Gn 1-11 e a importância dos mitos

Acabei de ler um post de Christopher Heard em seu biblioblog Higgaion com o título de Teaching the Genesis creation stories. Ali ele relata sua experiência de trabalhar em sala de aula com Gn 1-11 e o que funciona ou não, em termos de compreensão por parte dos alunos, quando se faz uma abordagem literária destes textos.

Mas relata também um incrível caso: um outro professor norte-americano, de outra instituição que não a sua, teria sido recentemente punido por sua escola por explicar que a estória de Adão e Eva tem um sentido simbólico e que não deve ser lida literalmente.

[Bitterman said]: “I told them it was an extremely meaningful story, but you had to see it in a poetic, metaphoric or symbolic sense, that if you took it literally, that you were going to miss a whole lot of meaning there“. Traduzindo de maneira mais ou menos livre: “Eu disse [aos alunos] que esta [Gn 2-3] era uma história extremamente significativa, mas que deve ser vista em um sentido poético, metafórico ou simbólico, pois se for lida literalmente, se perde uma grande parte de seu significado”.

O caso chamou minha atenção, pois leciono Pentateuco, trabalho com estes textos, e acho complicado que alguém ainda possa ser punido por razão tão absurda. Mais absurda ainda se considerarmos os séculos de pesquisa histórico-crítica sobre tão conhecidos textos de Gênesis. E em um país que detém a hegemonia política mundial, que produz uma quantidade enorme de pesquisa exegética e científica, que possui todos os meios possíveis para debater a relação da ciência com a fé… Mas é um país plural. E estas contradições são cada vez maiores, com o crescimento de um criacionismo fundamentalista. Que, por sinal, já chegou aqui, de lá importado.

Pois é! Christopher Heard, que também considera esta situação absurda, por outro lado diz que, mesmo não vivendo esta realidade em sua Universidade, há colegas seus que chegam a evitar a palavra “mito” ao falar destes assuntos: “…even at Pepperdine, I know that my colleagues sometimes choose their words very carefully to avoid certain vocabulary (‘myth’) while communicating the same concepts“.

Leiam o caso. E considerem que estamos no Mês da Bíblia, que tem como tema Gn 1-11, e que nossas abordagens são bastantes enriquecedoras, se considerarmos o material utilizado tanto na academia quanto no meio popular. Apesar de nossos limitados recursos. Retomem a leitura dos posts que escrevi com os títulos de Gn 1-11 na Vida Pastoral e CEBI recomenda para o Mês da Bíblia.

Finalmente, quero lembrar que, ainda em 1995, escrevi um texto curtinho sobre Gn 1-11 para uma revista de divulgação de Ribeirão Preto. E expliquei, com linguagem simples, o que chamei de

Os mitos judaicos e a nossa realidade

Ainda faltavam uns 500 ou 600 anos para o nascimento de Jesus de Nazaré, quando alguns teólogos de Jerusalém recolheram histórias que as pessoas contavam e escreveram vários desses textos que hoje estão na Bíblia Hebraica, no livro do Gênesis, nos capítulos 1 a 11.

Que textos são esses?

São muito conhecidos: a história da serpente que tenta Eva no paraíso, a árvore que produz um fruto proibido, Caim que assassina seu irmão Abel, Noé e sua arca cheia de animais sobrevivendo ao dilúvio, a torre de Babel que confunde as línguas…

Será que isto aconteceu desse jeito mesmo que é contado? Ou serão só lendas, contos ou mitos?

Às vezes a gente acha que só é verdadeira aquela história que reproduz os fatos fielmente, tim-tim por tim-tim, como eles aconteceram. Será? E aqueles fatos que acontecem com todo o mundo e que também podem acontecer em qualquer época e em qualquer lugar? E o sentido que um autor quer dar a um acontecimento não determina o jeito dele contar?

Pois isto é o mito. E o mito fala de uma experiência humana universal. E Gn 1-11 é recheado de mitos, contados por aqueles autores anônimos de Jerusalém há dois mil e quinhentos anos.

O paraíso nunca existiu. Nem mesmo uma serpente falante, um fruto proibido, os irmãos Caim e Abel, um dilúvio universal, uma arca de Noé ou uma torre de Babel. Mas todos eles existem sempre, exatamente porque não estão situados em nenhum tempo e lugar.

O paraíso é uma esperança, uma utopia, não uma saudade de um tempo passado. É uma esperança de harmonia e felicidade que a humanidade deve construir. E pode construir.

A serpente representava, na época dos reis de Israel, um sistema social e político que explorava as pessoas e provocava a sua infelicidade, destruindo o projeto de uma sociedade solidária e harmoniosa.

O fruto proibido é a tentação de possuir um poder absoluto que nos permita dominar os outros e escravizá-los aos nossos interesses.

Tanto Caim quanto Abel continuam hoje a se confrontar em sangrentos conflitos, seja em nossas ruas brasileiras, seja no Oriente Médio, ou em nossas casas.

A fidelidade de Noé, um homem correto, a um projeto de sociedade solidária, o transforma em símbolo de uma humanidade que renasce de enormes catástrofes porque acredita na vida.

Na cidade e torre de Babel as pessoas são confundidas por Iahweh quando queriam construir um poder imperialista onde todos falariam uma mesma língua – na política, na economia, na cultura – e, assim se tornariam absolutos, decretando o fim da liberdade humana.

Como se vê, esses temas tão antigos, contados na linguagem do mito, continuam extremamente atuais dois mil anos depois de Jesus de Nazaré. Devem ser lidos para fazer a gente pensar e tomar uma atitude. Não para pensarmos no que aconteceu antigamente, mas para enxergarmos melhor o está acontecendo hoje e ver o que é possível fazer para melhorar o mundo.

Este texto pode ser lido também na seção de artigos da Ayrton’s Biblical Page. Clique aqui.

2 comentários em “Gn 1-11 e a importância dos mitos”

  1. Alguns fariseus, que se achavam com ele, ouviram isso e lhe disseram: ‘Acaso também nós somos cegos?’ Respondeu-lhes Jesus: ‘Se fôsseis cegos, não teríeis pecado; mas dizeis: “Nós vemos!” Vosso pecado permanece.’ João 9:40-41, Bíblia de Jerusalém.

    Essa passagem do evangelho joanino ao Ver que é Não-Ver espiritual mas o Ver-carnal, que é situar-se no estágio do Pecado, cujo salário é a Morte, tem fulcro no Gênesis, quando este trata do Adão primeiro, que é alegoria ontogenética narrada a partir do Genesis 2:4, vista ao modo dos antigos exploradores e habitantes da consciência profunda. O capítulo primeiro do Gênesis trata da geração do Adão segundo, ou espiritual.

    O Adão primeiro é feito do pó da terra e ao pó deve tornar, para dar lugar ao Adão espiritual. Ao primeiro a escritura narra a proibição de comer da árvore da ciência do bem e do mal, isto é, submeter-se à dualidade, termo-base na “filosofia perene”, referenciada por meio alegórico na Bíblia. Nas escrituras indo-asiáticas que tive oportunidade de relancear não há essa intermediação mítica. (Não só se percebe unidade esotérica na experiência mística da tradição cristã, sufi, budista, vedanta e outros, como até em escritura isso é perceptível.)

    Continuando, a dualidade é própria do Adão primeiro, o submeter-se a comer da árvore do “bem e mal”. Comido o fruto que gera a Morte (“Mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás, porque no dia em que dela comeres terás que morrer” Gen. 2:17), ocorre que “Então abriram-se os olhos dos dois…” Gen. 3:7. Por isso, em João 9:40-41 “Nós vemos! Vosso pecado permanece.”, porque a visão é do Adão primeiro, estabelecido na percepção dual.

    O Adão espiritual é quem rompe com essa dualidade, aquele submetido à “árvore da Vida”, percepção/imersão da consciência na “vida eterna”. Por isso mesmo, no contexto bíblico, é dito que para adentrar o reino celeste (que não é lugar ou tempo seguinte à morte bio-histórica) é preciso romper com a dualidade, referenciada alegoricamente de várias formas nos textos do indevidamente chamado Antigo Testamento, e abundantemente no alcunhado “Novo Testamento” (deste já citei uma vez a alegoria aqui: tornar-se manco.).

    “Assim está escrito: o primeiro homem, Adão, foi feito alma vivente, o último Adão tornou-se espírito que dá a vida. Primeiro foi feito não o que é espiritual, mas o que é psíquico; o que é espiritual vem depois 1 Coríntios 15:45-46. Em Adão primeiro reside a Morte, que se sustenta na dualidade; no Adão segundo, o espírito vivente. O Alcorão também traduz essa passagem consciencial na sura 17, v. 81: “E dize: ‘A verdade chegou; a falsidade desvaneceu-se. A falsidade está destinada a desvanecer-se.’”

    Essa é a mensagem central em todas as grandes tradições místicas do mundo, que são do estágio espiritual paulino. Contudo primeiro vem o bebê, e quando ainda não são adultos, se tiverem contato com as escrituras, só poderão traduzi-las na linguagem e raciocínio do Adão primeiro, revelados em vários graus, desde fanatismo extremado até abertura para a pluralidade, mas ainda com raiz naquilo que é minha coisa, minha religião. Ao afortunado adulto, com transposição da consciência para a mente celestial, que também tem vários graus, experimenta uma plataforma de vivência bastante diversa, e se traduz em várias modificações seja na esfera moral, sensitiva e cognitiva.

    Exemplificando: Ao espiritual, uma outra pessoa não é existência autônoma independente, onde possa exercer a arbitrariedade insuflada no ego. O Outro e Ele são faces de uma mesma Vida, não por mero idealismo, mas assim o sentindo, assim o sabendo, assim se regozijando. Não há mais aquela cisão inconsciente que dá lugar a ressentimento, ódio e outros sofrimentos. Não prospera a cisão do bem e mal como existências atuantes autônomas.

    Sem a disposição com o rompimento com o estágio dual, o estudo da escritura bíblica, muito complexa pelo uso de alegorias, alegorias que se sustentam em arranjo lógico surpreendente, reduz-se em amontoados de teses mortas, e construções ideológicas sustentadas no ego (carne) e sua preservação. Uma criança de até quatro anos, mesmo vendo uma garrafa transparente de água ser derramada numa tigela baixa, dirá que a água derramada tem volume menor do que quando estava na garrafa. Não desenvolveu ainda a consciência para relacionar uma a outra coisa, tem que transcender a um novo estágio. Assim é a escritura, só os que tem ouvido e olhos da transcendência espiritual podem visualizar o sentido e o domínio corretos, não se enredando na ilusão do aparente histórico, o que ocorre com os de consciência carnal/psíquica/natural, com resultados muitas vezes catastróficos, ensejando sustentação de ideologias espúrias, condenação de tal ou qual povo ou religião, opressão a tal ou qual sexualidade etc.

    O homem psíquico (ou homem natural, que é tradução do tipo de consciência) não aceita o que vem do Espírito de Deus. É loucura para ele; não pode compreender, pois isso deve ser julgado espiritualmente. O homem espiritual, ao contrário, julga a respeito de tudo e por ninguém é julgado. Pois quem conheceu o pensamento do Senhor para poder instruí-lo? Nós, porém, temos o pensamento de Cristo (Adão espiritual).” 1 Coríntios 2:14-16

    O Deus que fez o mundo e tudo o que nele existe, o Senhor do céu e da terra, não habita em templos feitos por mãos humanas. Também não é servido por mãos humanas, como se precisasse de alguma coisa, ele que a todos dá vida, respiração e tudo o mais… Pois nele vivemos, nos movemos e existimos… (Cita de Paulo aos atenienses, com omissões, em Atos dos Apóstolos 17:25-26 e 17:28, que atende diretamente o nosso raciocínio usual quanto à necessidade de definição de Deus como objeto posto).

    A Bíblia e Alcorão ainda terão um longo tempo a aguardar para que sua intimidade seja desvelada cientificamente, contando que isso ocorra um dia.

    Até lá é um prazer vir neste espaço virtual para conhecer o mundo do estudo bíblico e seu estágio. Vou me silenciar um pouco, minha tese não está em fórum pertinente, que tem uma linha própria de estudo.

    Flávio T. Santos

  2. Não sei como alguem pode criar um blog, cujo nome é Observatório Bíblico, e esse alguem não crê na bíblia.
    É muita falta do que fazer………

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