euclides Martins Balancin reutiliza o material pensado e apresentado para círculos bíblicos no semanário Bíblia-Gente e faz parte da coleção de sucesso da Paulus “Como ler a Bíblia”. Coleção que pretende ser “uma chave de leitura, uma espécie de lanterna que nos ajuda a focalizar e a enxergar, no seu conjunto, um ou mais livros bíblicos (…) e estimula a ler os textos com os pés no chão da existência, jamais perdendo de vista os anseios de vida e liberdade do nosso povo”, explica a editora na p. 5.

Lendo o primeiro versículo de Marcos (“Começo da Boa Notícia de Jesus, o Messias, o Filho de Deus”)  Balancin nos explica que “todo o livro de Marcos é caracterizado como um simples começo” (p. 10): lendo Marcos, acompanhamos Jesus saindo de Nazaré da Galileia para ser batizado por João na Judeia e retornando à Galileia após a prisão deste. Na Galileia Jesus realiza suas ações, faz a caminhada com seus discípulos até Jerusalém, onde entra em choque com as autoridades judaicas, é crucificado e, após a ressurreição, promete encontrar-se com os discípulos na Galileia.

BALANCIN, E. M. Como ler o evangelho de Marcos. Quem é Jesus?  2. ed. São Paulo: Paulus, 1991, 183 p.Segundo Balancin, “desse modo, o evangelista nos ensina que aquilo que Jesus realizou é apenas o início da atividade que seus discípulos deverão continuar em todos os tempos e lugares, a fim de trazer o Reino de Deus para dentro da humanidade e da história. Fazendo isso, os seguidores de Jesus têm certeza de sua presença viva e contínua no meio deles (p. 11).

Acontece que Marcos diz também ser o seu escrito uma Boa Notícia, um Evangelho. Mas Marcos nos mostra mais o que Jesus faz do que o seu ensinamento. “Com isso, ficamos sabendo que o grande ensinamento de Jesus é sua prática e que sua palavra é nova porque é sempre acompanhada por sua ação” (p. 12). Só que este conceito “evangelho” era aplicado, na época, ao César romano, cuja subida ao poder era divulgada como boa notícia. “Ao proclamar Jesus Filho de Deus, Marcos está dando a “Boa Notícia que constitui um desafio à organização da propaganda imperial dos romanos” (p. 13).

E mais: Marcos diz que Jesus é o Messias (o Cristo) em um momento em que havia muitas e diferentes ideias a respeito de quem seria o Messias, de onde ele viria e qual seria a sua missão. Marcos vai, ao longo de seu texto, explicar porque Jesus é o Messias. Assim, diz Balancin, Marcos “vai mostrar que a prática de Jesus entra em conflito com aquilo que muitos esperavam de um messias”, posicionando-se “na luta ideológica sobre o modo de entender adequadamente o Messias” (p. 13).

A partir deste ótica, sintetizada no primeiro versículo ou título do evangelho, é que Balancin lê Marcos. Para ele, este título nos coloca diante de grandes desafios, elencados na p. 14:

  • “se quisermos ser discípulos de Jesus Ressuscitado, precisamos ser continuadores de sua prática;
  • desmascarar os falsos messias que são criados pela propaganda e se apresentam como salvadores;
  • desmistificar os ‘homens divinos’ que sustentam um ‘reino’ que explora e oprime;
  • discernir entre a Boa Notícia e as outras notícias que são apresentadas como boas”.

CNBB Caminhamos na estrada de Jesus. O evangelho de Marcos. 2. ed. São Paulo: Paulinas, 1996, 128 p.

O Secretário Geral da CNBB, Dom Raymundo Damasceno Assis, nos explica na apresentação deste livro, às p. 5-8, terem os bispos brasileiros determinado que o tema central da preparação do grande Jubileu em 1997 – Jesus Cristo e a fé – “seja assumido, refletido e vivenciado principalmente a partir do evangelho de Marcos, lido aos domingos neste ano litúrgico.

Como está previsto no Projeto de Evangelização “Rumo ao Novo Milênio”, este subsídio “é uma introdução à leitura do evangelho de Marcos que destaca a figura de Jesus e os passos que todo discípulo – de ontem ou de hoje – deve dar para seguir o caminho de Jesus, ou seja, para viver sua fé” (p. 5).

Acrescenta Dom Raymundo Damasceno, na página 6, que o objetivo desse subsídio “é levar os leitores e suas comunidades a aprofundar a fé em Jesus, a renovar a adesão pessoal a Ele, a firmar o compromisso de segui-lo nos caminhos da vida. Marcos nos convida a refazer hoje os passos que Jesus faz na busca da vontade do Pai, desde a Galileia até Jerusalém, lugar da cruz e ressurreição”.

Caminhamos na estrada de Jesus, fruto do trabalho de uma equipe que assessorou a CNBB, é destinado aos animadores de círculos bíblicos e de grupos de reflexão, bem como aos padres e agentes de pastoral que deverão comentar este evangelho nas celebrações dominicais.

Já na Introdução (p. 9-11), o autor do livro explica que seu título é tirado da oração eucarística V, quando, após a consagração repetimos: “Caminhamos na Estrada de Jesus”, nos comprometendo, mais uma vez, com a Boa Nova de Jesus. Marcos  nos oferece, em seu evangelho, o mapa e o roteiro desta Estrada. São 9 capítulos: o 10 é de introdução, o 80 “fala da importância da fé para quem assume caminhar na Estrada de Jesus”, o 90 “fala da terra e do povo por onde passa a Estrada de Jesus”, enquanto que “nos capítulos 2 a 7 percorremos as várias etapas deste caminho, desde o lago na Galileia até o Calvário em Jerusalém” (p. 9).

No capítulo primeiro o autor nos apresenta, de início, uma série de problemas que marcavam a vida das comunidades cristãs por volta do ano 70 – data em que Marcos escreve (p. 17). Os principais problemas seriam: a ameaça constante de perseguição dos cristãos por parte do Império Romano; a rebelião dos judeus da Palestina contra a invasão romana e a atitude dos cristãos que estavam sem saber se deviam entrar ou não nesta luta; como entender que um crucificado, considerado como “maldito de Deus”, poderia ser o Messias, e, ainda, como organizar adequadamente uma comunidade cristã…

E explica: “No meio de tantas preocupações, a preocupação maior continuava sempre a mesma: ‘Como ser discípulo ou discípula de Jesus no meio desta situação tão complicada e tão difícil?’ Esta ainda é a pergunta que, até hoje, nos leva a abrir os evangelhos e que, em toda parte, suscita grupos que se reúnem em torno da Palavra de Deus” (p. 20).

E mais adiante (p. 24) o autor nos esclarece que Marcos não quer apenas nos informar sobre o que Jesus fez no passado, “mas também quer que você se identifique com os discípulos de Jesus e se envolva com os problemas deles, sinta o entusiasmo deles e viva a crise que eles viveram. Que percorra o caminho que aqueles primeiros discípulos percorreram junto com Jesus, desde a Galileia até Jerusalém. E fazendo assim, que você elimine de dentro de si ‘o fermento dos fariseus e dos herodianos’ (Mc 8,15) e se torne melhor discípulo ou discípula de Jesus”.

A caminhada dos discípulos e das discípulas de Jesus no evangelho de Marcos é feita em quatro etapas:
1) Mc 1,16-6,13 : o entusiasmo no início da caminhada com Jesus
2) Mc 1,35-8,21 : o mistério da pessoa de Jesus aparece. Nos discípulos surge a crise do não entender
3) Mc 8,22-13,37: a cegueira causada pela luz escura da Cruz é combatida pela instrução de Jesus
4) Mc 14,1-16,8: o fracasso final é apelo para recomeçar tudo de novo.

Para terminar: “São estes os quatro passos da caminhada com Jesus. Eles indicam o roteiro que vamos seguir neste livrinho. Vamos olhar nele, como se fosse um espelho, onde vemos refletida nossa própria vida. Foi pensando na vida das comunidades, que Marcos recolheu e arrumou as palavras e gestos de Jesus” (p. 27-28).

Leia Mais:
Sobre minhas publicações

O Evangelho de Paulo

Do campo para a cidade: o Evangelho de Paulo. Vida Pastoral, São Paulo, n. 152, p. 13-18, 1990.

A partir da década de 1960 o Brasil entrou em acelerado processo de modernização. Isso foi uma consequência de seu ingresso ativo no mercado capitalista mundial. Rápidas mudanças começaram a ser feitas.

Uma delas, das mais importantes, consequência da industrialização, foi o crescimento urbano. As cidades aumentaram em número e cresceram enormemente em população. Os grandes centros sofreram o inchaço típico das concentrações industriais.

E isso colocou um problema para a prática pastoral, que se vê hoje obrigada a criar novos mecanismos, mais adequados ao mundo urbano. Na verdade, a Igreja estava acostumada a uma centenária pastoral rural. E enfrenta agora complicados problemas urbanos, para os quais as soluções tradicionais não são suficientes.

Motivados por essa problemática, talvez seja interessante verificarmos, nas origens do cristianismo, processo semelhante. O primeiro que se deu.

O evangelho foi anunciado por Jesus e seus seguidores imediatos em ambiente em eminentemente rural, que era o da Palestina do século I d.C. É o que podemos facilmente perceber na leitura dos evangelhos, onde o referencial das parábolas, dos milagres e de outros ensinamentos é o da roça, do gado, da terra. Mesmo quem morava nas cidades da Judeia ou da Galileia, cidades pequenas, vivia em permanente contato com o campo e seu universo de valores.

Além disso, é um evangelho pregado por judeus a judeus. O espaço geográfico e a mentalidade são restritos a um povo só e a uma nação apenas.

Acontece que, cerca de dez anos após a morte de Jesus, o evangelho já era fortemente anunciado em outros países e para outros povos. Quem começou este processo foram os “helenistas”, judeus nascidos no exterior, segundo At 11,19-26. Saindo de Jerusalém, eles pregaram o evangelho aos gentios de Antioquia. Com sucesso. Antioquia, com seus 500 mil habitantes, era uma das maiores cidades do Império Romano.

Mas quem assumiu com maior determinação esta nova tarefa de anunciar o evangelho aos gentios foi Paulo de Tarso. Durante toda a sua vida, cerca de trinta anos de atividade apostólica, ele percorreu as cidades mais importantes da Ásia Menor e da Grécia anunciando o evangelho de Jesus Cristo.

Foi um passo decisivo na história da jovem Igreja, que se espalhou progressivamente por todo o Império Romano. Enfim: o evangelho acabou dando mais certo fora do que dentro da Palestina.

Acompanhando os passos de Paulo, é essa passagem que queremos examinar. Passagem do evangelho de um ambiente nacional, judaico e rural, a Palestina, para um ambiente universal, greco-romano e urbano, as cidades do Império Romano.

Vamos desenvolver o tema em três momentos, perguntando-nos a propósito dessa passagem do evangelho do ambiente palestino para o mundo greco-romano:

  • Quais foram as causas dessa passagem?
  • Como foi feita essa passagem?
  • Qual era a finalidade dessa passagem?

Esta é a introdução do artigo. Os itens acima têm os seguintes títulos:

1. Paulo, chamado para ser apóstolo
1.1. Eu sou de Tarso, cidade célebre
1.2. Quem não quer trabalhar também não há de comer
1.3. O que era para mim lucro eu o tive como perda

2. Expus-lhes o evangelho que prego entre os gentios
2.1. Saudai a Igreja que se reúne em vossa casa
2.2. Como bom arquiteto, lancei o fundamento
2.3. Não há entre vós muitos poderosos, nem muitos nobres

3. O homem é justificado pela fé, sem as obras da Lei
3.1. Não há judeu nem grego: vós sois um só em Cristo Jesus
3.2. Quem ama o outro cumpriu a Lei

A leitura pode continuar na página da Vida Pastoral clicando aqui.

Leia Mais:
Sobre minhas publicações

Por que milagres? O caso dos pães em Marcos

Por que milagres? O caso da multiplicação do pães. Estudos Bíblicos, Petrópolis, n. 22, p. 43-53, 1989.*

Hoje, quando ouvimos dizer que aconteceu um milagre, o que pensamos? Pensamos logo na excepcionalidade do fato, no extraordinário da ocorrência, no impossível que se tornou possível por alguma força estranha, um mecanismo oculto, além da nossa compreensão, um poder sobrenatural que, por alguma razão, se manifestou. Ou duvidamos da coisa toda.

Nesta costumeira definição de milagre pode o leitor observar que o ponto de referência é a violação do modo natural das coisas acontecerem. Pois o milagre é visto como algo acima ou contra as leis que regem o mundo e as nossas vidas. As oposições em jogo esclarecem o raciocínio: excepcional x normal, extraordinário x ordinário, impossível x possível, estranho x comum, oculto x conhecido, sobrenatural x natural.1

Para as pessoas que professam alguma crença religiosa, o milagre, estando do lado do sobrenatural, está do lado de Deus ou dos seus intermediários, em oposição ao  mundo natural dos homens. É visto, neste caso, como uma intervenção divina vinda de fora, alterando a ordem natural dos acontecimentos.

E na Bíblia? Será essa a noção de milagre? Será que a visão corrente de mundo na época de Jesus, por exemplo, coincide com a de hoje? Por que será que naquele tempo havia tanto milagre e hoje não? O que é milagre na Bíblia?

O desafio que lanço ao leitor é o seguinte: lermos juntos o milagre da multiplicação dos pães, de Mc 6,30-44, para entendermos o texto e, talvez, respondermos a algumas destas perguntas.

Para isto, creio que devemos fazer cinco coisas:

1. A primeira é uma leitura de Mc 6,30-44. Mas não aquela leitura mal acostumada, onde vemos tudo o que está em nossa cabeça, mas não se enxerga uma linha do próprio texto. E é preciso ler mais de uma vez. Já disse R. Barthes, um especialista no assunto: “Aqueles que não releem são obrigados a ler sempre e em todos os textos a mesma história”.2

2. Em seguida leremos mais cinco textos, onde aparecem os outros relatos da multiplicação dos pães. No próprio Marcos e nos outros evangelhos. Aí, já estaremos com muitos elementos para abordarmos o texto pela comparação dos vários modos de contar de cada evangelista.

3. Agora é a hora certa de se perguntar a Marcos por que ele contou este episódio neste lugar do Evangelho e não em outro. Afastando-nos um pouco e olhando de longe, verificaremos o plano geral do Evangelho de Marcos e o contexto em que está o milagre em questão.

4. Por falar em milagre, é bem possível que houvesse naquele tempo uma maneira costumeira de contar um fato desse tipo, diferente, por exemplo, do modo de contá-lo hoje em dia. Ver isso pode ser nossa quarta tarefa.

5. Mas agora não podemos mais parar. É preciso perguntar imediatamente: o que se esconde por trás deste modo de contar? Ou, qual é o recado que Marcos quer dar à sua comunidade e ao seu leitor?

Só então é que talvez possamos descobrir o sentido do texto para nós, leitores a quase dois mil anos de distância. Vamos lá?

O artigo tem os seguintes itens:

  1. Qual é o assunto do texto?
  2. Os outros relatos de multiplicação dos pães
  3. Quem é Jesus?
  4. Jesus fez mesmo o milagre?
  5. O recado de Marcos

Notas:
* Uma primeira versão deste texto foi publicada em Vida Pastoral, São Paulo, n. 120, p. 2-8, 1985. Veja o artigo, na íntegra, aqui. Esta versão na Estudos Bíblicos amplia a da Vida Pastoral.

1. WEISER, A. O que é milagre na Bíblia: Para você entender os relatos dos Evangelhos. São Paulo: Paulinas, 1978, p. 12-13, resume muito bem este aspecto, quando diz: “A característica básica a partir da qual se designa alguma coisa por milagre é o elemento excepcionalidade. Mas as opiniões divergem quando se trata de definir em que consiste esta excepcionalidade: para alguns basta somente que o fato aconteça de modo inesperado, enquanto para outros o grau de excepcionalidade exigido para que haja milagres só se verifica quando o fato não pode ser explicado pela ciência. O que se observa, portanto, em primeiro plano, é que se toma a lei natural de modo mais ou menos consciente como ponto de referência”

2. BARTHES, R. S/Z. Torino: Einaudi, 1973, p. 20.

O artigo tem 15 notas de rodapé.

Leia Mais:
Sobre minhas publicações

Marcos: um relato da prática de Jesus

Leia primeiro aqui.

Este é um texto mais curto do que o anterior e em linguagem mais simples, que foi preparado em 1981 para ser usado pelo Serviço de Pastoral Litúrgica da Arquidiocese de Ribeirão Preto em 1982 e que fez parte do Projeto Marcos, um conjunto de atividades pastorais tendo o evangelho de Marcos como centro. O projeto foi estudado na reunião do clero em setembro, em Brodowski, e aprovado na reunião da Coordenação de Pastoral no dia 16 de setembro de 1981 com a presença do arcebispo Dom Bernardo José Miele. O texto da revista Estudos Bíblicos da postagem anterior é mais longo e a abordagem mais acadêmica, mas neste aqui a proposta de leitura de Marcos é a mesma.

Chegar em Marcos de que lado? Geralmente a gente começa pelo autor, data e lugar  em que o livro foi escrito, e as pessoas para quem o autor escreveu. Só depois é que se vai ao texto. 


Vamos percorrer outro caminho. Não é atalho não. Talvez seja até mesmo dar volta. Mas deve valer a pena. Vamos começar pelo texto. Depois que compreendermos o texto e a maneira como foi criado, vamos compreender o resto. É uma proposta.

1. Narrando um prática
De entrada uma coisa chama a nossa atenção em Marcos. Ainda no início do evangelho, Mc 1,21-22, diz o texto: “Entraram em Cafarnaum e, logo no sábado, foram à sinagoga. E ali ele ensinava. Ficaram encantados com o seu ensino, porque lhes ensinava com autoridade e não como os escribas – (os doutores da Lei)”.

Logo no v. 23 o texto passa a contar uma ação de Jesus. E o que é que ele ensinava? O texto não diz. Casos como esses vão se repetir por todo o evangelho (Marcos só indica o conteúdo deste ensinamento ou pregação quando trata da paixão (8,31; 9,31) e de ensinamentos particulares (capítulos 11-12). O que significa isto?

É que o texto de Marcos, ao contrário de Mateus e Lucas, preocupa-se muito mais com a prática de Jesus do que com seu discurso (seu ensinamento). A narração de Marcos não é, na verdade, uma coleção de “palavras” ou de “discursos” de Jesus, mas a exposição de suas práticas e estratégias. E podemos esclarecer: para Marcos a atuação concreta de Jesus, sua prática é que é seu ensinamento. A boa nova não é um ensinamento só em palavras, mas um ensinamento através de determinadas ações concretas.

2. Os atores do texto
Então, percebendo isto, é bom a gente começar a se preocupar com as atitudes do personagem principal do texto, que é Jesus. E também com as atitudes dos outros personagens que se movimentam ao redor de Jesus ao longo desses 16 capítulos.

Quem são esses personagens?

O personagem principal, sem sombra de dúvida, é Jesus. Ao redor dele movem-se seus seguidores, os discípulos. Por sinal, o Jesus de Marcos é sempre um Jesus com os discípulos, menos em duas ocasiões; quando os discípulos partem em missão e quando Jesus é preso. Outro grupo que se destaca é a multidão que procura Jesus, porque o admira e precisa de seus milagres. Finalmente, do outro lado da barricada, estão os representantes do poder judaico: fariseus, escribas, herodianos, anciãos, chefes dos sacerdotes, saduceus. E romanos. São os seus inimigos, gente que o procura para vigiar, investigar, prender e matar.

Agora, começando pelo início do evangelho, podemos observar como é que se movimentam estes personagens na construção do texto de Marcos.

3. Caminho programático
Mc 1,1 é o título do livro. Um título que é uma confissão de fé, uma afirmação que Marcos vai demonstrar ao longo dos 16 capítulos. Jesus é confessado como o Cristo e como o Filho de Deus.

Mc 1,2-15, a introdução do evangelho, nos oferece três destaques que vale a pena anotar:
1. Observamos, em primeiro lugar, a importância da voz: do profeta, de João, do céu, de Jesus. A voz do céu interrompe de vez a de João, que desaparece e autoriza a voz de Jesus. Sua pregação começa já nos vv. 14-15.
2. Há, neste início de evangelho, um caminho geográfico seguido por Jesus: Galileia – Judeia – Galileia. Este caminho é programático, ou seja, é o programa geográfico de todo o evangelho. Antecipa, programando, o caminho seguido por Jesus: atuação na Galileia – na Judeia – volta à Galileia, ressuscitado. É bom a gente notar, desde já, que esta geografia de Mc é artificial, não é real.
3. A descida do Espírito inicia um tempo novo, que será o tempo da atuação de Jesus.

4. Um dia de Jesus na Galileia
Mc 1,16-45 descreve um dia de Jesus na Galileia, num arranjo artificial de Marcos. E, neste primeiro dia do texto, já são definidas várias posições:
1. Jesus situa-se em um grupo, para começar a ação própria de sua missão. Este primeiro grupo é formado por seus discípulos Simão, André, Tiago e João, filhos de Zebedeu. Todos pescadores, galileus, gente pobre e marginalizada na sociedade israelita. Esta ação de Jesus acontece em Cafarnaum e arredores, atingindo pouco a pouco toda a Galileia.
2. A ação de Jesus é de três tipos:

  • ensinamento novo, com autoridade
  • expulsão dos espíritos impuros
  • curas

3. Esta ação de Jesus provoca uma estratégia da multidão, isto é, ela usa certos meios para conseguir seu objetivo: procurar Jesus. E Jesus responde com outra estratégia: evitar a multidão, ficando fora das cidades.

5. A subversão da ideologia judaica
Mc 2,1-3,6 vai apresentar cinco controvérsias (discussões) de Jesus com os escribas e os fariseus. A ação de Jesus provoca duas leituras da realidade, duas maneiras diferentes de ver a realidade:

  • a dos seus adversários, que querem guardar a ideologia judaica, e que seguem a Lei e os esquemas sociais da época
  • e a do próprio Jesus, que está baseada num esquema novo: a chegada do reino de Deus, dentro do qual ele se situa.

Observamos, portanto, nestas cinco controvérsias, que:
1. A ação de Jesus é sistematicamente apresentada como subversiva da ideologia judaica
2. Os inimigos de Jesus, representados pelos escribas, fariseus e herodianos, utilizam a estratégia da tentação (= provocação), que chega ao máximo na decisão de matá-lo
3. Este conjunto de textos é excelente para mostrar como cada um interpreta os acontecimentos de acordo com o lugar que ocupa na sociedade (“Cada um puxa a brasa para a sua sardinha”, diz o ditado).

Mc 3,6 termina uma primeira parte do texto e está na hora de fazermos um balanço do que aconteceu até aqui. Relendo Mc 1,2-3,6 anotamos quatro coisas importantes:
1. A voz do céu em 1,11 é dirigida a Jesus. Ele é eleito por Deus, que lhe dá a capacidade para sua missão.
2. Em 1,14 Jesus inaugura as suas atividades, começando uma série de ações que provocam algumas perguntas entre os seus ouvintes:

  • Quem é Jesus?
  • Com que autoridade ele age?
  • Será que chegou o momento da intervenção definitiva de Deus na história dos homens?

3. Os adversários analisam a ação de Jesus a partir de seus esquemas sociais e legais. Jesus apresenta suas ações como subversivas da ideologia judaica e as analisa segundo um esquema novo: da chegada do reino de Deus, dentro do qual ele se situa. Isto leva os adversários a decidirem a sua morte.
4. Qual é a estratégia de Jesus? Ele não quer que sua messianidade seja revelada pelos demônios. Estes, como seres não humanos, sabem quem ele é. Também a multidão não deve divulgar que Jesus é o Messias.

6.  Mc 3,7-8,30: Jesus é o Messias, dizem os discípulos
A partir de Mc 3,7 o texto sofre uma reviravolta: começa aqui uma distinção clara entre a multidão e os discípulos: “Jesus retirou-se com os seus discípulos” e a multidão o seguia. Esta separação entre os dois grupos vai sendo realizada progressivamente até chegar ao máximo em 8,29 com a confissão de Pedro reconhecendo Jesus como o Messias. O barco, usado a partir deste momento, será um elemento fundamental para definir o círculo “Jesus + discípulos” que se distancia, geográfica e estrategicamente, da multidão. Mc 3,7-12 é uma espécie de programa do texto que vai até 8,30, onde termina a primeira parte do evangelho de Marcos.

Olhando do alto, podemos anotar em Mc 3,7-8,30 seis elementos de destaque:
1. O barco é um elemento de união destes trechos narrativos. Ele aparece em 3,9 e desaparece em 8,14.
2. Os personagens principais que tomam conta do texto são: Jesus, a multidão e os discípulos. Os adversários aparecem bem menos.
3. O texto separa claramente o ensinamento à multidão e o ensinamento aos discípulos. Somente os discípulos saberão ler as práticas de Jesus como sendo práticas messiânicas.
4. Observando-se o texto, vemos as várias leituras feitas a partir da ação de Jesus. Vê-se também a sua estratégia como resposta a estas leituras. Assim parece que o tema central aqui é o segredo messiânico, elemento fundamental no evangelho de Marcos.
5. Relendo a estratégia de Jesus:

  • em relação aos inimigos: ele evita as cidades; entra às escondidas; deixa-os e vai para outro lugar. O motivo: os adversários querem matá-lo.
  • em relação à multidão: às pessoas curadas por ele (e aos demônios) ele proíbe de falar, para evitar um messianismo político. Por outro lado, ele não rejeita a multidão. Está no meio dela, curando e ensinando. Mas, em geral, ele se afasta quando há um número exagerado de pessoas.
  • em relação aos discípulos: formam um círculo ao redor de Jesus e ele age e ensina-lhes separado da multidão. Insiste para que o reconheçam como o Messias.

6. Mc 8,27-30 é o miolo do evangelho. O barco é substituído pelo caminho. Os discípulos ao redor dele, passam a ser os discípulos que o seguem. Jesus, finalmente, faz diretamente aos discípulos a primeira pergunta:”Quem dizem os homem que eu sou?” E separa claramente a multidão e os discípulos: “E vocês, quem dizem que eu sou?” A resposta de Pedro é fundamental: “Tu és o Messias”. Só os discípulos chegam a compreender a ação de Jesus como messiânica. Pedro é o símbolo dos cristãos de todos os tempos.

7. A subida a Jerusalém
Mc 8,31-10,52 é o passo seguinte. A partir de 8,31 Jesus estará preocupado em mostrar aos seus discípulos que o caminho seguido por ele é diferente da esperança messiânica israelita na libertação do poder romano. Podemos resumir isto em quatro pontos:
1. A partir da confissão feita pelos discípulos, reconhecendo o messianismo, Jesus vai explicar-lhes que tipo de Messias ele é: não um Messias glorioso e rei poderoso, como esperavam os judeus, mas um Messias que sofre e morre na cruz, ressuscitando em seguida.
2. Este ensinamento é dado em parte na Galileia (estar ao redor de Jesus) e em parte no caminho para Jerusalém (seguir Jesus).
3. A subida para Jerusalém mostra uma estratégia precisa de Jesus: ele vai se colocar frente a frente com o pensamento judaico, representado pelos sumos sacerdotes, anciãos, escribas e saduceus.
4. Jesus propõe uma prática messiânica e eclesial oposta à maneira de pensar e de agir da sociedade da época: eles querem dominar, Jesus manda servir; querem guardar a vida para si, Jesus manda perdê-la; querem ser ricos, Jesus prefere a pobreza; fazem de tudo para serem os primeiros, Jesus prefere os últimos; eles querem parecer adultos, Jesus pede para que se tornem como crianças.

8. A rejeição definitiva do judaísmo
Mc 11,1-13,37 mostra o confronto de Jesus com o centro do poder judaico, em Jerusalém, no Templo. Confronto que vai acabar na rejeição definitiva do judaísmo por parte de Jesus e de Marcos. É que devemos pensar que Marcos se preocupa com a vida da comunidade em Antioquia ou na Galileia (talvez em Roma), para a qual ele escreve seu evangelho por volta de 70 d.C. Resumindo em três pontos, observamos que:
1. Nestes textos Jesus age e ensina no Templo, centro do poder religioso judaico. Só que durante a noite ele se retira de Jerusalém para os povoados vizinhos, onde certamente está mais seguro.
2. A prática e o ensinamento messiânicos de Jesus rejeitam o judaísmo em favor de uma abertura do cristianismo aos gentios (os não-judeus). E isto porque os judeus primeiro rejeitam o Messias. Esta abertura ao mundo gentio acontecia nas primeiras comunidades. Seu grande teórico foi Paulo de Tarso, que defendia a salvação também para os gentios que não viviam debaixo da Lei e das obrigações judaicas.
3. O Templo de Jerusalém, simbolizado pela figueira que nada produz, será destruído no ano 70 por Tito, general romano. Marcos mostra que isto é uma consequência da rejeição do Messias pelos sumos sacerdotes, escribas e anciãos.

9. Abandonado por todos, Jesus é executado como rebelde
Mc 14,1-16,8 conta os últimos acontecimentos vividos por Jesus em Jerusalém: é o momento da sua prisão, morte e ressurreição. Vejamos como isto nos é contado por Marcos:
1. É o momento do encontro final entre “Jesus + discípulos” com os adversários. Isto só é possível na medida em que um discípulo, Judas Iscariot, passa para o outro lado e o entrega.
2. Não é só Judas quem o nega. Também Pedro o faz. Mas há uma diferença essencial nas duas rejeições: Pedro nega em palavras, mas não o faz de fato; Judas não o diz, mas faz.
3. O texto tem a preocupação constante de mostrar que Jesus caminhou conscientemente para a sua morte: é a única maneira de abafar o escândalo de seu fracasso, transformando-o em vitória.
4. A partir de sua prisão, Jesus é levado passivamente de um lado para outro, em flagrante contraste com sua atitude tão autônoma e independente quando demonstrava o seu messianismo através de variados sinais.
5. Os seus adversários não aparecem como indivíduos, ninguém é chamado pelo nome, mas são vistos como classe, defensores da ordem judaica. Diante deles, Jesus declara claramente o seu messianismo. Todo o processo é descrito como uma farsa e Pilatos condena Jesus como se fosse zelota, agitador político, “rei dos judeus”.
6. Contra Jesus unem-se o poder judaico, os romanos e a multidão. Multidão nacionalista que prefere libertar um dos seus líderes zelotas. Jesus está complemente só.
7. O evangelho de Marcos termina em 16,8. Não se sabe, segundo seu texto, das aparições de Jesus ressuscitado. As mulheres que encontraram o túmulo vazio nada contam a ninguém. Parece que Marcos esperava a volta definitiva do Messias na Galileia, para breve. O texto se abre para o mundo gentio (não-judeu). Mais tarde, a comunidade, que não entendeu estar completo o texto até Mc 16,8, acrescenta-lhe os vv. 9-20.

10. Quem é o autor do texto?
A tradição identificou o autor com João Marcos, judeu de Jerusalém (At 12,12), companheiro de Paulo e Barnabé (At 12,25;13,5.13;15,37-39), também companheiro de Pedro em Roma (1Pd 5,13).

Mas é preciso tomar cuidado com estas afirmações. O autor foi um cristão da segunda geração cristã! Só isto é que sabemos com toda certeza.

Marcos é o primeiro evangelho a ser escrito, talvez por volta do ano 70, em algum lugar do Império Romano, sendo Antioquia, na Síria, o lugar mais cotado. Ou talvez na Galileia ou mesmo em Roma. Escrito em grego, com um vocabulário simples e popular, Marcos tem como leitores, com certeza, uma comunidade composta em sua maioria de pobres e gentios.

Leia Mais:
Sobre minhas publicações

Roteiro para uma leitura de Marcos

O relato de uma prática: Roteiro para uma leitura de Marcos. Estudos Bíblicos, Petrópolis, n. 22, p. 11-21, 1989.

Convido o leitor para uma visita ao Evangelho de Marcos. E recomendo um roteiro para uma leitura contínua do texto. Mas, que critérios seguir?

Com frequência, a leitura que se faz do Evangelho procura a Palavra de Deus dirigida ao eu que leio, em cada passagem. E, sem mais, de tal passagem, tira-se uma mensagem, dita espiritual, que é imediatamente aplicada ao nosso tempo, para dar resposta aos nossos problemas.1

Tal leitura deve ser questionada, pois o texto funciona como um mecanismo que só adquire sentido quando olhado no seu conjunto. E também porque a sociedade em que o Evangelho foi escrito era muito diferente da nossa sociedade atual. Eram outras suas coordenadas econômicas, políticas, sociais e ideológicas. Ora, o texto do Evangelho não escapa destas instâncias concretas onde foi produzido. Pelo contrário, ele se posiciona em relação a tais situações.2

Portanto, é preciso identificar o posicionamento do texto acerca de seu tempo, o tempo da comunidade, em Roma [observo hoje, em 2015: ou, mais provavelmente, em Antioquia; ou mesmo na Galileia], por volta dos anos 70, como também as atitudes assumidas por Jesus e seus seguidores, na Palestina, por volta do ano 30. Com isto, o leitor fica mais preparado para compreender e atualizar a mensagem evangélica.

Assim, proponho seguirmos os passos de Jesus e dos personagens que se movimentam ao seu redor, segundo o relato de Marcos. Descobriremos que a Boa-Nova foi anunciada em um contexto de intenso conflito e expectativa, e que o Evangelho foi escrito para preservar uma memória proibida que alimentava a luta dos oprimidos.3

O relato de uma prática
Olhando o Evangelho de Marcos, uma coisa logo chama a atenção do leitor. Ainda no seu início, em Mc 1,21-22, diz o texto que Jesus ensinava4 na sinagoga de Cafarnaum. Os seus ouvintes ficaram assombrados com o seu ensinamento. E logo no v. 23 o texto passa a contar uma ação de Jesus.

E o que ele ensinava? O texto não diz. Mas o interessante é que casos como este vão se repetir ao longo do Evangelho, ou pelo menos, de parte dele, como, por exemplo, em Mc 2,13; 4,1-2; 6,2.6.34. Só a partir de 8,31 é que se indica mais clara e sistematicamente o conteúdo deste ensinamento, como em Mc 8,31; 9,31; 12,35 etc.

O que significa isto? É que Marcos, ao contrário de Mateus e Lucas, preocupa-se muito mais com a prática de Jesus do que com o seu discurso. A narração de Marcos não é, na verdade, uma coleção de palavras ou de discursos de Jesus, mas a exposição de suas práticas e estratégias. Para Marcos, o ensinamento de Jesus é a sua própria prática. Jesus ensina fazendo.5

Os atores do texto
Então, a partir desta constatação, é bom a gente começar a se preocupar com as atitudes do protagonista do texto, Jesus, e também com as atitudes dos outros personagens que se movimentam ao seu redor ao longo desses 16 capítulos.

Quem são estes personagens? O protagonista, sem sombra de dúvida, é Jesus. Ao redor dele movem-se os seus seguidores: os discípulos/os Doze, que representam o Israel institucional, e aqueles que estavam o redor dele, que não pertencem ao Israel institucional.6

Por sinal, o Jesus de Marcos está sempre acompanhado por seus seguidores, exceto em duas ocasiões: quando eles partem em missão e quando Jesus é condenado e morto.

Outro grupo que se destaca é a multidão que procura Jesus, porque o admira e precisa de seus milagres. Finalmente, do outro lado da trincheira, estão os representantes do poder judaico: fariseus, escribas, herodianos, anciãos, sumos sacerdotes, saduceus. E romanos. São os seus adversários, gente que o procura para vigiar, investigar, prender e matar.

Um esquema para Marcos
E, de repente, aparece o problema da divisão ou esquema adequado a uma leitura do Evangelho de Marcos.

Cada autor apresenta um sistema diferente. Alguns dividem o Evangelho segundo um esquema histórico-geográfico, outros preferem uma divisão por temas, outros ainda evocam elementos literários para justificar esta ou aquela estrutura do texto. Muitos usam sistemas mistos.7

Há, entretanto, grande consenso  entre os especialistas quanto a ser Mc 8,27-30 o núcleo decisivo do Evangelho, dividindo-o em duas etapas.

O esquema deste roteiro pode ser representado por uma escada de dois lanços, cada um respondendo a uma questão fundamental, degrau por degrau:
1. Quem é Jesus?
2. Que tipo de Messias Ele é?

O patamar entre os dois lanços é ocupado pela confissão de Pedro: “Tu és o Cristo (= o Messias)” [segue-se um desenho da “escada”].

O artigo prossegue com os seguintes tópicos:

  1.  A proposta do texto
  2. O anúncio da libertação
  3. Amostras da prática de Jesus
  4. A incompreensão dos adversários
  5. A incompreensão da família e dos conterrâneos
  6. A incompreensão dos discípulos
  7. Quem é Jesus? A definição dos discípulos
  8. A subida a Jerusalém: a opção de Jesus
  9. O confronto com o poder judaico
  10. Jesus frente à morte: derrota ou vitória?

A bibliografia utilizada no artigo, que tem 22 notas de rodapé, foi a seguinte:

ALEGRE, X. Marcos ou a correção de uma ideologia triunfalista: Chave de leitura de um Evangelho beligerante e comprometido. Belo Horizonte: CEBI, 1988.
BELO, F. Lecture matérialiste de l’Évangile de Marc. 2. ed. Paris: Seuil, 1975.
BRAVO GALLARDO, C. Jesús, hombre en conflicto. El relato de Marcos en América Latina. Santander: Sal Terrae, 1986.
CHARPENTIER, E. Dos evangelhos ao Evangelho. São Paulo: Paulinas, 1977.
CLÉVENOT, M. Enfoques materialistas da Bíblia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
DE LA CALLE, F. A teologia de Marcos. São Paulo: Paulinas, 1978.
DELORME, J., Leitura do evangelho segundo Marcos. São Paulo: Paulinas, 1982.
KÜMMEL, W. G. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Paulinas, 1982.
LOHSE, E. Introdução ao Novo Testamento. São Leopoldo: Sinodal, s/d.
MATEOS, J. Los “Doce” y otros seguidores de Jesús en el Evangelio de Marcos. Madrid: Cristiandad, 1982.
METZ, J. B. A fé em história e sociedade. São Paulo: Paulinas, 1981.
PESCH, R. Il Vangelo di Marco. Parte prima. Brescia: Paideia, 1980; parte seconda, Brescia: Paideia, 1982.
TAYLOR, V. Evangelio según San Marcos. Madrid: Cristiandad, 1979.
VÉLEZ, N. A leitura bíblica nas Comunidades Eclesiais de Base. RIBLA, Petrópolis, n. 1, 1988.

Notas de rodapé

1. Um dos resultados mais desastrosos da leitura idealista da Escritura é a fuga da realidade e a consequente construção mítica de um mundo totalmente dualista onde se opõem espírito e matéria, alma e corpo, religioso e secular, sagrado e profano, história da salvação e história humana etc. O espiritualismo é fruto deste processo: ao considerar o espírito superior à matéria, ele ignora os vínculos materiais através dos quais os homens se relacionam concretamente e conduz ao isolamento individualista e à negação da história. Entretanto, distingo aqui entre espiritual e espiritualismo. Para o sentido positivo da chamada leitura espiritual da Escritura, cf. VÉLEZ, N. A leitura bíblica nas Comunidades Eclesiais de Base. Em Ribla n. 1, Petrópolis/São Paulo/São Leopoldo 1988, Vozes/Metodista/Sinodal, p. 36-37.

2. Geralmente atribui-se a autoria do evangelho em questão a João Marcos, judeu de Jerusalém, companheiro de Paulo e Barnabé e também de Pedro, em Roma. Mas o texto mesmo não menciona o nome de seu autor: é a tradição que atribui este Evangelho a Marcos (cf., por exemplo, o testemunho de Papias, do século II) O que é certo, entretanto é só isso: o autor foi um cristão da segunda geração. Quanto ao local e data de composição alguns estudiosos de Marcos defendem, apoiados em certos indícios do próprio texto, que o Evangelho foi escrito, talvez em Roma, para uma comunidade cristã predominantemente gentia, por volta dos anos 70 [anoto em 2015: Antioquia, na Síria, ou mesmo a Galileia, são locais hoje considerados mais prováveis]. Cf. LOHSE, E. Introdução ao Novo Testamento. São Leopoldo: Sinodal, s/d (original alemão, 1972), p. 141-145; KÜMMEL, W. G. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Paulinas, 1982, p. 112-117.

3. “Não é por acaso que a destruição de recordações é uma medida típica da dominação totalitária. A escravização do homem começa com o fato de se lhe tirarem as recordações. Toda a colonização tem aí o seu princípio. E toda insurreição contra a opressão nutre-se da força subversiva do sofrimento recordado. A memória do sofrimento opõe-se, sempre de novo, aos cínicos modernos do poder político” (METZ, J. B. A fé em história e sociedade. São Paulo: Paulinas, 1981, p. 128).

4: O verbo didáskein = ensinar, é usado por Mc 17 vezes; dessas, 15 descrevem a  atividade de Jesus. O ensinamento de Jesus acontece só em ambiente judaico, pois implica uma doutrina exposta a partir da Lei (Torá), enquanto a proclamação da Boa-Nova (kêrússein = proclamar, 14 vezes em Mc), nunca se situa na Judeia e em Jerusalém, mas na Galileia e entre os gentios. A proclamação é para os judeus (fora de Jerusalém) e para os gentios, o ensinamento é só para os judeus. Cf. MATEOS, J. Los “Doce” y otros seguidores de Jesús en el Evangelio de Marcos. Madrid: Cristiandad, 1982, p. 24-25.

5. Cf. BELO, F. Lecture matérialiste de l’Évangile de Marc. 2. ed. Paris: Seuil, 1975, p. 326-356; CHARPENTIER, E. Dos evangelhos ao Evangelho. São Paulo: Paulinas, 1977, p. 163; CLÉVENOT, M. Enfoques materialistas da Bíblia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 81-82.

6. J. MATEOS, em interessante estudo de 304 páginas, Los “Doce” y otros seguidores de Jesús en el Evangelio de Marcos, distingue os dois grupos de seguidores mencionados e esclarece: ao ser chamado de Doze, o grupo simboliza o Israel escatológico-messiânico, a totalidade do povo, enquanto o conceito de discípulos expressa sua decisão de segui-lo. Sobre a relação entre os Doze/discípulos e os outros seguidores que estavam com Jesus, o autor demonstra que não há diferença de posição entre eles. Ambos estão próximos a Jesus, recebem a mesma missão, os mesmo avisos, as mesmas propostas. Cf. as conclusões das p. 247-258. Cf. também as opiniões dos autores que distinguem entre os Doze e os discípulos nas p. 9-20 [do artigo].

7. Cf., por exemplo, DE LA CALLE, F. A teologia de Marcos. São Paulo: Paulinas, 1978, p. 32-38, que utiliza elementos literários e geográficos, em composição bastante harmoniosa. Ou DELORME, J., Leitura do evangelho segundo Marcos. São Paulo: Paulinas, 1982, p. 35, que oferece três organizações possíveis para o texto: segundo a geografia, segundo o desenvolvimento do drama, segundo as relações entre as pessoas.

Se por acaso, alguém ficou curioso querendo saber mais sobre esta abordagem de Marcos, vou propor outra coisa. Clique aqui.

O milagre da multiplicação dos pães

Todos comeram e ficaram saciados: O milagre da multiplicação dos pães. Vida Pastoral, São Paulo, n. 120, p. 2-8, 1985.

O leitor sabe que para se arrear um burro manhoso é preciso ser muito prudente. Só chegando do lado certo e com bons modos é que se consegue evitar o coice.

Comecei falando de burro, porque o milagre da multiplicação dos pães, de Mc 6,30-44, tem-lhe certa semelhança. Se errarmos o lado de chegar ao texto, jamais conseguiremos dominá-lo. O melhor é dar umas voltas ao seu redor, com paciência, observando o jeito certo para começar a entendê-lo.

Se o leitor me permite, gostaria de lhe dar uma mão no caso deste “burro”. Creio que devemos fazer seis coisas:

1.  A primeira é uma leitura de Mc 6,30-44. Mas não aquela leitura mal acostumada, onde vemos tudo o que está em nossa cabeça, mas não se enxerga uma linha do próprio texto. E é preciso ler mais de uma vez. Já disse um especialista no assunto que, “aqueles que não releem são obrigados a ler sempre e em todos os textos a mesma história”(R. Barthes. S/Z. Torino: Einaudi, 1973, p. 20).

2. Em seguida, aproveitando enquanto a Bíblia está aberta, leremos mais cinco textos onde aparecem outros relatos da multiplicação dos pães. No próprio Marcos e nos outros evangelhos. Aí, já estaremos com muitos elementos para abordarmos o texto pela comparação dos vários modos de contar de cada evangelista.

3. Agora é a hora certa de se perguntar a Marcos por que ele contou este episódio neste lugar do evangelho. Afastando-nos um pouco e olhando mais de longe, verificaremos o plano geral do evangelho de Marcos e o contexto em que está o milagre em questão.

4. Por falar em milagre, é bem possível que houvesse naquele tempo uma maneira costumeira de contar um fato desse tipo, diferente, por exemplo, do modo de contá-lo hoje em dia. Ver isso pode ser nossa quarta tarefa.

5. Mas agora não podemos mais parar. É preciso perguntar imediatamente: o que se esconde por detrás deste modo de contar? Ou, qual é o recado que Marcos quer dar ao seu leitor?

6. Só então, depois de tantas voltas ao redor do “burro”, é que talvez possamos descobrir o sentido do texto para nós, leitores a quase dois mil anos de distância. Vamos lá?

Esta é a introdução do artigo. Os seis itens acima têm os seguintes títulos:

  1. Qual é o assunto do texto?
  2. Os outros relatos de multiplicação dos pães
  3. Quem é Jesus?
  4. Jesus fez mesmo o milagre?
  5. O recado de Marcos
  6. Hoje a fome mata demais

A leitura pode continuar na página da Vida Pastoral clicando aqui.

Leia Mais:
Sobre minhas publicações