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Uma leitura de Marcos

O relato de uma prática: roteiro para uma leitura de Marcos

leitura: 26 min

 

Convido o leitor para uma visita ao evangelho de Marcos. E recomendo um roteiro para uma leitura contínua do texto. Mas, que critérios seguir?

Com frequência, a leitura que se faz do evangelho procura a Palavra de Deus dirigida ao eu que leio, em cada passagem. E, sem mais, de tal passagem, tira-se uma mensagem, dita espiritual, que é imediatamente aplicada ao nosso tempo, para dar resposta aos nossos problemas.1

Tal leitura deve ser questionada, pois o texto funciona como um mecanismo que só adquire sentido quando olhado no seu conjunto. E também porque a sociedade em que o evangelho foi escrito era muito diferente da nossa sociedade atual. Eram outras suas coordenadas econômicas, políticas, sociais e ideológicas. Ora, o texto do evangelho não escapa destas instâncias concretas onde foi produzido. Pelo contrário, ele se posiciona em relação a tais situações.2

Portanto, é preciso identificar o posicionamento do texto acerca de seu tempo, o tempo da comunidade, em Roma ou, mais provavelmente, em Antioquia, ou mesmo na Galileia, por volta dos anos 70, como também as atitudes assumidas por Jesus e seus seguidores, na Palestina, por volta do ano 30. Com isto, o leitor fica mais preparado para compreender e atualizar a mensagem evangélica.

Assim, proponho seguirmos os passos de Jesus e dos personagens que se movimentam ao seu redor, segundo o relato de Marcos. Descobriremos que a Boa-Nova foi anunciada em um contexto de intenso conflito e expectativa, e que o evangelho foi escrito para preservar uma memória proibida que alimentava a luta dos oprimidos.3

O relato de uma prática
Olhando o evangelho de Marcos, uma coisa logo chama a atenção do leitor. Ainda no seu início, em Mc 1,21-22, diz o texto que Jesus ensinava4  na sinagoga de Cafarnaum. Os seus ouvintes ficaram assombrados com o seu ensinamento. E logo no v. 23 o texto passa a contar uma ação de Jesus.

E o que ele ensinava? O texto não diz. Mas o interessante é que casos como este vão se repetir ao longo do evangelho, ou pelo menos, de parte dele, como, por exemplo, em Mc 2,13; 4,1-2; 6,2.6.34. Só a partir de 8,31 é que se indica mais clara e sistematicamente o conteúdo deste ensinamento, como em Mc 8,31; 9,31; 12,35 etc.

O que significa isto? É que Marcos, ao contrário de Mateus e Lucas, preocupa-se muito mais com a prática de Jesus do que com o seu discurso. A narração de Marcos não é, na verdade, uma coleção de palavras ou de discursos de Jesus, mas a exposição de suas práticas e estratégias. Para Marcos, o ensinamento de Jesus é a sua própria prática. Jesus ensina fazendo.5

Os atores do texto
Então, a partir desta constatação, é bom a gente começar a se preocupar com as atitudes do protagonista do texto, Jesus, e também com as atitudes dos outros personagens que se movimentam ao seu redor ao longo desses 16 capítulos.

Quem são estes personagens? O protagonista, sem sombra de dúvida, é Jesus. Ao redor dele movem-se os seus seguidores: os discípulos/os Doze, que representam o Israel institucional, e aqueles que estavam o redor dele, que não pertencem ao Israel institucional.6

Por sinal, o Jesus de Marcos está sempre acompanhado por seus seguidores, exceto em duas ocasiões: quando eles partem em missão e quando Jesus é condenado e morto.

Outro grupo que se destaca é a multidão que procura Jesus, porque o admira e precisa de seus milagres. Finalmente, do outro lado da trincheira, estão os representantes do poder judaico: fariseus, escribas, herodianos, anciãos, sumos sacerdotes, saduceus. E romanos. São os seus adversários, gente que o procura para vigiar, investigar, prender e matar.

Um esquema para Marcos
E, de repente, aparece o problema da divisão ou esquema adequado a uma leitura do evangelho de Marcos.

Cada autor apresenta um sistema diferente. Alguns dividem o evangelho segundo um esquema histórico-geográfico, outros preferem uma divisão por temas, outros ainda evocam elementos literários para justificar esta ou aquela estrutura do texto. Muitos usam sistemas mistos.7

Há, entretanto, grande consenso  entre os especialistas quanto a ser Mc 8,27-30 o núcleo decisivo do evangelho, dividindo-o em duas etapas.

O esquema deste roteiro pode ser representado por uma escada de dois lanços, cada um respondendo a uma questão fundamental, degrau por degrau:
1. Quem é Jesus?
2. Que tipo de Messias Ele é?

O patamar entre os dois lanços é ocupado pela confissão de Pedro: “Tu és o Cristo (= o Messias)” [segue-se um desenho da “escada”].

 

1. A proposta do autor

Mc 1,1 é a proposta do autor, uma espécie de título do livro. É uma confissão de fé, uma “tese” que o redator se propõe demonstrar ao longo dos 16 capítulos da obra.

Jesus é confessado como o Messias, em grego, o Cristo, e como o Filho de Deus. Messias é o título que expressa, no evangelho de Marcos, o posicionamento do grupo judeu seguidor de Jesus, confessado por Pedro em Mc 8,29. Filho de Deus, por outro lado, pertence à afirmação dos seguidores não-judeus, como o centurião romano de Mc 15,39. Já o título Filho do Homem, preferido por Jesus, que indica o Homem integral, completo, inclui os dois primeiros.8

 

2. O anúncio da libertação

Mc 1,2-15, o prólogo do evangelho. Vale a pena anotar alguns elementos que ele contém.

Em primeiro lugar, observa-se um circuito da voz: do profeta, de João, do céu, de Jesus. A voz do céu interrompe de vez a de João, que se eclipsa, e autoriza a de Jesus. A voz é dirigida a Jesus como uma eleição, capacitando-o para uma atividade específica, o anúncio do Reino de Deus. Sua pregação é sintetizada nos v. 14-15.

De modo variado e intenso se anuncia, através de símbolos (a caracterização de João, a pomba, a abertura dos céus), de atitudes (de João, de Jesus, de Deus) e de palavras (do profeta, de João, do céu, de Jesus), a chegada da era messiânica, o tempo da libertação tão desejada.

Além disso, há, neste início de evangelho, um caminho percorrido por Jesus da Galileia para a Judeia e, de volta, para a Galileia. Este percurso é programático, ou seja, é o programa geográfico de todo o evangelho. Antecipa, programando, o itinerário seguido por Jesus ao longo do evangelho: atuação na Galileia – na Judeia – volta à Galileia, ressuscitado.9

Por último, vê-se que a abertura dos céus, símbolo do restabelecimento do diálogo interrompido entre Iahweh e Israel, e a descida do Espírito, simbolizando o povo de Israel na sua caracterização como pomba10, indicam a inauguração de um tempo novo, que será o tempo da atuação de Jesus.

 

3. Amostras da prática de Jesus

Mc 1,16-45 descreve um dia de Jesus na Galileia, em arranjo claramente artificial de Marcos. E, neste primeiro dia do texto, já são definidas várias posições.

Jesus situa-se em um grupo, para começar a ação específica de sua missão. Este primeiro grupo é constituído pelos seus discípulos Simão, André; Tiago e João, filhos de Zebedeu. Todos pescadores, galileus, trabalhadores que viviam bem longe das determinações de poder de Jerusalém, centro da ordem judaica. Esta ação de Jesus localiza-se em Cafarnaum e arredores, atingindo, pouco a pouco, toda a Galileia.

A ação de Jesus é de três tipos:

1. ensinamento novo, com autoridade

2. expulsão dos espíritos impuros

3. curas

Esta atividade de Jesus provoca algumas questões em seus ouvintes, como: quem é Jesus? Com que autoridade ele age?

Na primeira ação típica de Jesus como mestre (rabbí), ensinar, o que impressiona os seus ouvintes é a autoridade (eksousía) do seu seu ensinamento. Em flagrante contraste com o ensinamento das autoridades legítimas da sinagoga, os escribas (Mc 1,21-22). Isto já aponta para o descrédito da doutrina oficial, sem autoridade porque não possui o Espírito de Deus, como Jesus.

A categoria Espírito Santo opõe-se à de espírito impuro/imundo, significando duas forças, uma vinda de Deus, a outra contrária a Deus.

Observa-se que em Mc 1,16-45 o conteúdo do ensinamento de Jesus não é especificado, mas toda a ênfase é colocada nas ações de Jesus em favor do homem.11

A ação de Jesus suscita uma reação da multidão (procurar Jesus), à qual ele opõe outra (evitar a multidão), ficando fora das cidades.

 

4. A incompreensão dos adversários

Mc 2,1-3,6 vai apesentar cinco controvérsias de Jesus com os escribas e os fariseus. A ação de Jesus provoca duas leituras da realidade: a dos seus adversários (guardiães da ideologia judaica, que se orientam segundo a Lei e os esquemas sociais correntes) e do próprio Jesus (que está baseada num esquema novo: a chegada do Reino de Deus, perspectiva na qual ele se situa).

A ação de Jesus em defesa da vida é sistematicamente apresentada como subversiva dos esquemas judaicos, pois sempre coloca o homem acima da Lei e, frequentemente, contra a Lei. A preocupação de Jesus é com a vida do homem e com as necessidades reais das pessoas, contrariando, por isso, as ambições de poder e riqueza dos “donos” do povo.

Deve-se considerar que a narrativa dos conflitos de Jesus com a ideologia judaica, especialmente com o legalismo farisaico extremado, recobre também os conflitos da comunidade romana de Marcos entre os cristãos de origem gentia e os cristãos de origem judaica com tendências legalistas.

Estes conflitos de Jesus mostram que as práticas judaicas, roupa velha, não suportam o remendo novo, a prática da comunidade cristã. Ou que o vinho novo, a atualização do Reino em Jesus, não pode ser guardado no invólucro dos rituais farisaicos, que não o suportam.

Os adversários de Jesus, representados pelos escribas, fariseus e herodianos, provocam a estratégia da tentação (= provocação), que culmina na decisão de eliminá-lo (Mc 3,6).

 

5. A incompreensão da família e dos conterrâneos

Mc 3,7-6,6a apresenta uma reviravolta do texto: em 3,7 começa uma distinção entre a multidão e os seguidores de Jesus. É uma separação progressiva que vai culminar em 8,29, com a confissão de Pedro, reconhecendo Jesus como o Messias. O barco, usado a partir deste momento, será um elemento fundamental para definir o círculo Jesus mais seguidores, que se distancia, geográfica e estrategicamente, da multidão.12

É oportuno notar que Jesus sempre muda sua prática quando percebe que suas ações não estão produzindo o efeito desejado. A sua prática é processual e situada.

Por outro lado, os escribas vieram de Jerusalém para investigar. A fama de Jesus alcançara o centro do poder judaico. A leitura que fazem da questão já suscitada no começo da atuação de Jesus (- Com que autoridade ele age?) coloca-o em situação perigosa perante a Lei judaica: ele tem autoridade de Belzebu. Por isso pode expulsar os demônios, como o poder de seu chefe. Jesus, porém, os chama e usa novo mecanismo de leitura, a parábola, revertendo a lógica da acusação (3,22-30).

Entretanto, os parentes de Jesus fazem uma leitura da sua atuação no mesmo nível dos escribas, o que o leva a rejeitar a sua família.

Enlouquecer e estar possuído pelo demônio tinham o mesmo valor para os judeus: ambos colocavam Jesus no âmbito da maldição, excluindo-o da sociedade e dos favores divinos. Finalmente, também os conterrâneos de Jesus acabarão por rejeitá-lo, segundo Mc 6,1-6a.

 

6. A incompreensão dos discípulos

Mc 6,6b-8,26 apresenta uma série de ações de Jesus voltadas para o questionamento dos discípulos e de sua persistente cegueira. O “ver” lento e custoso do cego de Betsaida em Mc 8,22-26 simboliza a dificuldade dos discípulos em perceberem quem é Jesus.

Se o leitor observar bem, verá que dos 19 milagres contados por Marcos, nada menos do que 17 se encontram antes da confissão de Pedro, em Mc 8,29. Ora, verificam os especialistas que o milagre é apenas um sinal. E que exige fé para ser aceito como sinal. Não é, neste sentido, o fato em si que está em primeiro plano, mas o seu significado. Os milagres devem ser lidos, nos evangelhos, como sinais da era messiânica.

Deste modo, os milagres em Marcos servem para provocar a questão básica: – Quem é Jesus? E esta leva à confissão de Pedro: “Tu és o Messias”. Depois disso, eles não são mais necessários.

É assim que o milagre da multiplicação dos pães em Mc 6,30-44, por exemplo, deve ser lido: a intervenção de Jesus como pastor transforma a fome/escassez em saciedade/abundância. Com isso, Jesus quer fazer os discípulos compreenderem que ele é o Messias.13

Pois a esperança messiânica dizia que o Messias seria o libertador da opressão, da miséria, da fome, da doença, da desgraça, da pobreza, da morte. Além disso, o judaísmo o descrevia como um novo Moisés, aquele que repetiria o milagre do maná, que transformaria, no deserto, a fome em saciedade. Pode-se ver que tal leitura da multiplicação dos pães é confirmada pelo episódio de Mc 8,14-21.

Há, nesta fase do texto, um incursão de Jesus em território gentio, fora de Israel – historicamente com pouquíssima probabilidade14 – que aponta para um grave problema enfrentado pelas comunidades primitivas na época de Marcos: só para os judeus ou também para os gentios?

A abertura para os gentios, prática eclesial que se expandia, é justificada pela atuação de Jesus na região de Tiro. E reforçada pela denúncia das tradições dos fariseus em Mc 7,1-23. Fariseus que “se preocupam se são ou não cumpridas as condições rituais da pureza para comer, e não se existem condições materiais” para o povo se alimentar.15

 

7. Quem é Jesus? A definição dos discípulos

Mc 8,27-30 é o núcleo decisivo do evangelho de Marcos. O barco é substituído pelo caminho. Os grupos que ficavam ao redor dele passam a segui-lo.

Jesus, finalmente, faz aos discípulos, diretamente, a pergunta: “Quem dizem os homens ser eu?” E estabelece claramente a distinção entre a multidão e os discípulos: “Vós, porém, que dizeis ser eu?”

A resposta dos discípulos, representados por Pedro, é fundamental: “Tu es o Cristo”.

Depois da proposta do evangelho, me Mc 1,1, que não é, estritamente falando, texto, é a primeira vez que a palavra Cristo aparece no evangelho de Marcos.

 

8. A subida a Jerusalém: a opção de Jesus

Mc 8,31-10,52 começa com um texto programático (8,31-9,1), competente introdução à nova fase que agora se inicia.

Mc 8,31-32a mostra a nova estratégia de Jesus: subir a Jerusalém para um confronto direto com o centro do poder judaico, representado aqui pelos sumos sacerdotes, anciãos e escribas (Templo, Sinédrio e Sinagoga).

Mc 8,32b-33 estabelece a dissidência de Jesus (e, provavelmente, da comunidade de Marcos) em relação aos grupos que lutavam pela libertação do domínio romano.

A repreensão a Pedro indica a diferença entre a concepção messiânica de Jesus (e/ou da comunidade) e a concepção judaica predominante. Aliás, daqui para frente Jesus estará sempre preocupado em fazer seus discípulos entenderem esta diferença e suas implicações. Como se verá, inutilmente.

Jesus rejeita a ideia de um Messias nacionalista que salvaria Israel miraculosamente e estabeleceria a hegemonia definitiva deste povo sobre as outras nações.

A tal visão, que é também a dos discípulos, Jesus contrapõe a de que a libertação virá através do Homem (= Filho do Homem), superará – e até se fará contra – o sectarismo judaico, será lentamente construída pelo esforço da comunidade que continuar sua causa ao longo da história e enfrentará muitos conflitos, lutas, sofrimentos, resumidos tragicamente na figura da cruz.16

É ainda nesta mesma direção que o leitor deverá procurar o sentido das estranhas ordens de silêncio que acompanham a prática messiânica de Jesus e a menção de seus títulos pelas pessoas, no evangelho de Marcos (cf. 1,25.34.44; 3,12; 5,43; 7,36 etc).

É como constata um autor: “Por um lado, parece que os diferentes relatos de Marcos têm como objetivo manifestar quem é Jesus, revelar seu poder. Mas, por outro lado, parece também que essa revelação tenha que ficar ‘secreta’. Por isso, M. Dibelius disse que Marcos é o evangelho das ‘epifanias secretas’”.17

Este tema é conhecido entre os especialistas com o segredo messiânico. Divergem, entretanto, se foi uma estratégia histórica de Jesus frente às tendências messiânicas de sua época ou se é uma correção teológica que Marcos faz das concepções messiânicas triunfalistas de sua comunidade.18

Ainda neste bloco, poderá o leitor observar que há três anúncios da paixão, seguidos, cada um, por um episódio de incompreensão dos discípulos sobre quem é Jesus e suas opções, terminando com uma instrução de Jesus. Assim:

10 anúncio: 8,31 – incompreensão dos discípulos: 8,32 – instrução: 8,34-35

20 anúncio: 9,31 – incompreensão dos discípulos: 9,32-34 – instrução: 9,35

30 anúncio: 10,32-34 – incompreensão dos discípulos: 10,35-40 – instrução: 10,42-45

Esta organização do texto chama a atenção para as oposições criança/adulto; último/primeiro, servir/dominar, rico/pobre, perder a vida/ganhar a vida, que definem a prática messiânica e eclesial como inversão dos esquemas domantes nas sociedades divididas.

Estas oposições, pistas para a prática cristã, clareiam mais ainda a figura de Jesus em Marcos que é a de um homem do povo, sem privilégios ou riqueza, preocupado não com sua própria segurança e nem mesmo com sua “santidade” (ao contrário do rico de Mc 10,17-22 que só pensa em si mesmo, inclusive quando procura o bem…), mas com as necessidades reais dos homens, como a saúde, o alimento, a libertação. Um Jesus que em seu enfrentamento com os donos do poder, da riqueza ou as certezas ideológicas não é protegido pelos falsos poderes de um super-homem, mas vive a angústia, o medo, a dúvida e a vontade de desistir e se acomodar a uma vida mais fácil.

 

9. O confronto com o poder judaico

Mc 11,1-13,37 situa o confronto de Jesus com o centro do poder judaico, em Jerusalém. Jesus desafia seus adversários em pleno Templo, embora se retire para os arredores de Jerusalém à noite, consciente do perigo que corre.19

O texto traz três ações proféticas de Jesus que simbolizam a rejeição das estruturas judaicas:

1. a entrada em Jerusalém em um jumentinho recusa as expectativas guerreiras e reformistas e reafirma a perspectiva messiânica pacífica de Jesus

2. a maldição da figueira estéril, símbolo do Templo, acusa a sua falência, sua incapacidade de gerar vida, apesar da bela aparência

3. a expulsão dos vendedores do Templo denuncia a perversão de sua função original de acesso a Deus, agora transformado em lugar de discriminação do pobre e espaço de reprodução da exploração

Jesus se define em relação às autoridades judaicas e ao poder romano também através de controvérsias com seus adversários, no Templo. Responsabiliza-os pelo assassinato dos profetas, desautoriza as pretensões romanas sobre Israel (o caso do imposto a César), questiona a doutrina tradicionalista dos saduceus e reafirma a centralidade da lei do amor a Deus e ao próximo.

Denuncia, além disso, a prática dos escribas, sua doutrina messiânica e a valorização da riqueza como acesso a Deus. Por fim, prega a destruição do Templo e orienta seus discípulos quanto ao futuro: discernimento nos conflitos, vigilância histórica e esperança de libertação (13,1-37).

10. Jesus frente à morte: derrota ou vitória?

Mc 14,1-16,8 narra os últimos acontecimentos vividos por Jesus em Jerusalém: é o momento de sua prisão, morte e ressurreição.

Dá-se, em Jerusalém, o confronto final de Jesus com os seus adversários. Estes não aparecem como indivíduos, não são chamados por seus nomes, mas são vistos como classe, defensores da ordem judaica. Diante deles Jesus reafirma a sua messianidade. Todo o processo, entretanto, é descrito como uma farsa, e Pilatos condena Jesus como pretenso agitador político, “rei dos judeus”.

Contra Jesus unem-se o poder judaico, os interesses romanos, o nacionalismo da multidão, a incompreensão, a traição e o abandono dos discípulos.20 Jesus está rigorosamente só e morre gritando, na tortura da cruz: “Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste?” (15,34).

O evangelho de Marcos termina em 16,8 com a fuga e o silêncio das mulheres que encontram vazio o túmulo de Jesus. Não se sabe, segundo seu texto, das aparições de Jesus ressuscitado. Alguns cristãos, mais tarde, não entendendo estar completo o texto, acrescentam-lhe os vv. 9-20, com material retirado de Mt e Lc.21

Jesus, entretanto, deve ser reencontrado na Galileia (14,28; 16,7). Em Jerusalém, na instituição judaica, Ele não pode ser visto. Só a Galileia, território aberto à gentilidade, e o lugar do seguimento de Jesus.

Os especialistas descordam quanto ao sentido do silêncio das mulheres, no “último” versículo do evangelho.22 Talvez signifique a falência da Igreja de Jerusalém e do grupo legalista que recusou a ruptura com a instituição judaica. Mas, neste final, Marcos certamente dá um último recado à sua comunidade e aos cristãos de todos os tempos: apesar de tudo, a causa de Jesus continua.

 

Bibliografia

ALEGRE, X. Marcos ou a correção de uma ideologia triunfalista. Chave de leitura de um Evangelho beligerante e comprometido. Belo Horizonte: CEBI, 1988.

BELO, F. Lecture matérialiste de l’Évangile de Marc. 2. ed. Paris: Seuil, 1975.

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CHARPENTIER, E. Dos evangelhos ao Evangelho. São Paulo: Paulinas, 1977.

CLÉVENOT, M. Enfoques materialistas da Bíblia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

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MATEOS, J. Los “Doce” y otros seguidores de Jesús en el Evangelio de Marcos. Madrid: Cristiandad, 1982.

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PESCH, R. Il Vangelo di Marco. Parte prima. Brescia: Paideia, 1980.

PESCH, R. Il Vangelo di Marco. Parte seconda. Brescia: Paideia, 1982.

TAYLOR, V. Evangelio según San Marcos. Madrid: Cristiandad, 1979.

> Este artigo foi publicado em Estudos Bíblicos, Petrópolis, n. 22, p.11-21, 1989

Artigos


1. Um dos resultados mais desastrosos da leitura idealista da Escritura é a fuga da realidade e a consequente construção mítica de um mundo totalmente dualista onde se opõem espírito e matéria, alma e corpo, religioso e secular, sagrado e profano, história da salvação e história humana etc. O espiritualismo é fruto deste processo: ao considerar o espírito superior à matéria, ele ignora os vínculos materiais através dos quais os homens se relacionam concretamente e conduz ao isolamento individualista e à negação da história. Entretanto, distingo aqui entre espiritual e espiritualismo. Para o sentido positivo da chamada leitura espiritual da Escritura, cf. VÉLEZ, N. A leitura bíblica nas Comunidades Eclesiais de Base. Em Ribla n. 1, Petrópolis/São Paulo/São Leopoldo 1988, Vozes/Metodista/Sinodal, p. 36-37.

2. Geralmente atribui-se a autoria do evangelho em questão a João Marcos, judeu de Jerusalém, companheiro de Paulo e Barnabé e também de Pedro, em Roma. Mas o texto mesmo não menciona o nome de seu autor: é a tradição que atribui este evangelho a Marcos (cf., por exemplo, o testemunho de Papias, do século II) O que é certo, entretanto é só isso: o autor foi um cristão da segunda geração. Quanto ao local e data de composição alguns estudiosos de Marcos defendiam, apoiados em certos indícios do próprio texto, que o evangelho foi escrito, talvez em Roma, para uma comunidade cristã predominantemente gentia, por volta dos anos 70. Mas Antioquia, na Síria, ou mesmo a Galileia, são locais hoje considerados mais prováveis. Cf. LOHSE, E. Introdução ao Novo Testamento. São Leopoldo: Sinodal, s/d (original alemão, 1972), p. 141-145; KÜMMEL, W. G. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Paulinas, 1982, p. 112-117.

3. “Não é por acaso que a destruição de recordações é uma medida típica da dominação totalitária. A escravização do homem começa com o fato de se lhe tirarem as recordações. Toda a colonização tem aí o seu princípio. E toda insurreição contra a opressão nutre-se da força subversiva do sofrimento recordado. A memória do sofrimento opõe-se, sempre de novo, aos cínicos modernos do poder político” (METZ, J. B. A fé em história e sociedade. São Paulo: Paulinas, 1981, p. 128).

4. O verbo didáskein = ensinar, é usado por Mc 17 vezes; dessas, 15 descrevem a  atividade de Jesus. O ensinamento de Jesus acontece só em ambiente judaico, pois implica uma doutrina exposta a partir da Lei (Torá), enquanto a proclamação da Boa-Nova (kêrússein = proclamar, 14 vezes em Mc), nunca se situa na Judeia e em Jerusalém, mas na Galileia e entre os gentios. A proclamação é para os judeus (fora de Jerusalém) e para os gentios, o ensinamento é só para os judeus. Cf. MATEOS, J. Los “Doce” y otros seguidores de Jesús en el Evangelio de Marcos. Madrid: Cristiandad, 1982, p. 24-25.

5. Cf. BELO, F. Lecture matérialiste de l’Évangile de Marc. 2. ed. Paris: Seuil, 1975, p. 326-356; CHARPENTIER, E. Dos evangelhos ao Evangelho. São Paulo: Paulinas, 1977, p. 163; CLÉVENOT, M. Enfoques materialistas da Bíblia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 81-82.

6. J. MATEOS, em interessante estudo de 304 páginas, Los “Doce” y otros seguidores de Jesús en el Evangelio de Marcos, distingue os dois grupos de seguidores mencionados e esclarece: ao ser chamado de Doze, o grupo simboliza o Israel escatológico-messiânico, a totalidade do povo, enquanto o conceito de discípulos expressa sua decisão de segui-lo. Sobre a relação entre os Doze/discípulos e os outros seguidores que estavam com Jesus, o autor demonstra que não há diferença de posição entre eles. Ambos estão próximos a Jesus, recebem a mesma missão, os mesmo avisos, as mesmas propostas. Cf. as conclusões das p. 247-258. Cf. também as opiniões dos autores que distinguem entre os Doze e os discípulos nas p. 9-20 [do artigo].

7. Cf., por exemplo, DE LA CALLE, F. A teologia de Marcos. São Paulo: Paulinas, 1978, p. 32-38, que utiliza elementos literários e geográficos, em composição bastante harmoniosa. Ou DELORME, J., Leitura do evangelho segundo Marcos. São Paulo: Paulinas, 1982, p. 35, que oferece três organizações possíveis para o texto: segundo a geografia, segundo o desenvolvimento do drama, segundo as relações entre as pessoas.

8. Cf. MATEOS, J. o. c., p. 198.

9. É bom que se note: esta geografia de Marcos é artificial, não é real. É um enquadramento teológico que serve ao redator para definir a atuação de Jesus em relação às tendências de sua época. Compara-se, por exemplo, o itinerário seguido por Jesus em Marcos e em João.

10. O Espírito se manifesta para atestar a presença do Espírito de Deus em Jesus, não numa forma interior, particular, mas para o serviço do povo, como indicaria o símbolo pomba. No AT, pomba não simboliza o Espírito, mas sim o amor, a beleza, a fidelidade. Na tradição judaica da época de Jesus a pomba é também um símbolo do povo de Israel.

11. “Ou seja, a Boa-Nova do reino de Deus traz consigo a restauração do homem”, MATEOS, j. o. c., p. 41.

12. Há duas multidões em Marcos: uma é a multidão de seus seguidores, os que estavam ao redor dele, sua nova família (3,32); outra é a multidão constituída pelos “de fora”, que não têm vínculo algum com Jesus nem o seguem, só o procurando por causa de sua fama (3,20). Cf. MATEOS, J. o. c., p. 119.

13. O relato esclarece ainda que o povo estava completamente abandonado pelas autoridades judaicas, como um rebanho sem pastor. Apesar disso, os discípulos permanecem dentro dos esquemas socioeconômicos vigentes: falam em comprar o alimento, enquanto Jesus fala em repartir o pouco que têm. Os discípulos não compreenderam a prática de Jesus e “não apresentam uma verdadeira solução para os problemas da vida do povo”, diz BRAVO GALLARDO, C. Jesús, hombre en conflito. El relato de Marcos en América Latina. Santander: Sal Terrae, 1986, p. 156.

14. Cf. DE LA CALLE, F. o. c., p. 82; PESCH, R. Il Vangelo di Marco. Parte prima. Brescia: Paideia, 1980, p. 606.

15. BRAVO GALLARDO, C. o. c., p. 155-156.

16. Cf. DELORME, J. o. c., p. 90-95; BRAVO GALLARDO, C. o. c., 285-290; BELO, F. o. c., p. 216; MATEOS, J. o. c., p. 226, nota 388 distingue: “Por outro lado, existe em Mc uma oposição entre ‘o Messias Filho de Davi’, título nacionalista que Jesus não aceita (12,35-37; cf. 10,47-48), e ‘o Messias Filho de Deus’ (1,1), que Jesus aceita no interrogatório diante do sumo sacerdote (14,61s). ‘Filho de Deus’, usado por judeus e pagãos (3,11; 5,7;14,61; 15,39) , exclui o nacionalismo do ‘Messias’, segundo a concepção comum”.

17. ALEGRE, X. Marcos ou a correção de uma ideologia triunfalista. Chave de leitura de um Evangelho beligerante e comprometido. Belo Horizonte: CEBI, 1988, p. 29.

18. Cf, sobre o tema, BRAVO GALLARDO, C. o. c., p. 287-288, nota 39; ALEGRE, X., o. c., p. 28-30.

19. Cf., para este bloco, BRAVO GALLARDO, C. o. c., p. 193-194. Resume este autor, nas p. 210-211: “Jesus completa a denúncia e desautorização do Centro (judaico), que é o que veio fazer em Jerusalém, corrigindo quatro pontos: a concepção messiânico-davídica, a prática dos escribas, a valorização da riqueza como acesso a Deus, a centralidade do Templo para a vida do povo”. Em seguida, “frente ao Templo e fora dele definitivamente, fala do final do Templo e do final da história”.

20. Pedro, representante dos Doze, israelita, por não ter negado a si mesmo, nega a Jesus. Simão Cirineu, símbolo do grupo não-israelita, cumpre a condição do seguimento: carrega a sua cruz (8,34). O Cirineu é pai de Alexandre (nome grego) e Rufo (nome latino): deste modo mostra Marcos de onde procedem as comunidades cristãs. Cf esta leitura em MATEOS, J. o. c., p. 188.

21. Cf. Bíblia de Jerusalém, Mc 16,9-20, nota f; TAYLOR, V. Evangelio según San Marcos. Madrid: Cristiandad, 1979, p. 736-745; PESCH, R. Il Vangelo di Marco. Parte seconda. Brescia: Paideia, 1982, p. 757-798. Os vv. 9-20, entretanto, são considerados canônicos pela Igreja.

22. Cf. MATEOS, J. o. c., p. 189-194; ALEGRE, X. o. c., p. 38-40. BRAVO GALLARDO, C. o. c., p. 241, conclui que, ao indicar a Galileia e o silêncio das mulheres, Marcos “remete ao lugar e ao modo como se pode ter acesso a Jesus. Por isso escreveu todo o relato, e por isso o deixou inconcluso: para mostrar a prática a prosseguir, a quem se há de seguir e qual é o caminho para a Galileia”.


Leituras de Marcos

Observações sobre algumas leituras de Marcos

leitura: 30 min

 

A proposta deste artigo é a de servir ao leitor como orientação para a leitura de Marcos. Por isto comento dez das mais conhecidas obras sobre o evangelho de Marcos escritas entre 1966 e 1996, acessíveis em português e espanhol. A ordem seguida foi a da data da publicação original. É necessário observarmos que nem todas as publicações em português destes 30 anos são aqui comentadas.

 

TAYLOR, V. Evangelio según San Marcos. Madrid: Cristiandad, 1979, 848 p.

Este é um clássico e indispensável comentário a Marcos. Editado em inglês pela primeira vez em 1952, teve uma segunda edição publicada em 1966, com várias reimpressões. Seu título original é The Gospel According to St. Mark. The Greek Text with Introduction, Notes and Indexes. A edição espanhola utilizou a 8a reimpressão inglesa, feita em 1969.

É o próprio Vincent Taylor, exegeta metodista britânico, nascido em 1887 e falecido em 1968, que nos explica a TAYLOR, V. Evangelio según San Marcos. Madrid: Cristiandad, 1979, 848 p.estrutura do livro no prólogo à 1a edição, p. 24: “Na introdução estudei os problemas críticos, gramaticais, teológicos e históricos, para não ter que discuti-los sempre de novo. No comentário dividi o texto primeiro em grandes blocos e, em seguida, em seções que contêm diversas narrativas e ditos de Jesus, tudo precedido por curtas introduções; em notas separadas estudei problemas especiais. No final do volume acrescentei alguns excursos sobre problemas mais amplos, cuja solução tem que ser necessariamente de caráter mais geral e especulativo”.

O jesuíta espanhol Dionísio Mínguez, professor no Pontifício Instituto Bíblico de Roma, comenta, na apresentação à edição espanhola deste clássico: “A informação é exaustiva, a crítica perspicaz e equilibrada, a orientação um pouco conservadora”. No campo da filologia Taylor é um expoente da mais genuína tradição britânica, pois “discute quase todas as palavras, estuda suas raízes no grego clássico, nos papiros, na LXX (= tradução grega do AT), manuseia documentos e manuscritos, revisa as diversas traduções inglesas, aceitando-as ou propondo outras novas mais ajustadas ao significado original. Faz o mesmo com as construções, sobretudo quando analisa expressões típicas de Marcos que são difíceis, incorretas, ou simplesmente mal transmitidas pela tradição textual” (p. 18-19).

É livro de leitura lenta e difícil, portanto recomendado para especialistas, como se pode deduzir destas poucas palavras. Mas, necessária, conclui Mínguez, quando afirma na p. 20: “O comentário é uma obra extraordinária e ainda hoje imprescindível para o estudo sério de Marcos. Se tivesse que salvar para a posteridade apenas dois comentários a Marcos dentre os muitos aparecidos neste século pessoalmente eu não duvidaria sequer um momento: o comentário de Vincent Taylor seria imediatamente o primeiro contemplado”.

 

DELORME, J. Leitura do evangelho segundo Marcos. São Paulo: Paulinas, 1982 [Paulus e Academia Cristã: 2012] 148 p.

Em 1972, Jean Delorme, sacerdote da diocese de Annecy e professor nas Faculdades Católicas de Lyon, na França, fez uma palestra para sacerdotes sobre o evangelho de Marcos, do qual é especialista. Desta palestra nasceu o Lecture de l’Évangile selon Saint Marc. Paris: Du Cerf, 1972. Em português o livro está na Coleção Cadernos Bíblicos da então Paulinas (hoje Paulus), sob o número 11.

É um estudo perfeitamente acessível ao leigo, escrito com clareza e em estilo agradável. O autor nos conduz através do evangelho de Marcos, “convidando-nos a participarmos do drama que nele se desenrola”, explica E. Charpentier, editor da coleção francesa Cahiers d’Évangile, na qual a obra foi originariamente publicada.

J. Delorme propõe três leituras globais de Marcos, cada uma salientando um aspecto do evangelho:

DELORME, J. Leitura do evangelho segundo Marcos. São Paulo: Paulinas, 1982 [Paulus e Academia Cristã: 2012] 148 p.A primeira leitura observa o evangelho de Marcos a partir dos deslocamentos de Jesus e procura seu plano a partir da geografia teológica de Marcos, observando-se uma dupla oposição: 1a) Galileia – Jerusalém: “É da Galileia que o Evangelho deve difundir-se, depois da Ressurreição, como foi da Galileia que Jesus começou a proclamá-lo. Jerusalém aparece como a cidadela da oposição, a cidade da qual vem o ataque mais hostil a Jesus (3,22) e na qual os responsáveis pela nação o condenarão à morte e o entregarão aos pagãos” (p. 14); 2a) Galileia, região habitada por judeus e por gentios: esta oposição se manifesta no deslocamento de Jesus entre as duas margens do lago de Genezaré, sendo que uma fica do lado dos judeus – e na qual Jesus enfrenta a oposição dos escribas e fariseus vindos de Jerusalém – e outra do lado dos gentios, onde Jesus prefere mover-se, por ser aí bem aceito. “Assim a Galileia de Marcos não tem fronteiras. Nela, opõem-se dois espaços, o dos fariseus e escribas, o qual se fecha em si mesmo, e o que Jesus vai abrindo, ao passar entre os pagãos [= gentios]” (p. 15).  É uma geografia teológica, pois provavelmente Jesus jamais ultrapassou a fronteira judaica da Galileia, mas “Marcos insiste neste ponto porque vê nele a preparação da missão aos pagãos”(p. 15). Os deslocamentos de Jesus em Marcos nos propõe um evangelho que não deve deixar se encerrar nos limites de uma Jerusalém qualquer, ontem ou hoje.

A segunda leitura nos convida a participarmos do drama que se representa dentro deste espaço geográfico acima delineado. A primeira frase do evangelho de Marcos é: “Evangelho de Jesus, Cristo, Filho de Deus”.  Mas, como Jesus manifesta que ele é o Cristo, o Filho de Deus? Curiosamente, Jesus oculta sua identidade (chamamos isso de “segredo messiânico”) até a cruz. Somente após a sua morte, um gentio, um centurião romano, é quem vai dizer: “De fato, este homem era Filho de Deus” (15,29). “Aqui o círculo se fecha. A partir deste momento, diz-nos Marcos, podeis dizer que Jesus é Filho de Deus, porque o vistes morrer. O fato de o crucificado ser aquele que vós proclamais Filho de Deus esvazia todos os mitos de filho de Deus que poderíeis aplicar a Jesus… Ele é o Cristo, mas de um modo todo seu, não como esperaríeis. É o crucificado que é Filho de Deus. Temos aqui o ponto culminante do evangelho de Marcos. É isto que ele quer pôr na cabeça dos cristãos” (p. 23-24).

A terceira leitura, que ocupa a maior parte do livro, nos convida a seguir “as relações que se estabelecem entre Jesus e os discípulos, entre Jesus e a multidão, entre Jesus e seus adversários” (p. 33). Segundo Delorme temos em Marcos “uma espécie de triângulo, formado pelas relações complexas entres esses três polos: multidão, adversários, discípulos” (p. 33). Os discípulos adquirem uma fisionomia própria, reunidos em torno de Jesus, na medida em que este se posiciona face à multidão e aos seus adversários. Jesus convoca os discípulos, prepara-os para compreenderem sua pessoa, sua obra e sua missão e, entretanto, acaba abandonado por eles e enfrenta sozinho seus juízes e algozes (cf. o quadro sinótico das três leituras na p. 35).

Importante para compreendermos a perspectiva do autor são suas observações na p. 7, na introdução: Marcos sempre foi preterido na Igreja em favor de Mateus e de Lucas. Somente no século XIX ele foi redescoberto. E hoje, o crescimento do interesse pela humanidade de Jesus é o principal motivo que nos leva à leitura e estudo desse evangelho que descreve um Jesus que ensina pouco e age mais.

 

CLÉVENOT, M. Enfoques materialistas da Bíblia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, 164 p.

O livro de Michel Clévenot, Approches matérialistes de la Bible, foi publicado pela Du Cerf, em Paris, no ano de 1976. O autor se inspira na famosa obra do português Fernando Belo, de orientação marxista, Lecture matérialiste de l’Évangile de Marc. Récit – Pratique – Ideologie, também editada pela Du Cerf em 1974.

Fernando Belo causou sensação na época ao ler Marcos através de Marx nas difíceis e complexas 415 páginas CLÉVENOT, M. Enfoques materialistas da Bíblia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, 164 p.de sua obra. É que F. Belo combina o marxismo estruturalista de L. Althusser com a teoria de linguística e de semiótica social extraídas de F. de Saussure, R. Barthes e J. Derrida, exigindo do leitor “coragem e uma certa dose de conhecimento para lê-lo até o fim”, explica Clévenot no prólogo de sua obra, p. 17. E completa: “Responsável pela edição do ‘Belo’, pareceu-me útil apresentar aos numerosos leitores interessados por esse novo acesso à Bíblia um livro menor, mais modesto e, espero, mais abordável” (p. 17).

A 1a parte do livro de Clévenot, fruto de um seminário de dois anos, do qual participou também F. Belo, traz uma abordagem materialista das tradições Javista, Eloísta, Sacerdotal e Deuteronomista, vistas como produto da conjunção de fatores ideológicos, políticos e econômicos. A 2a parte faz uma leitura do evangelho de Marcos como um relato da prática de Jesus, seguindo os passos de F. Belo. Como explica Clévenot, na p. 22, “nós consideraremos os textos que compõem a Bíblia como produtos ideológicos. Nosso projeto será analisar as condições nas quais ele foi produzido”.

Mas o que vem a ser este enfoque materialista de Clévenot? Ele mesmo explica na p. 22: “Ao contrário da filosofia alemã (idealista), que desce dos céus à terra, aqui nós subiremos da terra para o céu. Quer dizer, nós não nos baseamos no que os homens dizem, pensam, representam, nem naquilo que eles são segundo as palavras, pensamentos, imaginação e representação de outros para então chegar aos homens em carne e osso; não, nós nos baseamos nos homens em suas atividades reais, quer dizer, é a partir do processo real de vida que podemos representar o próprio desenvolvimento dos reflexos e das repercussões ideológicas desse processo vital”.

Assim,  “ler Marcos de modo materialista é tomá-lo como uma narração que não se pode compreender fora da situação social de seu autor e dos protagonistas (Jesus, seus amigos, seus adversários, a multidão…). É pôr o acento menos nas palavras de  Jesus do que na sua prática; tanto mais que a narração de Marcos não é uma coleção de ‘palavras’ ou ‘discursos’, mas expõe práticas e estratégias”, confirma F. Belo em La Lettre 198 (fev. 1975), Paris, Temps Present, p. 11.

 

MATEOS, J. Los “Doce” y otros seguidores de Jesús en el Evangelio de Marcos. Madrid: Cristiandad, 1982, 304 p.

“Juan Mateos é professor dos Institutos Oriental e Bíblico de Roma. É autor de uma série de livros de grande rigor linguístico e exegético que abrem um novo caminho para a leitura e interpretação do NT”, informa-nos a “orelha” do livro.

MATEOS, J. Los “Doce” y otros seguidores de Jesús en el Evangelio de Marcos. Madrid: Cristiandad, 1982, 304 p.De fato, o autor procura esclarecer, através de rigorosa análise linguística e exegética, a existência de diversos grupos de seguidores de Jesus: os Doze, os discípulos, os que estão em torno dele, a multidão e sua relação com Jesus…

Segundo Juan Mateos (cf. p. 247-258) há, em Marcos, dois grupos que acompanham Jesus:

:. os Doze/discípulos (3,14): representam o Israel institucional e se dividem em três subgrupos:

– Simão (Pedra = obstinado: 8,32), Tiago e João (Filhos do Trovão = autoritários  e ambiciosos: 10,37)
– André e os outros (são 8): são os homens sem destaque
– Judas: o traidor.

:. os que estavam ao redor dele: são os não-israelitas, rompidos com a aliança, tipificados por Levi (2,14). É a nova família de Jesus (3,34-35).

Estes dois grupos se distinguem dos de fora (4,11), que é a multidão que escuta Jesus, mas não o segue.

Os dois grupos (Doze/discípulos e os que estavam ao redor dele) estão na casa (espaço da comunidade) e no barco. Os outros estão fora da casa ou na margem.

Quando se dirige aos Doze/discípulos, Jesus usa expressões do AT (batismo, Messias, ressurreição, aliança). Quando Jesus se dirige “aos que estavam ao redor dele”, usa outros termos equivalentes aos anteriores (o Filho do Homem, o Filho de Deus, salvar a vida = ressurreição, seguir Jesus = batismo e aliança).

Assim, Marcos amplia o evangelho para os não-judeus, os gentios. Basta que sigam a Jesus.

A incompreensão dos Doze/discípulos é repetida ao longo do evangelho (4,34; 8,18; 8,22-26; 10,46-52), enquanto que “os que estavam com ele”, por pertencerem ao judaísmo periférico e por seu pouco apego às tradições judaicas, compreendem logo, após a 1a  vacilação (4,10). Veja-se a oposição entre os dois grupos em 9,33-37, onde a “criança” representa “os que estavam com ele”, em oposição aos Doze que discutiam quem era o mais importante.

Também a atitude de Simão Pedro (nega, foge) está em contraste com a de Simão Cirineu (segue, ajuda), este sim, símbolo dos que estavam com Jesus, pois ele é da diáspora.

No final do evangelho os Doze/discípulos (os judaizantes) não recebem o aviso para ir encontrar Jesus na Galileia (as mulheres se calam: 16,8): eles ficam presos a Jerusalém, ao ideal messiânico nacionalista… não existe para eles um Jesus vivo e ativo após a sua morte: são os judaizantes da época de Marcos! Mas os outros prosseguem, simbolizados em Simão Cirineu (pai de Alexandre, nome grego, e Paulo, latino, símbolos das comunidades cristãs que florescem na gentilidade).

O autor explica nas p. 29-31 que o estudo é feito unicamente a partir do texto de Marcos, único dado objetivo ao nosso alcance. A história de sua redação é deixada de lado, por seu caráter necessariamente hipotético, conduzindo a pontos de vista subjetivos e convidando o exegeta a resolver de modo não textual os problemas do texto.

 

CÁRDENAS PALLARES, J. Um pobre chamado Jesus. Releitura do evangelho de Marcos. São Paulo: Paulinas, 1988, 167 p.

José Cárdenas Pallares é um sacerdote mexicano. Un pobre llamado Jesús foi surgindo pouco a pouco, em palestras e cursos, fruto do trabalho pastoral do autor. Pallares decidiu publicar em 1982 estes trabalhos “porque demonstram o aspecto humano, radical e revelador das lutas de Jesus, o caráter libertador de sua práxis e a ‘parcialidade’  total de Deus a favor dos oprimidos. A causa de Jesus é a de Deus inseparavelmente unido com todos os explorados” (p. 7).

O autor explica na introdução à obra que estas páginas são o resultado de uma decepção, na medida em que ele, ao chegar à sua paróquia muito seguro de seus conhecimentos bíblicos, pensava que bastava transmitir ao povo o que havia aprendido para que este amadurecesse em seu compromisso cristão.

“O grande problema da exegese bíblica era e é o de tornar a palavra de Deus acessível ao homem moderno. Mas esse Homem não existe entre nós e, o que é pior, identifica-se – ao menos assim o percebem os pobres – com o opressor, com quem os trata como burros de carga ou como curiosidades de zoológico” (p. 8).

Colocando-se, assim, inteiramente do lado dos oprimidos em um país subdesenvolvido, o autor questiona a “isenção cientifica” da exegese atual, que se esqueceu de que “a linguagem do evangelho de são Marcos é linguagem simples, é literatura de gente pobre” e se pergunta angustiado: “A exegese está sendo elaborada em função de que projeto de sociedade, ou dizendo mais humildemente, em função de que tipo de pastoral? (…) Será o evangelho, antes de tudo e acima de tudo, Boa Nova para os satisfeitos? (…) Nós, os novos intérpretes da Bíblia, estaremos em sintonia, em afinidade sociológica com Jesus? E se nossa situação fosse mais semelhante à dos dirigentes fariseus ou à dos saduceus?” (p. 9).

Procurando responder, através da leitura do evangelho de Marcos, qual é a Boa Nova de Cristo para o homem humilhado e tiranizado da América Latina, o autor aborda em 11 capítulos os seguintes temas: o conflito de Jesus com as autoridades do judaísmo, o poder de Jesus expresso nos sinais de libertação (= milagres), a satanização de Jesus, a postura de Jesus face à opressão da mulher, Jesus e a riqueza, Jesus e o poder, Jesus e a máscara de santidade das autoridades religiosas, o que vale um pobre (Mc 12,41-44): o óbolo da viúva), o assassinato de Jesus, a ressurreição de um maldito e, finalmente, o triunfo da vida.

Confrontados com a morte de Jesus não devemos perguntar: “Diante da dor dos oprimidos é Deus derrotado e inútil?”, mas afirmar: “Se há futuro para Jesus, nada nem ninguém pode impedir o futuro, o triunfo definitivo dos oprimidos” (p. 163).

Este é um livro de leitura fácil e provocadora.

 

ALEGRE, X. Marcos ou a correção de uma ideologia triunfalista. Chave de leitura de um evangelho beligerante e comprometido. Belo Horizonte: CEBI, n. 8, 1988, 43 p.

Este livreto é a tradução de Marc o la correcció d’una ideologia trionfalista. Pautes de lectura d’un evangeli belligerant i compromès, texto da aula inaugural do ano letivo 1984-85 da Facultad de Teologia de Barcelona.

Xavier Alegre nos diz na p. 2 que “vivendo em El Salvador, uma igreja marcada por uma dura perseguição e regada pelo sangue de muitos mártires, entre os quais se destaca Dom Oscar Ranulfo Romero – São Romero da América, como o denomina Dom Pedro Casaldáliga – tornou-se mais claro, para mim, o teor que Marcos quis dar à sua obra”. Por isso o autor presta, através deste texto, “uma homenagem de gratidão às comunidades cristãs de El Salvador, sobretudo às pessoas simples e pobres que as compõem, os autênticos destinatários de uma obra como a de Marcos que, com seu testemunho de fé e esperança e amor, me ensinaram a ler com novos olhos o Evangelho de Jesus, morto e ressuscitado por ter vivido, com toda a radicalidade, a solidariedade  com os pobres, como testemunho do infinito amor do Pai”.

Segundo Alegre, Marcos escreveu sua obra para corrigir uma interpretação triunfalista da figura de Jesus, interpretação esta “apoiada no poder de fazer milagres que era próprio de Jesus” (p. 6). É então que Marcos “nos apresenta a figura de Jesus e da comunidade cristã com traços mais críticos em relação a determinadas representações triunfalistas da fé que esquecem o conflito histórico de Jesus com os poderes políticos e religiosos do seu tempo” (p. 3-4).

O autor vai demostrar sua tese a partir de dois pontos:

  • a estrutura do evangelho, que deixa a descoberto a cegueira dos homens do tempo de Jesus, dominados que são pela ideologia dominante
  • os retoques redacionais que Marcos realiza em suas fontes – “sobretudo no que diz respeito aos milagres e exorcismos e nos textos em que aparecem os discípulos de Jesus – e que têm como denominador comum o que os especialistas convencionaram chamar ‘o segredo messiânico’ e ‘a incompreensão dos discípulos’” (p. 6).

Alegre defende que Marcos quer fazer a comunidade cristã de ontem e de hoje entender que só se pode saber quem é Jesus quem o segue no caminho da cruz.

É uma leitura genial do evangelho, muito coerente, com um raciocínio bem estruturado e um enfoque bem situado. Poder-se-ia, a partir desta ótica, desenvolver o que o autor chama de “caminho da cruz”. O texto trata do aspecto negativo apenas – a correção da ideologia triunfalista – quando pode-se mostrar o caminho a ser seguido. Como, por exemplo, através das oposições do bloco 8,31-10,52: criança/adulto, último/primeiro, servir/dominar etc, onde se definem as práticas messiânica e eclesial.

 

MYERS, C. O evangelho de São Marcos. São Paulo: Paulinas, 1992, 581 p.

Um ativista da paz, Ched Myers estudou S. Escritura em Berkeley, Califórnia. O original deste comentário a Marcos foi publicado pela Orbis Books, Maryknol, New York, em 1988 e tem como título Binding the Strong Man. A Political Reading of Mark’s Story of Jesus (“Amarrando o homem forte. Leitura política da história de Jesus de Marcos”).

A obra compõe-se de quatro partes: a primeira trata do texto e do contexto sócio-histórico do evangelho de MYERS, C. O evangelho de São Marcos. São Paulo: Paulinas, 1992, 581 p.Marcos, a segunda e a terceira leem o texto e a quarta traz as conclusões do trabalho. Um posfácio e um apêndice consideram as várias leituras sociopolíticas atuais da narrativa de  Jesus.

O autor adota o modelo centro-periferia, que ele (norte-americano, escrevendo do centro imperial) considera adequado tanto para a produção do texto de Marcos quanto para a sua leitura atual.

“O mundo mediterrâneo antigo era dominado pela lei da Roma imperial. No entanto, se eu leio situando-me no centro [USA], Marcos escreveu da periferia palestina [na Galileia, entre 66 e 70 d.C. quando Roma destruía a Palestina]. Seu principal auditório era constituído por aqueles cujas vidas diárias suportavam o peso explorador do colonialismo, ao passo que os meus ouvintes são os que se acham em posição que lhes possibilita usufruir os privilégios do colonizador” (p. 29).

Assim, citando Dorothee Sölle, o autor reflete: “Nós que nos achamos no centro (…) não temos outra opção senão a de ‘fazer teologia na casa do faraó’, ou seja, ficar do lado dos hebreus mesmo sendo cidadãos do Egito” (p. 30). Privilegiada, para ler Marcos, é a situação de quem se  situa na periferia e pode enfocar adequadamente temas de libertação, como o fazem os teólogos latino-americanos, emenda o autor.

Deste modo, mesmo situado no centro, o autor defende uma leitura libertadora de Marcos, considerando a chave apocalíptica a mais adequada para a leitura do texto, a partir de sua definição dos escritos apocalípticos, tais como Daniel e Apocalipse, como “manifestos políticos de movimentos não-violentos de resistência à tirania”. “Meu comentário” acrescenta Myers “demonstra que o mesmo pode ser dito a propósito de Marcos” (p. 491).

Ched Myers procura extrair três fios narrativos ou subtramas do evangelho de Marcos. “A primeira subtrama envolve tentativas de Jesus para criar e consolidar uma comunidade messiânica, tendo como sujeito evidentemente seus discípulos. Seu mandamento a eles dirigido deve levar avante a obra do reino (…) A segunda subtrama é o ministério de Jesus de cura, de exorcismo e de proclamação da libertação, tendo como sujeito os pobres e oprimidos, encarnados pela ‘multidão’ no Evangelho. O mandamento aparece no primeiro exorcismo da sinagoga, em que a multidão reconhece que  a autoridade de Jesus supera  a dos supersenhores, os escribas (…) A terceira subtrama é o confronto de Jesus com a ordem sociosimbólica dominante, tendo como sujeito os defensores desta obra: os escribas, os fariseus, os herodianos e o clero dirigente de Jerusalém. Jesus confia seu mandamento a eles diversas vezes na primeira campanha de ação direta, afirmando sua autoridade sobre o sistema de pureza e de débito (2,10.28) e desafiando as autoridades a optarem pela justiça e pela  compaixão em vez da dominação” (p. 158-159).

Estas três subtramas levam Jesus à prisão e execução, com a deserção dos discípulos, a decepção da multidão e a hostilidade das autoridades. Jesus segue sozinho o caminho da cruz. “Essa tragédia, porém, é revertida pela promessa de que, como Jesus vive, a aventura do discipulado pode continuar (16,6s)” (p. 158).

Deste modo, o evangelho de Marcos é visto como um manifesto escrito para súditos do poder imperial romano “aprenderem a dura verdade sobre o seu mundo e sobre eles mesmos”. Para Ched Myers o relato de Marcos “é história feita pelos comprometidos, que versa sobre os comprometidos e que se dirige aos comprometidos com  a obra de Deus, obra de justiça , de compaixão e de libertação no mundo”.

Aos teólogos modernos Marcos não “oferece sinais do céu” (Mc 8,11-12), como não os oferecem aos fariseus; aos exegetas que recusam um compromisso ideológico Jesus não dá resposta alguma, como não a deu aos sumos sacerdotes (Mc 11,30-33)… “Mas aos que querem provocar a ira do império, Marcos apresenta uma forma de “discipulado (8,34ss)” (p. 34). Um discipulado radical.

 

VV. AA. Ele caminha à vossa frente. O seguimento de Jesus pelo evangelho de Marcos. Estudos Bíblicos, Petrópolis, n. 22, 1989, 93 p.

O número 22 da revista Estudos Bíblicos foi preparado pelos “biblistas mineiros”, grupo que periodicamente se reúne em Belo Horizonte para colaborar com esta publicação da Vozes, como o fazem outros grupos espalhados pelo país. À época, 1989, coordenado por Alberto Antoniazzi, este grupo optou pelo estudo do evangelho de Marcos, com especial atenção à pedagogia de Jesus. Cientes de que Jesus ensinou mais pela vida do que pelas palavras, demos atenção “à prática (ou práxis) de Jesus, assim como Marcos a apresenta, e ao modo com que o mesmo evangelista fez da vida de Jesus o roteiro da caminhada de seus discípulos; roteiro válido para nós hoje”, explica o editorial assinado por A. Antoniazzi.

Duas visões de conjunto do evangelho abrem este n. 22: Airton José da Silva oferece, no primeiro artigo, um roteiro para uma leitura de Marcos, acompanhado o próprio texto do evangelho e relendo “o contexto conflitivo em que foi escrito e o seu objetivo de preservar uma memória proibida, que alimentava a luta dos oprimidos” (p. 8); Walmor Oliveira de Azevedo, no segundo artigo, “procura revelar ‘a força pedagógica da articulação global do Evangelho de Marcos’”, mostrando “como a leitura do Evangelho provoca e exige o envolvimento do leitor num processo que lhe abre perspectivas de ação libertadora” (p. 8).

A seguir são propostos dois exemplos do seguimento de Jesus em Marcos através da análise de temas específicos. Alberto Antoniazzi lê Mc 4,1-14, o capítulo das parábolas, enquanto Airton José da Silva explora o significado dos milagres em Marcos, através da leitura de Mc 6,30-44, relato da multiplicação dos pães”.

Após estes quatro artigos, dois instrumentos de trabalho são oferecidos ao leitor: “Uma experiência popular com Marcos” de Paulo Sérgio Soares, “explica como um grupo pode aprender a usar (na sua comparação bem ao gosto do povo) o facão para tirar a água do coco, ou a mensagem da Bíblia” (p.8); e em “Apresentação de alguns estudos sobre Marcos”, Emanuel Messias de Oliveira apresenta nove livros sobre Marcos, com a intenção de ajudar o leitor interessado a prosseguir suas pesquisas sobre Marcos.

Como brinde aos leitores, José Luiz Gonzaga do Prado “apresenta uma leitura original do conhecido texto de Paulo, Fl 2,6-11, mostrando que a perspectiva do caminho, tão importante para entender Marcos, ilumina também o famoso texto paulino”, explica A. Antoniazzi no editorial.

Uma notícia sobre o Mês da Bíblia e duas recensões encerram este número de Estudos Bíblicos, que recomendo vivamente ao leitor como útil instrumento para que faça, ele mesmo,  a “sua” leitura de Marcos.

 

BALANCIN, E. M. Como ler o evangelho de Marcos. Quem é Jesus?  2. ed. São Paulo: Paulus, 1991, 183 p.

Este texto de Euclides Martins Balancin reutiliza o material pensado e apresentado para círculos bíblicos no semanário Bíblia-Gente e faz parte da coleção de sucesso da Paulus “Como ler a Bíblia”. Coleção que pretende ser “uma chave de leitura, uma espécie de lanterna que nos ajuda a focalizar e a enxergar, no seu conjunto, um ou mais livros bíblicos (…) e estimula a ler os textos com os pés no chão da existência, jamais perdendo de vista os anseios de vida e liberdade do nosso povo”, explica a editora na p. 5.

BALANCIN, E. M. Como ler o evangelho de Marcos. Quem é Jesus? 2. ed. São Paulo: Paulus, 1991, 183 p.Lendo o primeiro versículo de Marcos (“Começo da Boa Notícia de Jesus, o Messias, o Filho de Deus”)  Balancin nos explica que “todo o livro de Marcos é caracterizado como um simples começo” (p. 10): lendo Marcos, acompanhamos Jesus saindo de Nazaré da Galileia para ser batizado por João na Judeia e retornando à Galileia após a prisão deste. Na Galileia Jesus realiza suas ações, faz a caminhada com seus discípulos até Jerusalém, onde entra em choque com as autoridades judaicas, é crucificado e, após a ressurreição, promete encontrar-se com os discípulos na Galileia.

Segundo Balancin, “desse modo, o evangelista nos ensina que aquilo que Jesus realizou é apenas o início da atividade que seus discípulos deverão continuar em todos os tempos e lugares, a fim de trazer o Reino de Deus para dentro da humanidade e da história. Fazendo isso, os seguidores de Jesus têm certeza de sua presença viva e contínua no meio deles (p. 11).

Acontece que Marcos diz também ser o seu escrito uma Boa Notícia, um Evangelho. Mas Marcos nos mostra mais o que Jesus faz do que o seu ensinamento. “Com isso, ficamos sabendo que o grande ensinamento de Jesus é sua prática e que sua palavra é nova porque é sempre acompanhada por sua ação” (p. 12). Só que este conceito “evangelho” era aplicado, na época, ao César romano, cuja subida ao poder era divulgada como boa notícia. “Ao proclamar Jesus Filho de Deus, Marcos está dando a “Boa Notícia que constitui um desafio à organização da propaganda imperial dos romanos” (p. 13).

E mais: Marcos diz que Jesus é o Messias (o Cristo) em um momento em que havia muitas e diferentes ideias a respeito de quem seria o Messias, de onde ele viria e qual seria a sua missão. Marcos vai, ao longo de seu texto, explicar porque Jesus é o Messias. Assim, diz Balancin, Marcos “vai mostrar que a prática de Jesus entra em conflito com aquilo que muitos esperavam de um messias”, posicionando-se “na luta ideológica sobre o modo de entender adequadamente o Messias” (p. 13).

A partir deste ótica, sintetizada no primeiro versículo ou título do evangelho, é que Balancin lê Marcos. Para ele, este título nos coloca diante de grandes desafios, elencados na p. 14:

  • “se quisermos ser discípulos de Jesus Ressuscitado, precisamos ser continuadores de sua prática;
  • desmascarar os falsos messias que são criados pela propaganda e se apresentam como salvadores;
  • desmistificar os ‘homens divinos’ que sustentam um ‘reino’ que explora e oprime;
  • discernir entre a Boa Notícia e as outras notícias que são apresentadas como boas”.

 

CNBB Caminhamos na estrada de Jesus. O evangelho de Marcos. 2. ed. São Paulo: Paulinas, 1996, 128 p.

O Secretário Geral da CNBB, Dom Raymundo Damasceno Assis, nos explica na apresentação deste livro, às p. 5-8, terem os bispos brasileiros determinado que o tema central da preparação do grande Jubileu em 1997 – Jesus Cristo e a fé – “seja assumido, refletido e vivenciado principalmente a partir do evangelho de Marcos, lido aos domingos neste ano litúrgico.

Como está previsto no Projeto de Evangelização “Rumo ao Novo Milênio”, este subsídio “é uma introdução à leitura do evangelho de Marcos que destaca a figura de Jesus e os passos que todo discípulo – de ontem ou de hoje – deve dar para seguir o caminho de Jesus, ou seja, para viver sua fé” (p. 5).

Acrescenta Dom Raymundo Damasceno, na página 6, que o objetivo desse subsídio “é levar os leitores e suas comunidades a aprofundar a fé em Jesus, a renovar a adesão pessoal a Ele, a firmar o compromisso de segui-lo nos caminhos da vida. Marcos nos convida a refazer hoje os passos que Jesus faz na busca da vontade do Pai, desde a Galileia até Jerusalém, lugar da cruz e ressurreição”.

Caminhamos na estrada de Jesus, fruto do trabalho de uma equipe que assessorou a CNBB, é destinado aos animadores de círculos bíblicos e de grupos de reflexão, bem como aos padres e agentes de pastoral que deverão comentar este evangelho nas celebrações dominicais.

Já na Introdução (p. 9-11), o autor do livro explica que seu título é tirado da oração eucarística V, quando, após a consagração repetimos: “Caminhamos na Estrada de Jesus”, nos comprometendo, mais uma vez, com a Boa Nova de Jesus. Marcos  nos oferece, em seu evangelho, o mapa e o roteiro desta Estrada. São 9 capítulos: o 10 é de introdução, o 80 “fala da importância da fé para quem assume caminhar na Estrada de Jesus”, o 90 “fala da terra e do povo por onde passa a Estrada de Jesus”, enquanto que “nos capítulos 2 a 7 percorremos as várias etapas deste caminho, desde o lago na Galileia até o Calvário em Jerusalém” (p. 9).

No capítulo primeiro o autor nos apresenta, de início, uma série de problemas que marcavam a vida das comunidades cristãs por volta do ano 70 – data em que Marcos escreve (p. 17). Os principais problemas seriam: a ameaça constante de perseguição dos cristãos por parte do Império Romano; a rebelião dos judeus da Palestina contra a invasão romana e a atitude dos cristãos que estavam sem saber se deviam entrar ou não nesta luta; como entender que um crucificado, considerado como “maldito de Deus”, poderia ser o Messias, e, ainda, como organizar adequadamente uma comunidade cristã…

E explica: “No meio de tantas preocupações, a preocupação maior continuava sempre a mesma: ‘Como ser discípulo ou discípula de Jesus no meio desta situação tão complicada e tão difícil?’ Esta ainda é a pergunta que, até hoje, nos leva a abrir os evangelhos e que, em toda parte, suscita grupos que se reúnem em torno da Palavra de Deus” (p. 20).

E mais adiante (p. 24) o autor nos esclarece que Marcos não quer apenas nos informar sobre o que Jesus fez no passado, “mas também quer que você se identifique com os discípulos de Jesus e se envolva com os problemas deles, sinta o entusiasmo deles e viva a crise que eles viveram. Que percorra o caminho que aqueles primeiros discípulos percorreram junto com Jesus, desde a Galileia até Jerusalém. E fazendo assim, que você elimine de dentro de si ‘o fermento dos fariseus e dos herodianos’ (Mc 8,15) e se torne melhor discípulo ou discípula de Jesus”.

A caminhada dos discípulos e das discípulas de Jesus no evangelho de Marcos é feita em quatro etapas:
1) Mc 1,16-6,13 : o entusiasmo no início da caminhada com Jesus
2) Mc 1,35-8,21 : o mistério da pessoa de Jesus aparece. Nos discípulos surge a crise do não entender
3) Mc 8,22-13,37: a cegueira causada pela luz escura da Cruz é combatida pela instrução de Jesus
4) Mc 14,1-16,8: o fracasso final é apelo para recomeçar tudo de novo.

Para terminar: “São estes os quatro passos da caminhada com Jesus. Eles indicam o roteiro que vamos seguir neste livrinho. Vamos olhar nele, como se fosse um espelho, onde vemos refletida nossa própria vida. Foi pensando na vida das comunidades, que Marcos recolheu e arrumou as palavras e gestos de Jesus” (p. 27-28).

Este artigo foi publicado em Cadernos do Cearp, Ribeirão Preto, n. 7, p. 44-57, 1997. Está disponível também no Observatório Bíblico, publicado em 12.02.2015.

Nota: O artigo foi escrito em 1997. Para textos mais recentes, confira aqui.

Artigos


Leitura sociológica

Leitura sociológica da Bíblia

 

leitura: 61 min

Philip R. Davies[1], exegeta britânico, ao falar dos métodos usados na leitura da Bíblia nas últimas décadas, sugeriu que a combinação das abordagens literárias e sociológicas apresenta hoje o mais promissor caminho para o avanço dos estudos bíblicos.

É que estas abordagens examinam não somente a literatura e a realidade social de Israel, mas também as forças sociais subjacentes à produção da literatura bíblica, onde se distingue a sociedade que está por trás do texto da sociedade que aparece dentro do texto.

Além disso, sublinhou ainda Philip R. Davies, estas abordagens situam Israel no seu contexto histórico apropriado e questionam preconceitos teológicos que, frequentemente, estorvam os especialistas em exegese bíblica.

Na mesma direção sinalizou o norte-americano Norman K. Gottwald[2], quando disse que a leitura sociológica fecha a porta “firme e irrevogavelmente, às ilusões idealistas e supernaturalistas que ainda impregnam e enfeitiçam nossa perspectiva religiosa”, quando abordamos um texto bíblico.

É igualmente importante salientar que a leitura sociológica da Bíblia está relacionada especialmente com os métodos histórico-críticos e com a leitura popular.

Na medida em que toda abordagem sociológica de um texto histórico é também uma abordagem histórica, a leitura sociológica tem complementado a leitura histórico-crítica. Especialmente importante é a percepção de que sua colaboração se faz necessária quando a historiografia não se contenta em descrever as ações dos grupos dominantes de determinada sociedade, mas a história quer revelar a atividade total de um povo.

Do mesmo modo, a leitura popular que vem sendo feita entre nós se beneficia das contribuições das ciências sociais. No estudo do contexto em que foram escritos os textos bíblicos, por exemplo, costuma-se olhar os quatro lados da situação enfocada: os lados econômico, social, político e ideológico. Esta é uma atitude sociológica[3].

Por isto, neste artigo proponho:

. descrever sinteticamente o nascimento da sociologia

. dar exemplos de leituras sociológicas da Bíblia Hebraica

. dar exemplos de leituras sociológicas do Novo Testamento

. citar alguns desafios e dificuldades da leitura sociológica da Bíblia.

 

1. O nascimento da sociologia

Duas condições precedem o aparecimento do pensamento sociológico na Europa: uma secularização de atitudes e dos modos de compreender a natureza humana, a origem e o fundamento das instituições; e um processo de racionalização que projeta na esfera da ação coletiva a ambição de conhecer, explicar e dirigir os acontecimentos e a vida social.

 

1.1. Dois deslocamentos no pensamento europeu do século XV ao século XVIII

Do século XV ao século XVIII acontecem dois deslocamentos no pensamento humano na Europa[4].

O primeiro é a passagem da especulação escolástica à filosofia da natureza. A natureza passa a ser entendida e explicada experimentalmente. Este fenômeno se dá com a ascensão da burguesia, na forma de capitalismo mercantilista.

É importante observarmos que Galileu (1564-1642) destrói a anterior concepção do universo como sistemaGalileu (1564-1642) imutável e hierarquizado, governado por Deus, e reduz o universo a um mundo geométrico, a uma física mecanicista.

O segundo deslocamento se dá quando se passa da análise da natureza para a análise da sociedade. Percebe-se, então, que a organização da sociedade não é natural, mas histórica. Questionam-se, filosoficamente, os fundamentos da sociedade a partir da ótica da nova ordem burguesa. É uma crítica ao poder absoluto, no qual Deus criava, organizava e geria o mundo através da Igreja e de suas leituras da realidade.

É de se notar: Descartes (1596-1650) descobre o sujeito pensante autônomo, coloca a consciência como a medida e a forma do ser, marcando uma definitiva virada antropocêntrica.

Descartes (1596-1650)Mas se Descartes, no século XVII, representa a burguesia progressista pela racionalização (“penso, logo existo”) é Kant (1724-1804) quem incorpora ao racionalismo os elementos do empirismo inglês (existo como um feixe de sensações organizadas), concluindo que o ser humano pode organizar a sociedade com o uso de sua razão. Não é Deus, através da Revelação, que ordena a sociedade, mas é a própria Razão humana que fornece à humanidade os instrumentos políticos para organizar e alcançar a sua felicidade.

Conclui-se a trajetória com Hegel (1770-1831), o intérprete fiel do momento histórico da Revolução Francesa (1789). A burguesia triunfara, vencendo o clero e a nobreza. Era uma nova ordem racional baseada nos moldes que as pessoas queriam, e não mais em tradições e fé religiosas. A razão humana conseguira sua libertação. Explodiam as instituições liberais. A burguesia estava consciente de que suas ideias, finalmente, se encarnavam em estruturas sociopolíticas, aptas a viabilizar a nova realidade econômica.

No hegelianismo a ordem estabelecida não retrata mais um plano divino, mas a racionalidade imanente da própria história. História que é palco de lutas entre contrários, fruto da contradição, superando-se sempre (tese, antítese, síntese). Daí a grande novidade hegeliana: a dialética.

No plano dos fatos, temos classes sociais antagônicas em luta: é a revolução. No plano do pensamento, temos dois polos contraditórios que, através de contínua superação, constituem o avançar histórico, encarnação da ideia em contínua tensão. A dialética é a revolução vitoriosa, em forma conceitual! O mundo, a história, não são réplicas imperfeitas de um mundo transcendente e estático na sua perfeição. Eles são a ideia, fazendo-se, procurando a perfeição. É a superação da metafísica.

Estes são, resumidamente, alguns dos pressupostos nos quais as ciências sociais se fundamentam.

Deste modo, quando Auguste Comte (1798-1857) e Émile Durkheim (1858-1917) procuram formular as leis queKant (1724-1804) regem a organização social, a especulação filosófica sobre a sociedade transforma-se em sociologia. Ciência que pode ser sumariamente definida como o estudo da sociedade humana e de suas instituições.

Podemos, assim, verificar que a sociologia nasce mesmo é como consequência das profundas transformações geradas pela Revolução Francesa e pela Revolução Industrial. É a formação da sociedade capitalista que faz nascer a reflexão sobre a sociedade, suas transformações, suas crises e seus antagonismos de classe.

É preciso considerar, também, que a existência de interesses opostos e conflitantes na sociedade se manifesta igualmente no pensamento sociológico. Há diferentes tradições sociológicas.

Costuma-se dizer, certamente com alguma simplificação, que as diversas sociologias podem ser reconduzidas a três tendências básicas, com teorias e conceitos desenvolvidos nos séculos XIX e XX. São as vertentes funcionalista (Durkheim) compreensiva (Weber) e marxista (Marx).

 

1.2. O tripé da sociologia: Durkheim, Weber e Marx

Auguste Comte (1798-1857)O francês Émile Durkheim e os alemães Max Weber e Karl Marx formam o clássico tripé dos pensadores que mais influenciaram o pensamento sociológico[5].

Antes de Durkheim, entretanto, é preciso mencionar o francês Auguste Comte (1798-1857), considerado o “pai” da sociologia, por ter sido o primeiro pensador a propor a necessidade de uma ciência capaz de entender as bases da sociedade e de criar propostas de intervenção para que ela possa se desenvolver plenamente evitando colapsos como o da Revolução Francesa. Foi Comte quem, no Curso de filosofia positiva, de 1839/42, chamou esta ciência de “sociologia”, do latim socius, significando “o ser que se relaciona com outros”, mais o grego λόγος, “palavra, discurso”.

 

1.2.1. Émile Durkheim: a sociologia funcionalista

Quem criou um método para a sociologia foi Émile Durkheim ( 1858-1917)[6]. Em As regras do método sociológico, de 1895, Durkheim propõe formular uma teoria do fato social, demonstrando que pode haver uma ciência sociológica objetiva e científica, como são as ciências da natureza.

Para que haja tal ciência é preciso visualizarmos um objeto específico que se distinga dos objetos das outras ciências e que possa ser observado e explicado sociologicamente.

Tal objeto são os fatos sociais, conjuntos de comportamentos praticados pelas pessoas que permitem a identificação de uma consciência coletiva, cuja existência independe da vontade dos indivíduos, mas que, de variados modos, influenciam as ações humanas.

Observamos que Durkheim, assim como Comte, é um pensador positivista. Ele acredita que a sociedade podeÉmile Durkheim (1858-1917) ser analisada da mesma forma que os fenômenos da natureza. A sociologia tem, assim, como tarefa, o esclarecimento de acontecimentos sociais constantes e recorrentes. O papel fundamental da sociologia seria, deste modo, o de explicar a sociedade para manter a ordem vigente.

Michael Löwy[7] explica que o tipo ideal de positivismo pode ser dito em três ideias principais:

. a hipótese fundamental do positivismo é de que a sociedade humana é regulada por leis naturais que independem da vontade e da ação humana

. os métodos utilizados para estudar a vida social devem ser os mesmos utilizados para estudar o mundo natural, pois as leis que regem a sociedade são do mesmo tipo das leis que regem a natureza

. a terceira ideia básica do positivismo, talvez a de maior consequência, diz que as ciências sociais devem funcionar segundo o modelo de objetividade científica das ciências naturais, ou seja, qualquer vínculo das ciências sociais com classes sociais, posições políticas, valores morais, ideologias, utopias e visões de mundo prejudica a objetividade das ciências sociais e por isso deve ser rejeitado.

O pensamento de Émile Durkheim foi retomado e desenvolvido especialmente por dois sociólogos norte-americanos, Talcott Parsons (1902-1979) e Robert K. Merton (1910-2003), por muitos considerados como os maiores responsáveis pelo desenvolvimento do funcionalismo moderno.

O funcionalismo, ao analisar qualquer elemento de um sistema social, procura saber de que maneira este elemento se relaciona com os outros elementos do mesmo sistema social e com o sistema social como um todo, para daí tirar as consequências que interferem no sistema, provocando sua disfunção, ou, por outro lado, que contribuem para a sua manutenção, sendo, portanto, funcionais.

O funcionalismo assegura que cada instituição exerce uma função específica na sociedade, que é vista como um organismo vivo.

Consequentemente, o funcionalismo vê como tarefa da sociologia a detecção e a busca de soluções para os “problemas sociais”, contribuindo, deste modo, para a restauração da “normalidade social”.

Por enfatizar a integração social, o funcionalismo é frequentemente contraposto à teoria do conflito, que sublinha as divisões sociais.

O funcionalismo atingiu seu auge nos anos 50 do século XX, entrando em declínio nas décadas seguintes[8].

 

1.2.2. Max Weber: a sociologia compreensiva

Foram sobretudo os alemães os defensores de uma atitude antipositivista nas ciências sociais, estabelecendo algumas distinções fundamentais entre as ciências humanas e as ciências da natureza. Importante é a distinção formulada pelo filósofo e historiador Wilhelm Dilthey (1833-1911) entre explicação (Erklären) e compreensão (Verstehen). As ciências naturais procuram explicar as relações causais entre os fenômenos, enquanto que as ciências humanas precisam compreender processos da experiência humana que são vivos e mutáveis e que necessitam ser interpretados para que deles se extraia o sentido.

Ao aplicar o método da compreensão aos fatos humanos sociais, Max Weber (1864-1920) elabora os fundamentos de uma sociologia compreensiva ou interpretativa[9].

Max Weber (1864-1920)Weber vê como objetivo primordial da sociologia a captação da relação de sentido da ação humana, ou seja, chegamos a conhecer um fenômeno social quando o compreendemos como fato carregado de sentido que aponta para outros fatos significativos. O sentido, quando se manifesta, dá à ação concreta o seu caráter, seja ele político, econômico ou religioso.

O objetivo do sociólogo é compreender este processo, desvendando os nexos causais que dão sentido à ação social em determinado contexto. Por isso, para Weber, há profunda ligação entre as ciências históricas e a sociologia.

A sociologia compreensiva de Max Weber, para chegar ao objetivo proposto acima, trabalha com um instrumento teórico chamado “tipo ideal”. O tipo ideal é um conceito sociológico construído e testado previamente, antes de ser aplicado às diferentes situações onde se acredita que ele tenha ocorrido. É um modelo teórico fabricado a partir de fenômenos isolados ou da ligação entre eles, e que é testado, em seguida, empiricamente.

A contribuição de Max Weber se estende por todas as áreas das ciências sociais, sendo muito difundida no Brasil.

 

1.2.3. Karl Marx: um sociólogo economista

Um resumo da sociologia de Karl Marx (1818-1883) pode ser encontrado no célebre “Prefácio” da Contribuição à Crítica da Economia Política, escrito em janeiro de 1859[10].

Vamos repassar, com Raymond Aron, em seu comentário do “Prefácio”, as ideias essenciais do pensamento de Marx sobre a sociedade. Ideias que formam o arcabouço do chamado materialismo histórico[11].

No “Prefácio” Marx explica que para compreendermos as sociedades é necessário analisar suas estruturas, asKarl Marx (1818-1883) forças de produção e as relações de produção que nelas se encontram, pois a compreensão do processo histórico está condicionada à compreensão destas relações sociais que ultrapassam os indivíduos.

Ele também diz que em toda sociedade podemos distinguir a base econômica, ou infraestrutura, constituída pelas forças e pelas relações de produção, e a superestrutura, que é constituída pelas instituições jurídicas e políticas, assim como pelos modos de pensar ou consciência social. E acrescenta que, para explicar a maneira de pensar dos seres humanos, é preciso analisar as relações sociais às quais eles estão integrados, pois não é a consciência das pessoas que determina o seu ser, mas é o seu ser social que determina a sua consciência.

Ao analisar a história humana a partir de sua estrutura econômica, Marx fala de quatro modos de produção. Cada um deles é caracterizado por determinado tipo de relações entre os homens na produção da riqueza. O modo de produção antigo caracteriza-se pela escravidão; o modo de produção feudal, pela servidão; o modo de produção burguês, pelo trabalho assalariado e o modo de produção asiático ou tributário, pela submissão dos trabalhadores ao tributo estatal e ao trabalho forçado.

Embora o “Prefácio” Marx não faça alusão à luta de classes, é fácil introduzir o conceito: na contradição existente entre forças e relações de produção, uma classe está associada às antigas relações de produção que constituem um obstáculo ao desenvolvimento das forças produtivas, enquanto que outra classe representa as novas relações de produção que favorecem o desenvolvimento dessas forças. Segundo o Manifesto Comunista, “a história de todas as sociedades existentes até hoje é a história das lutas de classe (…) Opressores e oprimidos, em constante oposição, têm vivido numa guerra ininterrupta, ora franca, ora disfarçada; uma guerra que terminou sempre ou por uma transformação revolucionária da sociedade inteira, ou pela destruição das duas classes em conflito”[12].

O que se conclui da leitura do “Prefácio” é que, segundo a perspectiva marxista, a sociologia é uma ciência que pode contribuir para a mudança social, ao fazer do conhecimento da realidade social um instrumento político para orientar os grupos sociais na luta pela transformação da sociedade, pois é no terreno da prática que se deve demonstrar a verdade da teoria.

Na segunda de suas onze teses sobre Feuerbach, de 1845, diz Marx: “A questão de saber se ao pensamento humano cabe alguma verdade objetiva não é uma questão da teoria, mas uma questão prática”. Para concluir na última tese: “Os filósofos apenas interpretaram o mundo de diferentes maneiras; o que importa é transformá-lo”[13].

Raymond Aron[14] nos lembra, com muita propriedade, que Marx foi um sociólogo economista, convicto de que não podemos compreender a sociedade humana sem uma referência ao funcionamento do sistema econômico, nem compreender a evolução do sistema econômico se desprezamos a teoria do seu funcionamento. Como sociólogo, ele não distinguia a compreensão do presente da previsão do futuro e da determinação de agir.

Observo, enfim, que este resumo dá apenas uma rápida ideia da complexidade, do alcance e das inúmeras polêmicas que o pensamento de Marx gera, necessariamente, tanto entre os estudiosos como entre as pessoas engajadas em qualquer ação social. O marxismo não é, de modo algum, um corpo homogêneo de pensamento, existindo variadas interpretações, desenvolvidas tanto por seus seguidores quanto por seus críticos.

 

1.3. Tendências e exigências da sociologia no século XXI

A fragmentação das teorias sociológicas a partir do final do século XX é enorme.

Observamos que atualmente ocorrem grandes e rápidas mudanças nas sociedades, com destaque para inovações tecnológicas e sociais de impacto, como mídias sociais, drones militares, vigilância onipresente, controle da informação por grandes corporações, só para citar algumas realidades que nos rodeiam. A era digital, com a ampliação da comunicação, trouxe novos e grandes desafios para a trabalho sociológico. É uma nova realidade que exige da sociologia novas abordagens[15].

Os sociólogos hoje se ocupam com temas tais como conflitos socioambientais, desigualdade e estratificação social, consumo e cidadania, questão racial e de gênero, decolonização, migração, virtualidade e realidade, diversidade e globalização, fundamentalismos políticos e religiosos, entre outros.

Observamos ainda que, frequentemente, paradigmas das teorias sociológicas clássicas, como classe, status e poder, tradicionalmente vistos como elementos básicos da estrutura social, cedem espaço a questões de gênero, sexualidade e identidade na sociologia contemporânea, resultando em um novo discurso de interseccionalidade que ofusca abordagens mais convencionais.

Enfim, em uma sociedade plural e em rápida transformação, a sociologia é constantemente desafiada em seus pressupostos e precisa mudar para se adaptar à nova realidade que é seu objeto de estudo. Deste modo, uma sociologia que nasceu em um contexto de potências europeias colonizadoras e imperialistas, precisa ampliar seu olhar para (e a partir de) um mundo diferente[16].

Mas aqui cabe uma pergunta: neste contexto, as teorias sociológicas clássicas ainda possuem relevância para o mundo atual?

Muitos teóricos defendem que sim, e é possível verificar como os conceitos dos fundadores continuam a orientar a pesquisa sociológica do século XXI. É preciso considerar que o valor maior dos pensadores clássicos está na sólida estrutura dos métodos que construíram, a partir dos quais suas teorias podem ser adaptadas e utilizadas em diversas situações empíricas[17].

O filósofo in­glês Alfred North Whitehead afirmou certa vez que “a ciência que hesita em esquecer seus fundadores está perdida”. Mas o sociólogo Alvin W. Gouldner tem uma resposta interessante para a afirmação de Whitehead. Segundo Gouldner, “para se esquecer algo é preciso primeiro tê-lo conhecido. Uma ciência que ignora seus fundadores é incapaz de saber quanto caminhou e em que direção. Ela também está perdida”[18].

 

2. Leitura sociológica da Bíblia Hebraica

2.1. O pioneiro William Robertson Smith e os estudos de Max Weber

Um dos pioneiros na aplicação das ciências sociais à Bíblia Hebraica foi o escocês William RobertsonWilliam Robertson Smith (1846-1894) Smith (1846-1894). Em 1885, em Kinship and Marriage in Early Arabia, e em Lectures on the Religion of the Semites – First Series: The Fundamental Institutions, de outubro de 1888 e março de 1889, as ideias sobre o totemismo que influenciaram Émile Durkheim, J. G. Frazer ou S. Freud já estavam delineadas.

Como muitos de seus contemporâneos, William Robertson Smith tinha uma visão evolucionista da religião, defendendo que a cultura e a religião semíticas tinham passado por uma fase primitiva, matrilinear e totêmica, na qual a comunhão entre os membros de um grupo e seu deus era mantida através do sacrifício e consumação do animal totêmico que representava a divindade.

Mas o que é mais importante em William Robertson Smith é sua ideia de que a pesquisa etnográfica é fundamental para o estudo da religião e da cultura. Esteve entre os árabes do Oriente Médio quatro vezes e defendia que sua cultura mantinha padrões rituais dos tempos antigos que podiam ser aproveitados, de modo comparativo, no seu estudo dos semitas antigos.

SMITH, W. R. Lectures on the Religion of the Semites: First Series - The Fundamental Institutions. Whitefish, Montana: Kessinger Publishing, 2004, 524 p.Outra obra que teve impacto direto nos estudos bíblicos foi a de Max Weber, Das antike Judentum. Os ensaios que deram origem ao livro de Weber Das antike Judentum (O judaísmo antigo) foram escritos entre 1917 e 1919 e publicados por sua viúva em 1921, em Tübingen.

Em O judaísmo antigo, Max Weber descreve a comunidade judaica como:
. um povo pária, ou seja, ocupando o mesmo espaço com outros povos, mas não se misturando com eles
. uma comunidade da aliança
. referendada pela aliança do povo com Iahweh
. os levitas foram os responsáveis por um javismo mais racional e ético
. os profetas pregavam a ética levítica

Em Economia e Sociedade Max Weber aborda a figura do profeta:
. como um indivíduo carismático, inovador, que se opõe ao sacerdote
. não sendo profissional, um traço característico da profecia é a gratuidade
. os profetas israelitas jamais foram representantes dos camponeses oprimidos pelo sistema monárquico instalado nas cidades, sistema que lhes impunha pagamento extorsivo de tributos e trabalhos forçados em obras públicas. Sua mensagem e seus motivos eram estritamente religiosos[19].

 

2.2. Os estudos de Albrecht Alt e de Martin Noth

Os estudos dos alemães Albrecht Alt (1883-1956), especialmente com seus conceitos de carisma e de cidade-Albrecht Alt (1883-1956)estado, e Martin Noth (1902-1968) sobre a importância social da aliança foram muito influenciados por Max Weber.

Os continuados contatos de Albrecht Alt com Palestina e seus trabalhos de pesquisa de campo lhe proporcionaram vastos e profundos conhecimentos sobre as condições concretas e as circunstâncias territoriais da região. Isto se reflete em sua interpretação dos textos bíblicos e em sua historiografia. Ele mesmo designa seu método de ‘método histórico-territorial’[20].

A influência de Max Weber sobre Martin Noth é ainda mais marcante: a teoria de Noth de uma anfictionia no Israel pré-monárquico, publicada em Martin Noth (1902-1968)1930, foi durante muito tempo um terreno quase sagrado no qual não se podia mexer.

Uma anfictionia é uma liga de seis ou doze tribos ao redor de um santuário no qual habita a divindade e onde se renova a aliança entre as tribos, cada uma cuidando de sua manutenção durante dois ou um mês por ano. Assim, Israel, no período pré-monárquico, teria se constituído nesta forma anfictiônica ao redor de Iahweh.

Esta explicação de Martin Noth é bastante semelhante à de Max Weber de um Israel pré-monárquico existindo como uma comunidade de aliança, o que teria possibilitado a coesão de grupos diversos tanto econômica quanto socialmente[21].

 

2.3. As teorias de Mendenhall e de Gottwald sobre as origens de Israel

Sabemos que um dos grandes desafios da História de Israel é explicar como este povo surgiu na Palestina no final do II milênio a.C.

O relato mais detalhado que temos é a narrativa bíblica, especialmente a conhecida conquista da terra do livroGeorge Emery Mendenhall: August 13, 1916 - August 5, 2016 de Josué. Mas esse relato ajuda pouco, pois enfatiza os poderosos atos divinos que liberta o povo do Egito, o conduz pelo deserto e lhe dá a terra. Informa-nos, deste modo, sobre a visão e os objetivos teológicos de narradores de séculos depois, ocultando-nos, entretanto, as circunstâncias econômicas, sociais e políticas em que se deu o surgimento de Israel. Por isso há outras propostas para explicar as origens de Israel[22].

Os norte-americanos George Mendenhall, em 1962, e Norman K. Gottwald, em 1979, aqueceram o debate ao propor que Israel surge de dentro de Canaã, como uma revolta camponesa contra a exploração das cidades-estado cananeias.

George Mendenhall, em 1962,[23] explica que um movimento religioso criou uma solidariedade entre um grande grupo de unidades sociais preexistentes, tornando-as capazes de desafiar e vencer o complexo mal estruturado de cidades que dominavam a Palestina e a Síria no final da Idade do Bronze.

Esta motivação religiosa, segundo ele, foi a fé javista que transcende a religião tribal, e que funciona como um poderoso mecanismo de coesão social, muito acima de fatores sociais e políticos. Por isso, a tradição da Aliança é tão importante na narrativa bíblica, pois essa é o símbolo formal por meio da qual a solidariedade era tornada funcional.

Norman K. Gottwald[24] desenvolvendo detalhadamente, em livro de quase mil páginas, a ideia de uma revolta camponesa, explica as origens de Israel como resultado de uma revolução social consciente que, unindo GOTTWALD, N. K. As tribos de Iahweh: uma sociologia da religião de Israel liberto 1250-1050 a.C. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2004agricultores e pastores, levou parte da população de Canaã a um processo de retribalização, estruturada como uma forma antiestatal de organização social com liderança descentralizada.

A proposta de Norman K. Gottwald suscitou uma grande polêmica e polarizou as atenções dos especialistas durante muito tempo. Desde então o modelo da retribalização ou da revolta camponesa passou a ser citado como uma alternativa bem mais interessante do que os modelos anteriores, além de fazer surgir outras tentativas de explicação das origens de Israel.

Muitas críticas também foram formuladas a Norman K. Gottwald, sendo a de maior consistência a do dinamarquês Niels Peter Lemche, que em Early Israel. Anthropological and Historical Studies on the Israelite Society before the Monarchy, analisa longamente os fundamentos do modelo de Gottwald[25].

 

2.4. Hans G. Kippenberg: religião e formação de classes na antiga Judeia

O alemão Hans G. Kippenberg[26] publicou em 1978 um estudo sobre a formação do judaísmo pós-exílico chamado Religião e formação de classes na antiga Judeia: estudo sociorreligioso sobre a relação entre tradição e evolução social.

O objetivo da obra: relacionar o conteúdo das tradições religiosas judaicas com a vida social dos judeus. OKIPPENBERG, H. G. Religião e formação de classes na antiga Judeia: estudo sociorreligioso sobre a relação entre tradição e evolução social. São Paulo: Paulus, [1988] 1997 motivo da obra: os movimentos judaicos de resistência contra gregos e romanos tiveram interpretações divergentes por parte de autores que trabalham dentro da dicotomia Religião e Sociedade: enquanto que, para uns, são as motivações religiosas que dominam a história, para outros, são as motivações sociais que contam.

Por exemplo: Martin Hengel (1961) defende que o movimento zelota de resistência tem, como dominantes, razões religiosas, afirmando, assim, a independência e a prioridade do religioso sobre o político-social, enquanto Heinz Kreissig (1970) defende que foram as contradições sociais, criadas por condições socioeconômicas, que possibilitaram o processo de resistência contra Roma, sendo os camponeses e sacerdotes das camadas mais baixas os seus motores principais.

Diante disso, pergunta Hans G. Kippenberg: existia uma relação intrínseca entre determinados conteúdos da tradição religiosa e as lutas de resistência, ou a relação era extrínseca ou, até mesmo, casual?

A hipótese do autor é a seguinte: a tradição se uniu com duas tendências antagônicas: a tendência à formação de classes e a tendência à solidariedade, formando, assim, dois complexos divergentes de tradição que fundamentam os conteúdos religiosos dos movimentos judaicos de resistência.

 

2.5. Norman K. Gottwald: uma leitura crítica da reforma de Josias

Norman K. Gottwald, no artigo Social Class as an Analytic and Hermeneutical Category in Biblical Studies. Journal of Biblical Literature, vol. 112, no. 1, 1993, p. 3-22, faz uma leitura crítica da reforma de Josias utilizando a categoria de classe social como chave hermenêutica[27].

Norman K. Gottwald (1926-2022)A rápida dissolução do domínio imperial assírio na Síria-Palestina no início do reinado de Josias alterou completamente o equilíbrio de poder de classe na Palestina. O governo de Jerusalém viu que agora poderia ser possível não apenas solidificar seu domínio sobre Judá, mas expandir seu domínio sobre o território e a população do antigo reino de Israel norte. Como fazer isso?

Era indispensável aumentar as receitas e conseguir uma população judaíta leal e comprometida. A estratégia de Josias foi reunir os judaítas com um duplo apelo ao fervor patriótico e à pureza religiosa, prometendo restaurar os dias gloriosos da época davídica ao mesmo tempo em que se proibia todo culto a Iahweh fora de Jerusalém.

Esta supressão violenta de locais de culto fora de Jerusalém era, porém, prejudicial para os sacerdotes rurais, respeitados em suas comunidades, enquanto que o aumento das receitas para Jerusalém era oneroso para muitos. As medidas que atingiram as lealdades locais e ameaçaram a cultura e a religião domésticas geraram ressentimento.

Por outro lado, é provável que os maiores apoiadores das reformas entre as subclasses exploradas fossem diaristas descendentes de refugiados do reino do norte em 722 a.C. ou os judaítas que perdiam suas terras por endividamento. Esse grupo lucraria com o aumento do trabalho nos preparativos militares, na construção pública e nos empregos ocasionados pelo comércio de peregrinação.

Em suma, a campanha em favor de uma reforma provavelmente não conquistou uma base de apoio muito considerável, enraizada como estava na classe dominante em Jerusalém, sofrendo uma resistência quase unânime no norte e sendo precariamente apoiada por apenas uma minoria da classe explorada judaíta.

Sabemos que o projeto de reforma de Josias foi interrompido em menos de vinte anos por causa da intervenção egípcia e, depois, babilônica.

 

2.6. Leitura socioantropológica do livro de Rute

Ouso citar um texto meu. Foi publicado em Estudos Bíblicos em 2008[28].

Ao fazer a proposta de uma leitura socioantropológica, estou sugerindo que estas duas ciências sociais, sociologia e antropologia, entre outras, podem contribuir hoje de maneira eficaz para o estudo dos textos bíblicos. Mas também estou pressupondo como necessária a abordagem literária dos mesmos textos bíblicos, para evitar a armadilha da leitura do texto como relato fidedigno da realidade social subjacente.

Qual seria, porém, a contribuição específica da leitura socioantropológica? Penso que pode ser o fato destaFIGUEIREDO, T. J. A. de (org.) Bíblia: teoria e prática - Leituras de Rute. Estudos Bíblicos 98, Petrópolis, 2008 abordagem examinar não somente a literatura bíblica, mas também as forças sociais subjacentes à produção desta literatura, onde se distingue a sociedade que está por trás do texto da sociedade que aparece dentro do texto. O desafio maior, neste caso, será combinar, sem reducionismos, as abordagens socioantropológica e literária.

Vou utilizar o livro de Rute para visualizar esta proposta. Este livro é uma história que usa lugares reais e pessoas fictícias situadas em determinado espaço e tempo para construir a sua narrativa. Daí que três níveis conectados pela perspectiva conferida ao texto pelo autor/a da história devem ser considerados:

:. o imaginário do autor/a que gera a narrativa

:. o mundo real fora do livro

:. a construção social e ideológica deste mundo pelo autor/a para atingir um objetivo.

É preciso, portanto, como sugeri, olhar em duas direções:

:. para a sociedade que aparece dentro do texto, observando quem são os personagens, o mundo no qual se movem e quais são suas práticas econômicas, políticas e sociais

:. para a sociedade que aparece por trás do texto, investigando a situação na qual e para a qual o livro foi escrito.

Deste modo deveria ser possível mostrar que o modo como os personagens organizam sua visão de mundo são, na verdade, ferramentas literárias utilizadas pelo autor/a na construção de uma história totalmente fictícia, mas que, sem dúvida, produz uma mensagem que é considerada pelo autor/a de Rute como um caminho a ser buscado, estruturando o livro como uma narrativa orientada por uma proposta séria.

O artigo pode ser desenvolvido da seguinte maneira:

1. Olhando a história com os olhos do autor/a, pergunto: o que diz o livro de Rute?

2. Olhando para além do livro, pergunto: o que é possível saber da época em que foi escrito o livro de Rute?

3. Olhando a história com os olhos do leitor atual, pergunto: qual é a proposta do livro de Rute?

 

2.7. Roland Boer: a economia do antigo Israel

Em um estudo sobre a economia do antigo Israel, de 2015, o australiano Roland Boer[29] concentra-se na construção de um modelo econômico para o mundo antigo que não dependa da economia neoclássica e de sua lógica de mercado liberal. O estudo argumenta que a chave para as economias antigas está com aqueles queBOER, R. The Sacred Economy of Ancient Israel. Louisville: Westminster John Knox Press, 2015 trabalhavam a terra e não em reinos e impérios intermitentes e relativamente fracos.

Com base em sofisticada teoria econômica e recursos textuais e arqueológicos, Roland Boer deixa claro que a “crise” econômica era a norma e que a economia é sempre socialmente determinada.

O autor usa, principalmente, três pilares teóricos: a escola da regulação francesa (l’école de la régulation) , as pesquisas marxistas da era soviética e os estudos de Mario Liverani.

Ele conclui que o mais resistente de todos os regimes era a economia de subsistência, para a qual o colapso regular de reinos e impérios era uma bênção e não uma maldição.

 

3. Leitura sociológica do Novo Testamento

3.1. Gerd Theissen e o radicalismo itinerante

O exegeta alemão Gerd Theissen[30] publicou, em 1973, um artigo chamado “Radicalismo Itinerante. Aspectos de sociologia da literatura na transmissão de palavras de Jesus no cristianismo primitivo” (Wanderradikalismus: Literatursoziologische Aspekte der Überlieferung von Worten Jesu im Urchristentum. Zeitschrift für Theologie und Kirche 70, n. 3, p. 245-271, 1973), no qual ele propõe que o radicalismo ético das palavras de Jesus, como aparece THEISSEN, G. O movimento de Jesus: história social de uma revolução de valores. São Paulo, Loyola, 2008, 480 p.nos evangelhos, é um radicalismo itinerante.

Gerd Theissen defende que esta ética evangélica é possível de ser vivida somente por quem escolhe viver à margem da sociedade, renunciando, assim, à moradia, à família, à propriedade e ao direito.

Ao unir, em sua análise, exegese e sociologia da literatura, esta proposta causou grande alvoroço no meio exegético. As familiares mas domesticadas palavras de Jesus não mais puderam ser tratadas isoladamente das condições sociais de seu tempo ou das circunstâncias sociais e dos interesses específicos de seus seguidores.

Este e posteriores estudos de Gerd Theissen, na linha do funcionalismo estrutural, tratam prioritariamente do movimento de Jesus na Palestina tentando explicar as razões de sua falência ali e de seu grande sucesso no meio gentio fora da Palestina.

 

3.2. A leitura materialista de Fernando Belo

No ano seguinte ao do pioneiro artigo de Gerd Theissen, um estudo com sabor de manifesto causou viva discussão nos meios exegéticos: foi o do português Fernando Belo, que vivia em Paris.BELO, F. Lecture matérialiste de l’évangile de Marc: Récit-pratique-idéologie. Paris: Du Cerf, 1974

Utilizando dados da leitura estruturalista do texto, segundo Roland Barthes, somados à análise marxista dos modos de produção na linha de Louis Althusser e à psicologia e psicanálise de Jacques Lacan, entre outros, Fernando Belo escreveu, em 1974, um estudo revolucionário sobre o evangelho de Marcos, chamado Lecture matérialiste de l’évangile de Marc: Récit-pratique-idéologie. Paris: Du Cerf, 1974.

Diz Fernando Belo que ler Marcos de modo materialista é tomá-lo como uma narração que não se pode compreender fora da situação social de seu autor e dos protagonistas (Jesus, seus amigos, seus adversários, a multidão). É pôr o acento menos nas palavras de Jesus do que na sua prática; tanto mais que a narração de Marcos não é uma coleção de “palavras” ou “discursos”, mas expõe práticas e estratégias[31].

O enfoque materialista se baseia nas pessoas em suas atividades reais, e não no que as pessoas dizem, pensamFernando Belo (1933-2018) e representam, nem naquilo que eles são segundo as palavras, pensamentos, imaginação e representação de outros.

A obra de Fernando Belo traz, em primeiro lugar, um ensaio formal do conceito de modo de produção. Depois trata do modo de produção da Palestina antiga e do séc. I d.C., para só então propor uma leitura de Marcos. Fernando Belo termina o livro com um ensaio de eclesiologia materialista[32].

 

3.3. John H. Elliott e a sociologia da primeira carta de Pedro

O norte-americano John H. Elliott[33] publicou, em1981, uma análise da primeira carta de Pedro com o título de A Home for the Homeless: A Sociological Exegesis of 1 Peter; Its Situation and Strategy, na qual, utilizando a teoria de ELLIOTT, J. H. A Home for the Homeless: A Social-Scientific Criticism of 1 Peter, Its Situation and Strategy. Eugene, OR: Wipf & Stock, 2005, 344 p.que o cristianismo primitivo constituiu uma seita messiânica surgida dentro do judaísmo, retrata a precária situação do cristianismo da Ásia Menor e a estratégia de resposta da carta a tal situação.

Avaliando o resultado de seu estudo do ponto de vista metodológico, John H. Elliott diz que “analisar 1 Pedro em termos de um modelo sectário forneceu um recurso heurístico para visualizar a dinâmica social implícita neste escrito e esclarecer a maneira na qual os vários conteúdos, temas e metáforas organizadoras foram integrados para formar uma comunicação coerente e persuasiva para motivar sua audiência para uma forma efetiva de ação social”[34].

John H. Elliott foi quem deu nome ao método “social-scientific criticism”, algo como “crítica sociocientífica”, usado, pela primeira vez, no subtítulo da segunda edição de seu livro, publicada emELLIOTT, J. H. Um lar para quem não tem casa: interpretação sociológica da primeira carta de Pedro. São Paulo: Academia Cristã/Paulus, 2011 1990. O método utiliza, além da sociologia, também a antropologia cultural, ou social, e outras ciências sociais. Em português, em meus textos, chamo esta abordagem de “leitura socioantropológica”. Importa lembrar que, além de reconstruir o que está por trás dos textos, a leitura socioantropológica exige do intérprete um modo de pensar sociológico e antropológico.

John H. Elliott diz que a crítica sociocientífica pretende abranger todas as ciências sociais, não apenas a sociologia, e se enquadrar em todas as outras “críticas” do método histórico-crítico. A crítica sociocientífica é uma operação indispensável de um método interpretativo que pretende examinar todas as características dos textos e todos os aspectos de seus contextos sociais e, em seguida, as relações de textos e contextos[35].

 

3.4. Wayne A. Meeks e os primeiros cristãos urbanos

Em 1983 Wayne A. Meeks[36] publicou The First Urban Christians: The Social World of the Apostle Paul. Usando a MEEKS, W. A. Os primeiros cristãos urbanos: o mundo social do apóstolo Paulo. 2. ed. São Paulo: Academia Cristã/Paulus, 2022abordagem do funcionalismo estrutural, estudou a origem, posse e status social dos indivíduos das comunidades paulinas, e também os programas, a organização e o comportamento dos grupos mencionados no conjunto dos textos paulinos.

Ele chegou à conclusão de que o típico cristão paulino era o artesão livre e o pequeno comerciante, gente dotada de alta mobilidade social nas grandes cidades do Império Romano. Não teriam pertencido às comunidades paulinas nem o topo da pirâmide social da época (aristocratas donos de terras, senadores, cavaleiros etc.) e nem a base da pirâmide, constituída, então, pelos agricultores pobres, escravos agrícolas, trabalhadores braçais da roça, entre outros.

 

3.5. Ched Myers e a leitura política de Marcos

Em 1988 o norte-americano Ched Myers publicou um comentário ao evangelho de Marcos que tem como título Binding the Strong Man: A Political Reading of Mark’s Story of Jesus (“Amarrando o homem forte. Uma leitura política da história de Jesus de Marcos”)[37].

A obra compõe-se de quatro partes: a primeira trata do texto e do contexto sócio-histórico do evangelho deMYERS, C. O evangelho de São Marcos. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2021 Marcos, a segunda e a terceira leem o texto e a quarta traz as conclusões do trabalho. Um posfácio e um apêndice consideram as várias leituras sociopolíticas atuais da narrativa de Jesus.

O autor adota o modelo centro-periferia, que ele (norte-americano, escrevendo do centro imperial) considera adequado tanto para a produção do texto de Marcos quanto para a sua leitura atual.

Deste modo, mesmo situado no centro, o autor defende uma leitura libertadora de Marcos, considerando a chave apocalíptica a mais adequada para a leitura do texto, a partir de sua definição dos escritos apocalípticos, tais como Daniel e Apocalipse, como manifestos políticos de movimentos não violentos de resistência à tirania. Myers diz que o mesmo pode ser dito a propósito de Marcos.

Ched Myers procura extrair três fios narrativos ou subtramas do evangelho de Marcos. “A primeira subtrama envolve tentativas de Jesus para criar e consolidar uma comunidade messiânica, tendo como sujeito evidentemente seus discípulos. Seu mandamento a eles dirigido deve levar avante a obra do reino (…) A segunda subtrama é o ministério de Jesus de cura, de exorcismo e de proclamação da libertação, tendo como sujeito os pobres e oprimidos, encarnados pela ‘multidão’ no Evangelho. O mandamento aparece no primeiro exorcismo da sinagoga, em que a multidão reconhece que a autoridade de Jesus supera a dos supersenhores, os escribas (…) A terceira subtrama é o confronto de Jesus com a ordem sociossimbólica dominante, tendo como sujeito os defensores desta ordem: os escribas, os fariseus, os herodianos e o clero dirigente de Jerusalém. Jesus confia seu mandamento a eles diversas vezes na primeira campanha de ação direta, afirmando sua autoridade sobre o sistema de pureza e de débito (2,10.28) e desafiando as autoridades a optarem pela justiça e pela compaixão em vez da dominação”[38].

Estas três subtramas levam Jesus à prisão e execução, com a deserção dos discípulos, a decepção da multidão e a hostilidade das autoridades. Jesus segue sozinho o caminho da cruz. Essa tragédia, porém, é revertida pela promessa de que, como Jesus vive, a aventura do discipulado pode continuar (16,6s).

Deste modo, o evangelho de Marcos é visto como um manifesto escrito para súditos do poder imperial romano aprenderem a dura verdade sobre o seu mundo e sobre eles mesmos. Para Ched Myers o relato de Marcos é história feita pelos comprometidos, que versa sobre os comprometidos e que se dirige aos comprometidos com a obra de Deus, obra de justiça, de compaixão e de libertação no mundo.

 

3.6. Richard A. Horsley e a revolução social do profeta Jesus

O norte-americano Richard A. Horsley[39] faz uso extensivo de métodos marxistas e materiais arqueológicos para reconstruir a situação socioeconômica da época de Jesus. Ele mostra que embora os romanos tenham imposto um modo de produção escravista em algumas cidades, o modelo geral ainda era um modo de produção tributário, com a cobrança de tributos exorbitantes aos camponeses. Assim, além dos impostos romanos, os governantes locais, como os reis herodianos e os sacerdotes de Jerusalém, exigiam seus próprios impostos do povo, enquanto tentavam bajular e imitar Roma.

Richard A. HorsleyA resistência tomou a forma de resistência camponesa, sabotagem, movimentos proféticos e messiânicos, escritos de escribas, contraterrorismo e revoltas. Neste contexto da Palestina do século I se insere a pregação profética de Jesus de Nazaré.

Como uma crítica política do Império Romano, Jesus circulou pelas aldeias da Palestina propondo a ideia do reino de Deus aos camponeses pobres de seu tempo para restabelecer uma comunidade de aliança, nos moldes da conhecida pregação profética. Uma empreitada, entretanto, que só poderia ter sucesso se partisse da conscientização da situação de opressão em que viviam. Segundo Horsley, tal proposta pode ser identificada na Q (=Quelle) e no evangelho de Marcos.

Muitos são os escritos de Richard A. Horsley ou as obras editadas por ele. Limito-me a citar algumas publicações entre os anos de 1985 e 2022. Al Umas poucas estão traduzidas para o português. Uma lista mais completa pode ser vista em <https://www.worldcat.org/search?qt=worldcat_org_all&q=Richard+A.+Horsley>.

Bandits, Prophets, and Messiahs: Popular Movements in the Time of Jesus. New York: Harper Collins, 1985. Em português: Bandidos, Profetas e Messias: movimentos populares no tempo de Jesus. São Paulo: Paulus, 1997 [5. reimpressão: 2022].

Jesus and Spiral of Violence: Popular Jewish Resistance in Roman Palestine. Minneapolis: Augsburg Fortress, 1993. Em português: Jesus e a espiral da violência: resistência judaica popular na Palestina Romana. São Paulo: Paulus, 2010.

Archaeology, History, and Society in Galilee: The Social Context of Jesus and the Rabbis. Philadelphia: Trinity Press International, 1996. Em português: Arqueologia, História e Sociedade na Galileia: o contexto social de Jesus e dos Rabis. São Paulo: Paulus, 2000 [2. reimpressão: 2017].

Paul and Empire: Religion and Power in Roman Imperial Society. Philadelphia: Trinity Press International, 1997. Em português: Paulo e o Império: religião e poder na sociedade imperial romana. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2018.

Jesus and Empire: The Kingdom of God and the New World Disorder. Minneapolis: Augsburg Fortress, 2003. EmHORSLEY, R. A. Jesus e o Império: o reino de Deus e a nova desordem mundial. São Paulo: Paulus, 2004 português: Jesus e o Império: o reino de Deus e a nova desordem mundial. São Paulo: Paulus, 2004.

The Liberation of Christmas: The Infancy Narratives in Social Context. Eugene, OR: ‎ Wipf & Stock, 2006.

Jesus and the Powers: Conflict, Covenant, and the Hope of the Poor. Minneapolis: Fortress Press, 2010.

The Prophet Jesus and the Renewal of Israel: Moving Beyond a Diversionary Debate. Grand Rapids, MI: Eerdmans, 2012.

Jesus and the Politics of Roman Palestine. Columbia: University of South Carolina Press, 2014.

You Shall Not Bow Down and Serve Them: The Political Economic Projects of Jesus and Paul. Eugene, OR: Cascade Books, 2021.

Empowering the People: Jesus, Healing, and Exorcism. Eugene, OR:‎ Cascade Books, 2022.

 

3.7. Robert J. Myles e a luta de classes no Novo Testamento

Robert J. Myles[40], neozelandês, organizou, em 2019, um livro sobre luta de classes no Novo Testamento. A obra aborda as realidades políticas e econômicas do primeiro século para iluminar a mediação de classes por meio de vários textos e tradições do Novo Testamento. Os ensaios abrangem uma gama de subcampos, apresentando a luta de classes como a força motriz da história, respondendo a debates recentes, dados históricos e novas evidências sobre o mundo político-econômico de Jesus, Paulo e os Evangelhos.

MYLES, R. J. (ed.) Class Struggle in the New Testament. Lanham, MD: Lexington Books/Fortress Academic, 2019Os autores abordam, por exemplo, as lutas coletivas nos evangelhos, os militares romanos e a questão de classe, a utilidade de categorias como camponeses, empregados e grupos intermediários para a compreensão do mundo de Jesus, a estrutura de classes por trás da origem dos arcanjos, a implicação da ideologia capitalista na interpretação bíblica, o uso de metáforas da escravidão no Novo Testamento, entre outros temas.

Christina Petterson[41], comentando o livro, nos diz que embora intitulado “Luta de classes no Novo Testamento”, que é um termo e um quadro de referência decididamente marxistas, o livro como tal não faz jus ao seu título. Enquanto alguns artigos empregam diretamente uma estrutura marxista para sua discussão de classe, outros não.

Contudo, embora a promessa do título não seja cumprida, os exemplos podem nos dar uma indicação da questão da classe nos estudos bíblicos e das múltiplas maneiras pelas quais ela é empregada.

 

4. Desafios e dificuldades da leitura sociológica

4.1. Classificando os estudos

Charles E. Carter, na introdução ao livro Community, Identity and Ideology. Social Sciences Approaches to the Hebrew Bible[42], observa que, na leitura sociológica da Bíblia Hebraica, alguns pesquisadores enfatizam as forças ou conflitos que produzem mudanças sociais, enquanto outros enfatizam a estabilidade de uma determinada sociedade baseada sobre a estrutura e a função das instituições. E então teríamos, de um lado, uma perspectiva de conflito, como em Max Weber, e, de outro, uma perspectiva estrutural funcional, como a de Émile Durkheim, ambos com significativo número de seguidores nos estudos bíblicos.

Alguns teóricos enfatizam os modos específicos de subsistência que caracterizam uma sociedade, enquanto outros enfatizam as relações econômicas existentes dentro do processo social, o que nos leva à classificar suas abordagens com o nome de estratégias de subsistência versus modo de produção, como em Marx e seguidores.

Outros ainda sublinham a importância das ideias e da ideologia na explicação de como se organizam as sociedades, enquanto outra corrente vê a ideologia como um processo que deve ser explicado a partir das condições materiais próprias de uma sociedade, colocando, de um lado, Max Weber como defensor de um idealismo cultural, e, de outro, Karl Marx como o teórico do materialismo cultural.

É preciso lembrar ainda que estas perspectivas são, às vezes, utilizadas individualmente, mas, outras vezes, duas ou mais abordagens podem ser colocadas lado a lado como complementares pelos estudiosos da Bíblia.

E o que dizer dos estudos do Novo Testamento? John H. Elliott[43] procura classificar os estudos que têm o “social” como pressuposto em cinco categorias, conforme a abordagem assumida.

Alguns são investigações de realidades sociais, tais como grupos, ocupações, instituições e semelhantes, que ilustram aspectos da realidade da época bíblica, mas não analisam, sintetizam e explicam os fatos sociais de maneira científica. Outros estudos são abordagens sócio-históricas de um determinado período, movimento ou grupo. Um terceiro tipo usa a abordagem sociológica para estudar as forças e instituições sociais do cristianismo primitivo. Em quarto lugar ele cita os estudos do Novo Testamento que utilizam as ferramentas da antropologia cultural, como The Context Group. E, finalmente, há aqueles que fazem uma análise sociológica dos textos bíblicos.

John H. Elliott diz que estes estudos são complementares nas suas abordagens, mas alerta que é preciso distinguir entre duas atitudes básicas: uma é a abordagem sócio-histórica que se preocupa em descrever os dados sociais relevantes, enquanto outra é a abordagem sociológica que procura explicar os fatos sociais.

 

4.2. Questões que sempre voltam

Mark Sneed,  em Teaching & Learning Guide for: Social Science Approach to the Hebrew Bible. Religion Compass 4/2, p. 124-129, 2010, faz algumas considerações sobre o método e propõe algumas questões interessantes para debate.

Ele lembra que a abordagem sociocientífica da Bíblia Hebraica ganhou popularidade nos últimos anos. Ela é herdeira da abordagem histórico-crítica mais antiga e dominante nos estudos bíblicos, mas se concentra na sociedade como um todo, em vez de olhar apenas para os governantes e a classe dominante que constituía os Estados antigos.

A abordagem sociocientífica vai além também da popular abordagem da história social, ao incorporar a teoria social em sua interpretação dos textos e da sociedade israelita. Ela transforma o retrato bidimensional dos personagens bíblicos em figuras tridimensionais de carne e osso cujas vidas são motivadas e moldadas por forças sociais maiores.

A abordagem sociocientífica também ajuda a colocar em primeiro plano a “alteridade” do texto bíblico, demonstrando como o texto bíblico reflete uma cultura que não é familiar ao nosso mundo ocidental moderno. Também serve como um alerta contra a atual abordagem da crítica literária da Bíblia, que tende a atenuar essa estranheza do texto antigo e enxergar suposições e noções culturais modernas dentro do texto.

Mas a abordagem sociocientífica também se tornou mais pós-moderna, e seus adeptos sabem que seus lugares sociais influenciam a maneira como interpretam a Bíblia e as escolhas que fazem em relação aos modelos que aplicam ao texto bíblico.

Os biblistas também se tornaram mais céticos em relação à confiabilidade dos textos antigos para reconstruir a realidade sócio-histórica, por causa de seu caráter inerentemente subjetivo, e propuseram maneiras de lidar com isso.

E, finalmente, a abordagem sociocientífica tornou-se mais autoconsciente da natureza especulativa da aplicação de modelos teóricos a textos antigos e do perigo de fazer o texto se adequar ao modelo.

No entanto, apesar disso, os biblistas acreditam que vale a pena arriscar e que sua abordagem traz uma importante contribuição para a crítica bíblica, tornando os estudos bíblicos interessantes e relevantes.

Em atitude de vigilância hermenêutica é sempre útil nos questionarmos sobre os pressupostos da leitura sociocientífica. Por isso perguntamos:
1. Como os biblistas podem aplicar as ferramentas e teorias atuais das ciências sociais, baseadas em sociedades vivas e, portanto, testáveis, a uma antiga sociedade morta?
2. Como se pode utilizar um texto antigo para obter informações sócio-históricas se esse texto é fundamentalmente subjetivo?
3. Ideias religiosas e teológicas podem ser reduzidas a fenômenos sociológicos? Elas têm uma verdade e um valor independentes? As ciências sociais são reducionistas?
4. Existe uma causação social? As ideias podem ser causativas ou a causação é limitada a condições sócio-históricas?
5. A leitura sociológica da Bíblia é realmente científica ou envolve uma dimensão subjetiva?
6. É realmente possível para um biblista aprender adequadamente outro campo de saber como a sociologia e aplicá-lo à Bíblia?
7. O uso de modelos para interpretar a Bíblia é realmente legítimo?
8. As abordagens literárias críticas da Bíblia tornam obsoletas as abordagens das ciências sociais? Há lugar para ambos?

A estas questões acrescento mais uma: a prioridade atual da arqueologia da Palestina, vista como fonte primária para a reconstrução da história do antigo Israel, é auxílio ou entrave para a leitura sociológica dos textos bíblicos?

 

4.3. Declínio e retorno das questões sociológicas

Na virada do século XIX para o XX e, neste, até a década de 30, perguntas sociológicas eram regularmente aplicadas aos textos bíblicos. Mas, a partir daí aconteceu um retrocesso na pesquisa sociológica da Bíblia.

Entre 1930 e 1970 ocupou grande espaço na pesquisa a teologia bíblica[44], um movimento paralelo à neo-ortodoxia de Karl Barth (1885-1968) e ao existencialismo de Rudolf Bultmann (1884-1976).

A teologia bíblica tentou harmonizar a descontinuidade histórica de Israel, procurando demonstrar a unicidade religiosa do “pensamento bíblico”. E acabou falindo em tratar a religião de Israel como um fenômeno social.

A teologia dialética de Karl Barth levou a exegese a refletir sobre o conteúdo teológico dos textos, espiritualizando a pergunta pelo Sitz im Leben (contexto social), que passou a ser apenas o “lugar vivencial” religioso. Os textos eram lidos primariamente como expressão da teologia da comunidade e de sua fé. Diminuiu o interesse social e aumentou o religioso.

A hermenêutica existencial de Rudolf Bultmann, com sua tendência individualizante na leitura do Novo Testamento, enfraqueceu mais ainda o interesse pela dimensão social dos textos.

O retorno das abordagens sociológicas aconteceu, porém, a partir da década de 70, em um momento em que as questões sociais emergiam fortemente mundo afora.

Em uma publicação de 1999, Jacques Berlinerblau[45], que tem formação em línguas e literatura semíticas e em sociologia, chamou este retorno de “narrativa triunfante da sociologia bíblica”. Ironicamente, pois ele acentuou mais as diferenças do que as semelhanças entre a primeira e a segunda ondas de abordagens sociológicas da Bíblia.

Ele distinguiu dois tipos de sociologia bíblica:
. o primeiro, da época dos “pais” da sociologia, quando teóricos como Karl Marx, William Robertson Smith e Max Weber usaram a Bíblia Hebraica para testar e refinar suas teorias;
. o segundo, do último terço do século XX, está sendo produzido principalmente por especialistas em estudos bíblicos que usam as teorias sociológicas para compreender melhor os textos bíblicos e o mundo em que foram produzidos.

E ele alerta para o fato de que a teoria tem recebido pouca atenção na sociologia bíblica moderna. E isto é um problema.

Há leituras sociológicas da Bíblia que não citam um único sociólogo, vivo ou morto; há outras que invocam uma determinada teoria ou teórico e, sem nenhuma análise crítica, nela despejam todos os dados bíblicos e arqueológicos de que dispõem; outras, ainda, fazem uma mistura eclética de várias teorias, com adicionais contribuições filosóficas ou teológicas.

Assim, segundo Jacques Berlinerblau, o que aflige as leituras sociológicas da Bíblia é a incapacidade dos biblistas de participar do processo de teorização, um processo que começa pelo domínio de um determinado cânon de teorias e teóricos e que conduz a um diálogo com outras teorias.

Esta dificuldade dos biblistas em integrar o processo teórico da sociologia com a exegese ou a arqueologia tem produzido efeitos negativos, como, por exemplo, a ausência de interesse dos sociólogos pela ampla produção da sociologia bíblica. Isto gera uma crise de legitimidade.

 

4.4. A avaliação da Pontifícia Comissão Bíblica

Do ponto de vista da Pontifícia Comissão Bíblica, as leituras que fazem uso das ciências sociais são vistas como necessárias, embora comportem alguns riscos, como diz o documento A Interpretação da Bíblia na Igreja, de 15 de abril de 1993[46].

O documento diz que a abordagem sociológica da Bíblia dá uma abertura maior ao trabalho exegético e lembra ser fundamental para a crítica histórica o conhecimento dos dados sociológicos que contribuem para a compreensão do funcionamento econômico, cultural e religioso do mundo bíblico.

O documento fala também dos riscos dessa abordagem, entre eles, a insuficiente documentação que possuímos sobre as sociedades antigas, fornecida por textos bíblicos e extrabíblicos, o que dificulta a aplicação do método sociológico.

 

4.5. Classe social como chave hermenêutica

Norman K. Gottwald, no artigo de 1993, já citado[47], faz algumas considerações interessantes sobre os desafios da leitura sociológica da Bíblia.

Ele começa com uma constatação: lendo os textos bíblicos, chama a nossa atenção a brutal concentração de riqueza e poder nas mãos de determinados grupos do antigo Israel. Até que a presença de ricos e poderosos dentro da Bíblia – ao lado de seus homólogos pobres e fracos – é amplamente percebida e comentada pelos especialistas. Porém, a dinâmica formativa e os efeitos de longo alcance de tão brutais concentrações de riqueza e poder raramente foram conceituados de uma forma empírica e sistemática o suficiente para produzir insights exegéticos e hermenêuticos sólidos.

Ele diz que essa lacuna teórica na análise e explicação da riqueza e do poder na Bíblia é provocada por três fatores que se reforçam mutuamente.

O primeiro é a tradicional hegemonia das categorias religiosas e teológicas nos estudos bíblicos, que teimosamente resiste à sociologia como uma ameaça à integridade religiosa e à autoridade das Escrituras.

O segundo é a controvérsia dentro das próprias ciências sociais sobre se riqueza e poder devem ser entendidos principalmente em linhas estruturais-funcionais ou na linha do conflito.

O terceiro é a incorporação dos estudos bíblicos em uma visão de mundo capitalista que mascara ou nega a existência de divisões estruturais significativas na sociedade.

O resultado é que, juntos, esses fatores desencorajam e inibem os esforços para entender a riqueza e o poder na Bíblia como fenômenos historicamente gerados e reproduzidos. Extremos de riqueza e poder tendem a aparecer nos estudos bíblicos como se fossem “fatos da natureza”, não exigindo maiores explicações. As estratégias costumeiras tendem a ver as desigualdades de riqueza e poder como resultado de diferenças pessoais idiossincráticas aleatórias de habilidade ou empenho, por um lado, ou da ganância desordenada e corrupção moral de indivíduos particulares, por outro.

A sua proposta: a ferramenta analítica chave que poderia nos fazer ir além deste positivismo e deste moralismo superficial sobre riqueza e poder nas sociedades da época bíblica é o conceito de classe social.

 

Conclusão

Continua a existir forte oposição à leitura sociológica da Bíblia nos meios conservadores, dentro e fora da academia, pois ao pretender estudar racionalmente a religião, os seus textos fundadores ou as instituições religiosas, a sociologia crítica é vista como materialista, ímpia e desagregadora dos valores cristãos.

Acusa-se, ainda hoje, a leitura sociológica de fechar as portas ao transcendente e ao sobrenatural, na medida em que ela se reduz ao horizonte empírico da Bíblia. A leitura sociológica seria reducionista, porque reduz fenômenos religiosos a fatores não religiosos e também porque determina fenômenos religiosos por fatores não religiosos.

Diz-se também que a leitura sociológica sujeita a Bíblia a contínua reinterpretação dependente de estruturas sociopolíticas instáveis, e isto atropela as verdades eternas do cristianismo.

Para terminar, gostaria de lembrar que o filósofo francês da ciência Gaston Bachelard (1884-1962) trabalhou de maneira muito interessante a questão dos obstáculos epistemológicos no processo do conhecimento científico. Nele me inspiro para falar de obstáculos hermenêuticos na leitura da Bíblia.

Quando lemos a Bíblia, tropeçamos constantemente em obstáculos hermenêuticos, tais como a visão idealista da realidade, o individualismo, o moralismo, o dualismo, o romantismo, o teologismo e o populismo[48].

Obstáculos hermenêuticos são armadilhas do pensamento e só uma constante vigilância ideológica manterá aberta a nossa mente para a experiência da criação do sentido que acontece na operação de leitura dos textos bíblicos.

 

Bibliografia

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>>Bibliografia atualizada em 25.07.2022

Artigos


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  4. Uma explicação mais detalhada do surgimento do discurso sociológico, com ampla bibliografia, pode ser lida em SILVA, A. J. da. O discurso socioantropológico: origem e desenvolvimento.
  5. VÉRAS, M. P. B. Introdução à sociologia: Marx, Durkheim e Weber, referências fundamentais. São Paulo: Paulus, 2014.
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  12. MARX, K.; ENGELS, F. Manifesto comunista. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 40.
  13. MARX, K.; ENGELS, F. Teses sobre Feuerbach. In: A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 533-535.
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  15. NASCIMENTO, L. F. A Sociologia Digital: um desafio para o século XXI. Sociologias, v. 18, n. 41, 2016. 
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  19. WEBER, M. Ética econômica das religiões mundiais vol. 3: Ensaios comparados de sociologia da religião vol. 3 – O judaísmo antigo. Petrópolis: Vozes, 2019; WEBER, 2022.
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  22. SILVA, A. J. da. O problema das origens de Israel e o Livro de Josué. In: VITÓRIO, J.; LOPES, J. R.; SILVANO, Z. A. (orgs.) Livro de Josué: “Nós serviremos ao Senhor”. São Paulo: Paulinas, 2022, p. 15-39.
  23. MENDENHALL, G. The Hebrew Conquest of Palestine. The Biblical Archaeologist, Chicago, v. 25, p. 66-87, 1962.
  24. GOTTWALD, 2004.
  25. LEMCHE, N. P. Early Israel: Anthropological and Historical Studies on the Israelite Society before the Monarchy. Leiden: Brill, 1985. Gottwald faz uma avaliação da recepção de seu livro na edição de 1999, 20 anos depois da primeira publicação, em “Preface to the Reprint”. E também no texto “Revisiting The Tribes of Yahweh”, de 2006.
  26. SILVA. A. J. da. Religião e formação de classes na antiga Judeia.
  27. SILVA, A. J. da. Uma leitura crítica da reforma de Josias. Post publicado no Observatório Bíblico em 17.04.2022.
  28. SILVA, A. J. da. Leitura socioantropológica do livro de Rute. Estudos Bíblicos, Petrópolis, n. 98, p. 107-120, 2008.
  29. BOER, R. The Sacred Economy of Ancient Israel. Louisville: Westminster John Knox Press, 2015.
  30. DA SILVA, A. J. da. Leitura socioantropológica do Novo Testamento ; ELLIOTT, J. H. What is Social-Scientific Criticism? Minneapolis: Fortress Press, 1993.
  31. SILVA, A. J. da. O relato de uma prática: roteiro para uma leitura de Marcos. Estudos Bíblicos, Petrópolis, n. 22, p.11-21, 1989.
  32. RICHEY, L. B. MarK/X After Marxism: Fernando Belo and Contemporary Biblical Exegesis. The Bible and Critical Theory, vol. 8, n. 2, p. 57-66, 2012.
  33. ELLIOTT, J. H. Um lar para quem não tem casa: Interpretação sociológica da primeira carta de Pedro. São Paulo: Academia Cristã/Paulus, 2011.
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  36. MEEKS, W. A. Os primeiros cristãos urbanos: o mundo social do apóstolo Paulo. 2. ed. São Paulo: Academia Cristã/Paulus, 2022.
  37. MYERS, C. Binding the Strong Man: A Political Reading of Mark’s Story of Jesus. Maryknoll, NY: Orbis Books, [1988] 2019. Em português: O evangelho de São Marcos. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2021.
  38. MYERS, 2021, p. 158-159.
  39. BOER, R. Twenty-five Years of Marxist Biblical Criticism. Currents in Biblical Research 5.3, p. 298-321, 2007; SOUZA, D. R. de. Richard Horsley. Post publicado no blog Bíblico Teológico em 21.07.2014. RIBEIRO JÚNIOR, J. C. N. Jesus, a Galileia e o Império: protesto e ação contra a desordem mundial ontem e hoje: entrevista com Richard Horsley. REVER, junho de 2009, p. 143-152.
  40. MYLES, R. J. (ed.) Class Struggle in the New Testament. Lanham, MD: Lexington Books/Fortress Academic, 2019.
  41. PETTERSON, C. Apostles of Revolution? Marxism and Biblical Studies. Brill Research Perspectives in Biblical Interpretation 4.1, p. 1-80, 2019.
  42. CARTER, C. E. A Discipline in Transition: The Contributions of the Social Sciences to the Study of the Hebrew Bible. In: CARTER, C. E.; MEYERS, C. L. (eds.) Community, Identity and Ideology: Social Sciences Approaches to the Hebrew Bible. Winona Lake, Indiana: Eisenbrauns, 1996, p. 9-13.
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  46. PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA, A Interpretação da Bíblia na Igreja. 9. ed. São Paulo: Paulinas, 2010.
  47. GOTTWALD, 1993, p. 3-4.
  48. SILVA, A. J. da. Superando obstáculos nas leituras de Jeremias. Estudos Bíblicos, Petrópolis, n. 107, p. 50-62, 2010.

Por que milagres?

Por que milagres? O caso da multiplicação do pães

 

leitura: 26 min

 

Hoje, quando ouvimos dizer que aconteceu um milagre, o que pensamos? Pensamos logo na excepcionalidade do fato, no extraordinário da ocorrência, no impossível que se tornou possível por alguma força estranha, um mecanismo oculto, além da nossa compreensão, um poder sobrenatural que, por alguma razão, se manifestou. Ou duvidamos da coisa toda.

Nesta costumeira definição de milagre pode o leitor observar que o ponto de referência é a violação do modo natural das coisas acontecerem. Pois o milagre é visto como algo acima ou contra as leis que regem o mundo e as nossas vidas. As oposições em jogo esclarecem o raciocínio: excepcional x normal, extraordinário x ordinário, impossível x possível, estranho x comum, oculto x conhecido, sobrenatural x natural[1].

Para as pessoas que professam alguma crença religiosa, o milagre, estando do lado do sobrenatural, está do lado de Deus ou dos seus intermediários, em oposição ao  mundo natural dos homens. É visto, neste caso, como uma intervenção divina vinda de fora, alterando a ordem natural dos acontecimentos.

E na Bíblia? Será essa a noção de milagre? Será que a visão corrente de mundo na época de Jesus, por exemplo, coincide com a de hoje? Por que será que naquele tempo havia tanto milagre e hoje não? O que é milagre na Bíblia?

O desafio que lanço ao leitor é o seguinte: lermos juntos o milagre da multiplicação dos pães, de Mc 6,30-44, para entendermos o texto e, talvez, respondermos a algumas destas perguntas.

Para isto, creio que devemos fazer cinco coisas:

1. A primeira é uma leitura de Mc 6,30-44. Mas não aquela leitura mal acostumada, onde vemos tudo o que está em nossa cabeça, mas não se enxerga uma linha do próprio texto. E é preciso ler mais de uma vez. Já disse R. Barthes, um especialista no assunto: “Aqueles que não releem são obrigados a ler sempre e em todos os textos a mesma história”[2].

2. Em seguida leremos mais cinco textos, onde aparecem os outros relatos da multiplicação dos pães. No próprio Marcos e nos outros evangelhos. Aí, já estaremos com muitos elementos para abordarmos o texto pela comparação dos vários modos de contar de cada evangelista.

3. Agora é a hora certa de se perguntar a Marcos por que ele contou este episódio neste lugar do Evangelho e não em outro. Afastando-nos um pouco e olhando de longe, verificaremos o plano geral do Evangelho de Marcos e o contexto em que está o milagre em questão.

4. Por falar em milagre, é bem possível que houvesse naquele tempo uma maneira costumeira de contar um fato desse tipo, diferente, por exemplo, do modo de contá-lo hoje em dia. Ver isso pode ser nossa quarta tarefa.

5. Mas agora não podemos mais parar. É preciso perguntar imediatamente: o que se esconde por trás deste modo de contar? Ou, qual é o recado que Marcos quer dar à sua comunidade e ao seu leitor?

Só então é que talvez possamos descobrir o sentido do texto para nós, leitores a quase dois mil anos de distância. Vamos lá?

 

1. Qual é o assunto do texto?

6,30 Os apóstolos reuniram-se com Jesus e contaram-lhe tudo o que tinham feito e ensinado.

31 Ele disse: “Vinde vós, sozinhos, a um lugar deserto e descansai um pouco”. Com efeito, os que chegavam e os que partiam eram tantos que não tinham tempo nem de comer.

32 E foram de barco a um lugar deserto, afastado.

33 Muitos, porém os viram partir e, sabendo disso, de todas as cidades, correram para lá a pé e chegaram antes deles.

34 Assim que ele desembarcou, viu uma grande multidão e ficou tomado de compaixão por eles, pois estavam como ovelhas sem pastor. E começou a ensinar-lhes muitas coisas.

35 Sendo a hora já muito avançada, os discípulos aproximaram-se dele e disseram: “O lugar é deserto e a hora já muito avançada.

36 Despede-os para que vão aos campos e povoados vizinhos e comprem para si o que comer”.

37 Jesus lhes respondeu: “Dai-lhes vós mesmos de comer”. Disseram-lhe eles: “Iremos e compraremos duzentos denários de pão para dar-lhes de comer?”

38 Ele perguntou: “Quantos pães tendes? Ide ver”. Tendo se informado, responderam: “Cinco, e dois peixes”.

39 Ordenou-lhes então que fizessem todos se acomodarem, em grupos de convivas, sobre a grama verde.

40 E sentaram-se no chão, repartindo-se em grupos de cem e de cinquenta.

41 Tomando os cinco pães e os dois peixes elevou ele os olhos ao céu, abençoou, partiu os pães e deu-os aos discípulos para que lhos distribuíssem. E repartiu também os dois peixes entre todos.

42 Todos comeram e ficaram saciados.

43 E ainda recolheram doze cestos cheios dos pedaços de pão e de peixes.

44 E os que comeram dos pães eram cinco mil homens[3].

 

Relendo, com atenção, o texto, você pode verificar que:

A) Os APÓSTOLOS chegam de uma missão, vão com Jesus, de barco, para UM LUGAR DESERTO a fim de descansarem, mas são PRECEDIDOS pela multidão. Jesus tem compaixão daquelas pessoas e começa a ENSINAR-LHES muitas coisas, porque elas são como OVELHAS SEM PASTOR.

B) Sendo já tarde, os discípulos querem despedi-las para que se alimentem. Jesus manda que eles mesmos LHES DEEM DE COMER, ao que retrucam que gastariam duzentos denários para COMPRAR pão para tanta gente. Verificando, porém, que tinham consigo CINCO PÃES e DOIS PEIXES, acomodam a multidão no chão, em grupos de CEM e de CINQUENTA. Jesus toma os pães e os peixes, ELEVA OS OLHOS AO CÉU, ABENÇOA E PARTE os pães. São os discípulos que os DISTRIBUEM à multidão. Os peixes são igualmente repartidos entre todos.

A’) TODOS COMERAM E FICARAM SACIADOS. E ainda recolheram DOZE cestos cheios de pedaços de pão e peixes. Eram, os que comeram, CINCO MIL HOMENS.

Chamam a nossa atenção, neste resumo do texto, duas coisas: as palavras em maiúsculo, que destacam coisas importantes, e a sequência A-B-A’.

A sequência A-B-A’ é uma maneira de o leitor perceber o projeto de construção do texto. É uma tentativa de encontrar aquilo que os biblistas chamam de estrutura do texto.

Parece que temos aqui três blocos, cada um composto de duas cenas, onde a intervenção de Jesus como pastor (A) transforma a fome/escassez (B) em saciedade/abundância (A’). Assim:

A) vv. 30-34: a chegada de Jesus como pastor

1ª cena: os apóstolos chegam, saem com Jesus para um lugar deserto e são precedidos pela multidão.

2ª cena: Jesus desembarca, tem compaixão e ensina à multidão.

B) vv. 35-41: a fome do povo e a escassez de alimento

1ª cena: constatação da fome e da escassez.

2ª cena: distribuição dos poucos pães e peixes.

A’) vv. 42-44: a saciedade da multidão e a abundância de alimento

1ª cena: cinco mil homens comem e ficam saciados.

2ª cena: sobram ainda doze cestos de pão e peixe.

 

2. Os outros relatos de multiplicação dos pães

Agora, após a leitura de nosso texto, podemos confrontá-lo com outros cinco relatos de multiplicação dos pães existentes nos evangelhos.

Mc 8,1-10 traz outra multiplicação dos pães. À primeira vista, é bastante parecida com a que acabamos de ler, mas há algumas diferenças. As maiores são:

— Jesus tem compaixão da multidão porque ela NÃO TEM O QUE COMER;

— os discípulos têm SETE pães e ALGUNS peixinhos;

— são recolhidos SETE cestos;

— os que comeram eram CERCA DE QUATRO MIL.

 

Mt 14,13-21 narra a multiplicação dos pães de modo muito parecido com Mc 6,30-44. São cinco pães e dois peixes, recolhem doze cestos de pedaços etc. Entretanto, observamos:

— Jesus tem compaixão da multidão e CURA SEUS DOENTES;

— os que comeram eram CERCA de cinco mil, sem contar mulheres e crianças.

 

Mt 15,32-39 apresenta uma segunda multiplicação dos pães, muito parecida com o segundo texto de Marcos (8,1-10): sete pães e alguns peixinhos, são recolhidos sete cestos e eram, os que comeram, quatro mil homens.

Paciência, leitor, pois falta pouco, e dessa aparente confusão vamos tirar alguma conclusão.

O próximo é Lc 9,10-17, onde conseguimos encontrar o texto mais parecido, entre todos, com Mc 6,30-44:

— como em Marcos, os apóstolos chegam da missão (em Mt eles são chamados de discípulos);

— Jesus falou à multidão do Reino de Deus e curou os doentes;

— os discípulos tinham cinco pães e dois peixes;

— a multidão acomoda-se em grupos de cinquenta (Mt não especifica a divisão dos grupos);

— são recolhidos doze cestos de pedaços;

— os que comeram eram quase cinco mil homens.

Finalmente, o último texto, o de Jo 6,1-13, parece conter elementos da 1ª e da 2ª multiplicação dos pães. Menciona os DUZENTOS DENÁRIOS, os CINCO pães e DOIS peixinhos, o recolhimento de DOZE cestos e o número de APROXIMADAMENTE CINCO MIL HOMENS. Mas nada diz, por exemplo, sobre o ensinamento ou as curas, nem menciona os grupos de cem e cinquenta pessoas[4].

Com este panorama, já podemos ver como os seis textos em questão se relacionam em suas semelhanças e diferenças:

1ª multiplicação                                           2ª multiplicação

Mc 6 → Lc 9 → Mt 14                                              Mc 8 → Mt 15

                                                       

síntese da 1ª e 2ª

Jo 6

Os especialistas, hoje são unânimes em afirmar que há um só relato na origem destes textos todos. Sabe-se que era muito comum as comunidades diversificarem os relatos orais de suas confissões de fé em Jesus, de tal modo que o evangelista Marcos, recolhendo a tradição querigmática cerca de quarenta anos após o acontecimento, conta duas vezes o mesmo caso. Atestam-no, pelo menos, as semelhanças entre Mc 6 e Mc 8 e a pergunta dos discípulos em Mc 8,4: “Como poderia alguém, aqui num deserto, saciar com pão a tanta gente?” Que sentido teria ela se isto já tivesse sido feito anteriormente?

As diferenças entre a 1ª e a 2ª são perfeitamente explicáveis pelas ampliações ocorridas no decurso da tradição oral[5].

Já Lucas e Mateus dependem grandemente de Marcos, usado por eles como fonte, enquanto João, o último a escrever, pôde fazer uma síntese dos vários elementos[6].

Olhando ainda um pouquinho para os dois textos de Marcos (Mc 6 e 8), verificaremos que os especialistas arriscam uma hipótese interessante sobre a origem deste duplo relato.

Observaram que Marcos usa, em grego, duas palavras para os cestos onde são recolhidas as sobras:

— Mc 6,43: kófinos: cesto;

— Mc 8,8: spyrís: cesta.

Acontece que os judeus usavam mais o primeiro e os gregos (= gentios, não judeus), o segundo termo.

Outra coisa: Mc 6 fala de doze cestos, enquanto Mc 8 fala de sete cestas e também de sete pães. Pode ser mera coincidência, já que o número sete se presta, na Bíblia, a muitas significações, mas a evangelização dos gentios começou com o grupo dos “sete”, escolhidos pelos discípulos especialmente para isso (At 6,1-6).

Além disso, o acontecimento de Mc 8 foi colocado em território gentio, na região da Decápole, como indica Mc 7,31, enquanto o de Mc 6 se passa em território judeu.

Outra contribuição interessante vem dos textos sobre a Última Ceia. Há relatos da Ceia em Paulo (1Cor 11), Lucas, Marcos e Mateus. Estes 4 textos são relacionados dois a dois: Mc 14,22-25 e Mt 26,26-29 são semelhantes, o mesmo acontecendo com Paulo (1Cor 11,23-25) e Lc 22,14-20.

Ora, em Marcos e Mateus, o gesto de Jesus, ao tomar o pão, durante a Ceia, é descrito com o verbo eulogein, “abençoar”, enquanto em Paulo e Lucas é usado o verbo eucharistein, “dar graças”[7].

Voltando à multiplicação dos pães, o que verificamos? Na primeira, em Mc 6,41, Jesus, erguendo os os olhos para o céu, abençoou (eulógesen), enquanto em Mc 8,6, na segunda, Jesus, dando graças (eucharistêsas), partiu os sete pães.

Sabendo também que estes verbos designam o rito judaico de bênção à mesa, observamos que eulogein é uma tradução literal da bênção judaica, enquanto eucharistein é uma adaptação do rito ao vocabulário e ao ambiente gregos.

É, afinal, como explica J. Delorme: “Vemos assim que o mesmo rito judaico foi designado tanto de modo literal (eulogein) como de modo adaptado, à língua grega (eucharistein). Semelhante adaptação só se poderia realizar em ambiente grego”[8].

De tudo isso é que decorre a hipótese de que falávamos: a primeira multiplicação representa uma tradição amadurecida em ambiente judaico-cristão, enquanto a segunda desenvolveu-se em um ambiente gentílico-cristão, ou seja, em comunidades de língua grega. Marcos recolheu as duas tradições e as apresentou como fatos sucessivos[9].

 

3. Quem é Jesus?

Chegou a hora de perguntarmos a Marcos por que ele colocou este episódio da multiplicação dos pães neste ponto de seu evangelho, no capítulo 6. Só assim saberemos o que ele pretendia com isso.

Olhando o evangelho de Marcos, uma coisa logo chama a nossa atenção. Ainda no seu início, em Mc 1,21-22, diz o texto que Jesus ensinava na sinagoga de Cafarnaum. Os seus ouvintes ficaram encantados com o seu ensina­mento. E logo no v. 23 o texto passa a contar uma ação de Jesus.

E o que é que ele ensinava? O texto não diz. Mas o interessante é que casos como este vão se repetir por todo o evangelho (por exemplo, em Mc 2,13; 4,1; 6,2.6.34). Só a partir de 8,31 é que se indica o conteúdo deste ensinamento, mesmo assim só para os discípulos.

O que significa isto?

É que Marcos, ao contrário de Mateus e Lucas, preocupa-se muito mais com a prática de Jesus do que com o seu discurso. A narração de Marcos não é, na verdade, uma coleção de “palavras” ou de “discursos” de Jesus, mas a exposição de suas práticas e estratégias. Pa­ra Marcos o ensinamento de Jesus é a sua própria prática. Jesus ensina fazendo.

Então, para entendermos Marcos é bom que nos preocupemos com as atitudes de Jesus e com a reação daqueles que se movimentam ao seu redor.

As ações de Jesus vão suscitando, em seus ouvintes (a multidão, os discípulos e os inimigos), três perguntas fundamentais:

— Quem é Jesus?

— Com que autoridade ele faz estas coisas?

— Será que chegou o momento da intervenção definitiva de Deus na história?

E aí podemos perceber como todo o evangelho é construído na forma de uma escada, onde cada degrau vai respondendo, pouco a pouco, a duas grandes questões, que dividem o texto em dois lanços:

1º) Quem é Jesus?

— Mc 8,29: “Tu és o Messias (o Cristo)”

2º) Que tipo de Messias ele é?

— Mc 8,31-33; 9,30-32; 10,32-34: um Messias que sofre e morre na cruz, mas ressuscita.

O evangelho de Marcos pode ser esquematizado assim:

3.1. 1º lanço da escada: Quem é Jesus?

1,1: título do livro: evangelho de Jesus Cristo.

1,2-15: o caminho de Jesus: Galileia-Judeia-Galileia.

1,16-45: um dia de Jesus na Galileia.

2,1-3,6: Jesus versus escribas e fariseus: rejeição da ideologia judaica.

3,7-8,30: os discípulos compreendem que Jesus é o Messias.

3.2. 2º lanço da escada: Que tipo de Messias ele é?

8,31-10,52: a subida a Jerusalém: um Messias diferente.

11,1-13,37: Jesus prega, em Jerusalém, o fim do judaísmo.

14,1-16,8: Jesus é condenado como subversivo morre na cruz e ressuscita.

3.3. Junção dos dois lanços da escada

8,29: o Messias.

Agora podemos entender a função da multiplicação dos pães neste lugar do evangelho: Jesus quer fazer os discípulos compreenderem que ele é o Messias.

Há, em Mc 8,14-21, um episódio que confirma esta ideia: utilizando a metáfora do fermento para falar do perigo da ideologia dos fariseus e de Herodes, e não sendo compreendido pelos discípulos, Jesus procura analisar, com eles, a multiplicação dos pães. E os repreende, pois eles não tinham entendido que quem tem o poder de alimentar tanta gente e ainda faz sobrar grande quantidade só pode ser o Messias.

 

4. Jesus fez mesmo o milagre?

Uma ideia que já deve estar passeando pela cabeça do leitor, nesta altura dos acontecimentos, é a de que estamos falando muito do texto, do que Marcos fez ou não fez, mas não foi dita uma palavra sequer sobre o milagre em si mesmo: Jesus multiplicou mesmo os pães e os peixes?

Lamento decepcioná-lo, caro leitor, mas a sua dúvida, colocada de forma assim tão direta, não tem solução. É preciso ir devagar.

Chamo a sua atenção para uma coisa inquietante, presente nos textos, em todos os seis, sobre a multiplicação dos pães: em momento algum, nenhum deles fala de uma multiplicação dos pães. Fala, isto sim, de uma superabundância de alimento tirada da escassez reinante.

E não é sem motivo. Na mentalidade dos primeiros cristãos, assim como na dos judeus em geral, milagre não é algo acima ou contra as leis da natureza, como costumamos pensar. Milagre não é aquele fato definitivo e assustador que prova alguma coisa. Por sinal, este tipo de “prova” é rejeitado por Jesus em Mc 8,11-13 e em Mc 13,21-22. Milagre não prova nada. Pode até ser o contrário, ser sinal do mal, como suspeitam os escribas, de Jesus, em Mc 3,22.

Através de todos os evangelhos, verifica-se que o milagre é um sinal. É como um semáforo: o que está em primeiro plano não é a cor em si, é o seu significado previamente combinado e codificado nas leis de trânsito. Ou então: o milagre é uma seta que aponta para algo. Deve-se caminhar não para a seta, mas na direção em que aponta.

Talvez isso fique mais claro se o leitor prestar atenção a uma área dos estudos bíblicos conhecida como crítica das formas.

É um método de exegese que estuda especialmente os gêneros literários da comunicação oral e escrita. E aí o que se verifica é que não basta procurarmos o sentido de um texto. É preciso descobrirmos o modo como se conta algo e determinarmos a intenção da linguagem utilizada, além de verificarmos seu contexto vital (a palavra técnica, em alemão, é Sitz im Leben). Deste modo, o sentido de um texto começa a aparecer[10].

Ora, a intenção do Evangelho, como diz o próprio nome, é anunciar uma novidade boa, longamente esperada e aspirada pelos judeus: a chegada do Messias que traz a salvação.

Assim é que os milagres devem ser lidos como sinais messiânicos que apontam para uma nova realidade e inauguram um novo tempo. Por isso há tantos milagres nos evangelhos.

Mas e a excepcionalidade do fato, onde é que fica? Quem nos dá uma boa pista é, de novo, A. Weiser. Ele nos alerta que é um tremendo erro saltarmos de pés juntos do conceito moderno de milagre (que coloca o extraordinário em primeiro plano) para o conceito bíblico de milagre (que não coloca o extraordinário em primeiro plano). Há aí um abismo enorme entre as duas concepções; mas não intransponível: a ponte é o próprio texto. Como usá-la?

É preciso, em primeiro lugar, não se limitar ao aspecto histórico do acontecimento, as procurar saber, antes de tudo, qual é o sentido e a intenção da narrativa de um milagre.

Em segundo lugar, não se pode esquecer que a intenção de um relato de milagre não é a de oferecer informações de natureza científica a futuros e distantes leitores.

E, por fim, é necessário constatar que os texto sobre milagre querem mesmo é abrir o olhar do leitor par a ação salvífica de Deus e levá-lo a um compromisso com o projeto evangélico[11].

Assim, voltamos a Marcos. Mais uma vez é ele quem nos esclarece: você percebeu que os relatos de milagres estão quase todos na primeira parte do evangelho? Pois confira. Só há dois milagres após 8,29, quando Pedro confessa que Jesus é o Messias. São os textos de Mc 9,14-29 e Mc 10,46-52. Mesmo assim, ambos têm relação óbvia com a confissão de fé dos discípulos.

A primeira parte, porém, nos transmite dezessete milagres. Se você está pensando nos acontecimentos de Jerusalém como miraculosos, desista. Em Jerusalém não acontece milagre algum, pois a figueira seca e o encontro do jumentinho são de outra categoria, são atos proféticos. E, finalmente, os fenômenos que acompanham a morte de Jesus não pertencem ao gênero literário dos milagres[12].

Ora, os milagres em Marcos servem para provocar a questão básica: quem é Jesus? E esta leva à confissão de Pedro em 8,29: “Tu és o Messias”. Depois disso, eles não são mais necessários.

 

5. O recado de Marcos

Pois bem, se Marcos não quer nos mostrar “uma coisa do outro mundo”, qual é então o seu recado? Vamos tratar disso agora.

O ponto é este: Jesus é o Messias. Mas, ainda fica obscuro: o que tem a ver o Messias com a transformação da escassez em abundância, da fome do povo em saciedade?

Neste instante, somos convidados a dar um passeio pelo Antigo Testamento e pelo judaísmo, para tirar essa dúvida.

A esperança messiânica compreendia que a intervenção definitiva de Deus na história resolveria de uma vez por todas os problemas enfrentados pelo povo israelita em sua atribulada caminhada. O Messias seria o libertador da opressão, da miséria, da fome, da doença, da desgraça, da pobreza, da morte[13].

O judaísmo o descrevia como um novo Moisés, aquele que repetiria o milagre do maná, aquele que transformaria, no deserto, a fome em saciedade. Quanta semelhança com o nosso texto, não?

E há realmente muitos elementos em Mc 6 que apontam nesta direção:

— O lugar deserto lembra o ambiente do êxodo e do maná.

— Jesus teve compaixão, porque o povo estava como ovelhas sem pastor: no AT os li­deres de Israel são chamados habitualmente de pastores do povo e são duramente criticados pelos profetas por pastorearem a si mesmos e abandonarem seu rebanho. Marcos apresenta Jesus como o verdadeiro pastor do povo abandonado (lembro a você que, em Marcos, o poder político é sempre apresentado como repressivo e sanguinário, portador da morte: cf. Mc 6,14-29; 14,1-2.55-65; 15,1-15.23-41).

— Os discípulos falam em comprar, Jesus fala em dar: o Messias opera uma verdadeira subversão do sistema econômico corrente, uma radical negação do sistema de mercado através do dinheiro e uma defesa do sistema de partilha. Puxa o tapete do sistema de classes daquela sociedade, onde muitos passam fome, mas só alguns detêm toda a riqueza e o poder[14]. Essa distribuição entre todos, esse compartilhar do alimento, operado pelo Messias, se relaciona com a memória histórica do tempo do êxodo, com um povo em processo de libertação, com a lembrança de uma sociedade sem um sistema social tão estratificado, onde todos produzem e todos consomem, como era a sociedade tribal pré-monárquica.

— A divisão dos homens em grupos de cem e cinquenta (antiga divisão militar israelita: por isso Marcos só fala em homens) era considerada no judaísmo como a que seria feita no momento da intervenção do Messias em Israel.

Mas há ainda outra questão: normalmente este texto é lido em relação com a celebração da eucaristia. Esta leitura é correta?

O v. 41 é o elemento central dessa leitura: Jesus “elevou os olhos ao céu, abençoou e partiu os pães e deu-os aos discípulos para que os distribuíssem”.

Essa sequência de gestos era, no judaísmo, a que realizava o pai de família à mesa: orava, elevando os olhos ao céu, abençoava, partia o pão e o distribuía aos comensais. Gestos usados por Jesus na última ceia.

O que parece ter acontecido com a tradição sobre a multiplicação dos pães foi o seguinte: a comunidade primitiva transmitia o episódio no contexto de uma catequese eucarística, como recurso para recordar a sua missão. São os “apóstolos” (= enviados) que estão com Jesus e são eles que distribuem o alimento. A comunidade prossegue a sua tarefa.

“Assim a comunidade que se reúne para participar do pão, recorda o milagre de Jesus alimentando a multidão e encontra nisso a definição do que ela é chamada a ser: o povo de Deus do fim dos tempos, reunido em torno do novo Moisés, pelo ministério apostólico”[15].

Por isso, a leitura deste texto, em nossas comunidades cristãs, é atual e urgente.

> Este artigo foi publicado em Estudos Bíblicos, Petrópolis, n. 22, p.43-53, 1989. Revisto e atualizado em 2020.

Uma primeira versão deste texto foi publicada em Vida Pastoral, São Paulo, n. 120, p. 2-8, 1985. Veja o artigo, na íntegra, aqui. Esta versão na Estudos Bíblicos amplia a da Vida Pastoral.

Artigos


  1. WEISER, A. O que é milagre na Bíblia: Para você entender os relatos dos Evangelhos. São Paulo: Paulinas, 1978, p. 12-13, resume muito bem este aspecto, quando diz: “A característica básica a partir da qual se designa alguma coisa por milagre é o elemento excepcionalidade. Mas as opiniões divergem quando se trata de definir em que consiste esta excepcionalidade: para alguns basta somente que o fato aconteça de modo inesperado, enquanto para outros o grau de excepcionalidade exigido para que haja milagres só se verifica quando o fato não pode ser explicado pela ciência. O que se observa, portanto, em primeiro plano, é que se toma a lei natural de modo mais ou menos consciente como ponto de referência”
  2. BARTHES, R. S/Z. Torino: Einaudi, 1973, p. 20.
  3. Tradução da Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002.
  4. Entretanto, é João quem evoca mais claramente os temas do êxodo, cuja memória histórica mostra um povo em processo de libertação e construção de uma nova sociedade. Como os seguintes: a passagem do mar (v.1), o monte (v. 3), a proximidade da Páscoa (v. 4), a tentação (v. 6) e o pão, equivalente ao maná (v. 9.11.13). Além disso, João inspira-se em 2Rs 4,42-44, onde o profeta Eliseu alimenta cem pessoas com apenas vinte pães de cevada (um pão de cevada bastava para uma pessoa apenas). Cf. o excelente comentário de MATEOS, J. ; BARRETO, J. O Evangelho de João: análise linguística e comentário exegético. São Paulo: Paulus, 1989, p. 282-299.
  5. Cf., por exemplo, o clássico TAYLOR, V. Evangelio según San Marcos. Madrid: Cristiandad, 1979, p. 756-758.
  6. Cf. um interessante questionário sobre as semelhanças e diferenças entre Mc 6 e Mc 8 em WEISER, A. O que é milagre na Bíblia, p. 57. O leitor pode, por exemplo, exercitar-se na comparação de textos sinóticos com as narrativas da cura dos cegos em Mc 10,46-52 e Mt 20,29-34, onde o único cego de Marcos transforma-se nos dois cegos de Mateus.
  7. Sobre os relatos da Última Ceia, cf. o excelente estudo de LÉON-DUFOUR, X. O partir do Pão Eucarístico segundo o Novo Testamento. São Paulo: Loyola, 1984 ou VV. AA. A Eucaristia na Bíblia. São Paulo: Paulus, 1985.
  8. DELORME, J. Leitura do Evangelho segundo Marcos. São Paulo: Paulus, 1982, p. 77. O rito familiar judaico do partir o pão à mesa compreende três coisas: 1) o chefe de família, sentado, toma o pão e pronuncia a bênção: “Bendito sê Tu, ó Senhor, nosso Deus, Rei do universo, que tiras o pão da terra” (em hebraico, soa assim: Baruch Ata Adonai, Elohenu Melech ha-olam, hamotzi lechem min ha-aretz); 2) em seguida, parte o pão (feito de farinha de cevada ou trigo, de forma arredondada e chata) com as mãos; 3) por fim, distribui os pedaços aos convivas. Observa LÉON-DUFOUR, X. o. c., p. 29: “Pela partilha dos pedaços constituía-se efetivamente a comunidade de mesa: a partir de então, os convivas formavam uma só coisa e Deus, doador, era considerado presente”. Como guia interessante sobre os ritos judaicos , cf. ASHERI, M. O judaísmo vivo: as tradições e as leis dos judeus praticantes. Rio de Janeiro: Imago, 1987. As bênçãos judaicas mais usadas estão nas páginas 338-345.
  9. Cf. DELORME, J. o. c., p. 76-81.
  10. Cf., sobre isso, LOHFINK, G. Agora entendo a Bíblia: para você entender a crítica das formas. São Paulo: Paulus, 1978, p. 29-54.
  11. Cf. WEISER, A. o. c., p. 28-29. Quanto ao significado de “leis da natureza”, geralmente pensadas como imutáveis, é bom que fique atento o leitor: este um conceito decorrente de uma visão positivista de ciência, dominante no século XIX, e, ainda hoje, muito espalhada entre nós. Lembro ao leitor que o desenvolvimento de novas teorias científicas, realizado no século XX, entre elas a física relativista (Einstein) e a física quântica (Planck, Einstein, Bohr, Heisenberg e outros), abalou seriamente a visão positivista da realidade.
  12. Cf. VV. AA. Os milagres do Evangelho. São Paulo: Paulus, 1982, p. 45-57.
  13. No livro apócrifo conhecido como Apocalipse siríaco de Baruc, escrito entre 75 e 100 d.C. por um autor do meio fariseu, lemos sobre a era messiânica: “Então a saúde descerá como o orvalho e a enfermidade se afastará para longe. Desaparecerão as preocupações, as angústias e os gemidos entre os homens, e a paz se estenderá por toda a terra, e ninguém morrerá antes do tempo”. No Targum palestino de Gn 49,10-12 (targum é uma tradução aramaica parafraseada dos textos bíblicos, usada nas sinagogas na época de Jesus) lemos sobre o Messias: “Seus lábios são mais brancos do que o leite, porque com eles não se alimenta nem de rapinas nem de furtos. As suas montanhas se tornarão vermelhas pelas uvas e seus lagares,pelo vinho; as suas colinas se tornarão brancas pela abundância do trigo e pelos rebanhos de ovelhas”. Também os Salmos de Salomão, escrito apócrifo apocalíptico situado entre os anos 63-40 a.C., dizem: “Ele é poderoso em suas obras e forte pelo temor de Deus; apascenta o rebanho do Senhor na fé e na justiça, e não deixará, entre eles, doentes nas suas pastagens; conduzi-los-á a todos na igualdade, e entre eles não haverá orgulho para oprimir os outros”. Textos como estes podem ser lidos em PAUL, A. O que o Intertestamento. São Paulo: Paulus, 1981.
  14. A situação da Palestina na época de Jesus é bastante crítica. Em um processo que começa ainda na época persa, 500 anos antes, os camponeses eram duramente explorados por uma aristocracia instalada no poder e amparada pelos interesses dos dominadores estrangeiros. Herodes Magno (37-4 a.C.) aprofundou dramaticamente o processo de exploração. Seus filhos, mas especialmente os procuradores romanos da Judeia, levaram o país a uma situação insustentável. O resultado foi uma guerra total dos judeus contra Roma, que culminou na destruição de 70 d.C. e na dispersão dos sobreviventes. Cf., sobre esta época, https://airtonjo.com/site1/historia-31.htm e https://airtonjo.com/site1/kippenberg.htm
  15. DELORME, J. o. c., p. 75. Servi-me, também, para comparar vários elementos deste caso e hipóteses de especialistas, de um texto mimeografado de DE LA POTTERIE, I. Exegesis synopticorum. Sectio panum in Evangelio Marci (6,6-8,23). Roma: Curso do Pontifício Instituto Bíblico, 1971-72.

A multiplicação dos pães

Todos comeram e ficaram saciados: o milagre da multiplicação dos pães

leitura: 17 min

 

O leitor sabe que para se arrear um burro manhoso é preciso ser muito prudente. Só chegando do lado certo e com bons modos é que se consegue evitar o coice.

Comecei falando de burro, porque o milagre da multiplicação dos pães, de Mc 6,30-44, tem-lhe certa semelhança. Se errarmos o lado de chegar ao texto, jamais conseguiremos dominá-lo. O melhor é dar umas voltas ao seu redor, com paciência, observando o jeito certo para começar a entendê-lo.

Se o leitor me permite, gostaria de lhe dar uma mão no caso deste “burro”. Creio que devemos fazer seis coisas:

1.  A primeira é uma leitura de Mc 6,30-44. Mas não aquela leitura mal acostumada, onde vemos tudo o que está em nossa cabeça, mas não se enxerga uma linha do próprio texto. E é preciso ler mais de uma vez. Já disse um especialista no assunto que, “aqueles que não releem são obrigados a ler sempre e em todos os textos a mesma história”.1

2. Em seguida, aproveitando enquanto a Bíblia está aberta, leremos mais cinco textos onde aparecem outros relatos da multiplicação dos pães. No próprio Marcos e nos outros evangelhos. Aí, já estaremos com muitos elementos para abordarmos o texto pela comparação dos vários modos de contar de cada evangelista.

3. Agora é a hora certa de se perguntar a Marcos por que ele contou este episódio neste lugar do evangelho. Afastando-nos um pouco e olhando mais de longe, verificaremos o plano geral do evangelho de Marcos e o contexto em que está o milagre em questão.

4. Por falar em milagre, é bem possível que houvesse naquele tempo uma maneira costumeira de contar um fato desse tipo, diferente, por exemplo, do modo de contá-lo hoje em dia. Ver isso pode ser nossa quarta tarefa.

5. Mas agora não podemos mais parar. É preciso perguntar imediatamente: o que se esconde por detrás deste modo de contar? Ou, qual é o recado que Marcos quer dar ao seu leitor?

6. Só então, depois de tantas voltas ao redor do “burro”, é que talvez possamos descobrir o sentido do texto para nós, leitores a quase dois mil anos de distância. Vamos lá?

 

1. Qual é o assunto do texto?

Bíblia aberta em Mc 6,30-44, você pode verificar que:

A) Os APÓSTOLOS chegam de uma missão, vão com Jesus, de barco, para UM LUGAR DESERTO a fim de descansarem, mas são PRECEDIDOS pela multidão. Jesus tem compaixão daquelas pessoas e começa a ENSINAR-LHES muitas coisas, porque elas são como OVELHAS SEM PASTOR.

B) Sendo já tarde, os discípulos querem despedi-las para que se alimentem. Jesus manda que eles mesmos LHES DEEM DE COMER, ao que retrucam que gastariam duzentos denários para COMPRAR pão para tanta gente. Verificando, porém, que tinham consigo CINCO PÃES e DOIS PEIXES, acomodam a multidão no chão, em grupos de CEM e de CINQUENTA. Jesus toma os pães e os peixes, ELEVA OS OLHOS AO CÉU, ABENÇOA E PARTE os pães. São os discípulos que os DISTRIBUEM à multidão. Os peixes são igualmente repartidos entre todos.

A’) TODOS COMERAM E FICARAM SACIADOS. E ainda recolheram DOZE cestos cheios de pedaços de pão e peixes. Eram, os que comeram, CINCO MIL HOMENS.

Chamam a nossa atenção, neste resumo do texto, duas coisas: as palavras em maiúsculo, que destacam coisas importantes, e a sequência A-B-A’.

A sequência A-B-A’ é uma maneira de o leitor perceber o projeto de construção do texto. É uma tentativa de encontrar aquilo que os biblistas chamam de estrutura do texto.

Parece que temos aqui três blocos, cada um composto de duas cenas, onde a intervenção de Jesus como pastor (A) transforma a fome/escassez (B) em saciedade/abundância (A’). Assim:

A) vv. 30-34: a chegada de Jesus como pastor

1ª cena: os apóstolos chegam, saem com Jesus para um lugar deserto e são precedidos pela multidão.

2ª cena: Jesus desembarca, tem compaixão e ensina à multidão.

B) vv. 35-41: a fome do povo e a escassez de alimento

1ª cena: constatação da fome e da escassez.

2ª cena: distribuição dos poucos pães e peixes.

A’) vv. 42-44: a saciedade da multidão e a abundância de alimento

1ª cena: cinco mil homens comem e ficam saciados.

2ª cena: sobram ainda doze cestos de pão e peixe.

 

2. Os outros relatos de multiplicação dos pães

Agora, após a leitura de nosso texto, podemos confrontá-lo com outros cinco relatos de multiplicação dos pães existentes nos evangelhos.

Mc 8,1-10 traz outra multiplicação dos pães. À primeira vista, é bastante parecida com a que acabamos de ler, mas há algumas diferenças. As maiores são:

— Jesus tem compaixão da multidão porque ela NÃO TEM O QUE COMER;

— os discípulos têm SETE pães e ALGUNS peixinhos;

— são recolhidos SETE cestos;

— os que comeram eram CERCA DE QUATRO MIL.

 

Mt 14,13-21 narra a multiplicação dos pães de modo muito parecido com Mc 6,30-44. São cinco pães e dois peixes, recolhem doze cestos de pedaços etc. Entretanto, observamos:

— Jesus tem compaixão da multidão e CURA SEUS DOENTES;

— os que comeram eram CERCA de cinco mil, sem contar mulheres e crianças.

 

Mt 15,32-39 apresenta uma segunda multiplicação dos pães, muito parecida com o segundo texto de Marcos (8,1-10): sete pães e alguns peixinhos, são recolhidos sete cestos e eram, os que comeram, quatro mil homens.

Paciência, leitor, pois falta pouco, e dessa aparente confusão vamos tirar alguma conclusão.

O próximo é Lc 9,10-17, onde conseguimos encontrar o texto mais parecido, entre todos, com Mc 6,30-44:

— como em Marcos, os apóstolos chegam da missão (em Mt eles são chamados de discípulos);

— Jesus falou à multidão do Reino de Deus e curou os doentes;

— os discípulos tinham cinco pães e dois peixes;

— a multidão acomoda-se em grupos de cinquenta (Mt não especifica a divisão dos grupos);

— são recolhidos doze cestos de pedaços;

— os que comeram eram quase cinco mil homens.

Finalmente, o último texto, o de Jo 6,1-13, parece conter elementos da 1ª e da 2ª multiplicação dos pães. Menciona os DUZENTOS DENÁRIOS, os CINCO pães e DOIS peixinhos, o recolhimento de DOZE cestos e o número de APROXIMADAMENTE CINCO MIL HOMENS. Mas nada diz, por exemplo, sobre o ensinamento ou as curas, nem menciona os grupos de cem e cinquenta pessoas.

Com este panorama, já podemos ver como os seis textos em questão se relacionam em suas semelhanças e diferenças:

1ª multiplicação                                           2ª multiplicação

Mc 6 → Lc 9 → Mt 14                                              Mc 8 → Mt 15

↘                                                        ↙

síntese da 1ª e 2ª

Jo 6

Os especialistas, hoje são unânimes em afirmar que há um só relato na origem destes textos todos. Sabe-se que era muito comum as comunidades diversificarem os relatos orais de suas confissões de fé em Jesus, de tal modo que o evangelista Marcos, recolhendo a tradição querigmática cerca de quarenta anos após o acontecimento, conta duas vezes o mesmo caso. Atestam-no, pelo menos, as semelhanças entre Mc 6 e Mc 8 e a pergunta dos discípulos em Mc 8,4: “Como poderia alguém, aqui num deserto, saciar com pão a tanta gente?” Que sentido teria ela se isto já tivesse sido feito anteriormente?

As diferenças entre a 1ª e a 2ª são perfeitamente explicáveis pelas ampliações ocorridas no decurso da tradição oral.

Já Lucas e Mateus dependem grandemente de Marcos, usado por eles como fonte, enquanto João, o último a escrever, pôde fazer uma síntese dos vários elementos.2

Olhando ainda um pouquinho para os dois textos de Marcos (Mc 6 e 8), verificaremos que os especialistas arriscam uma hipótese interessante sobre a origem deste duplo relato.

Observaram que Marcos usa, em grego, duas palavras para os cestos onde são recolhidas as sobras:

— Mc 6,43: kófinos: cesto;

— Mc 8,8: spyrís: cesta.

Acontece que os judeus usavam mais o primeiro e os gregos (= gentios, não judeus), o segundo termo.

Outra coisa: Mc 6 fala de doze cestos, enquanto Mc 8 fala de sete cestas e também de sete pães. Pode ser mera coincidência, já que o número sete se presta, na Bíblia, a muitas significações, mas a evangelização dos gentios começou com o grupo dos “sete”, escolhidos pelos discípulos especialmente para isso (At 6,1-6).

Além disso, o acontecimento de Mc 8 foi colocado em território gentio, na região da Decápole, como indica Mc 7,31, enquanto o de Mc 6 se passa em território judeu.

Disso, e de duas ou três coisas mais, decorre a hipótese de que falávamos: a primeira multiplicação representa uma tradição amadurecida em ambiente judaico-cristão, enquanto a segunda desenvolveu-se em um ambiente gentílico-cristão, ou seja, em comunidades de língua grega.3

 

3. Quem é Jesus?

Chegou a hora de perguntarmos a Marcos por que ele colocou este episódio da multiplicação dos pães neste ponto de seu evangelho, no capítulo 6. Só assim saberemos o que ele pretendia com isso.

Olhando o evangelho de Marcos, uma coisa logo chama a nossa atenção. Ainda no seu início, em Mc 1,21-22, diz o texto que Jesus ensinava na sinagoga de Cafarnaum. Os seus ouvintes ficaram encantados com o seu ensina­mento. E logo no v. 23 o texto passa a contar uma ação de Jesus.

E o que é que ele ensinava? O texto não diz. Mas o interessante é que casos como este vão se repetir por todo o evangelho (por exemplo, em Mc 2,13; 4,1; 6,2.6.34). Só a partir de 8,31 é que se indica o conteúdo deste ensinamento, mesmo assim só para os discípulos.

O que significa isto?

É que Marcos, ao contrário de Mateus e Lucas, preocupa-se muito mais com a prática de Jesus do que com o seu discurso. A narração de Marcos não é, na verdade, uma coleção de “palavras” ou de “discursos” de Jesus, mas a exposição de suas práticas e estratégias. Pa­ra Marcos o ensinamento de Jesus é a sua própria prática. Jesus ensina fazendo.

Então, para entendermos Marcos é bom que nos preocupemos com as atitudes de Jesus e com a reação daqueles que se movimentam ao seu redor.

As ações de Jesus vão suscitando, em seus ouvintes (a multidão, os discípulos e os inimigos), três perguntas fundamentais:

— Quem é Jesus?

— Com que autoridade ele faz estas coisas?

— Será que chegou o momento da intervenção definitiva de Deus na história?

E aí podemos perceber como todo o evangelho é construído na forma de uma escada, onde cada degrau vai respondendo, pouco a pouco, a duas grandes questões, que dividem o texto em dois lanços:

1º) Quem é Jesus?

— Mc 8,29: “Tu és o Messias (o Cristo)”

2º) Que tipo de Messias ele é?

— Mc 8,31-33; 9,30-32; 10,32-34: um Messias que sofre e morre na cruz, mas ressuscita.

O evangelho de Marcos pode ser esquematizado assim:

3.1. 1º lanço da escada: Quem é Jesus?

1,1: título do livro: evangelho de Jesus Cristo.

1,2-15: o caminho de Jesus: Galileia-Judeia-Galileia.

1,16-45: um dia de Jesus na Galileia.

2,1-3,6: Jesus versus escribas e fariseus: rejeição da ideologia judaica.

3,7-8,30: os discípulos compreendem que Jesus é o Messias.

3.2. 2º lanço da escada: Que tipo de Messias ele é?

8,31-10,52: a subida a Jerusalém: um Messias diferente.

11,1-13,37: Jesus prega, em Jerusalém, o fim do judaísmo.

14,1-16,8: Jesus é condenado como subversivo morre na cruz e ressuscita.

3.3. Junção dos dois lanços da escada

8,29: o Messias.

Agora podemos entender a função da multiplicação dos pães neste lugar do evangelho: Jesus quer fazer os discípulos compreenderem que ele é o Messias.

Há, em Mc 8,14-21, um episódio que confirma esta ideia: utilizando a metáfora do fermento para falar do perigo da ideologia dos fariseus e de Herodes, e não sendo compreendido pelos discípulos, Jesus procura analisar, com eles, a multiplicação dos pães. E os repreende, pois eles não tinham entendido que quem tem o poder de alimentar tanta gente e ainda faz sobrar grande quantidade só pode ser o Messias.

 

4. Jesus fez mesmo o milagre?

Uma ideia que já deve estar passeando pela cabeça do leitor, nesta altura dos acontecimentos, é a de que estamos falando muito do texto, do que Marcos fez ou não fez, mas não foi dita uma palavra sequer sobre o milagre em si mesmo: Jesus multiplicou mesmo os pães e os peixes?

Lamento decepcioná-lo, caro leitor, mas a sua dúvida, colocada de forma assim tão direta, não tem solução. É o caso do burro, lembra-se? Vamos, para chegar nele, andar, de novo, ao seu redor.

Chamo a sua atenção para uma coisa inquietante, presente nos textos, em todos os seis, sobre a multiplicação dos pães: em momento algum, nenhum deles fala de uma multiplicação dos pães. Fala, isto sim, de uma superabundância de alimento tirada da escassez reinante.

E não é sem motivo. Na mentalidade dos primeiros cristãos, assim como na dos judeus em geral, milagre não é algo acima ou contra as leis da natureza, como costumamos pensar. Milagre não é aquele fato definitivo e assustador que prova alguma coisa. Por sinal, este tipo de “prova” é rejeitado por Jesus em Mc 8,11-13 e em Mc 13,21-22. Milagre não prova nada. Pode até ser o contrário, ser sinal do mal, como suspeitam os escribas, de Jesus, em Mc 3,22.

Através de todos os evangelhos, verifica-se que o milagre é um sinal. E que exige fé para ser aceito como sinal. Não é o fato em si que está em primeiro plano, é o seu significado. É a pergunta clássica: uma rosa é apenas uma rosa?

Os sinais messiânicos — assim devem ser lidos os milagres — não violam nenhuma “lei da natureza”, segundo os evangelhos. Mesmo porque ninguém suspeitava, naquele tempo, da existência de leis da natureza. Para o judeu, a própria vida — seu nascimento e sua permanência — é o maior milagre, o maior sinal da ação de Deus na história.

Assim, voltamos a Marcos. Mais uma vez é ele quem nos esclarece: você percebeu que os relatos de milagres estão quase todos na primeira parte do evangelho? Pois confira. Só há dois milagres após 8,29, quando Pedro confessa que Jesus é o Messias. São os textos de Mc 9,14-29 e Mc 10,46-52. Mesmo assim, ambos têm relação óbvia com a confissão de fé dos discípulos.

A primeira parte, porém, nos transmite dezessete milagres. Se você está pensando nos acontecimentos de Jerusalém como miraculosos, desista. Em Jerusalém não acontece milagre algum, pois a figueira seca e o encontro do jumentinho são de outra categoria, são atos proféticos. E, finalmente, os fenômenos que acompanham a morte de Jesus não pertencem ao gênero literário dos milagres4.

Ora, os milagres em Marcos servem para provocar a questão básica: quem é Jesus? E esta leva à confissão de Pedro em 8,29: “Tu és o Messias”. Depois disso, eles não são mais necessários.

 

5. O recado de Marcos

Pois bem, se Marcos não quer nos mostrar “uma coisa do outro mundo”, qual é então o seu recado? Vamos tratar disso agora.

O ponto é este: Jesus é o Messias. Mas, ainda fica obscuro: o que tem a ver o Messias com a transformação da escassez em abundância, da fome do povo em saciedade?

Neste instante, somos convidados a dar um passeio pelo Antigo Testamento e pelo judaísmo, para tirar essa dúvida.

A esperança messiânica compreendia que a intervenção definitiva de Deus na história resolveria de uma vez por todas os problemas enfrentados pelo povo israelita em sua atribulada caminhada. O Messias seria o libertador da opressão, da miséria, da fome, da doença, da desgraça, da pobreza, da morte.

O judaísmo o descrevia como um novo Moisés, aquele que repetiria o milagre do maná, aquele que transformaria, no deserto, a fome em saciedade. Quanta semelhança com o nosso texto, não?

E há realmente muitos elementos em Mc 6 que apontam nesta direção:

— O lugar deserto lembra o ambiente do êxodo e do maná.

— Jesus teve compaixão, porque o povo estava como ovelhas sem pastor: no AT os li­deres de Israel são chamados habitualmente de pastores do povo e são duramente criticados pelos profetas por pastorearem a si mesmos e abandonarem seu rebanho. Marcos apresenta Jesus como o verdadeiro pastor do povo abandonado (lembro a você que, em Marcos, o poder político é sempre apresentado como repressivo e sanguinário, portador da morte: cf. Mc 6,14-29; 14,1-2.55-65; 15,1-15.23-41).

— Os discípulos falam em comprar, Jesus fala em dar: o Messias opera uma verdadeira subversão do sistema econômico corrente, uma radical negação do sistema de mercado através do dinheiro e uma defesa do sistema de partilha. Puxa o tapete do sistema de classes daquela sociedade, onde muitos passam fome, mas só alguns detêm toda a riqueza e o poder. Essa distribuição entre todos, esse compartilhar do alimento, operado pelo Messias, se relaciona com a memória histórica do tempo do êxodo, com um povo em processo de libertação, com a lembrança de uma sociedade sem um sistema social tão estratificado, onde todos produzem e todos consomem, como era a sociedade tribal seminômade.

— A divisão dos homens em grupos de cem e cinquenta (antiga divisão militar israelita: por isso Marcos só fala em homens) era considerada no judaísmo como a que seria feita no momento da intervenção do Messias em Israel.

Mas há ainda outra questão: normalmente este texto é lido em relação com a celebração da eucaristia. Esta leitura é correta?

O v. 41 é o elemento central dessa leitura: Jesus “elevou os olhos ao céu, abençoou e partiu os pães e deu-os aos discípulos para que os distribuíssem”.

Essa sequência de gestos era, no judaísmo, a que realizava o pai de família à mesa: orava, elevando os olhos ao céu, abençoava, partia o pão e o distribuía aos comensais. Gestos usados por Jesus na última ceia.

O que parece ter acontecido com a tradição sobre a multiplicação dos pães foi o seguinte: a comunidade primitiva transmitia o episódio no contexto de uma catequese eucarística, como recurso para recordar a sua missão. São os “apóstolos” (= enviados) que estão com Jesus e são eles que distribuem o alimento. A comunidade prossegue a sua tarefa.

“Assim a comunidade que se reúne para participar do pão, recorda o milagre de Jesus alimentando a multidão e encontra nisso a definição do que ela é chamada a ser: o povo de Deus do fim dos tempos, reunido em torno do novo Moisés, pelo ministério apostólico”5.

 

6. Hoje a fome mata demais

Assim a leitura deste texto, em nossa comunidade cristã, está mais do que atualizada. A pregação desta boa-nova, por aqueles que creem no Cristo, como nós, é urgentíssima: neste imenso país, como de um modo geral no Terceiro Mundo, estão morrendo de fome milhares de pessoas. Basta verificarmos os insuspeitos dados da ONU e de dezenas de outras organizações competentes. Dados que duramente nos recordam que morre tanta gente não exatamente por falta de recursos do planeta, por falta de terra onde plantar, por pouco alimento produzido. Morre o nosso contemporâneo, o nosso compatriota, o nosso vizinho, o nosso próximo porque a ganância corre solta, o lucro não tem freios, os recursos de sobrevivência estão concentrados nas mãos de poucos homens.

E nós, e você, caro leitor, o que estamos fazendo para concretizar, de verdade, a missão que Cristo nos legou?

> Este artigo foi publicado em Vida Pastoral, São Paulo, n. 120, p. 2-8, 1985

Artigos


1. R. Barthes. SIZ. Torino: Einaudi, 1973, p. 20.

2. Cf. um interessante questionário sobre as semelhanças e diferenças entre Mc 6 e 8 em WEISER. A. O que é milagre na Bíblia. Paulinas, 1978, p. 57.

3. Cf. DELORME, J. Leitura do evangelho de Marcos. São Paulo: Paulinas, 1982, p. 76-81. Aliás, recomendo àqueles que desejarem um guia seguro para a leitura de Marcos, este pequeno livro.

4. Cf., para a questão do milagre, VV.AA. Os milagres do Evangelho. São Paulo: Paulinas, 1982. Para a lista dos milagres de Marcos, cf. as p. 47-48.

5. DELORME, J.  o. c., p. 75. Servi-me também, para comparar vários elementos deste caso e hipóteses de especialistas, de um texto de DE LA POTTERIE, I. Exegesis synopticorum. Sectio panum in evangelio Marci (6,6-8,33), Curso do Pontifício Instituto Bíblico, Roma 1971-72.


A prática de Jesus

Marcos: um relato da prática de Jesus

leitura: 13 min

 
Chegar em Marcos de que lado? Geralmente a gente começa pelo autor, data e lugar  em que o livro foi escrito, e as pessoas para quem o autor escreveu. Só depois é que se vai ao texto.

Vamos percorrer outro caminho. Não é atalho não. Talvez seja até mesmo dar volta. Mas deve valer a pena. Vamos começar pelo texto. Depois que compreendermos o texto e a maneira como foi criado, vamos compreender o resto. É uma proposta.

1. Narrando um prática
De entrada uma coisa chama a nossa atenção em Marcos. Ainda no início do evangelho, Mc 1,21-22, diz o texto: “Entraram em Cafarnaum e, logo no sábado, foram à sinagoga. E ali ele ensinava. Ficaram encantados com o seu ensino, porque lhes ensinava com autoridade e não como os escribas – (os doutores da Lei)”.

Logo no v. 23 o texto passa a contar uma ação de Jesus. E o que é que ele ensinava? O texto não diz. Casos como esses vão se repetir por todo o evangelho (Marcos só indica o conteúdo deste ensinamento ou pregação quando trata da paixão (8,31; 9,31) e de ensinamentos particulares (capítulos 11-12). O que significa isto?

É que o texto de Marcos, ao contrário de Mateus e Lucas, preocupa-se muito mais com a prática de Jesus do que com seu discurso (seu ensinamento). A narração de Marcos não é, na verdade, uma coleção de “palavras” ou de “discursos” de Jesus, mas a exposição de suas práticas e estratégias. E podemos esclarecer: para Marcos a atuação concreta de Jesus, sua prática é que é seu ensinamento. A boa nova não é um ensinamento só em palavras, mas um ensinamento através de determinadas ações concretas.

2. Os atores do texto
Então, percebendo isto, é bom a gente começar a se preocupar com as atitudes do personagem principal do texto, que é Jesus. E também com as atitudes dos outros personagens que se movimentam ao redor de Jesus ao longo desses 16 capítulos.

Quem são esses personagens?

O personagem principal, sem sombra de dúvida, é Jesus. Ao redor dele movem-se seus seguidores, os discípulos. Por sinal, o Jesus de Marcos é sempre um Jesus com os discípulos, menos em duas ocasiões; quando os discípulos partem em missão e quando Jesus é preso. Outro grupo que se destaca é a multidão que procura Jesus, porque o admira e precisa de seus milagres. Finalmente, do outro lado da barricada, estão os representantes do poder judaico: fariseus, escribas, herodianos, anciãos, chefes dos sacerdotes, saduceus. E romanos. São os seus inimigos, gente que o procura para vigiar, investigar, prender e matar.

Agora, começando pelo início do evangelho, podemos observar como é que se movimentam estes personagens na construção do texto de Marcos.

3. Caminho programático
Mc 1,1 é o título do livro. Um título que é uma confissão de fé, uma afirmação que Marcos vai demonstrar ao longo dos 16 capítulos. Jesus é confessado como o Cristo e como o Filho de Deus.

Mc 1,2-15, a introdução do evangelho, nos oferece três destaques que vale a pena anotar:
1. Observamos, em primeiro lugar, a importância da voz: do profeta, de João, do céu, de Jesus. A voz do céu interrompe de vez a de João, que desaparece e autoriza a voz de Jesus. Sua pregação começa já nos vv. 14-15.
2. Há, neste início de evangelho, um caminho geográfico seguido por Jesus: Galileia – Judeia – Galileia. Este caminho é programático, ou seja, é o programa geográfico de todo o evangelho. Antecipa, programando, o caminho seguido por Jesus: atuação na Galileia – na Judeia – volta à Galileia, ressuscitado. É bom a gente notar, desde já, que esta geografia de Mc é artificial, não é real.
3. A descida do Espírito inicia um tempo novo, que será o tempo da atuação de Jesus.

4. Um dia de Jesus na Galileia
Mc 1,16-45 descreve um dia de Jesus na Galileia, num arranjo artificial de Marcos. E, neste primeiro dia do texto, já são definidas várias posições:
1. Jesus situa-se em um grupo, para começar a ação própria de sua missão. Este primeiro grupo é formado por seus discípulos Simão, André, Tiago e João, filhos de Zebedeu. Todos pescadores, galileus, gente pobre e marginalizada na sociedade israelita. Esta ação de Jesus acontece em Cafarnaum e arredores, atingindo pouco a pouco toda a Galileia.
2. A ação de Jesus é de três tipos:

  • ensinamento novo, com autoridade
  • expulsão dos espíritos impuros
  • curas

3. Esta ação de Jesus provoca uma estratégia da multidão, isto é, ela usa certos meios para conseguir seu objetivo: procurar Jesus. E Jesus responde com outra estratégia: evitar a multidão, ficando fora das cidades.

5. A subversão da ideologia judaica
Mc 2,1-3,6 vai apresentar cinco controvérsias (discussões) de Jesus com os escribas e os fariseus. A ação de Jesus provoca duas leituras da realidade, duas maneiras diferentes de ver a realidade:

  • a dos seus adversários, que querem guardar a ideologia judaica, e que seguem a Lei e os esquemas sociais da época
  • e a do próprio Jesus, que está baseada num esquema novo: a chegada do reino de Deus, dentro do qual ele se situa.

Observamos, portanto, nestas cinco controvérsias, que:
1. A ação de Jesus é sistematicamente apresentada como subversiva da ideologia judaica
2. Os inimigos de Jesus, representados pelos escribas, fariseus e herodianos, utilizam a estratégia da tentação (= provocação), que chega ao máximo na decisão de matá-lo
3. Este conjunto de textos é excelente para mostrar como cada um interpreta os acontecimentos de acordo com o lugar que ocupa na sociedade (“Cada um puxa a brasa para a sua sardinha”, diz o ditado).

Mc 3,6 termina uma primeira parte do texto e está na hora de fazermos um balanço do que aconteceu até aqui. Relendo Mc 1,2-3,6 anotamos quatro coisas importantes:
1. A voz do céu em 1,11 é dirigida a Jesus. Ele é eleito por Deus, que lhe dá a capacidade para sua missão.
2. Em 1,14 Jesus inaugura as suas atividades, começando uma série de ações que provocam algumas perguntas entre os seus ouvintes:

  • Quem é Jesus?
  • Com que autoridade ele age?
  • Será que chegou o momento da intervenção definitiva de Deus na história dos homens?

3. Os adversários analisam a ação de Jesus a partir de seus esquemas sociais e legais. Jesus apresenta suas ações como subversivas da ideologia judaica e as analisa segundo um esquema novo: da chegada do reino de Deus, dentro do qual ele se situa. Isto leva os adversários a decidirem a sua morte.
4. Qual é a estratégia de Jesus? Ele não quer que sua messianidade seja revelada pelos demônios. Estes, como seres não humanos, sabem quem ele é. Também a multidão não deve divulgar que Jesus é o Messias.

6.  Mc 3,7-8,30: Jesus é o Messias, dizem os discípulos
A partir de Mc 3,7 o texto sofre uma reviravolta: começa aqui uma distinção clara entre a multidão e os discípulos: “Jesus retirou-se com os seus discípulos” e a multidão o seguia. Esta separação entre os dois grupos vai sendo realizada progressivamente até chegar ao máximo em 8,29 com a confissão de Pedro reconhecendo Jesus como o Messias. O barco, usado a partir deste momento, será um elemento fundamental para definir o círculo “Jesus + discípulos” que se distancia, geográfica e estrategicamente, da multidão. Mc 3,7-12 é uma espécie de programa do texto que vai até 8,30, onde termina a primeira parte do evangelho de Marcos.

Olhando do alto, podemos anotar em Mc 3,7-8,30 seis elementos de destaque:
1. O barco é um elemento de união destes trechos narrativos. Ele aparece em 3,9 e desaparece em 8,14.
2. Os personagens principais que tomam conta do texto são: Jesus, a multidão e os discípulos. Os adversários aparecem bem menos.
3. O texto separa claramente o ensinamento à multidão e o ensinamento aos discípulos. Somente os discípulos saberão ler as práticas de Jesus como sendo práticas messiânicas.
4. Observando-se o texto, vemos as várias leituras feitas a partir da ação de Jesus. Vê-se também a sua estratégia como resposta a estas leituras. Assim parece que o tema central aqui é o segredo messiânico, elemento fundamental no evangelho de Marcos.
5. Relendo a estratégia de Jesus:

  • em relação aos inimigos: ele evita as cidades; entra às escondidas; deixa-os e vai para outro lugar. O motivo: os adversários querem matá-lo.
  • em relação à multidão: às pessoas curadas por ele (e aos demônios) ele proíbe de falar, para evitar um messianismo político. Por outro lado, ele não rejeita a multidão. Está no meio dela, curando e ensinando. Mas, em geral, ele se afasta quando há um número exagerado de pessoas.
  • em relação aos discípulos: formam um círculo ao redor de Jesus e ele age e ensina-lhes separado da multidão. Insiste para que o reconheçam como o Messias.

6. Mc 8,27-30 é o miolo do evangelho. O barco é substituído pelo caminho. Os discípulos ao redor dele, passam a ser os discípulos que o seguem. Jesus, finalmente, faz diretamente aos discípulos a primeira pergunta:”Quem dizem os homem que eu sou?” E separa claramente a multidão e os discípulos: “E vocês, quem dizem que eu sou?” A resposta de Pedro é fundamental: “Tu és o Messias”. Só os discípulos chegam a compreender a ação de Jesus como messiânica. Pedro é o símbolo dos cristãos de todos os tempos.

7. A subida a Jerusalém
Mc 8,31-10,52 é o passo seguinte. A partir de 8,31 Jesus estará preocupado em mostrar aos seus discípulos que o caminho seguido por ele é diferente da esperança messiânica israelita na libertação do poder romano. Podemos resumir isto em quatro pontos:
1. A partir da confissão feita pelos discípulos, reconhecendo o messianismo, Jesus vai explicar-lhes que tipo de Messias ele é: não um Messias glorioso e rei poderoso, como esperavam os judeus, mas um Messias que sofre e morre na cruz, ressuscitando em seguida.
2. Este ensinamento é dado em parte na Galileia (estar ao redor de Jesus) e em parte no caminho para Jerusalém (seguir Jesus).
3. A subida para Jerusalém mostra uma estratégia precisa de Jesus: ele vai se colocar frente a frente com o pensamento judaico, representado pelos sumos sacerdotes, anciãos, escribas e saduceus.
4. Jesus propõe uma prática messiânica e eclesial oposta à maneira de pensar e de agir da sociedade da época: eles querem dominar, Jesus manda servir; querem guardar a vida para si, Jesus manda perdê-la; querem ser ricos, Jesus prefere a pobreza; fazem de tudo para serem os primeiros, Jesus prefere os últimos; eles querem parecer adultos, Jesus pede para que se tornem como crianças.

8. A rejeição definitiva do judaísmo
Mc 11,1-13,37 mostra o confronto de Jesus com o centro do poder judaico, em Jerusalém, no Templo. Confronto que vai acabar na rejeição definitiva do judaísmo por parte de Jesus e de Marcos. É que devemos pensar que Marcos se preocupa com a vida da comunidade em Antioquia ou na Galileia (talvez em Roma), para a qual ele escreve seu evangelho por volta de 70 d.C. Resumindo em três pontos, observamos que:
1. Nestes textos Jesus age e ensina no Templo, centro do poder religioso judaico. Só que durante a noite ele se retira de Jerusalém para os povoados vizinhos, onde certamente está mais seguro.
2. A prática e o ensinamento messiânicos de Jesus rejeitam o judaísmo em favor de uma abertura do cristianismo aos gentios (os não-judeus). E isto porque os judeus primeiro rejeitam o Messias. Esta abertura ao mundo gentio acontecia nas primeiras comunidades. Seu grande teórico foi Paulo de Tarso, que defendia a salvação também para os gentios que não viviam debaixo da Lei e das obrigações judaicas.
3. O Templo de Jerusalém, simbolizado pela figueira que nada produz, será destruído no ano 70 por Tito, general romano. Marcos mostra que isto é uma consequência da rejeição do Messias pelos sumos sacerdotes, escribas e anciãos.

9. Abandonado por todos, Jesus é executado como rebelde
Mc 14,1-16,8 conta os últimos acontecimentos vividos por Jesus em Jerusalém: é o momento da sua prisão, morte e ressurreição. Vejamos como isto nos é contado por Marcos:
1. É o momento do encontro final entre “Jesus + discípulos” com os adversários. Isto só é possível na medida em que um discípulo, Judas Iscariot, passa para o outro lado e o entrega.
2. Não é só Judas quem o nega. Também Pedro o faz. Mas há uma diferença essencial nas duas rejeições: Pedro nega em palavras, mas não o faz de fato; Judas não o diz, mas faz.
3. O texto tem a preocupação constante de mostrar que Jesus caminhou conscientemente para a sua morte: é a única maneira de abafar o escândalo de seu fracasso, transformando-o em vitória.
4. A partir de sua prisão, Jesus é levado passivamente de um lado para outro, em flagrante contraste com sua atitude tão autônoma e independente quando demonstrava o seu messianismo através de variados sinais.
5. Os seus adversários não aparecem como indivíduos, ninguém é chamado pelo nome, mas são vistos como classe, defensores da ordem judaica. Diante deles, Jesus declara claramente o seu messianismo. Todo o processo é descrito como uma farsa e Pilatos condena Jesus como se fosse zelota, agitador político, “rei dos judeus”.
6. Contra Jesus unem-se o poder judaico, os romanos e a multidão. Multidão nacionalista que prefere libertar um dos seus líderes zelotas. Jesus está complemente só.
7. O evangelho de Marcos termina em 16,8. Não se sabe, segundo seu texto, das aparições de Jesus ressuscitado. As mulheres que encontraram o túmulo vazio nada contam a ninguém. Parece que Marcos esperava a volta definitiva do Messias na Galileia, para breve. O texto se abre para o mundo gentio (não-judeu). Mais tarde, a comunidade, que não entendeu estar completo o texto até Mc 16,8, acrescenta-lhe os vv. 9-20.

10. Quem é o autor do texto?
A tradição identificou o autor com João Marcos, judeu de Jerusalém (At 12,12), companheiro de Paulo e Barnabé (At 12,25;13,5.13;15,37-39), também companheiro de Pedro em Roma (1Pd 5,13).

Mas é preciso tomar cuidado com estas afirmações. O autor foi um cristão da segunda geração cristã! Só isto é que sabemos com toda certeza.

Marcos é o primeiro evangelho a ser escrito, talvez por volta do ano 70, em algum lugar do Império Romano, sendo Antioquia, na Síria, o lugar mais cotado. Ou talvez na Galileia ou mesmo em Roma. Escrito em grego, com um vocabulário simples e popular, Marcos tem como leitores, com certeza, uma comunidade composta em sua maioria de pobres e gentios.

> Este artigo, escrito em 1982, foi publicado no blog Observatório Bíblico em 19.01.2015

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 15. Observações finais

Por último, quero lembrar que uma das maiores dificuldades da leitura socioantropológica vem de seu interior mesmo, das opções de seus teóricos. A partir da II Guerra Mundial aconteceu a burocratização do trabalho do sociólogo e o comprometimento cada vez maior de seus teóricos com a defesa da sociedade capitalista contra a expansão do socialismo. Passou-se a confundir a sociologia crítica, não conservadora e não funcionalista, com um comunismo a ser combatido a todo o custo. Na sociedade norte-americana, a sociologia, vinculada ao meio universitário, caracterizou-se por um acentuado reformismo, investigando temas relacionados com a desorganização social, com as questões urbanas, com a integração das minorias etc, mas perdeu de vista a totalidade social.

A avalanche empirista que tomou conta das ciências sociais nos Estados Unidos chegou também aos países periféricos, como o Brasil, representando uma profunda ruptura com as tendências de clássicos como Weber e Marx. O fenômeno da pós-modernidade, com a suposta falência das grandes teorias explicativas da história, agravou mais ainda o fenômeno.

Não é difícil perceber também como o funcionalismo é a referência mais comum dos estudos bíblicos analisados nestas páginas. A postura conservadora, inerente ao funcionalismo, preocupado com a ordem social é que, apesar das características de cada um, talvez tenha unido pensadores tais como Durkheim, Malinowski, Radcliffe-Brown, Talcott Parsons e tantos outros.

No Brasil a coisa se agrava mais ainda, pois numa sociedade em transição do rural para o urbano como a nossa persiste em muitos meios uma ordem patrimonial que sufoca o pensamento racional livre, considerado incompatível com seus interesses. A justificação moral existente emanava, ainda há pouco, do poder dos costumes, e a “explicação racional do comportamento humano e da origem ou do funcionamento das instituições, como a sociológica, encontrava natural resistência”, já dizia Florestan Fernandes[61].

Mas, como nos lembrava Carlos B. Martins na década de 80, “ao lado de uma sociologia que estendeu suas mãos ao poder, não se pode deixar de mencionar as importantes contribuições proporcionadas por uma sociologia orientada por uma perspectiva crítica [como a da Escola de Frankfurt e a de seus seguidores]. Em boa medida, esta sociologia tem permitido a compreensão da sociedade capitalista atual, das suas políticas de dominação e dos processos históricos que buscam alterar a sua ordem existente”[62]. Cabe aos especialistas investigar as atuais condições do pensamento socioantropológico e aos biblistas retomar este veio crítico dos grandes clássicos que nunca secou de verdade. Recomendo, neste sentido, especialmente as obras de Robert Kurz[63].

 

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>> Bibliografia atualizada em 02.06.2022

Artigos


 

[61]. FERNANDES, F.  A sociologia no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1977, p. 30.

[62]. MARTINS, C. B. O que é sociologia. 57 ed. São Paulo: Brasiliense, 2001, p. 91.

[63]. KURZ, R. O Colapso da Modernização. Da Derrocada do Socialismo de Caserna à Crise da Economia Mundial. Rio de Janeiro: Paz e Terra, [1992] 2004; Idem, Os Últimos Combates. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 1998.

 

 


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6. Bruce Malina e a antropologia do mundo mediterrâneo: 1981

Os vários estudos de Bruce J. Malina, professor na Creighton University, Nebraska, começando com uma publicação feita em 1981, são significativos para a leitura socioantropológica do Novo Testamento, especialmente no âmbito da exegese norte-americana. Abaixo, um elenco de seus principais livros (omiti aqui os artigos, mas muitos deles foram relançados em alguns destes livros):

MALINA, B. J. The New Testament World: Insights from Cultural Anthropology. 3. ed. Louisville: Westminster John Knox Press, [1981] 2001.

MALINA, B. J. The Gospel of John in Sociolinguistic Perspective. Berkeley: Center for Hermeneutical Studies, 1985.

MALINA, B. J. Christian Origins and Cultural Anthropology: Practical Models for Biblical Interpretation. Eugene, OR: Wipf & Stock Publishers, [1986] 2010.

MALINA, B. J.; NEYREY, J. H. Calling Jesus Names: The Social Value of Labels in Matthew. Sonoma, Calif.: Polebridge Press, 1988.

MALINA, B. J.; ROHRBAUGH, R. L. Social-Science Commentary on the Synoptic Gospels. 2. ed. Minneapolis: Fortress Press, [1992] 2003.

MALINA, B. J. Windows on the World of Jesus: Time Travel to Ancient Judea. Louisville: Westminster John Knox Press, 1993.

MALINA, B. J. On the Genre and Message of Revelation: Star Visions and Sky Journeys. Grand Rapids: Baker Academic, 1995.

MALINA, B. J.; NEYREY, J. H. Portraits of Paul: An Archaeology of Ancient Personality. Louisville: Westminster John Knox Press, 1996.

MALINA, B. J. The Social World of Jesus and the Gospels. London: Routledge, 1996.

MALINA, B. J.; ROHRBAUGH, R. L. Social-Science Commentary on the Gospel of John. Minneapolis: Fortress Press, 1998.

MALINA, B. J.; PILCH, J. J. Social-Science Commentary on the Book of Revelation. Minneapolis: Fortress Press, 2000.

MALINA, B. J. The Social Gospel of Jesus: The Kingdom of God in Mediterranean Perspective. Minneapolis: Fortress Press, 2000. Em português: O evangelho social de Jesus. O reino de Deus em perspectiva mediterrânea. São Paulo: Paulus, 2004.

MALINA, B. J.; PILCH, J. J. Social-Science Commentary on the Letters of Paul. Minneapolis: Fortress Press, 2006.

MALINA, B. J.; PILCH, J. J. Social-Science Commentary on the Book of Acts. Minneapolis: Fortress Press, 2008.

MALINA, B. J.; PILCH, J. J. Social-Science Commentary on the Deutero-Pauline Letters. Minneapolis: Fortress Press, 2013.

Bruce Malina fundamenta-se em teorias antropológicas atuais para entender a cultura do mundo mediterrâneo antigo onde o Novo Testamento foi gerado. Seu enfoque privilegia o estudo dos ambientes sociais, dos modos de pensar e dos padrões de comportamento das comunidades bíblicas em contraste com o mundo do intérprete moderno da Bíblia, tentando construir uma ponte entre estes dois mundos que nos permita resgatar o sentido dos textos do Novo Testamento. É assim que Malina estuda Paulo e a lei numa perspectiva socioantropológica, Jesus mais como um personagem de consagrada reputação do que uma figura carismática[25], o grupo de contracultura que produziu o evangelho de João, a pobreza como ausência de laços sociais e não apenas como falta de bens materiais, os códigos de hospitalidade pressupostos na terceira carta de João, a relação patrão-cliente modelando a relação Deus-homem e as orações de Jesus[26], a percepção característica do tempo na antiguidade modelando as noções de escatologia e apocalíptica…[27].

Diz Bruce Malina, na introdução de um de seus livros, que o objetivo da interpretação do Novo Testamento é “descobrir o que um grupo específico do século primeiro do Mediterrâneo oriental entendia quando documentos contidos em o Novo Testamento eram lidos para eles. Por isso, minha tarefa é descobrir o que os documentos têm a dizer e o que eles significavam para os seus destinatários originais. Eu considero que o sentido, tanto lá como aqui, reside, em última instância, no sistema social compartilhado por pessoas que regularmente interagem umas com as outras”[28].

 

7. J. H. Elliott e a sociologia da 1a Carta de Pedro: 1981/1990

Em 1981 J. H. Elliott publicou uma análise da primeira carta de Pedro com o título de A Home for the Homeless: A Sociological Exegesis of 1 Peter; Its Situation and Strategy, na qual, utilizando uma teoria de Robbin Scroggs de que o cristianismo primitivo constituiu uma seita messiânica surgida dentro do judaísmo, o autor aplica o modelo de seita desenvolvido por Bryan Wilson para retratar a precária situação do cristianismo da Ásia Menor e a estratégia de resposta da carta a tal situação[29].

Avaliando o resultado de seu estudo do ponto de vista metodológico, J. H. Elliott diz que “analisar 1 Pedro em termos de um modelo sectário forneceu um recurso heurístico para visualizar a dinâmica social implícita neste escrito e esclarecer a maneira na qual os vários conteúdos, temas e metáforas organizadoras foram integrados para formar uma comunicação coerente e persuasiva para motivar sua audiência para uma forma efetiva de ação social”[30].

 

8. Wayne Meeks e os primeiros cristãos urbanos: 1983

Em 1983 Wayne A. Meeks, da Universidade de Yale, publicou The First Urban Christians: The Social World of the Apostle Paul. Usando a abordagem do funcionalismo estrutural,  estudou a origem, posse e status social dos indivíduos das comunidades paulinas, e também os programas, a organização e o comportamento dos grupos mencionados no conjunto dos textos paulinos, para chegar à conclusão de que o típico cristão paulino era o artesão livre e o pequeno comerciante, gente dotada de alta mobilidade social nas grandes cidades do Império Romano. Não teriam pertencido às comunidades paulinas nem o topo da pirâmide social da época (aristocratas donos de terras, senadores, cavaleiros etc.) e nem a base da pirâmide, constituída, então, pelos agricultores pobres, escravos agrícolas, trabalhadores braçais da roça, entre outros[31].

Em 1986, na Grã-Bretanha, Francis Watson leu com o recurso da sociologia a visão de Paulo a respeito do judaísmo, da lei, e dos gentios em Gálatas e Romanos, focalizando as raízes sociais de seu pensamento. Em 1987, Philip Francis Esler estudou Lucas e Atos e seu programa teológico como um processo de legitimação ideológica. Em 1988 Margaret MacDonald estudou as estratégias, os processos e estágios da institucionalização do cristianismo primitivo nas cartas paulinas e dêutero-paulinas. Também em 1988 o norueguês Halvor Moxnes, da Universidade de Oslo, publicou The Economy of the Kingdom: Social Conflict and Economic Relations in Luke’s Gospel, analisando o evangelho de Lucas à luz das relações econômicas antigas, “abrindo, assim, uma nova perspectiva para a sustentação da visão de Lucas sobre os fariseus como ‘amigos do dinheiro’ e a base social da ‘economia do Reino’ de Lucas”[32].

 

9. Ched Myers e a leitura política de Marcos: 1988

Ched Myers, em 1988, publicou um comentário ao evangelho de Marcos que tem como título Binding the Strong Man: A Political Reading of Mark’s Story of Jesus (“Amarrando o homem forte. Uma leitura política da história de Jesus de Marcos”) [33].

A obra compõe-se de quatro partes: a primeira trata do texto e do contexto sócio-histórico do evangelho de Marcos, a segunda e a terceira leem o texto e a quarta traz as conclusões do trabalho. Um posfácio e um apêndice consideram as várias leituras sociopolíticas atuais da narrativa de Jesus.

O autor adota o modelo centro-periferia, que ele (norte-americano, escrevendo do centro imperial) considera adequado tanto para a produção do texto de Marcos quanto para a sua leitura atual.

“O mundo mediterrâneo antigo era dominado pela lei da Roma imperial. No entanto, se eu leio situando-me no centro [USA], Marcos escreveu da periferia palestina [na Galileia, entre 66 e 70 d.C. quando Roma destruía a Palestina]. Seu principal auditório era constituído por aqueles cujas vidas diárias suportavam o peso explorador do colonialismo, ao passo que os meus ouvintes são os que se acham em posição que lhes possibilita usufruir os privilégios do colonizador”[34].

Assim, citando Dorothee Sölle, o autor reflete: “Nós que nos achamos no centro (…) não temos outra opção senão a de ‘fazer teologia na casa do faraó’, ou seja, ficar do lado dos hebreus mesmo sendo cidadãos do Egito”[35]. Privilegiada, para ler Marcos, é a situação de quem se situa na periferia e pode enfocar adequadamente temas de libertação, como o fazem os teólogos latino-americanos, emenda o autor.

Deste modo, mesmo situado no centro, o autor defende uma leitura libertadora de Marcos, considerando a chave apocalíptica a mais adequada para a leitura do texto, a partir de sua definição dos escritos apocalípticos, tais como Daniel e Apocalipse, como “manifestos políticos de movimentos não violentos de resistência à tirania”. “Meu comentário” acrescenta Myers “demonstra que o mesmo pode ser dito a propósito de Marcos”[36].

Ched Myers procura extrair três fios narrativos ou subtramas do evangelho de Marcos. “A primeira subtrama envolve tentativas de Jesus para criar e consolidar uma comunidade messiânica, tendo como sujeito evidentemente seus discípulos. Seu mandamento a eles dirigido deve levar avante a obra do reino (…) A segunda subtrama é o ministério de Jesus de cura, de exorcismo e de proclamação da libertação, tendo como sujeito os pobres e oprimidos, encarnados pela ‘multidão’ no Evangelho. O mandamento aparece no primeiro exorcismo da sinagoga, em que a multidão reconhece que a autoridade de Jesus supera a dos supersenhores, os escribas (…) A terceira subtrama é o confronto de Jesus com a ordem sociossimbólica dominante, tendo como sujeito os defensores desta ordem: os escribas, os fariseus, os herodianos e o clero dirigente de Jerusalém. Jesus confia seu mandamento a eles diversas vezes na primeira campanha de ação direta, afirmando sua autoridade sobre o sistema de pureza e de débito (2,10.28) e desafiando as autoridades a optarem pela justiça e pela compaixão em vez da dominação”[37].

Estas três subtramas levam Jesus à prisão e execução, com a deserção dos discípulos, a decepção da multidão e a hostilidade das autoridades. Jesus segue sozinho o caminho da cruz. “Essa tragédia, porém, é revertida pela promessa de que, como Jesus vive, a aventura do discipulado pode continuar (16,6s)”[38].

Deste modo, o evangelho de Marcos é visto como um manifesto escrito para súditos do poder imperial romano “aprenderem a dura verdade sobre o seu mundo e sobre eles mesmos”. Para Ched Myers o relato de Marcos “é história feita pelos comprometidos, que versa sobre os comprometidos e que se dirige aos comprometidos com a obra de Deus, obra de justiça, de compaixão e de libertação no mundo”.

Aos teólogos modernos Marcos não “oferece sinais do céu” (Mc 8,11-12), como não os oferece aos fariseus; aos exegetas que recusam um compromisso ideológico Jesus não dá resposta alguma, como não a deu aos sumos sacerdotes (Mc 11,30-33)… “Mas aos que querem provocar a ira do império, Marcos apresenta uma forma de “discipulado (8,34ss)”[39]. Um discipulado radical.

 

10. Andrew Overman e o mundo social da comunidade de Mateus: 1990

Andrew Overman publicou, em 1990, um estudo sobre o mundo social da comunidade de Mateus. Na Introdução da obra, ele expõe, apoiado em M. Weber, Berger, Luckmann e outros, seus pressupostos e sua proposta: “Este é um estudo da vida e do mundo da comunidade representada pelo Evangelho de Mateus (…) A comunidade de Mateus, como qualquer outra, defrontava-se com a tarefa de explicar suas experiências e convicções para os membros seguintes e desenvolver estruturas e procedimentos que ajudassem a protegê-la de forças e crenças estranhas. Este estudo centra-se nesses aspectos”[40].

Depois de mostrar como a natureza e a forma de uma comunidade são moldadas pelas forças e dinâmicas sociais que a cercam e de como os papéis, padrões de comportamento e instituições que surgem são uma resposta às questões e problemas que a comunidade precisa enfrentar regularmente, Overman diz que “Este é o caso da comunidade de Mateus. Boa parte da vida e da realidade refletidas no Evangelho de Mateus foi socialmente construída. Isto quer dizer que os desenvolvimentos e questões evidentes nesse Evangelho são respostas ao ambiente, à situação e ao mundo social dessa comunidade. Nenhum texto é autônomo, isolado dos eventos que ocorrem à sua volta. O que se lê em um texto como o Evangelho de Mateus é, inevitavelmente, produto do mundo do qual ele participa e de onde surgiu. Ao longo desse estudo, estaremos focalizando o mundo ou contexto e horizonte mais amplos nos quais as circunstâncias da comunidade de Mateus podem ser mais bem compreendidas e explicadas”[41].

E qual foi o fator que influenciou mais profundamente o desenvolvimento da comunidade de Mateus?, pergunta Overman. “Foi a competição e o conflito com o chamado judaísmo formativo – um grupo que, como a comunidade de Mateus, estava envolvido em um processo de construção e definição social”[42]. Nos anos que se seguiram à destruição do Templo em 70 d.C., tanto a comunidade de Mateus como o judaísmo formativo – que não deve ser visto como um movimento amplo que representa a totalidade do judaísmo, mas como um dos vários movimentos que lutavam para ganhar mais influência e controle no período pós-70 – se organizaram e definiram mais ativamente sua vida e suas crenças, continua o autor, que sugere em seguida: “Na época da escritura do Evangelho de Mateus, os dois grupos, o judaísmo formativo e o judaísmo de Mateus, estavam evidentemente em competição e, ao que parece, o judaísmo formativo estava ganhando terreno. Isso tem um impacto significativo na forma e no conteúdo do Evangelho de Mateus. Muitos dos desenvolvimentos na vida da comunidade de Mateus ocorriam em resposta ao impacto que um judaísmo formativo em organização e consolidação estava tendo sobre as pessoas da comunidade e sobre seu mundo”[43].

O judaísmo formativo e o judaísmo de Mateus desenvolveram-se e cresceram em caminhos paralelos, mas em determinado ponto, possivelmente na época da escrita do Evangelho, os dois grupos começaram a divergir. Por isso, “o Evangelho de Mateus não pode ser compreendido isolado da concorrência e do conflito com o judaísmo formativo”, e mais: “O Evangelho de Mateus não é apenas um registro, então, de um momento crítico na história desses dois movimentos incipientes; ele também constitui um capítulo inestimável na história mais ampla das relações judaico-cristãs, sua definição e seu conflito”. Assim, Overman espera que o estudo atento do Evangelho de Mateus possa “ajudar a proporcionar um maior entendimento e apreciação mútuos entre essas duas religiões fraternas”[44].

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[25]. Cf. MALINA, B. J. The Social World of Jesus and the Gospels. London: Routledge, 1996, p. 123-142.

[26]. Idem, ibidem, p. 143-175.

[27]. Cf. ELLIOTT, J. H. What is Social-Scientific Criticism?, p. 24-27.

[28]. MALINA, B. J. The Social World of Jesus and the Gospels, p. XI.

[29]. Cf. ELLIOTT, J. H. What is Social-Scientific Criticism?, p. 24-25. O estudo de Elliott, lançado em 1981, foi reeditado em 1990 com nova introdução. Cf.  ELLIOTT, J. H. A Home for the Homeless: A Sociological Exegesis of 1 Peter, Its Situation and Strategy. With a New Introduction. Eugene, OR: Wipf & Stock Publishers, [1981] 2005. Em português; Um lar para quem não tem casa: Interpretação sociológica da primeira carta de Pedro. São Paulo: Academia Cristã/Paulus, 2011. O estudo de Robbin Scroggs é The Earliest Christian Communities as Sectarian Movement. In: NEUSNER, J. (ed.), Christianity, Judaism and Other Greco-Roman Cults. Leiden: Brill, 1975. 

[30]. ELLIOTT, J. H. What is Social-Scientific Criticism?, p. 86.

[31]. Cf. MEEKS, W. A. The First Urban Christians: The Social World of the Apostle Paul. 2. ed. New Haven: Yale University Press, [1983] 2003. Em português: Os primeiros cristãos urbanos: O mundo social do apóstolo Paulo. São Paulo: Academia Cristã/Paulus, 2011.; cf. também DA SILVA, A. J. Do campo para a cidade: o Evangelho de Paulo. Vida Pastoral, São Paulo, n. 152, p. 13-18, 1990. Disponível online. Naturalmente as conclusões de W. A. Meeks não foram unanimemente aceitas, pois os dados dos quais se inferem os resultados são em geral bastante vagos.

[32]. ELLIOTT, J. H. What is Social-Scientific Criticism?, p. 28; WATSON, F. Paul, Judaism and the Gentiles: Beyond the New Perspective. Grand Rapids, MI: Eerdmans, 2007; ESLER, Ph. F. Community and Gospel in Luke-Acts: The Social and Political Motivations of Lucan Theology. New York: Cambridge University Press, 1989; MACDONALD, M. Y. The Pauline Churches: A Socio-Historical Study of Institutionalization in the Pauline and Deutrero-Pauline Writings. New York: Cambridge University Press, 2004; MOXNES, H. The Economy of the Kingdom: Social Conflict and Economic Relations in Luke’s Gospel. Eugene, OR: Wipf & Stock Publishers, 2004. Em português: A economia do Reino: Conflito social e relações econômicas no Evangelho de Lucas. São Paulo: Paulus, 1997.

[33]. Cf. MYERS, C. Binding the Strong Man: A Political Reading of Mark’s Story of Jesus. Maryknoll, NY: Orbis Books, [1988] 2008. Em português: O evangelho de São Marcos. São Paulo: Paulus, 1992.

[34]. MYERS, C. O evangelho de São Marcos, p. 29.

[35]. Idem, ibidem, p. 30.

[36]. Idem, ibidem, p. 491.

[37]. Idem, ibidem, p. 158-159.

[38]. Idem, ibidem, p. 158.

[39]. Idem, ibidem, p. 34.

[40]. OVERMAN, J. A. O Evangelho de Mateus e o Judaísmo Formativo: O Mundo Social da Comunidade de Mateus. São Paulo: Loyola, 1997, p. 13. O original inglês é Matthew’s Gospel and Formative Judaism: The Social World of the Matthean Community. Minneapolis: Fortress Press, 1990.

[41]. Idem, ibidem, p. 13-14.

[42]. Idem, ibidem, p. 14.

[43]. Idem, ibidem, p. 14.

[44]. Idem, ibidem, p. 17.


História de Israel 32

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11.1.4. Os prefeitos e procuradores romanos da Judeia

Copônio: 6-8 d.C.
Marcos Ambívio: 8-12 (?)
Ânio Rufo: 12-15 (?)
Valério Grato: 15-26
Pôncio Pilatos: 26-36
Marcelo: 36-37
Marulo: 37-41 (?)
Cúspio Fado: 44-46
Tibério Alexandre: 46-48
Ventídio Cumano: 48-52
Antônio Félix: 52-60
Pórcio Festo: 60-62
Lucéio Albino: 62-64
Géssio Floro: 64-66

O procurador ou prefeito era um administrador em ligação com o legado que governava a província romana da Síria e dependia dele. Residia em Cesareia, mas subia a Jerusalém e podia lá permanecer conforme as circunstâncias ou as necessidades.

Por causa de Flávio Josefo[9] se pensava que a Judeia fora governada por procuradores (epítropos, em grego, procurator, latim), mas hoje se sabe, graças a uma inscrição sobre Pilatos encontrada em Cesareia[10], que, até Cláudio, os governadores romanos da Judeia tinham o título de éparchos ou praefectus = prefeito. Após Cláudio, que se tornou Imperador no ano 41, podemos falar de “procuradores”. Portanto, a partir de Cúspio Fado (44-46). Entretanto, os dois títulos, para as províncias imperiais, como era o caso da Judeia, eram equivalentes, tendo perdido o significado original da época da República. Tanto o prefeito como o procurador tinham funções fiscais, militares e judiciais[11].

Pôncio Pilatos, prefeito da Judeia, que pronuncia a sentença de morte contra Jesus de Nazaré, é um governante duro e decidido, que nuncaTIBERIEVM PON]TIVS PILATVS PRAEF]ECTUS IVDA[EA]E - Inscrição de Cesareia - Museu de Israel, Jerusalém simpatizou com os judeus.

Herodes Agripa I, escrevendo ao Imperador Calígula, descreve-o como inflexível por natureza e cruel por causa de sua obstinação. Acusa-o de venal, violento, extorsivo e tirânico.

Pertence à ordem dos cavaleiros, classe de pessoas ricas, muitos de origem humilde e até descendentes de escravos, que fizeram fortuna das mais variadas maneiras.

Pilatos é nomeado procurador por Tibério, graças à influência de Sejano, o poderoso prefeito da guarda pretoriana em Roma que é realmente quem manobra o poder.

Sejano faz de tudo para prejudicar os judeus. E consegue. Sob um pretexto qualquer, faz com que Tibério tome decisões antijudaicas.

Pilatos faz muitas coisas contrárias aos costumes judeus, desrespeitando-os deliberadamente, para irritá-los e reprimi-los.

Embora saiba que os judeus abominam a reprodução de imagens de qualquer espécie, ele manda cunhar moedas com símbolos gentios. Símbolos como o lituus “um bastão recurvado numa das extremidades, em forma de chifre, que servia para demarcar o recinto onde os sacerdotes pagãos observavam as aves do sacrifício”, e o simpulum, espécie de concha sagrada. Pilatos é o único governante romano que tem tal ousadia[12].

Certa vez, Pilatos manda que seus soldados entrem em Jerusalém, à noite, levando efígies do Imperador nos estandartes. Quando amanhece, o povo se revolta com tal afronta, e ele tenta reprimi-lo. Mas tem que ceder diante da grande coragem dos judeus que preferem morrer a transgredir a Lei. Nas palavras de Flávio Josefo:

“Certa feita, Pilatos mandou levar, de noite, para Jerusalém, um certo número de imagens veladas do César, que os romanos chamavam de ‘estandartes’. Mal o dia clareou, uma grande agitação tomou conta da cidade. Todos quantos chegavam perto, enchiam-se de indignação com o espetáculo, que eles tomaram como uma zombaria grave à lei que proibia colocar qualquer imagem que fosse no interior da cidade. Pouco a pouco a exacerbação dos habitantes da cidade atraiu grandes multidões de pessoas que moravam no campo. E todos se dirigiram a Cesareia, para falar com Pilatos. Suplicavam-lhe que mandasse tirar as imagens de Jerusalém e desistisse de agir contra as normas da religião judaica. Pilatos recusou-se a atender ao pedido deles. Então os judeus se lançaram por terra e ficaram imóveis, no lugar, durante cinco dias e cinco noites.

No sexto dia Pilatos sentou-se numa tribuna, no grande hipódromo da cidade, e convocou o povo, como se quisesse comunicar-lhe uma notícia. Em seguida, porém, fez aos soldados o sinal antes combinado, para cercarem os judeus, de armas na mão. Envolvidos por três fileiras de homens armados, os judeus foram tomados de violenta comoção diante do fato inesperado. Pilatos mandou massacrá-los, caso não admitissem a presença de imagens do Imperador em seu meio. Fez então novo sinal aos soldados para desembainharem as espadas. Os judeus, à uma, jogaram-se por terra, como se tivessem combinado entre si, e ofereceram o pescoço desnudo, declarando em alta voz que preferiam deixar-se matar a transgredir a Lei. Esta atitude heroica do povo em defesa de sua religião causou grande espanto em Pilatos. Ele ordenou, então, que as insígnias do Imperador fossem retiradas de Jerusalém”[13].

 

11.1.5. De Agripa II ao fim da Judeia

Quando morre Herodes Agripa I (44 d.C.), os romanos não quiseram entregar logo o governo para seu filho Agripa II que é apenas um garoto de 17 anos e vive em Roma. O país é governado, então, pelos procuradores.

Mas em 48 d.C. Agripa II recebe o governo de Cálcis, território antes dirigido por seu tio. Em 52 d.C. Agripa recebe também a antiga tetrarquia de Felipe e partes da Galileia e da Pereia. Já antes, em 49 d.C., ele havia sido nomeado Inspetor do Templo, com direito de designar o sumo sacerdote, embora a Judeia continue governada por procuradores romanos. Agripa II é o último governante da família herodiana. Quando Jerusalém é destruída em 70 d.C., ele muda-se para Roma, onde morre após o ano 93 d.C.

Agripa II vive incestuosamente, dizem, com sua irmã Berenice e não é bem visto pelos judeus, especialmente pelos sacerdotes, graças às mudanças arbitrárias de sumos sacerdotes que sempre fez. Teve pouca influência sobre a comunidade judaica.

É diante de Agripa II e Berenice que Paulo comparece, quando prisioneiro em Cesareia, segundo At 25,23-26,3.

A crescente revolta judaica contra a ocupação romana é, com frequência, atribuída ao sempre vivo espírito nacionalista judaico e à sua imorredoura fé na libertação messiânica, mas historicamente é condicionada e ocasionada pela inabilidade dos procuradores e até mesmo de alguns Imperadores.

Vimos como Pilatos cometera arbitrariedades sem conta, muitas delas com o deliberado propósito de irritar os judeus, julgados totalmente impotentes frente ao poderio romano.

E esta atitude prepotente não para com Pilatos, que afinal é punido pelo que fizera, sendo destituído por Tibério e chamado a Roma, onde tem que se explicar.

O Imperador seguinte, Calígula, proclama-se deus e obriga todas as províncias, inclusive a Judeia, a cultuá-lo, oferecendo-lhe sacrifícios. Quando os judeus se recusam a cultuá-lo, são perseguidos tanto na diáspora (em Alexandria, por exemplo) como na Judeia e demais províncias.

Calígula chega a exigir que uma estátua do Imperador seja colocada no Templo, contra todo o bom senso. Petrônio, legado da Síria, tenta demover o Imperador de seus propósitos: é condenado à morte, ou seja, recebe ordem do Imperador para se suicidar. Só que assassinam Calígula em 41 d.C., e Cláudio, seu sucessor, dispensa os judeus do culto ao Imperador, salvando também a vida de Petrônio.

Na Palestina do século I d.C. havia um verdadeiro clima de terror. Richard L. Rohrbaugh, na Introdução de um volume sobre “As Ciências Sociais e a Interpretação do Novo Testamento ”, diz sobre a expectativa de vida da população do Império Romano nesta época: “Cerca de 1/3 daqueles que ultrapassavam o primeiro ano de vida (portanto, não contabilizados como vítimas da mortalidade infantil) morriam até os 6 anos de idade. Cerca de 60% dos sobreviventes morriam até os 16 anos. Por volta dos 26 anos 75% já tinha morrido e aos 46 anos, 90% já desaparecido, chegando aos 60 anos de idade menos de 3% da população”[14].

É claro que estes dados não são uniformemente distribuídos por toda a população da época. Os que mais sofriam pertenciam às classes mais pobres das cidades e povoados, já que um pobre em Roma, no século I de nossa era, tinha uma expectativa de vida de 30 anos, quando muito. E o autor acrescenta: “Estudos feitos por paleopatologistas indicam que doenças infecciosas e desnutrição eram generalizadas. Por volta dos 30 anos a maioria das pessoas sofria de verminose, seus dentes tinham sido destruídos e sua vista acabado (…) 50% dos restos de cabelo encontrados nas escavações arqueológicas tinham lêndeas”[15].

Com moradias precárias, sem condições sanitárias adequadas, sem assistência médica, com uma má alimentação… Olhemos para a audiência de Jesus, por exemplo: este mesmo Jesus, com seus trinta e poucos anos de idade, era mais velho do que 80% de sua audiência. Uma audiência doente, desnutrida e com uma expectativa de mais 10 anos de vida, se tanto!

Douglas E. Oakman, em um estudo sobre as condições de vida dos camponeses palestinos da época de Jesus , mostra que a violência que sofriam era brutal. Fraudes, roubos, trabalhos forçados, endividamento, perda da terra através da manipulação das dívidas atingiam a muitos. Existia uma violência epidêmica na Palestina. Neste contexto, ele propõe uma leitura radical da oração que chamamos de Pai Nosso[16].

Quando Vitélio Cumano (48-52 d.C.) é procurador, acontece violenta revolta dos judeus durante a festa da Páscoa, por causa de um ultraje cometido por um soldado romano. Cumano reprime o tumulto e vinte mil judeus perdem a vida.

No tempo de seu sucessor Antônio Félix (52-60 d.C.) a tensão aumenta perigosamente. É no seu tempo que surge o grupo dos sicários, assim chamados por usarem em suas ações uma adaga curva e curta chamada “sica”. Sua tática é provocar tumultos e desestabilizar o governo através de assassinatos inesperados de personagens importantes. Escondem a sica sob as vestes e misturados na multidão eliminam não só romanos, mas também quem colabora com a ocupação estrangeira. Um dos assassinados neste tempo pelos sicários é o sumo sacerdote Jônatas.

Outros grupos tentam despertar no povo os sentimentos messiânicos, proclamando-se profetas e fazendo promessas utópicas. Tais grupos são duramente reprimidos pelos romanos através de grandes matanças. Félix manda crucificar inúmeros zelotas durante o seu mandato[17].

Outro procurador terrivelmente corrupto e repressor é Luceio Albino (62-64 d.C.). Seu sucessor Géssio Floro (64-66 d.C.) consegue então jogar a gota d’água para que o ódio acumulado pelos judeus derrame.

Quando, após muitas arbitrariedades, G. Floro requisita 17 talentos do tesouro do Templo, a revolução estoura. Os judeus escarnecem do procurador, fazendo uma coleta para o “pobrezinho” Floro.

Resultado: Floro entrega para os seus soldados uma parte de Jerusalém, para que seja saqueada e crucifica alguns homens importantes da comunidade judaica. O povo, em supremo desprezo, não reage diante do saque, e o desprezo é vingado: há uma carnificina geral.

Então, os revolucionários chefiados por Eleazar, filho do sumo sacerdote, ocupam o Templo e a fortaleza Antônia. Agripa II tenta conter a revolta e não consegue. Céstio Galo, legado da Síria, ataca com uma legião, mas é rechaçado com pesadas perdas, assim como antes Floro teve que se retirar para Cesareia ao ser derrotado. É a guerra definitiva.

Começam os preparativos para o que der e vier. A Galileia é entregue a Josefo, o nosso conhecido historiador Flávio Josefo. Josefo fortifica várias cidades e se prepara. Também as fortalezas de Massada e Heródion são ocupadas pelos rebeldes.

“Reuniu-se um grande número daqueles judeus que queriam a guerra a qualquer preço. Tinham se dirigido para uma fortaleza chamada Massada. Aí surpreenderam a guarnição romana, massacraram-na e em seu lugar colocaram um destacamento constituído pela própria gente. Nessa época, Eleazar, filho do sumo sacerdote Ananias, um jovem de grande atrevimento que comandava então a guarda do Templo, incitou os sacerdotes em exercício a não aceitar donativos ou sacrifícios da parte de não judeus. Este foi o começo propriamente dito da guerra contra os romanos, pois nesta ocasião foi praticamente rejeitado o oferecimento de sacrifício em favor dos romanos e do Imperador”[18].

O Imperador Nero confia então a Palestina a um experiente general: Vespasiano. Em companhia de seu filho Tito, Vespasiano ataca a Galileia na primavera de 67 com 10 legiões (60 mil soldados, sem contar as tropas auxiliares, o que duplica este número). Conquistam facilmente o território, mas a fortaleza de Jotapata só cai após 47 tentativas de assalto. Josefo é aprisionado e muito bem tratado. Até o outono a Galileia está nas mãos dos romanos, que então podem hibernar tranquilamente.

Na primavera de 68 Vespasiano ocupa sucessivamente a Pereia, a costa, as montanhas da Judeia, a Idumeia e a Samaria. Está para atacar Jerusalém quando Nero se suicida.

Vespasiano espera se definir a situação em Roma. Três Imperadores passam pelo trono, mas nenhum para. Finalmente Vespasiano é aclamado Imperador no dia primeiro de julho de 69 e marcha para Roma, deixando a guerra sob o comando de Tito.

Tito cerca Jerusalém pouco antes da Páscoa de 70, com quatro legiões (24 mil soldados). A cidade está repleta de peregrinos. Uma cidade com cerca de 30 mil habitantes fixos. Mas nesta época ultrapassava os 180 mil.

Tito ocupa o setor norte da cidade, abre um fosso ao seu redor para que ninguém escape e em julho de 70 toma a fortaleza Antônia, um dos redutos rebeldes. Como os muros do Templo não cedem, Tito o incendeia. É agosto de 70[19]. Toda a construção é consumida pelas chamas, mas os rebeldes conseguem se refugiar no palácio de Herodes.

Em setembro de 70 também o palácio cai. Os chefes rebeldes, João de Gíscala, zelota, e Simão Bargiora, sicário, são aprisionados e levados triunfalmente para Roma. A cidade é saqueada e os habitantes assassinados, vendidos ou condenados a trabalhos públicos.

Estão ainda de pé três fortificações rebeldes: Heródion, Massada e Maqueronte, defendidas pelos sicários e zelotas. Heródion e Maqueronte caem logo, mas Massada resiste um ano de cerco. Quando finalmente é tomada, os rebeldes incendeiam-na e se suicidam em massa para não caírem em mãos romanas.

Moedas de Vespasiano: IVDEA CAPTA - Judeia conquistadaVespasiano manda cunhar moedas sobre as quais estão um soldado romano, uma mulher de luto e uma palmeira simbolizando Israel. A inscrição dizia: IVDEA CAPTA ou IVDAEA CAPTA, ou seja, Judeia conquistada [são várias moedas e há variações na cunhagem]. Em Roma, o arco do triunfo de Tito, de pé ainda hoje, celebra a vitória romana. A Judeia é separada da Síria e torna-se uma província imperial, dirigida por um governador que mora em Cesareia.

Quando reina Adriano (117-138 d.C.), há ainda nova revolta judaica. É que o Imperador, em giro pelo Oriente, decide reconstruir Jerusalém com o nome de Aelia Capitolina e manda fazer um templo dedicado a Júpiter no mesmo local onde existira o Templo de Salomão.

Simeão Bar-Kosibah é o chefe desta nova revolta, começada em 131 d.C. Ele é chamado também de Bar-Kokhba (filho da estrela), numa interpretação messiânica de Nm 24,17, feita por Rabi Aqiba.

Os rebeldes ocupam Jerusalém e algumas fortalezas espalhadas pelo território judaico. Depois de muita luta, um enviado especial de Adriano, Júlio Severo, consegue dominar a revolta, vendendo, em seguida, os rebeldes como escravos. É o ano 135 d.C.

Jerusalém torna-se, então, Colonia Aelia Capitolina e o templo a Júpiter é levantado no local do antigo Templo dos judeus, além dos outros templos construídos na cidade.

Aos judeus Jerusalém foi proibida, sob pena de morte. A Judeia torna-se parte da província Síria-Palestina.

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[9] . “O território de Arquelau foi assim reduzido a província e Copônio, um romano da ordem dos cavaleiros, foi enviado por Augusto como procurador (epítropos), com plena autoridade”, diz JOSEFO, F. Bellum Iudaicum, 2, 117.

[10] . A inscrição foi encontrada em 1961 no teatro romano de Cesareia Marítima por uma expedição arqueológica italiana dirigida por Antonio Frova. Está no Museu de Israel, em Jerusalém. Diz: TIBERIEVM PON]TIVS PILATVS PRAEF]ECTUS IVDA[EA]E.

[11] . Cf. SCHÜRER, E. Storia del Popolo Giudaico al Tempo de Gesù Cristo I,  p. 441-444.

[12] . Cf. SPEIDEL, K. A. O julgamento de Pilatos: para você entender a Paixão de Jesus. São Paulo: Paulus, 1979, p. 91-92. Sobre Pilatos, leia CARTER, W. Pontius Pilate: Roman Governor, The Bible and Interpretation, September, 2004; CARTER, W. Pontius Pilate: Portraits of a Roman Governor. Collegeville, MN: Liturgical Press, 2003; CARTER, W. O evangelho de São Mateus: comentário sociopolítico e religioso a partir das margens. São Paulo: Paulus, 2003.

[13] . JOSEFO, F. Bellum Iudaicum, 2, 169-174.

[14]. ROHRBAUGH, R. L. Introduction. Em ROHRBAUGH, R. L. (ed.) The Social Sciences and New Testament Interpretation. Grand Rapids: Baker Academic, 2003, p. 4-5.

[15]. Idem, ibidem, p. 5.

[16]. Cf. OAKMAN, D. E. The Countryside in Luke-Acts. Em NEYREY, J. H. (ed.) The Social World of Luke-Acts: Models of Interpretation. Grand Rapids: Baker Academic, 1999, p. 168; OAKMAN, D. E. Jesus, Debt, and the Lord’s Prayer: First-Century Debt and Jesus’ Intentions. Eugene, OR: Cascade Books, 2014;  HANSON, K. C.; OAKMAN, D. E. Palestine in the Time of Jesus: Social Structures and Social Conflicts. Minneapolis: Fortress Press, 2002. Confira mais aqui.

[17]. Cf. GRABBE, L. L. Judaism from Cyrus to Hadrian. Volume II: The Roman Period, p. 441-442; GRABBE, L. L. A History of the Jews and Judaism in the Second Temple Period, Volume 4: The Jews under the Roman Shadow (4 BCE-150 CE). London: ‎Bloomsbury, 2021.

[18]. JOSEFO, F. Bellum Iudaicum, 2, 408-409.

[19]. A data exata da destruição do Templo é controvertida. A tradição rabínica diz que foi no dia 9 do mês de Ab (29 de agosto de 70), enquanto Flávio Josefo diz que foi no dia 10 de Ab. Cf. SCHÜRER, E. Storia del Popolo Giudaico I, p. 613-614, nota 115; GRABBE, L. L. Judaism from Cyrus to Hadrian II, p. 460; JOSEFO, F. Bellum Iudaicum, 6, 250.


História de Israel 23

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7.5. O governo dos Ptolomeus

P. Lévêque[27] explica que sob os Ptolomeus a terra é do rei, mas não totalmente. Parte dela vai para a coletividade: são as terras das cidades (póleis) e dos templos. Enquanto outra parte fica com particulares: são as terras dos veteranos, a cleruquia, e as terras doadas pelo rei aos altos funcionários do governo de Alexandria, as chamadas dôreaí (= doações).

O nome “cleruquia” vem da forma como a terra é entregue aos veteranos: por cléros, isto é, por “sorteio”. É importante lembrar que, no Egito, o soldado que recebe um pedaço de terra deve ficar em disponibilidade, pois pode ser convocado pelo rei. Em geral, eles arrendam a sua terra, o seu cléros a um camponês egípcio, que assim sustenta o soldado com uma parte de seu trabalho. O tamanho de uma cleruquia pode variar de cerca de 6 a 25 hectares, chegando em alguns casos a 1.000 hectares de terra. Depende da patente do militar que a recebe[28].

Quanto às dôreaí, é bem conhecido, através dos arquivos de Zenão, o caso da dôréa de Apolônio, o poderoso ministro das finanças de Ptolomeu II Filadelfo.

Situada na margem da depressão do Fayum, um dos 5 oásis do Egito, onde as inundações do Nilo não chegam, a dôréa tem 2.700 hectares alimentados por um sistema de irrigação. É ligada ao Nilo através de um canal que alimenta um lago de 150 km2. As terras de Apolônio ficam na sua margem nordeste.

Na dôréa são plantados trigo, sorgo, cevada, sésamo, rícino, papoula, linho, açafrão… “Apolônio cria uma vasta vinha (existe um recibo de 65.000 estacas e um tratado de viticultura copiado pelo intendente Zenão), planta árvores frutíferas e coníferas ‘porque são úteis para o rei’, cria enormes rebanhos [os documentos registram rebanhos de ovelhas de 6.381 cabeças], estabelece fábricas (tecelagens; manufatura de tapetes de Mileto, com face dupla ou bordados a púrpura; curtumes; olarias). Para os transportes possui caravanas de burros e uma verdadeira flotilha. Uma parte da dôréa está dividida em quintas, arrendadas a gregos ou a egípcios, outra é cultivada diretamente graças a operários agrícolas que trabalham sob a direção de um capataz, outra ainda é concedida a clerucos”, explica P. Lévêque[29].

Além destes empreendimentos agrícolas, há também a propriedade privada. Neste caso, ou o rei vende terras ou concede arrendamentos enfitêuticos[30].

Como é que os gregos exploram a terra?

Esta pergunta é importante, porque o essencial da riqueza dos Ptolomeus, no Egito, vem da terra. Além do que, é preciso alimentar os gregos, que não produzem, porque são administradores, soldados ou comerciantes.

Por outro lado, o Egito vivera até então fora da economia monetária, que é introduzida pelos Ptolomeus, pois os reis precisam de dinheiro para pagar à burocracia. O Egito vivera voltado para si mesmo; agora exporta e importa, especialmente para sustentar os gregos.

Para conseguir acumular riquezas é necessário que as exportações sejam superiores às importações. Estas exportações são basicamente de produtos agrícolas, vendidos de modo direto por Alexandria, como o papiro e o linho. De qualquer forma, o produto vem do solo e vem do Egito, não de Alexandria.

Daí que se trata “de uma necessidade para o soberano o organizar a produção agrícola; fazer produzir ao máximo a terra do Egito é o único meio de que dispõe para enriquecer, isto é, para poder regular as importações e pagar os soldos e o tratamento àqueles que o servem”[31].

Os reis lágidas vão pois se basear no milenar sistema faraônico de exploração da terra, introduzindo, ainda, alguns aperfeiçoamentos.

Comparando os Lágidas com os Selêucidas, vemos que estes governam um reino composto de múltiplos Estados – na Síria, Mesopotâmia, Pérsia etc – e, por isso, são obrigados a manter uma administração descentralizada; os Ptolomeus, ao contrário, restauram o conhecido sistema centralizador dos grandes faraós, sistema que tinha sido desmantelado sob os últimos reis persas.

Tal obra se deve principalmente aos dois primeiros Ptolomeus, o Soter e o Filadelfo. Ao sistema faraônico, somam, porém as teorias gregas sobre o Estado. De tal modo que o historiador Hecateu de Abdera, partidário de Ptolomeu I Soter, pode sustentar que o governo egípcio está realizando o ideal filosófico do Estado[32].

Mas, afinal, qual é o sistema administrativo adotado pelos Ptolomeus?

O ponto de partida é o seguinte: como o rei é o conquistador, pelo “direito de lança” toda a terra do país é propriedade pessoal do rei, é sua oikos, sua “casa”.

Ao lado do rei há um administrador ou tesoureiro, que é o dioikêtês (= dioiceta): depois do rei ele é o homem mais importante do governo, pois é ele que se encarrega de todo o setor econômico e administrativo do Estado. Um pouco acima já falei de Apolônio, que é o dioiceta de Ptolomeu II Filadelfo durante muitos anos.

O Egito é dividido em trinta distritos ou nomos. À frente de cada distrito Ptolomeu I Soter coloca um stratêgós (= estratego, general), um militar que representa diretamente o poder real e é o encarregado de manter a ordem. Ao lado do estratego há um oikonómos (= ecônomo, administrador) que é o encarregado das finanças e do comércio de cada distrito. O ecônomo responde por seus atos ao dioiceta e não ao estratego, o que produz um certo equilíbrio de poderes civis e militares nos distritos.

Os distritos podem ser subdivididos, e cada subdivisão é dirigida por um nomarca, funcionário civil de médio escalão que supervisiona a produção agrícola. Cada nomarca é assessorado por um escrivão real, responsável pela escrita pública do nomo, o basilicogrammateus.

A unidade menor é a aldeia (kômê), onde vivem os nativos egípcios e os funcionários da região. A aldeia é administrada por um comarca, assistido por um escrivão, o comogrammateus. E para capturar os contraventores há uma polícia constituída pelos filacitas e comandada por um arquifilacita.

Existe ainda toda uma hierarquia de funcionários burocráticos gregos e nativos em cada distrito, como o controlador das contas reais, o banqueiro real, o engenheiro chefe, responsável pela parte técnica da irrigação, os geômetras que elaboram os planos etc.

Cabe lembrar que a administração da água – o fator mais importante desta economia rural egípcia – é de responsabilidade direta do dioiceta. Ele é quem organiza a manutenção dos canais de irrigação e dos diques, estabelece a data de abertura das comportas a partir das características da cheia do Nilo e determina a quantidade de terra a ser semeada[33].

Como a maior parte da terra é propriedade real, o trabalho é feito por trabalhadores livres, os camponeses reais, supervisionados por toda esta burocracia que acabamos de ver.

Também as terras cedidas para colônias militares de veteranos, as cleruquias, ou presenteadas a altos funcionários, as dôreaí, pertencem ao rei. Como são de sua propriedade, podem, a qualquer momento, ser por ele requisitadas. Igualmente sob controle real ficam as terras dos templos.

O sistema de taxação é sofisticado e rigoroso. E os tributos cobrados nas terras reais são os mais pesados. Além dos vários tributos, o Estado arrecada riqueza também através do monopólio das mercadorias mais importantes.

Obviamente este sistema eficiente de enriquecimento do Estado tem o seu reverso: as camadas mais baixas da população egípcia são duramente exploradas.

Segundo C. Préaux[34] , o salário diário de um trabalhador agrícola corresponde ao preço de 6 a 10 kg de trigo. Compare-se: o salário-hora de um trabalhador agrícola na França em 1978 [data em que foi escrito o livro de C. Préaux] equivale a 10,5 kg de trigo. E nos Estados Unidos chega a 35 kg de trigo. No Egito dos Ptolomeus o salário de uma hora de trabalho compra apenas de 600 gramas a 1 kg de trigo.

E o camponês que trabalha nas terras reais está em pior situação do que o assalariado. O trabalho escravo custa maiores investimentos do que o do camponês livre, e por isso não tem muita difusão. No Egito, entre os nativos, só os templos são ricos.

A economia egípcia funciona assim: de um lado, há a acumulação de riquezas por parte dos gregos – que estão concentrados em Alexandria – e dos templos, que recebem muitas doações e favores, especialmente dos governantes, em vista da legitimação sagrada de suas atitudes; de outro lado, há a manutenção da pobreza de imensas massas humanas.

Diz P. Lévêque: “Reis, burgueses, funcionários, sacerdotes, todos vivem do duro labor dos humildes. A clivagem da sociedade em duas classes antitéticas, ricos e pobres, e a exploração de uns pelos outros, que tinha surgido no século IV na Grécia, não deixa de se acentuar no mundo da conquista”[35].

A situação dos camponeses egípcios é tão ruim que eles são obrigados a fazer um juramento – conservado em papiro – que diz o seguinte:

“Até que pague a minha renda, continuo à vista todos os dias e entregue aos trabalhos agrícolas, sem me refugiar no altar sagrado de qualquer templo, sem apelar a qualquer proteção, sem inventar qualquer meio para escapar”.

Oprimidos pelo sistema, os camponeses preferem fugir. Ou para o deserto – mas aí a sobrevivência é muito difícil – ou para Alexandria, onde se escondem no meio da multidão e encontram um modo para sobreviver. É a chamada anacorese. Ou é possível refugiar-se em um santuário, junto ao altar, lugar sagrado de asilo, de onde pode-se negociar com os administradores das terras condições melhores de salário[36].

O contraste entre a vida dos gregos e a dos egípcios é flagrante. Os egípcios permanecem presos a técnicas antigas, tanto na agricultura quanto no artesanato, enquanto os gregos vivem a vida urbana, as finanças, a movimentação – também econômica – da guerra. Os egípcios usam técnicas de conservação e segurança; os gregos usam técnicas de expansão e de risco.

 

7.6. A administração ptolomaica da Palestina

Este sistema administrativo ptolomaico é também implantado na Palestina, durante os 103 anos de domínio de Alexandria sobre a região. Mas, com algumas modificações, pois a estrutura social da região é diferente da egípcia e a complexidade política é maior.

Os Ptolomeus implantam um sistema de arrendamento, a famílias ricas da terra, do direito de cobrar os impostos locais, repassados, por elas, aos senhores estrangeiros. O centro administrativo parece ser Acco, que tem seu nome mudado para Ptolemaida.

Politicamente a região da Celessíria é composta das seguintes etnias:

. cidades fenícias ao longo da costa, de Ortozia a Gaza
. o distrito do Templo de Jerusalém, com seu povo judeu
. os povos samaritano e idumeu
. grupos descendentes de cananeus e sírios
. várias cidades no interior, incluindo as colônias militares macedônias
. as tribos dos nabateus e dos árabes, no sul e na Transjordânia.

O modo de vida grego se implanta mais rapidamente nas cidades fenícias, mas também as póleis mais significativas do interior, tanto na Judeia quanto na Idumeia, na Samaria como na Galileia, são inexoravelmente helenizadas.

Não há cidades livres, no sentido da Grécia clássica, dentro do reino ptolomaico. Mas há cidades que se aproximam do modelo da pólis grega, com seus magistrados e seu território. Assim são as mais importantes cidades fenícias e palestinas, como Tiro, Sídon, Acco-Ptolemaida, Gaza, Ascalon, Jope e Dor. Ou Marisa, na Idumeia[37].

Os judeus que habitam na Galileia, na Idumeia e na Transjordânia não têm qualquer estatuto especial, mas o distrito de Judá é considerado como “Estado do Templo”, território sagrado, onde valem as leis tradicionais do povo judeu e onde o sumo sacerdote é o chefe principal.

Acredita-se, entretanto, que já teria havido, no tempo dos Ptolomeus, um oficial especial que se encarrega, ao lado do sumo sacerdote, da administração das finanças[38].

Outra instituição que se desenvolve provavelmente durante o domínio ptolomaico é a gerousia (= senado), uma assembleia aristocrática composta pelos chefes das famílias mais influentes, pelos sacerdotes e pelos escribas do Templo. Será o conhecido Sinédrio da época de Jesus. Uma de suas funções é a de limitar o poder do sumo sacerdote.

De modo geral, convém observar que o desenvolvimento econômico da região da Celessíria faz parte de uma estratégia política bem definida por parte dos Ptolomeus. É a maneira mais eficaz de impedir o avanço de seus rivais Selêucidas sobre a região. E tal política se implanta principalmente através da aliança grega com os aristocratas locais, dos quais já falei a propósito da crise agrária da época de Neemias.

É bem ilustrativo da política ptolomaica para a região da Celessíria um decreto de Ptolomeu II Filadelfo, provavelmente de 261/260 a.C.:

“Ordem do rei. Os habitantes da Síria e da Fenícia, que compraram um nativo livre (sôma laikòn eleúteron) ou dele se apropriaram com violência, ou o adquiriram de um ou outro modo, devem declará-lo e apresentá-lo ao ecônomo em qualquer hiparquia dentro de vinte dias após a publicação deste decreto”.

Mais adiante, após declarar que podem ser conservadas as pessoas que já eram escravas antes da compra, valendo o mesmo para as pessoas livres vendidas em leilões reais, continua o decreto:

“E no futuro a ninguém será permitido, sob qualquer pretexto, vender ou penhorar nativos livres, exceto aqueles que o governador das rendas do Estado sírio ou fenício entregou ao processo de execução (prosbolé = arremate de propriedade a terceiros), também daqueles sobre os quais já foi pronunciada a pena de execução, como se encontra na lei do arrendamento”[39].

Este decreto, aparentemente filantrópico, na verdade estabelece um monopólio real na venda de homens livres. É uma medida econômica, mas também política, porque a caça ao homem livre cria uma desordem perigosa na região, provocando a indignação e a revolta das populações locais.

H. G. Kippenberg observa a propósito: “Pode-se duvidar de que este decreto tenha realmente surtido efeito na Palestina, onde naquela época grassava a escravidão. Ele é digno de nota porque legaliza a escravidão como consequência da inadimplência fiscal”[40].

Muito próximo deste decreto é outro conservado na Carta de Aristeas a Filócrates, também emitido por Ptolomeu II Filadelfo, só que, desta vez, a respeito dos judeus:

“Ordem do rei. Todos aqueles que tomaram parte na expedição de nosso pai nas regiões da Síria e da Fenícia e, invadindo o território dos judeus tornaram-se senhores de indivíduos judeus, quer os tenham trazido para a cidade [de Alexandria] e para o país [do Egito], quer os tenham vendido a outros – igualmente os que são da mesma raça e que os tenham precedido aqui ou que tenham sido deportados depois deles – que os possuidores os deixem livres e recebam imediatamente em compensação 20 dracmas por cada pessoa, os militares no pagamento de seu soldo, os outros no banco real”[41].

Também os arquivos de Zenão são importantes para a compreensão da administração ptolomaica da Palestina[42].

Trata-se de uma coleção de cerca de 2.000 papiros, encontrados após 1910, perto da antiga Filadélfia, localizada nas vizinhanças do oásis de Fayum,Papiro de Zenão: P.Cair.Zen. 59002 - Carta de Apolônio para Zenão (ca. 24.11.260 a.C.) onde o dioiceta de Ptolomeu II Filadelfo, o poderoso Apolônio, mantém sua dôréa. Descobertos por escavadores clandestinos, os papiros de Zenão são dispersos pelo mundo afora durante a 1ª Guerra Mundial. Estão em Londres, no Cairo, em New York, na Alemanha, na Itália…

Os papiros cobrem um período de 32 anos, entre 261 e 229 a.C., e trazem os arquivos de Zenão, originário de Caunos, cidade da Cária controlada por Ptolomeu II. Zenão vai para o Egito, onde entra para o serviço de Apolônio, no qual permanece 13 anos, de 261 a 248 a.C. A partir deste ano, Zenão deixa Apolônio – do qual não temos mais notícias após 245 a.C. – e se dedica a seus negócios particulares em Filadélfia. O seu último documento datado é de 14 de fevereiro de 229 a.C. A dôréa de Apolônio é liquidada em 243 a.C.

Acredita-se que teria sido para proteger-se contra possíveis problemas jurídicos e políticos futuros a respeito de suas posses que Zenão meticulosamente arquiva os papiros referentes aos negócios de Apolônio sob sua responsabilidade e os papiros relativos a seus próprios negócios.

Apolônio, ao mesmo tempo que é um poderoso ministro de Estado, encarregado das finanças e da fiscalização de todo o reino, é também um grande proprietário e negociante. Zenão é um de seus homens de confiança – administra, por exemplo, a sua dôréa durante nove anos – e cuida de seus negócios particulares, não sendo, portanto, um funcionário do governo. Mas Apolônio parece não separar bem estas duas esferas de negócios, a pública e a privada, e Zenão está também, por isso, ligado às questões públicas.

Zenão vai para a Palestina, em viagem de negócios para seu patrão, no final de 260 a.C. Fica na região até o começo de 258 a.C., isto é, por um período de 13 a 14 meses. Estamos em plena segunda guerra síria (260-253 a.C.), quando Ptolomeu II enfrenta-se com o Selêucida Antíoco II. Como o dioiceta Apolônio é também responsável pelos suprimentos do exército ptolomaico, a missão de Zenão, que atinge as fronteiras do reino, não é apenas privada.

O seu roteiro na região não é muito fácil de ser reconstituído, mas é possível que ele tenha desembarcado em Gaza e da lá ido a Marisa, na Idumeia. Nesta cidade ele se vê às voltas com a fuga de três escravos que comprara na Idumeia.

Interessante é também sua visita aos Tobíadas, na Transjordânia. Para lá chegar, ele passa por Jerusalém e Jericó, segundo um papiro da coleção. Com os Tobíadas, Zenão realiza negócios para Apolônio e para o rei Ptolomeu II, como a compra de uma menina escrava, registrada no seguinte contrato:

“No ano vinte e sete do reinado de Ptolomeu, filho de Ptolomeu, e de seu filho Ptolomeu, sendo epônimos o sacerdote de Alexandre e dos deuses irmãos e a canéfora de Arsinoé Filadelfo que estão em função em Alexandria, no mês de Xandikos, na birta de Auranítide, Nicanor, filho de Xanocles, cnidiano, do séquito de Tobias, vendeu a Zenão, filho de Agreofon, cauniano, do séquito de Apolônio o dioiceta, uma escrava babilônia chamada Sfragis, de sete anos de idade, por cinquenta dracmas. Foi fiador […], filho de Ananias, o persa, cleruco de Tobias. Foram testemunhas […], juiz, Polemon, filho de Straton, macedônio, todos os dois clerucos do corpo de cavaleiros de Tobias, Timopolis, filho de Botes, milésio, Heráclito, filho de Filipe, ateniense, Zenão, filho de Timarcos, colofoniense, Demóstratos, filho de Dionísio, aspendiano, todos os quatro do séquito de Apolônio o dioiceta”[43].

Zenão fiscaliza também a hiparquia da região norte da Celessíria. Uma hiparquia é um distrito territorial governado por um hiparco. Este distrito, assim como os nomos egípcios, divide-se em aldeias (kômê) chefiadas por um comarca.

C. Orrieux observa a propósito da visita de Zenão à fronteira com os Selêucidas: “Pode-se imaginá-lo como um enviado especial de Apolônio, fazendo o leva-e-traz entre Alexandria e a Síria-Fenícia a fim de informar seu patrão diretamente sobre os problemas financeiros colocados pela proximidade das operações militares. Sem ser funcionário ele tem a função de conduzir delicadas negociações oficiosas”[44].

Zenão visita igualmente a Galileia e fiscaliza propriedades de Apolônio nesta região. Apolônio é o proprietário da aldeia de Beth-Anath da Galileia. O seu administrador consegue aumentar extraordinariamente a cultura da vinha, mas os camponeses estão em desacordo com ele quanto à quantidade de trigo, uva, vinho e figo que lhe devem fornecer, como documenta um dos papiros de Zenão[45].

No ano seguinte, entretanto, o administrador consegue sucesso, como testemunha a seguinte carta enviada a Apolônio:

“Glaukias a Apolônio, saudações (…) Ao chegar a Baitanata, eu tomei comigo Melas e nós examinamos as novas plantações e todos os outros empreendimentos. Considero satisfatório a situação dos trabalhos. Ele me disse que a vinha tem 80 mil pés. Ele construiu uma cisterna e uma casa adequada. Ele me fez provar o vinho e eu não pude adivinhar se ele vem de Quios ou da propriedade. Tu podes acreditar que um acaso feliz te favorece de todas as maneiras. Passe bem! Ano 23, Xandikos 7”[46].

Estas notícias sobre a viagem de Zenão estão em cerca de 40 daqueles quase 2.000 papiros do arquivo recuperado próximo a Fayum. O que resulta da leitura destes papiros é a impressão de intensa atividade política e econômica dos Ptolomeus na região da Palestina. Estes administram os territórios conquistados “com a mesma desenvoltura com que um agricultor macedônio administra suas próprias terras”[47].

Outro dado interessante para se conhecer a administração ptolomaica da Palestina é a história de José, o Tobíada e de seu filho Hircano, transmitida por Flávio Josefo[48].

Os Tobíadas vivem numa espécie de feudo na Transjordânia, ao sul do Galaad. O centro do território é a birta (= fortaleza) de Amon, identificada pelos arqueólogos com o `Arak el Emir atual.

Tobias, descendente do Tobias da época de Neemias (Ne 13,4), dirige uma cleruquia lágida na Transjordânia. Quando Zenão visita a Palestina em 259 a.C. ele comanda o clã.

Diz A. Paul: “Comandante de uma klerouchia militar (cujo centro era a birta ou `fortaleza’ de família, construída inicialmente para resistir às invasões dos beduínos do deserto), Tobias era o chefe de uma importante tribo local, tendo ainda as funções de um prefeito do rei do Egito, a serviço do qual punha seus soldados, suas relações e suas influências”[49].

Duas cartas de Tobias, pertencentes aos papiros de Zenão, ilustram suas relações com os Ptolomeus. A primeira é dirigida a Ptolomeu II, a segunda a Apolônio.

“Ao rei Ptolomeu, Tobias deseja bom dia! Eu te enviei dois cavalos, seis cães, um meio-onagro, cruzamento de jumenta, dois jumentos árabes brancos de tração, dois filhotes de meio-onagro e um filhote de onagro. Felicidades! Ano 29, Xandikos 10 [= 13 de maio de 257]”.

“Tobias a Apolônio, saudações! Se tu vais bem e se teus negócios e o restante estão como tu desejas, graças aos deuses! Eu estou bem, lembrando-me de ti sem cessar, como é o certo. Eu te enviei Aineas para te oferecer um eunuco e quatro rapazes, escravos […] de excelente estirpe. Eu reproduzo, a seguir, para teu uso, as características destes rapazes. Passe bem! Ano 29, Xandikos 10 [13 de maio de 257]”. A seguir vem as características dos escravos…[50].

José, o filho de Tobias, sobrinho do sumo sacerdote Onias II por parte de mãe, nasce na Judeia em uma aldeia da família. Quando acontece a terceira guerra síria  ( 246-241 a.C.), Onias II, partidário dos Selêucidas, se recusa a pagar os impostos devidos aos Ptolomeus, que é de 20 talentos. O rei Lágida, Ptolomeu III Evergetes, ameaça então reduzir a Judeia a uma colônia militar.

José, pró-Lágida, após ser designado pelo povo como chefe (prostátes), vai representar os interesses da Judeia diante do rei Ptolomeu em 242 a.C., obtendo muito mais até: consegue o direito de recolher os impostos de toda a Celessíria[51].

Com o auxílio de 2 mil soldados ele exige duramente os impostos das cidades e dos campos, enriquecendo-se com isso consideravelmente.

Com créditos samaritanos ele financia antecipadamente o arrendamento e “em lugar de 8.000 talentos para a província sírio-fenícia, José ofereceu o dobro. Dotado de plenos poderes estatais para aplicar a força, José recolheu o tributo das cidades e mandou executar os parentes dos magistrados que relutaram. As cidades provavelmente só puderam pagar as novas cargas fiscais impondo aos camponeses doação parcial em mantimentos, baseando-se no fato de que a terra era propriedade do dominador”[52].

Flávio Josefo diz que ele leva os judeus à prosperidade. Como? Diminui o número de bocas para comer, através da escravidão – que ainda rende mais excedentes – e estimula culturas mais rentáveis, por exemplo, olivais em vez de cereais.

Ao morrer em 226 a.C., seu filho Hircano o sucede no cargo, até o advento dos Selêucidas na região, tendo se suicidado quanto Antíoco IV assume o governo[53].

Vejamos um trecho do relato de Flávio Josefo sobre José, o Tobíada, através do qual poderemos apreciar os seus métodos:

“José tomou, depois, dois mil homens das tropas do rei, a fim de poder obrigar os que se recusavam a pagar os tributos e, depois de ter dado a Alexandria quinhentos talentos, foi para a Síria. Os habitantes de Ascalon foram os primeiros a desprezar suas ordens. Não se contentaram em não querer pagar, mas o ultrajaram com palavras; mas ele soube castigá-los. Mandou prender imediatamente vinte dos principais, que mandou matar; escreveu ao rei para lhe dar contas do que tinha feito e mandou-lhe mil talentos do confisco de seus bens. O príncipe ficou tão satisfeito com seu proceder, que o elogiou magnificamente e permitiu que, dali por diante, usasse deles como quisesse. O castigo dos ascalonitas encheu de temor as outras cidades da Síria, que lhe abriram suas portas e pagaram seu tributo sem dificuldade alguma”[54].

 

Cronologia dos Ptolomeus

NomeData
Ptolomeu I Soter323-282
Ptolomeu II Filadelfo282-247
Ptolomeu III Evergetes247-221
Ptolomeu IV Filopator221-205
Ptolomeu V Epífanes205-181
Ptolomeu VI Filometor181-145
Ptolomeu VII Néos Filopator145-144
Ptolomeu VIII Evergetes (Físcon)144-116
Ptolomeu IX Soter (Latiro)116-107
Cleópatra III107-101
Ptolomeu X Alexandre101-88
Ptolomeu IX Soter (Latiro)88-80
Ptolomeu XI Alexandre II80
Ptolomeu XII Aulete80-58; 55-51
Cleópatra VII Filopator51-30

 

Bibliografia

AUTORES CLÁSSICOS: recomendo The Perseus Collections, The Perseus CatalogLacusCurtius e Loeb Classical Library.

CANFORA, L. A biblioteca desaparecida: Histórias da biblioteca de Alexandria. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

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DIEZ MACHO, A.; PIÑERO, A. (eds.) Apócrifos del Antiguo Testamento I-VI. Madrid: Cristiandad, 1982-2009.

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GRABBE, L. L.; LIPSCHITS, O. (eds.) Judah Between East and West: The Transition from Persian to Greek Rule (ca. 400-200 BCE). London: Bloomsbury T & T Clark, 2011.

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ORRIEUX, C. Les papyrus de Zenon. L’orizon d’un grec en Egypte an IIIe siècle avant J. C. Paris: Macula, 1988.

PRÉAUX, C. Le Monde hellénistique. La Gréce et l’Orient (323-146 av. J.-C.) I-II. 4. ed. Paris: Presses Universitaires de France, 2002- 2003.

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>> Bibliografia atualizada em 17.11.2021

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[27]. Cf. LÉVÊQUE, P. O mundo helenístico, p. 70-98.

[28]. Cf. PRÉAUX, C. Le monde hellénistique I, p. 311-312.

[29]. LÉVÊQUE, P. o. c., p. 79-80. Cf. também ORRIEUX, C. Les papyrus de Zenon. L’orizon d’un grec en Egypte an IIIe siècle avant J. C. Paris: Macula, 1988, p. 77-97.

[30]. A enfiteuse, do grego emphyteusis, pelo latim emphyteuse é o “direito real alienável transmissível aos herdeiros, e que confere a alguém o pleno gozo do imóvel mediante a obrigação de não deteriorá-lo e de pagar um foro anual, em numerário ou em frutos”, define DE HOLANDA FERREIRA, A. B., Dicionário Aurélio Eletrônico – Século XXI. Versão 3.0, Rio de Janeiro: Lexikon Informática, 1999, verbete enfiteuse.

[31]. LÉVÊQUE, P.  o. c., p. 75.

[32]. Cf., para este assunto, HENGEL, M. Judaism and Hellenism: Studies in their Encounter in Palestine during the Early Hellenist Period London: SCM Press, 2012, p. 18-55. Hecateu é natural de Abdera, cidade grega da costa da Trácia. Nasce no final do século IV a.C. e visita o Egito na época de Ptolomeu I Soter. Hecateu estuda com o cético Pírron de Élis e é etnógrafo, filósofo, crítico e gramático.

[33]. Cf. ORRIEUX, C. Les papyrus de Zenon, p. 25-27.

[34]. Cf. PRÉAUX, C. Le monde hellénistique II, p. 484-488.

[35]. LÉVÊQUE, P. O mundo helenístico, p. 87.

[36]. Cf. ORRIEUX, C. Les papyrus de Zenon, p. 118-122.

[37]. Cf. ABEL, F.-M. Histoire de la Palestine I, p. 51-60.

[38]. Cf. HENGEL, M. Judaism and Hellenism I, p. 24-29.

[39]. Cf. KIPPENBERG, H. G. Religião e formação de classes na antiga Judeia, p. 73-74; SAULNIER, C., Histoire d’Israel III, p. 364.

[40]. KIPPENBERG, H. G. o. c., p. 74.

[41]. CARTA DE ARISTEAS A FILÓCRATES, 22. Em DIEZ MACHO, A. Apócrifos del Antiguo Testamento II, p. 22-23. Cf. ABEL, F.-M. o. c., p. 62-63. PRÉAUX, C, Le monde hellénistique II, p. 568 acredita na autenticidade deste documento, pelo menos nos seus termos mais gerais.

[42]. Cf. ORRIEUX, C. Les papyrus de Zenon; ABEL, F.-M. o. c., p. 65-71; SAULNIER, C. Histoire d’Israel III, p. 450-451. Veja imagens de vários papiros de Zenão (PCZ ou P.Cair.Zen.) aqui.

[43]. Cf. ORRIEUX, C. Les papyrus de Zenon, p. 42-43. O contrato é redigido em abril/maio de 259 a.C. O documento segue as regras mais estritas para este tipo de escrito: ano de reinado, corregência, sacerdotes epônimos dos cultos dinásticos, fiador, testemunhas etc.

[44]. ORRIEUX, C., o. c. p. 42.

[45]. Cf. KIPPENBERG, H. G. o. c., p. 74-75.

[46]. Cf. ORRIEUX, C. o. c., p. 47. Esta carta está datada em 9 de maio de 257 a.C.

[47]. HENGEL, M. Ebrei, Greci e Barbari. Aspetti dell’ellenizzazione del giudaismo in epoca precristiana. Brescia: Paideia, 1981, p. 48.

[48]. Cf. JOSEFO, F. Antiquitates Iudaicae, XII, 158-236.

[49]. PAUL, A. O judaísmo tardio, p. 178.

[50]. Cf. ORRIEUX, C., o. c., p. 43-44.

[51]. Com o título de prostátes, “ao qual estava ligado o principal cargo administrativo e financeiro da Judeia, efetuou-se, de fato, uma transferência de poderes do sumo sacerdote pró-selêucida para o Tobíada pró-lágida. Com isso, José se tornou o mais alto funcionário civil de Jerusalém”, diz PAUL, A., o. c., p. 179.

[52]. KIPPENBERG, H. G. Religião e formação de classes na antiga Judeia, p. 76.

[53]. Cf., sobre José e os Tobíadas, SAULNIER, C. Histoire d’Israel III, p. 451-454; PRÉAUX, C. Le monde hellénistique II, p. 571-572.

[54]. JOSEFO, F. Antiquitates Iudaicae XII, 181.