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Philip R. Davies, exegeta britânico, ao falar dos métodos usados na leitura da Bíblia nas últimas décadas, sugeriu que a combinação das abordagens literárias e sociológicas apresenta hoje o mais promissor caminho para o avanço dos estudos bíblicos.
É que estas abordagens examinam não somente a literatura e a realidade social de Israel, mas também as forças sociais subjacentes à produção da literatura bíblica, onde se distingue a sociedade que está por trás do texto da sociedade que aparece dentro do texto.
Além disso, sublinhou ainda Philip R. Davies, estas abordagens situam Israel no seu contexto histórico apropriado e questionam preconceitos teológicos que, frequentemente, estorvam os especialistas em exegese bíblica.
Na mesma direção sinalizou o norte-americano Norman K. Gottwald, quando disse que a leitura sociológica fecha a porta “firme e irrevogavelmente, às ilusões idealistas e supernaturalistas que ainda impregnam e enfeitiçam nossa perspectiva religiosa”, quando abordamos um texto bíblico.
É igualmente importante salientar que a leitura sociológica da Bíblia está relacionada especialmente com os métodos histórico-críticos e com a leitura popular.
Na medida em que toda abordagem sociológica de um texto histórico é também uma abordagem histórica, a leitura sociológica tem complementado a leitura histórico-crítica. Especialmente importante é a percepção de que sua colaboração se faz necessária quando a historiografia não se contenta em descrever as ações dos grupos dominantes de determinada sociedade, mas a história quer revelar a atividade total de um povo.
Do mesmo modo, a leitura popular que vem sendo feita entre nós se beneficia das contribuições das ciências sociais. No estudo do contexto em que foram escritos os textos bíblicos, por exemplo, costuma-se olhar os quatro lados da situação enfocada: os lados econômico, social, político e ideológico. Esta é uma atitude sociológica.
Por isto, neste artigo proponho:
. descrever sinteticamente o nascimento da sociologia
. dar exemplos de leituras sociológicas da Bíblia Hebraica
. dar exemplos de leituras sociológicas do Novo Testamento
. citar alguns desafios e dificuldades da leitura sociológica da Bíblia.
1. O nascimento da sociologia
Duas condições precedem o aparecimento do pensamento sociológico na Europa: uma secularização de atitudes e dos modos de compreender a natureza humana, a origem e o fundamento das instituições; e um processo de racionalização que projeta na esfera da ação coletiva a ambição de conhecer, explicar e dirigir os acontecimentos e a vida social.
1.1. Dois deslocamentos no pensamento europeu do século XV ao século XVIII
Do século XV ao século XVIII acontecem dois deslocamentos no pensamento humano na Europa.
O primeiro é a passagem da especulação escolástica à filosofia da natureza. A natureza passa a ser entendida e explicada experimentalmente. Este fenômeno se dá com a ascensão da burguesia, na forma de capitalismo mercantilista.
É importante observarmos que Galileu (1564-1642) destrói a anterior concepção do universo como sistema imutável e hierarquizado, governado por Deus, e reduz o universo a um mundo geométrico, a uma física mecanicista.
O segundo deslocamento se dá quando se passa da análise da natureza para a análise da sociedade. Percebe-se, então, que a organização da sociedade não é natural, mas histórica. Questionam-se, filosoficamente, os fundamentos da sociedade a partir da ótica da nova ordem burguesa. É uma crítica ao poder absoluto, no qual Deus criava, organizava e geria o mundo através da Igreja e de suas leituras da realidade.
É de se notar: Descartes (1596-1650) descobre o sujeito pensante autônomo, coloca a consciência como a medida e a forma do ser, marcando uma definitiva virada antropocêntrica.
Mas se Descartes, no século XVII, representa a burguesia progressista pela racionalização (“penso, logo existo”) é Kant (1724-1804) quem incorpora ao racionalismo os elementos do empirismo inglês (existo como um feixe de sensações organizadas), concluindo que o ser humano pode organizar a sociedade com o uso de sua razão. Não é Deus, através da Revelação, que ordena a sociedade, mas é a própria Razão humana que fornece à humanidade os instrumentos políticos para organizar e alcançar a sua felicidade.
Conclui-se a trajetória com Hegel (1770-1831), o intérprete fiel do momento histórico da Revolução Francesa (1789). A burguesia triunfara, vencendo o clero e a nobreza. Era uma nova ordem racional baseada nos moldes que as pessoas queriam, e não mais em tradições e fé religiosas. A razão humana conseguira sua libertação. Explodiam as instituições liberais. A burguesia estava consciente de que suas ideias, finalmente, se encarnavam em estruturas sociopolíticas, aptas a viabilizar a nova realidade econômica.
No hegelianismo a ordem estabelecida não retrata mais um plano divino, mas a racionalidade imanente da própria história. História que é palco de lutas entre contrários, fruto da contradição, superando-se sempre (tese, antítese, síntese). Daí a grande novidade hegeliana: a dialética.
No plano dos fatos, temos classes sociais antagônicas em luta: é a revolução. No plano do pensamento, temos dois polos contraditórios que, através de contínua superação, constituem o avançar histórico, encarnação da ideia em contínua tensão. A dialética é a revolução vitoriosa, em forma conceitual! O mundo, a história, não são réplicas imperfeitas de um mundo transcendente e estático na sua perfeição. Eles são a ideia, fazendo-se, procurando a perfeição. É a superação da metafísica.
Estes são, resumidamente, alguns dos pressupostos nos quais as ciências sociais se fundamentam.
Deste modo, quando Auguste Comte (1798-1857) e Émile Durkheim (1858-1917) procuram formular as leis que regem a organização social, a especulação filosófica sobre a sociedade transforma-se em sociologia. Ciência que pode ser sumariamente definida como o estudo da sociedade humana e de suas instituições.
Podemos, assim, verificar que a sociologia nasce mesmo é como consequência das profundas transformações geradas pela Revolução Francesa e pela Revolução Industrial. É a formação da sociedade capitalista que faz nascer a reflexão sobre a sociedade, suas transformações, suas crises e seus antagonismos de classe.
É preciso considerar, também, que a existência de interesses opostos e conflitantes na sociedade se manifesta igualmente no pensamento sociológico. Há diferentes tradições sociológicas.
Costuma-se dizer, certamente com alguma simplificação, que as diversas sociologias podem ser reconduzidas a três tendências básicas, com teorias e conceitos desenvolvidos nos séculos XIX e XX. São as vertentes funcionalista (Durkheim) compreensiva (Weber) e marxista (Marx).
1.2. O tripé da sociologia: Durkheim, Weber e Marx
O francês Émile Durkheim e os alemães Max Weber e Karl Marx formam o clássico tripé dos pensadores que mais influenciaram o pensamento sociológico.
Antes de Durkheim, entretanto, é preciso mencionar o francês Auguste Comte (1798-1857), considerado o “pai” da sociologia, por ter sido o primeiro pensador a propor a necessidade de uma ciência capaz de entender as bases da sociedade e de criar propostas de intervenção para que ela possa se desenvolver plenamente evitando colapsos como o da Revolução Francesa. Foi Comte quem, no Curso de filosofia positiva, de 1839/42, chamou esta ciência de “sociologia”, do latim socius, significando “o ser que se relaciona com outros”, mais o grego λόγος, “palavra, discurso”.
1.2.1. Émile Durkheim: a sociologia funcionalista
Quem criou um método para a sociologia foi Émile Durkheim ( 1858-1917). Em As regras do método sociológico, de 1895, Durkheim propõe formular uma teoria do fato social, demonstrando que pode haver uma ciência sociológica objetiva e científica, como são as ciências da natureza.
Para que haja tal ciência é preciso visualizarmos um objeto específico que se distinga dos objetos das outras ciências e que possa ser observado e explicado sociologicamente.
Tal objeto são os fatos sociais, conjuntos de comportamentos praticados pelas pessoas que permitem a identificação de uma consciência coletiva, cuja existência independe da vontade dos indivíduos, mas que, de variados modos, influenciam as ações humanas.
Observamos que Durkheim, assim como Comte, é um pensador positivista. Ele acredita que a sociedade pode ser analisada da mesma forma que os fenômenos da natureza. A sociologia tem, assim, como tarefa, o esclarecimento de acontecimentos sociais constantes e recorrentes. O papel fundamental da sociologia seria, deste modo, o de explicar a sociedade para manter a ordem vigente.
Michael Löwy explica que o tipo ideal de positivismo pode ser dito em três ideias principais:
. a hipótese fundamental do positivismo é de que a sociedade humana é regulada por leis naturais que independem da vontade e da ação humana
. os métodos utilizados para estudar a vida social devem ser os mesmos utilizados para estudar o mundo natural, pois as leis que regem a sociedade são do mesmo tipo das leis que regem a natureza
. a terceira ideia básica do positivismo, talvez a de maior consequência, diz que as ciências sociais devem funcionar segundo o modelo de objetividade científica das ciências naturais, ou seja, qualquer vínculo das ciências sociais com classes sociais, posições políticas, valores morais, ideologias, utopias e visões de mundo prejudica a objetividade das ciências sociais e por isso deve ser rejeitado.
O pensamento de Émile Durkheim foi retomado e desenvolvido especialmente por dois sociólogos norte-americanos, Talcott Parsons (1902-1979) e Robert K. Merton (1910-2003), por muitos considerados como os maiores responsáveis pelo desenvolvimento do funcionalismo moderno.
O funcionalismo, ao analisar qualquer elemento de um sistema social, procura saber de que maneira este elemento se relaciona com os outros elementos do mesmo sistema social e com o sistema social como um todo, para daí tirar as consequências que interferem no sistema, provocando sua disfunção, ou, por outro lado, que contribuem para a sua manutenção, sendo, portanto, funcionais.
O funcionalismo assegura que cada instituição exerce uma função específica na sociedade, que é vista como um organismo vivo.
Consequentemente, o funcionalismo vê como tarefa da sociologia a detecção e a busca de soluções para os “problemas sociais”, contribuindo, deste modo, para a restauração da “normalidade social”.
Por enfatizar a integração social, o funcionalismo é frequentemente contraposto à teoria do conflito, que sublinha as divisões sociais.
O funcionalismo atingiu seu auge nos anos 50 do século XX, entrando em declínio nas décadas seguintes.
1.2.2. Max Weber: a sociologia compreensiva
Foram sobretudo os alemães os defensores de uma atitude antipositivista nas ciências sociais, estabelecendo algumas distinções fundamentais entre as ciências humanas e as ciências da natureza. Importante é a distinção formulada pelo filósofo e historiador Wilhelm Dilthey (1833-1911) entre explicação (Erklären) e compreensão (Verstehen). As ciências naturais procuram explicar as relações causais entre os fenômenos, enquanto que as ciências humanas precisam compreender processos da experiência humana que são vivos e mutáveis e que necessitam ser interpretados para que deles se extraia o sentido.
Ao aplicar o método da compreensão aos fatos humanos sociais, Max Weber (1864-1920) elabora os fundamentos de uma sociologia compreensiva ou interpretativa.
Weber vê como objetivo primordial da sociologia a captação da relação de sentido da ação humana, ou seja, chegamos a conhecer um fenômeno social quando o compreendemos como fato carregado de sentido que aponta para outros fatos significativos. O sentido, quando se manifesta, dá à ação concreta o seu caráter, seja ele político, econômico ou religioso.
O objetivo do sociólogo é compreender este processo, desvendando os nexos causais que dão sentido à ação social em determinado contexto. Por isso, para Weber, há profunda ligação entre as ciências históricas e a sociologia.
A sociologia compreensiva de Max Weber, para chegar ao objetivo proposto acima, trabalha com um instrumento teórico chamado “tipo ideal”. O tipo ideal é um conceito sociológico construído e testado previamente, antes de ser aplicado às diferentes situações onde se acredita que ele tenha ocorrido. É um modelo teórico fabricado a partir de fenômenos isolados ou da ligação entre eles, e que é testado, em seguida, empiricamente.
A contribuição de Max Weber se estende por todas as áreas das ciências sociais, sendo muito difundida no Brasil.
1.2.3. Karl Marx: um sociólogo economista
Um resumo da sociologia de Karl Marx (1818-1883) pode ser encontrado no célebre “Prefácio” da Contribuição à Crítica da Economia Política, escrito em janeiro de 1859.
Vamos repassar, com Raymond Aron, em seu comentário do “Prefácio”, as ideias essenciais do pensamento de Marx sobre a sociedade. Ideias que formam o arcabouço do chamado materialismo histórico.
No “Prefácio” Marx explica que para compreendermos as sociedades é necessário analisar suas estruturas, as forças de produção e as relações de produção que nelas se encontram, pois a compreensão do processo histórico está condicionada à compreensão destas relações sociais que ultrapassam os indivíduos.
Ele também diz que em toda sociedade podemos distinguir a base econômica, ou infraestrutura, constituída pelas forças e pelas relações de produção, e a superestrutura, que é constituída pelas instituições jurídicas e políticas, assim como pelos modos de pensar ou consciência social. E acrescenta que, para explicar a maneira de pensar dos seres humanos, é preciso analisar as relações sociais às quais eles estão integrados, pois não é a consciência das pessoas que determina o seu ser, mas é o seu ser social que determina a sua consciência.
Ao analisar a história humana a partir de sua estrutura econômica, Marx fala de quatro modos de produção. Cada um deles é caracterizado por determinado tipo de relações entre os homens na produção da riqueza. O modo de produção antigo caracteriza-se pela escravidão; o modo de produção feudal, pela servidão; o modo de produção burguês, pelo trabalho assalariado e o modo de produção asiático ou tributário, pela submissão dos trabalhadores ao tributo estatal e ao trabalho forçado.
Embora o “Prefácio” Marx não faça alusão à luta de classes, é fácil introduzir o conceito: na contradição existente entre forças e relações de produção, uma classe está associada às antigas relações de produção que constituem um obstáculo ao desenvolvimento das forças produtivas, enquanto que outra classe representa as novas relações de produção que favorecem o desenvolvimento dessas forças. Segundo o Manifesto Comunista, “a história de todas as sociedades existentes até hoje é a história das lutas de classe (…) Opressores e oprimidos, em constante oposição, têm vivido numa guerra ininterrupta, ora franca, ora disfarçada; uma guerra que terminou sempre ou por uma transformação revolucionária da sociedade inteira, ou pela destruição das duas classes em conflito”.
O que se conclui da leitura do “Prefácio” é que, segundo a perspectiva marxista, a sociologia é uma ciência que pode contribuir para a mudança social, ao fazer do conhecimento da realidade social um instrumento político para orientar os grupos sociais na luta pela transformação da sociedade, pois é no terreno da prática que se deve demonstrar a verdade da teoria.
Na segunda de suas onze teses sobre Feuerbach, de 1845, diz Marx: “A questão de saber se ao pensamento humano cabe alguma verdade objetiva não é uma questão da teoria, mas uma questão prática”. Para concluir na última tese: “Os filósofos apenas interpretaram o mundo de diferentes maneiras; o que importa é transformá-lo”.
Raymond Aron nos lembra, com muita propriedade, que Marx foi um sociólogo economista, convicto de que não podemos compreender a sociedade humana sem uma referência ao funcionamento do sistema econômico, nem compreender a evolução do sistema econômico se desprezamos a teoria do seu funcionamento. Como sociólogo, ele não distinguia a compreensão do presente da previsão do futuro e da determinação de agir.
Observo, enfim, que este resumo dá apenas uma rápida ideia da complexidade, do alcance e das inúmeras polêmicas que o pensamento de Marx gera, necessariamente, tanto entre os estudiosos como entre as pessoas engajadas em qualquer ação social. O marxismo não é, de modo algum, um corpo homogêneo de pensamento, existindo variadas interpretações, desenvolvidas tanto por seus seguidores quanto por seus críticos.
1.3. Tendências e exigências da sociologia no século XXI
A fragmentação das teorias sociológicas a partir do final do século XX é enorme.
Observamos que atualmente ocorrem grandes e rápidas mudanças nas sociedades, com destaque para inovações tecnológicas e sociais de impacto, como mídias sociais, drones militares, vigilância onipresente, controle da informação por grandes corporações, só para citar algumas realidades que nos rodeiam. A era digital, com a ampliação da comunicação, trouxe novos e grandes desafios para a trabalho sociológico. É uma nova realidade que exige da sociologia novas abordagens.
Os sociólogos hoje se ocupam com temas tais como conflitos socioambientais, desigualdade e estratificação social, consumo e cidadania, questão racial e de gênero, decolonização, migração, virtualidade e realidade, diversidade e globalização, fundamentalismos políticos e religiosos, entre outros.
Observamos ainda que, frequentemente, paradigmas das teorias sociológicas clássicas, como classe, status e poder, tradicionalmente vistos como elementos básicos da estrutura social, cedem espaço a questões de gênero, sexualidade e identidade na sociologia contemporânea, resultando em um novo discurso de interseccionalidade que ofusca abordagens mais convencionais.
Enfim, em uma sociedade plural e em rápida transformação, a sociologia é constantemente desafiada em seus pressupostos e precisa mudar para se adaptar à nova realidade que é seu objeto de estudo. Deste modo, uma sociologia que nasceu em um contexto de potências europeias colonizadoras e imperialistas, precisa ampliar seu olhar para (e a partir de) um mundo diferente.
Mas aqui cabe uma pergunta: neste contexto, as teorias sociológicas clássicas ainda possuem relevância para o mundo atual?
Muitos teóricos defendem que sim, e é possível verificar como os conceitos dos fundadores continuam a orientar a pesquisa sociológica do século XXI. É preciso considerar que o valor maior dos pensadores clássicos está na sólida estrutura dos métodos que construíram, a partir dos quais suas teorias podem ser adaptadas e utilizadas em diversas situações empíricas.
O filósofo inglês Alfred North Whitehead afirmou certa vez que “a ciência que hesita em esquecer seus fundadores está perdida”. Mas o sociólogo Alvin W. Gouldner tem uma resposta interessante para a afirmação de Whitehead. Segundo Gouldner, “para se esquecer algo é preciso primeiro tê-lo conhecido. Uma ciência que ignora seus fundadores é incapaz de saber quanto caminhou e em que direção. Ela também está perdida”.
2. Leitura sociológica da Bíblia Hebraica
2.1. O pioneiro William Robertson Smith e os estudos de Max Weber
Um dos pioneiros na aplicação das ciências sociais à Bíblia Hebraica foi o escocês William Robertson Smith (1846-1894). Em 1885, em Kinship and Marriage in Early Arabia, e em Lectures on the Religion of the Semites – First Series: The Fundamental Institutions, de outubro de 1888 e março de 1889, as ideias sobre o totemismo que influenciaram Émile Durkheim, J. G. Frazer ou S. Freud já estavam delineadas.
Como muitos de seus contemporâneos, William Robertson Smith tinha uma visão evolucionista da religião, defendendo que a cultura e a religião semíticas tinham passado por uma fase primitiva, matrilinear e totêmica, na qual a comunhão entre os membros de um grupo e seu deus era mantida através do sacrifício e consumação do animal totêmico que representava a divindade.
Mas o que é mais importante em William Robertson Smith é sua ideia de que a pesquisa etnográfica é fundamental para o estudo da religião e da cultura. Esteve entre os árabes do Oriente Médio quatro vezes e defendia que sua cultura mantinha padrões rituais dos tempos antigos que podiam ser aproveitados, de modo comparativo, no seu estudo dos semitas antigos.
Outra obra que teve impacto direto nos estudos bíblicos foi a de Max Weber, Das antike Judentum. Os ensaios que deram origem ao livro de Weber Das antike Judentum (O judaísmo antigo) foram escritos entre 1917 e 1919 e publicados por sua viúva em 1921, em Tübingen.
Em O judaísmo antigo, Max Weber descreve a comunidade judaica como:
. um povo pária, ou seja, ocupando o mesmo espaço com outros povos, mas não se misturando com eles
. uma comunidade da aliança
. referendada pela aliança do povo com Iahweh
. os levitas foram os responsáveis por um javismo mais racional e ético
. os profetas pregavam a ética levítica
Em Economia e Sociedade Max Weber aborda a figura do profeta:
. como um indivíduo carismático, inovador, que se opõe ao sacerdote
. não sendo profissional, um traço característico da profecia é a gratuidade
. os profetas israelitas jamais foram representantes dos camponeses oprimidos pelo sistema monárquico instalado nas cidades, sistema que lhes impunha pagamento extorsivo de tributos e trabalhos forçados em obras públicas. Sua mensagem e seus motivos eram estritamente religiosos.
2.2. Os estudos de Albrecht Alt e de Martin Noth
Os estudos dos alemães Albrecht Alt (1883-1956), especialmente com seus conceitos de carisma e de cidade-estado, e Martin Noth (1902-1968) sobre a importância social da aliança foram muito influenciados por Max Weber.
Os continuados contatos de Albrecht Alt com Palestina e seus trabalhos de pesquisa de campo lhe proporcionaram vastos e profundos conhecimentos sobre as condições concretas e as circunstâncias territoriais da região. Isto se reflete em sua interpretação dos textos bíblicos e em sua historiografia. Ele mesmo designa seu método de ‘método histórico-territorial’.
A influência de Max Weber sobre Martin Noth é ainda mais marcante: a teoria de Noth de uma anfictionia no Israel pré-monárquico, publicada em 1930, foi durante muito tempo um terreno quase sagrado no qual não se podia mexer.
Uma anfictionia é uma liga de seis ou doze tribos ao redor de um santuário no qual habita a divindade e onde se renova a aliança entre as tribos, cada uma cuidando de sua manutenção durante dois ou um mês por ano. Assim, Israel, no período pré-monárquico, teria se constituído nesta forma anfictiônica ao redor de Iahweh.
Esta explicação de Martin Noth é bastante semelhante à de Max Weber de um Israel pré-monárquico existindo como uma comunidade de aliança, o que teria possibilitado a coesão de grupos diversos tanto econômica quanto socialmente.
2.3. As teorias de Mendenhall e de Gottwald sobre as origens de Israel
Sabemos que um dos grandes desafios da História de Israel é explicar como este povo surgiu na Palestina no final do II milênio a.C.
O relato mais detalhado que temos é a narrativa bíblica, especialmente a conhecida conquista da terra do livro de Josué. Mas esse relato ajuda pouco, pois enfatiza os poderosos atos divinos que liberta o povo do Egito, o conduz pelo deserto e lhe dá a terra. Informa-nos, deste modo, sobre a visão e os objetivos teológicos de narradores de séculos depois, ocultando-nos, entretanto, as circunstâncias econômicas, sociais e políticas em que se deu o surgimento de Israel. Por isso há outras propostas para explicar as origens de Israel.
Os norte-americanos George Mendenhall, em 1962, e Norman K. Gottwald, em 1979, aqueceram o debate ao propor que Israel surge de dentro de Canaã, como uma revolta camponesa contra a exploração das cidades-estado cananeias.
George Mendenhall, em 1962, explica que um movimento religioso criou uma solidariedade entre um grande grupo de unidades sociais preexistentes, tornando-as capazes de desafiar e vencer o complexo mal estruturado de cidades que dominavam a Palestina e a Síria no final da Idade do Bronze.
Esta motivação religiosa, segundo ele, foi a fé javista que transcende a religião tribal, e que funciona como um poderoso mecanismo de coesão social, muito acima de fatores sociais e políticos. Por isso, a tradição da Aliança é tão importante na narrativa bíblica, pois essa é o símbolo formal por meio da qual a solidariedade era tornada funcional.
Norman K. Gottwald desenvolvendo detalhadamente, em livro de quase mil páginas, a ideia de uma revolta camponesa, explica as origens de Israel como resultado de uma revolução social consciente que, unindo agricultores e pastores, levou parte da população de Canaã a um processo de retribalização, estruturada como uma forma antiestatal de organização social com liderança descentralizada.
A proposta de Norman K. Gottwald suscitou uma grande polêmica e polarizou as atenções dos especialistas durante muito tempo. Desde então o modelo da retribalização ou da revolta camponesa passou a ser citado como uma alternativa bem mais interessante do que os modelos anteriores, além de fazer surgir outras tentativas de explicação das origens de Israel.
Muitas críticas também foram formuladas a Norman K. Gottwald, sendo a de maior consistência a do dinamarquês Niels Peter Lemche, que em Early Israel. Anthropological and Historical Studies on the Israelite Society before the Monarchy, analisa longamente os fundamentos do modelo de Gottwald.
2.4. Hans G. Kippenberg: religião e formação de classes na antiga Judeia
O alemão Hans G. Kippenberg publicou em 1978 um estudo sobre a formação do judaísmo pós-exílico chamado Religião e formação de classes na antiga Judeia: estudo sociorreligioso sobre a relação entre tradição e evolução social.
O objetivo da obra: relacionar o conteúdo das tradições religiosas judaicas com a vida social dos judeus. O motivo da obra: os movimentos judaicos de resistência contra gregos e romanos tiveram interpretações divergentes por parte de autores que trabalham dentro da dicotomia Religião e Sociedade: enquanto que, para uns, são as motivações religiosas que dominam a história, para outros, são as motivações sociais que contam.
Por exemplo: Martin Hengel (1961) defende que o movimento zelota de resistência tem, como dominantes, razões religiosas, afirmando, assim, a independência e a prioridade do religioso sobre o político-social, enquanto Heinz Kreissig (1970) defende que foram as contradições sociais, criadas por condições socioeconômicas, que possibilitaram o processo de resistência contra Roma, sendo os camponeses e sacerdotes das camadas mais baixas os seus motores principais.
Diante disso, pergunta Hans G. Kippenberg: existia uma relação intrínseca entre determinados conteúdos da tradição religiosa e as lutas de resistência, ou a relação era extrínseca ou, até mesmo, casual?
A hipótese do autor é a seguinte: a tradição se uniu com duas tendências antagônicas: a tendência à formação de classes e a tendência à solidariedade, formando, assim, dois complexos divergentes de tradição que fundamentam os conteúdos religiosos dos movimentos judaicos de resistência.
2.5. Norman K. Gottwald: uma leitura crítica da reforma de Josias
Norman K. Gottwald, no artigo Social Class as an Analytic and Hermeneutical Category in Biblical Studies. Journal of Biblical Literature, vol. 112, no. 1, 1993, p. 3-22, faz uma leitura crítica da reforma de Josias utilizando a categoria de classe social como chave hermenêutica.
A rápida dissolução do domínio imperial assírio na Síria-Palestina no início do reinado de Josias alterou completamente o equilíbrio de poder de classe na Palestina. O governo de Jerusalém viu que agora poderia ser possível não apenas solidificar seu domínio sobre Judá, mas expandir seu domínio sobre o território e a população do antigo reino de Israel norte. Como fazer isso?
Era indispensável aumentar as receitas e conseguir uma população judaíta leal e comprometida. A estratégia de Josias foi reunir os judaítas com um duplo apelo ao fervor patriótico e à pureza religiosa, prometendo restaurar os dias gloriosos da época davídica ao mesmo tempo em que se proibia todo culto a Iahweh fora de Jerusalém.
Esta supressão violenta de locais de culto fora de Jerusalém era, porém, prejudicial para os sacerdotes rurais, respeitados em suas comunidades, enquanto que o aumento das receitas para Jerusalém era oneroso para muitos. As medidas que atingiram as lealdades locais e ameaçaram a cultura e a religião domésticas geraram ressentimento.
Por outro lado, é provável que os maiores apoiadores das reformas entre as subclasses exploradas fossem diaristas descendentes de refugiados do reino do norte em 722 a.C. ou os judaítas que perdiam suas terras por endividamento. Esse grupo lucraria com o aumento do trabalho nos preparativos militares, na construção pública e nos empregos ocasionados pelo comércio de peregrinação.
Em suma, a campanha em favor de uma reforma provavelmente não conquistou uma base de apoio muito considerável, enraizada como estava na classe dominante em Jerusalém, sofrendo uma resistência quase unânime no norte e sendo precariamente apoiada por apenas uma minoria da classe explorada judaíta.
Sabemos que o projeto de reforma de Josias foi interrompido em menos de vinte anos por causa da intervenção egípcia e, depois, babilônica.
2.6. Leitura socioantropológica do livro de Rute
Ouso citar um texto meu. Foi publicado em Estudos Bíblicos em 2008.
Ao fazer a proposta de uma leitura socioantropológica, estou sugerindo que estas duas ciências sociais, sociologia e antropologia, entre outras, podem contribuir hoje de maneira eficaz para o estudo dos textos bíblicos. Mas também estou pressupondo como necessária a abordagem literária dos mesmos textos bíblicos, para evitar a armadilha da leitura do texto como relato fidedigno da realidade social subjacente.
Qual seria, porém, a contribuição específica da leitura socioantropológica? Penso que pode ser o fato desta abordagem examinar não somente a literatura bíblica, mas também as forças sociais subjacentes à produção desta literatura, onde se distingue a sociedade que está por trás do texto da sociedade que aparece dentro do texto. O desafio maior, neste caso, será combinar, sem reducionismos, as abordagens socioantropológica e literária.
Vou utilizar o livro de Rute para visualizar esta proposta. Este livro é uma história que usa lugares reais e pessoas fictícias situadas em determinado espaço e tempo para construir a sua narrativa. Daí que três níveis conectados pela perspectiva conferida ao texto pelo autor/a da história devem ser considerados:
:. o imaginário do autor/a que gera a narrativa
:. o mundo real fora do livro
:. a construção social e ideológica deste mundo pelo autor/a para atingir um objetivo.
É preciso, portanto, como sugeri, olhar em duas direções:
:. para a sociedade que aparece dentro do texto, observando quem são os personagens, o mundo no qual se movem e quais são suas práticas econômicas, políticas e sociais
:. para a sociedade que aparece por trás do texto, investigando a situação na qual e para a qual o livro foi escrito.
Deste modo deveria ser possível mostrar que o modo como os personagens organizam sua visão de mundo são, na verdade, ferramentas literárias utilizadas pelo autor/a na construção de uma história totalmente fictícia, mas que, sem dúvida, produz uma mensagem que é considerada pelo autor/a de Rute como um caminho a ser buscado, estruturando o livro como uma narrativa orientada por uma proposta séria.
O artigo pode ser desenvolvido da seguinte maneira:
1. Olhando a história com os olhos do autor/a, pergunto: o que diz o livro de Rute?
2. Olhando para além do livro, pergunto: o que é possível saber da época em que foi escrito o livro de Rute?
3. Olhando a história com os olhos do leitor atual, pergunto: qual é a proposta do livro de Rute?
2.7. Roland Boer: a economia do antigo Israel
Em um estudo sobre a economia do antigo Israel, de 2015, o australiano Roland Boer concentra-se na construção de um modelo econômico para o mundo antigo que não dependa da economia neoclássica e de sua lógica de mercado liberal. O estudo argumenta que a chave para as economias antigas está com aqueles que trabalhavam a terra e não em reinos e impérios intermitentes e relativamente fracos.
Com base em sofisticada teoria econômica e recursos textuais e arqueológicos, Roland Boer deixa claro que a “crise” econômica era a norma e que a economia é sempre socialmente determinada.
O autor usa, principalmente, três pilares teóricos: a escola da regulação francesa (l’école de la régulation) , as pesquisas marxistas da era soviética e os estudos de Mario Liverani.
Ele conclui que o mais resistente de todos os regimes era a economia de subsistência, para a qual o colapso regular de reinos e impérios era uma bênção e não uma maldição.
3. Leitura sociológica do Novo Testamento
3.1. Gerd Theissen e o radicalismo itinerante
O exegeta alemão Gerd Theissen publicou, em 1973, um artigo chamado “Radicalismo Itinerante. Aspectos de sociologia da literatura na transmissão de palavras de Jesus no cristianismo primitivo” (Wanderradikalismus: Literatursoziologische Aspekte der Überlieferung von Worten Jesu im Urchristentum. Zeitschrift für Theologie und Kirche 70, n. 3, p. 245-271, 1973), no qual ele propõe que o radicalismo ético das palavras de Jesus, como aparece nos evangelhos, é um radicalismo itinerante.
Gerd Theissen defende que esta ética evangélica é possível de ser vivida somente por quem escolhe viver à margem da sociedade, renunciando, assim, à moradia, à família, à propriedade e ao direito.
Ao unir, em sua análise, exegese e sociologia da literatura, esta proposta causou grande alvoroço no meio exegético. As familiares mas domesticadas palavras de Jesus não mais puderam ser tratadas isoladamente das condições sociais de seu tempo ou das circunstâncias sociais e dos interesses específicos de seus seguidores.
Este e posteriores estudos de Gerd Theissen, na linha do funcionalismo estrutural, tratam prioritariamente do movimento de Jesus na Palestina tentando explicar as razões de sua falência ali e de seu grande sucesso no meio gentio fora da Palestina.
3.2. A leitura materialista de Fernando Belo
No ano seguinte ao do pioneiro artigo de Gerd Theissen, um estudo com sabor de manifesto causou viva discussão nos meios exegéticos: foi o do português Fernando Belo, que vivia em Paris.
Utilizando dados da leitura estruturalista do texto, segundo Roland Barthes, somados à análise marxista dos modos de produção na linha de Louis Althusser e à psicologia e psicanálise de Jacques Lacan, entre outros, Fernando Belo escreveu, em 1974, um estudo revolucionário sobre o evangelho de Marcos, chamado Lecture matérialiste de l’évangile de Marc: Récit-pratique-idéologie. Paris: Du Cerf, 1974.
Diz Fernando Belo que ler Marcos de modo materialista é tomá-lo como uma narração que não se pode compreender fora da situação social de seu autor e dos protagonistas (Jesus, seus amigos, seus adversários, a multidão). É pôr o acento menos nas palavras de Jesus do que na sua prática; tanto mais que a narração de Marcos não é uma coleção de “palavras” ou “discursos”, mas expõe práticas e estratégias.
O enfoque materialista se baseia nas pessoas em suas atividades reais, e não no que as pessoas dizem, pensam e representam, nem naquilo que eles são segundo as palavras, pensamentos, imaginação e representação de outros.
A obra de Fernando Belo traz, em primeiro lugar, um ensaio formal do conceito de modo de produção. Depois trata do modo de produção da Palestina antiga e do séc. I d.C., para só então propor uma leitura de Marcos. Fernando Belo termina o livro com um ensaio de eclesiologia materialista.
3.3. John H. Elliott e a sociologia da primeira carta de Pedro
O norte-americano John H. Elliott publicou, em1981, uma análise da primeira carta de Pedro com o título de A Home for the Homeless: A Sociological Exegesis of 1 Peter; Its Situation and Strategy, na qual, utilizando a teoria de que o cristianismo primitivo constituiu uma seita messiânica surgida dentro do judaísmo, retrata a precária situação do cristianismo da Ásia Menor e a estratégia de resposta da carta a tal situação.
Avaliando o resultado de seu estudo do ponto de vista metodológico, John H. Elliott diz que “analisar 1 Pedro em termos de um modelo sectário forneceu um recurso heurístico para visualizar a dinâmica social implícita neste escrito e esclarecer a maneira na qual os vários conteúdos, temas e metáforas organizadoras foram integrados para formar uma comunicação coerente e persuasiva para motivar sua audiência para uma forma efetiva de ação social”.
John H. Elliott foi quem deu nome ao método “social-scientific criticism”, algo como “crítica sociocientífica”, usado, pela primeira vez, no subtítulo da segunda edição de seu livro, publicada em 1990. O método utiliza, além da sociologia, também a antropologia cultural, ou social, e outras ciências sociais. Em português, em meus textos, chamo esta abordagem de “leitura socioantropológica”. Importa lembrar que, além de reconstruir o que está por trás dos textos, a leitura socioantropológica exige do intérprete um modo de pensar sociológico e antropológico.
John H. Elliott diz que a crítica sociocientífica pretende abranger todas as ciências sociais, não apenas a sociologia, e se enquadrar em todas as outras “críticas” do método histórico-crítico. A crítica sociocientífica é uma operação indispensável de um método interpretativo que pretende examinar todas as características dos textos e todos os aspectos de seus contextos sociais e, em seguida, as relações de textos e contextos.
3.4. Wayne A. Meeks e os primeiros cristãos urbanos
Em 1983 Wayne A. Meeks publicou The First Urban Christians: The Social World of the Apostle Paul. Usando a abordagem do funcionalismo estrutural, estudou a origem, posse e status social dos indivíduos das comunidades paulinas, e também os programas, a organização e o comportamento dos grupos mencionados no conjunto dos textos paulinos.
Ele chegou à conclusão de que o típico cristão paulino era o artesão livre e o pequeno comerciante, gente dotada de alta mobilidade social nas grandes cidades do Império Romano. Não teriam pertencido às comunidades paulinas nem o topo da pirâmide social da época (aristocratas donos de terras, senadores, cavaleiros etc.) e nem a base da pirâmide, constituída, então, pelos agricultores pobres, escravos agrícolas, trabalhadores braçais da roça, entre outros.
3.5. Ched Myers e a leitura política de Marcos
Em 1988 o norte-americano Ched Myers publicou um comentário ao evangelho de Marcos que tem como título Binding the Strong Man: A Political Reading of Mark’s Story of Jesus (“Amarrando o homem forte. Uma leitura política da história de Jesus de Marcos”).
A obra compõe-se de quatro partes: a primeira trata do texto e do contexto sócio-histórico do evangelho de Marcos, a segunda e a terceira leem o texto e a quarta traz as conclusões do trabalho. Um posfácio e um apêndice consideram as várias leituras sociopolíticas atuais da narrativa de Jesus.
O autor adota o modelo centro-periferia, que ele (norte-americano, escrevendo do centro imperial) considera adequado tanto para a produção do texto de Marcos quanto para a sua leitura atual.
Deste modo, mesmo situado no centro, o autor defende uma leitura libertadora de Marcos, considerando a chave apocalíptica a mais adequada para a leitura do texto, a partir de sua definição dos escritos apocalípticos, tais como Daniel e Apocalipse, como manifestos políticos de movimentos não violentos de resistência à tirania. Myers diz que o mesmo pode ser dito a propósito de Marcos.
Ched Myers procura extrair três fios narrativos ou subtramas do evangelho de Marcos. “A primeira subtrama envolve tentativas de Jesus para criar e consolidar uma comunidade messiânica, tendo como sujeito evidentemente seus discípulos. Seu mandamento a eles dirigido deve levar avante a obra do reino (…) A segunda subtrama é o ministério de Jesus de cura, de exorcismo e de proclamação da libertação, tendo como sujeito os pobres e oprimidos, encarnados pela ‘multidão’ no Evangelho. O mandamento aparece no primeiro exorcismo da sinagoga, em que a multidão reconhece que a autoridade de Jesus supera a dos supersenhores, os escribas (…) A terceira subtrama é o confronto de Jesus com a ordem sociossimbólica dominante, tendo como sujeito os defensores desta ordem: os escribas, os fariseus, os herodianos e o clero dirigente de Jerusalém. Jesus confia seu mandamento a eles diversas vezes na primeira campanha de ação direta, afirmando sua autoridade sobre o sistema de pureza e de débito (2,10.28) e desafiando as autoridades a optarem pela justiça e pela compaixão em vez da dominação”.
Estas três subtramas levam Jesus à prisão e execução, com a deserção dos discípulos, a decepção da multidão e a hostilidade das autoridades. Jesus segue sozinho o caminho da cruz. Essa tragédia, porém, é revertida pela promessa de que, como Jesus vive, a aventura do discipulado pode continuar (16,6s).
Deste modo, o evangelho de Marcos é visto como um manifesto escrito para súditos do poder imperial romano aprenderem a dura verdade sobre o seu mundo e sobre eles mesmos. Para Ched Myers o relato de Marcos é história feita pelos comprometidos, que versa sobre os comprometidos e que se dirige aos comprometidos com a obra de Deus, obra de justiça, de compaixão e de libertação no mundo.
3.6. Richard A. Horsley e a revolução social do profeta Jesus
O norte-americano Richard A. Horsley faz uso extensivo de métodos marxistas e materiais arqueológicos para reconstruir a situação socioeconômica da época de Jesus. Ele mostra que embora os romanos tenham imposto um modo de produção escravista em algumas cidades, o modelo geral ainda era um modo de produção tributário, com a cobrança de tributos exorbitantes aos camponeses. Assim, além dos impostos romanos, os governantes locais, como os reis herodianos e os sacerdotes de Jerusalém, exigiam seus próprios impostos do povo, enquanto tentavam bajular e imitar Roma.
A resistência tomou a forma de resistência camponesa, sabotagem, movimentos proféticos e messiânicos, escritos de escribas, contraterrorismo e revoltas. Neste contexto da Palestina do século I se insere a pregação profética de Jesus de Nazaré.
Como uma crítica política do Império Romano, Jesus circulou pelas aldeias da Palestina propondo a ideia do reino de Deus aos camponeses pobres de seu tempo para restabelecer uma comunidade de aliança, nos moldes da conhecida pregação profética. Uma empreitada, entretanto, que só poderia ter sucesso se partisse da conscientização da situação de opressão em que viviam. Segundo Horsley, tal proposta pode ser identificada na Q (=Quelle) e no evangelho de Marcos.
Muitos são os escritos de Richard A. Horsley ou as obras editadas por ele. Limito-me a citar algumas publicações entre os anos de 1985 e 2022. Al Umas poucas estão traduzidas para o português. Uma lista mais completa pode ser vista em <https://www.worldcat.org/search?qt=worldcat_org_all&q=Richard+A.+Horsley>.
Bandits, Prophets, and Messiahs: Popular Movements in the Time of Jesus. New York: Harper Collins, 1985. Em português: Bandidos, Profetas e Messias: movimentos populares no tempo de Jesus. São Paulo: Paulus, 1997 [5. reimpressão: 2022].
Jesus and Spiral of Violence: Popular Jewish Resistance in Roman Palestine. Minneapolis: Augsburg Fortress, 1993. Em português: Jesus e a espiral da violência: resistência judaica popular na Palestina Romana. São Paulo: Paulus, 2010.
Archaeology, History, and Society in Galilee: The Social Context of Jesus and the Rabbis. Philadelphia: Trinity Press International, 1996. Em português: Arqueologia, História e Sociedade na Galileia: o contexto social de Jesus e dos Rabis. São Paulo: Paulus, 2000 [2. reimpressão: 2017].
Paul and Empire: Religion and Power in Roman Imperial Society. Philadelphia: Trinity Press International, 1997. Em português: Paulo e o Império: religião e poder na sociedade imperial romana. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2018.
Jesus and Empire: The Kingdom of God and the New World Disorder. Minneapolis: Augsburg Fortress, 2003. Em português: Jesus e o Império: o reino de Deus e a nova desordem mundial. São Paulo: Paulus, 2004.
The Liberation of Christmas: The Infancy Narratives in Social Context. Eugene, OR: Wipf & Stock, 2006.
Jesus and the Powers: Conflict, Covenant, and the Hope of the Poor. Minneapolis: Fortress Press, 2010.
The Prophet Jesus and the Renewal of Israel: Moving Beyond a Diversionary Debate. Grand Rapids, MI: Eerdmans, 2012.
Jesus and the Politics of Roman Palestine. Columbia: University of South Carolina Press, 2014.
You Shall Not Bow Down and Serve Them: The Political Economic Projects of Jesus and Paul. Eugene, OR: Cascade Books, 2021.
Empowering the People: Jesus, Healing, and Exorcism. Eugene, OR: Cascade Books, 2022.
3.7. Robert J. Myles e a luta de classes no Novo Testamento
Robert J. Myles, neozelandês, organizou, em 2019, um livro sobre luta de classes no Novo Testamento. A obra aborda as realidades políticas e econômicas do primeiro século para iluminar a mediação de classes por meio de vários textos e tradições do Novo Testamento. Os ensaios abrangem uma gama de subcampos, apresentando a luta de classes como a força motriz da história, respondendo a debates recentes, dados históricos e novas evidências sobre o mundo político-econômico de Jesus, Paulo e os Evangelhos.
Os autores abordam, por exemplo, as lutas coletivas nos evangelhos, os militares romanos e a questão de classe, a utilidade de categorias como camponeses, empregados e grupos intermediários para a compreensão do mundo de Jesus, a estrutura de classes por trás da origem dos arcanjos, a implicação da ideologia capitalista na interpretação bíblica, o uso de metáforas da escravidão no Novo Testamento, entre outros temas.
Christina Petterson, comentando o livro, nos diz que embora intitulado “Luta de classes no Novo Testamento”, que é um termo e um quadro de referência decididamente marxistas, o livro como tal não faz jus ao seu título. Enquanto alguns artigos empregam diretamente uma estrutura marxista para sua discussão de classe, outros não.
Contudo, embora a promessa do título não seja cumprida, os exemplos podem nos dar uma indicação da questão da classe nos estudos bíblicos e das múltiplas maneiras pelas quais ela é empregada.
4. Desafios e dificuldades da leitura sociológica
4.1. Classificando os estudos
Charles E. Carter, na introdução ao livro Community, Identity and Ideology. Social Sciences Approaches to the Hebrew Bible, observa que, na leitura sociológica da Bíblia Hebraica, alguns pesquisadores enfatizam as forças ou conflitos que produzem mudanças sociais, enquanto outros enfatizam a estabilidade de uma determinada sociedade baseada sobre a estrutura e a função das instituições. E então teríamos, de um lado, uma perspectiva de conflito, como em Max Weber, e, de outro, uma perspectiva estrutural funcional, como a de Émile Durkheim, ambos com significativo número de seguidores nos estudos bíblicos.
Alguns teóricos enfatizam os modos específicos de subsistência que caracterizam uma sociedade, enquanto outros enfatizam as relações econômicas existentes dentro do processo social, o que nos leva à classificar suas abordagens com o nome de estratégias de subsistência versus modo de produção, como em Marx e seguidores.
Outros ainda sublinham a importância das ideias e da ideologia na explicação de como se organizam as sociedades, enquanto outra corrente vê a ideologia como um processo que deve ser explicado a partir das condições materiais próprias de uma sociedade, colocando, de um lado, Max Weber como defensor de um idealismo cultural, e, de outro, Karl Marx como o teórico do materialismo cultural.
É preciso lembrar ainda que estas perspectivas são, às vezes, utilizadas individualmente, mas, outras vezes, duas ou mais abordagens podem ser colocadas lado a lado como complementares pelos estudiosos da Bíblia.
E o que dizer dos estudos do Novo Testamento? John H. Elliott procura classificar os estudos que têm o “social” como pressuposto em cinco categorias, conforme a abordagem assumida.
Alguns são investigações de realidades sociais, tais como grupos, ocupações, instituições e semelhantes, que ilustram aspectos da realidade da época bíblica, mas não analisam, sintetizam e explicam os fatos sociais de maneira científica. Outros estudos são abordagens sócio-históricas de um determinado período, movimento ou grupo. Um terceiro tipo usa a abordagem sociológica para estudar as forças e instituições sociais do cristianismo primitivo. Em quarto lugar ele cita os estudos do Novo Testamento que utilizam as ferramentas da antropologia cultural, como The Context Group. E, finalmente, há aqueles que fazem uma análise sociológica dos textos bíblicos.
John H. Elliott diz que estes estudos são complementares nas suas abordagens, mas alerta que é preciso distinguir entre duas atitudes básicas: uma é a abordagem sócio-histórica que se preocupa em descrever os dados sociais relevantes, enquanto outra é a abordagem sociológica que procura explicar os fatos sociais.
4.2. Questões que sempre voltam
Mark Sneed, em Teaching & Learning Guide for: Social Science Approach to the Hebrew Bible. Religion Compass 4/2, p. 124-129, 2010, faz algumas considerações sobre o método e propõe algumas questões interessantes para debate.
Ele lembra que a abordagem sociocientífica da Bíblia Hebraica ganhou popularidade nos últimos anos. Ela é herdeira da abordagem histórico-crítica mais antiga e dominante nos estudos bíblicos, mas se concentra na sociedade como um todo, em vez de olhar apenas para os governantes e a classe dominante que constituía os Estados antigos.
A abordagem sociocientífica vai além também da popular abordagem da história social, ao incorporar a teoria social em sua interpretação dos textos e da sociedade israelita. Ela transforma o retrato bidimensional dos personagens bíblicos em figuras tridimensionais de carne e osso cujas vidas são motivadas e moldadas por forças sociais maiores.
A abordagem sociocientífica também ajuda a colocar em primeiro plano a “alteridade” do texto bíblico, demonstrando como o texto bíblico reflete uma cultura que não é familiar ao nosso mundo ocidental moderno. Também serve como um alerta contra a atual abordagem da crítica literária da Bíblia, que tende a atenuar essa estranheza do texto antigo e enxergar suposições e noções culturais modernas dentro do texto.
Mas a abordagem sociocientífica também se tornou mais pós-moderna, e seus adeptos sabem que seus lugares sociais influenciam a maneira como interpretam a Bíblia e as escolhas que fazem em relação aos modelos que aplicam ao texto bíblico.
Os biblistas também se tornaram mais céticos em relação à confiabilidade dos textos antigos para reconstruir a realidade sócio-histórica, por causa de seu caráter inerentemente subjetivo, e propuseram maneiras de lidar com isso.
E, finalmente, a abordagem sociocientífica tornou-se mais autoconsciente da natureza especulativa da aplicação de modelos teóricos a textos antigos e do perigo de fazer o texto se adequar ao modelo.
No entanto, apesar disso, os biblistas acreditam que vale a pena arriscar e que sua abordagem traz uma importante contribuição para a crítica bíblica, tornando os estudos bíblicos interessantes e relevantes.
Em atitude de vigilância hermenêutica é sempre útil nos questionarmos sobre os pressupostos da leitura sociocientífica. Por isso perguntamos:
1. Como os biblistas podem aplicar as ferramentas e teorias atuais das ciências sociais, baseadas em sociedades vivas e, portanto, testáveis, a uma antiga sociedade morta?
2. Como se pode utilizar um texto antigo para obter informações sócio-históricas se esse texto é fundamentalmente subjetivo?
3. Ideias religiosas e teológicas podem ser reduzidas a fenômenos sociológicos? Elas têm uma verdade e um valor independentes? As ciências sociais são reducionistas?
4. Existe uma causação social? As ideias podem ser causativas ou a causação é limitada a condições sócio-históricas?
5. A leitura sociológica da Bíblia é realmente científica ou envolve uma dimensão subjetiva?
6. É realmente possível para um biblista aprender adequadamente outro campo de saber como a sociologia e aplicá-lo à Bíblia?
7. O uso de modelos para interpretar a Bíblia é realmente legítimo?
8. As abordagens literárias críticas da Bíblia tornam obsoletas as abordagens das ciências sociais? Há lugar para ambos?
A estas questões acrescento mais uma: a prioridade atual da arqueologia da Palestina, vista como fonte primária para a reconstrução da história do antigo Israel, é auxílio ou entrave para a leitura sociológica dos textos bíblicos?
4.3. Declínio e retorno das questões sociológicas
Na virada do século XIX para o XX e, neste, até a década de 30, perguntas sociológicas eram regularmente aplicadas aos textos bíblicos. Mas, a partir daí aconteceu um retrocesso na pesquisa sociológica da Bíblia.
Entre 1930 e 1970 ocupou grande espaço na pesquisa a teologia bíblica, um movimento paralelo à neo-ortodoxia de Karl Barth (1885-1968) e ao existencialismo de Rudolf Bultmann (1884-1976).
A teologia bíblica tentou harmonizar a descontinuidade histórica de Israel, procurando demonstrar a unicidade religiosa do “pensamento bíblico”. E acabou falindo em tratar a religião de Israel como um fenômeno social.
A teologia dialética de Karl Barth levou a exegese a refletir sobre o conteúdo teológico dos textos, espiritualizando a pergunta pelo Sitz im Leben (contexto social), que passou a ser apenas o “lugar vivencial” religioso. Os textos eram lidos primariamente como expressão da teologia da comunidade e de sua fé. Diminuiu o interesse social e aumentou o religioso.
A hermenêutica existencial de Rudolf Bultmann, com sua tendência individualizante na leitura do Novo Testamento, enfraqueceu mais ainda o interesse pela dimensão social dos textos.
O retorno das abordagens sociológicas aconteceu, porém, a partir da década de 70, em um momento em que as questões sociais emergiam fortemente mundo afora.
Em uma publicação de 1999, Jacques Berlinerblau[45], que tem formação em línguas e literatura semíticas e em sociologia, chamou este retorno de “narrativa triunfante da sociologia bíblica”. Ironicamente, pois ele acentuou mais as diferenças do que as semelhanças entre a primeira e a segunda ondas de abordagens sociológicas da Bíblia.
Ele distinguiu dois tipos de sociologia bíblica:
. o primeiro, da época dos “pais” da sociologia, quando teóricos como Karl Marx, William Robertson Smith e Max Weber usaram a Bíblia Hebraica para testar e refinar suas teorias;
. o segundo, do último terço do século XX, está sendo produzido principalmente por especialistas em estudos bíblicos que usam as teorias sociológicas para compreender melhor os textos bíblicos e o mundo em que foram produzidos.
E ele alerta para o fato de que a teoria tem recebido pouca atenção na sociologia bíblica moderna. E isto é um problema.
Há leituras sociológicas da Bíblia que não citam um único sociólogo, vivo ou morto; há outras que invocam uma determinada teoria ou teórico e, sem nenhuma análise crítica, nela despejam todos os dados bíblicos e arqueológicos de que dispõem; outras, ainda, fazem uma mistura eclética de várias teorias, com adicionais contribuições filosóficas ou teológicas.
Assim, segundo Jacques Berlinerblau, o que aflige as leituras sociológicas da Bíblia é a incapacidade dos biblistas de participar do processo de teorização, um processo que começa pelo domínio de um determinado cânon de teorias e teóricos e que conduz a um diálogo com outras teorias.
Esta dificuldade dos biblistas em integrar o processo teórico da sociologia com a exegese ou a arqueologia tem produzido efeitos negativos, como, por exemplo, a ausência de interesse dos sociólogos pela ampla produção da sociologia bíblica. Isto gera uma crise de legitimidade.
4.4. A avaliação da Pontifícia Comissão Bíblica
Do ponto de vista da Pontifícia Comissão Bíblica, as leituras que fazem uso das ciências sociais são vistas como necessárias, embora comportem alguns riscos, como diz o documento A Interpretação da Bíblia na Igreja, de 15 de abril de 1993.
O documento diz que a abordagem sociológica da Bíblia dá uma abertura maior ao trabalho exegético e lembra ser fundamental para a crítica histórica o conhecimento dos dados sociológicos que contribuem para a compreensão do funcionamento econômico, cultural e religioso do mundo bíblico.
O documento fala também dos riscos dessa abordagem, entre eles, a insuficiente documentação que possuímos sobre as sociedades antigas, fornecida por textos bíblicos e extrabíblicos, o que dificulta a aplicação do método sociológico.
4.5. Classe social como chave hermenêutica
Norman K. Gottwald, no artigo de 1993, já citado, faz algumas considerações interessantes sobre os desafios da leitura sociológica da Bíblia.
Ele começa com uma constatação: lendo os textos bíblicos, chama a nossa atenção a brutal concentração de riqueza e poder nas mãos de determinados grupos do antigo Israel. Até que a presença de ricos e poderosos dentro da Bíblia – ao lado de seus homólogos pobres e fracos – é amplamente percebida e comentada pelos especialistas. Porém, a dinâmica formativa e os efeitos de longo alcance de tão brutais concentrações de riqueza e poder raramente foram conceituados de uma forma empírica e sistemática o suficiente para produzir insights exegéticos e hermenêuticos sólidos.
Ele diz que essa lacuna teórica na análise e explicação da riqueza e do poder na Bíblia é provocada por três fatores que se reforçam mutuamente.
O primeiro é a tradicional hegemonia das categorias religiosas e teológicas nos estudos bíblicos, que teimosamente resiste à sociologia como uma ameaça à integridade religiosa e à autoridade das Escrituras.
O segundo é a controvérsia dentro das próprias ciências sociais sobre se riqueza e poder devem ser entendidos principalmente em linhas estruturais-funcionais ou na linha do conflito.
O terceiro é a incorporação dos estudos bíblicos em uma visão de mundo capitalista que mascara ou nega a existência de divisões estruturais significativas na sociedade.
O resultado é que, juntos, esses fatores desencorajam e inibem os esforços para entender a riqueza e o poder na Bíblia como fenômenos historicamente gerados e reproduzidos. Extremos de riqueza e poder tendem a aparecer nos estudos bíblicos como se fossem “fatos da natureza”, não exigindo maiores explicações. As estratégias costumeiras tendem a ver as desigualdades de riqueza e poder como resultado de diferenças pessoais idiossincráticas aleatórias de habilidade ou empenho, por um lado, ou da ganância desordenada e corrupção moral de indivíduos particulares, por outro.
A sua proposta: a ferramenta analítica chave que poderia nos fazer ir além deste positivismo e deste moralismo superficial sobre riqueza e poder nas sociedades da época bíblica é o conceito de classe social.
Conclusão
Continua a existir forte oposição à leitura sociológica da Bíblia nos meios conservadores, dentro e fora da academia, pois ao pretender estudar racionalmente a religião, os seus textos fundadores ou as instituições religiosas, a sociologia crítica é vista como materialista, ímpia e desagregadora dos valores cristãos.
Acusa-se, ainda hoje, a leitura sociológica de fechar as portas ao transcendente e ao sobrenatural, na medida em que ela se reduz ao horizonte empírico da Bíblia. A leitura sociológica seria reducionista, porque reduz fenômenos religiosos a fatores não religiosos e também porque determina fenômenos religiosos por fatores não religiosos.
Diz-se também que a leitura sociológica sujeita a Bíblia a contínua reinterpretação dependente de estruturas sociopolíticas instáveis, e isto atropela as verdades eternas do cristianismo.
Para terminar, gostaria de lembrar que o filósofo francês da ciência Gaston Bachelard (1884-1962) trabalhou de maneira muito interessante a questão dos obstáculos epistemológicos no processo do conhecimento científico. Nele me inspiro para falar de obstáculos hermenêuticos na leitura da Bíblia.
Quando lemos a Bíblia, tropeçamos constantemente em obstáculos hermenêuticos, tais como a visão idealista da realidade, o individualismo, o moralismo, o dualismo, o romantismo, o teologismo e o populismo.
Obstáculos hermenêuticos são armadilhas do pensamento e só uma constante vigilância ideológica manterá aberta a nossa mente para a experiência da criação do sentido que acontece na operação de leitura dos textos bíblicos.
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>>Bibliografia atualizada em 25.07.2022
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