Na atual campanha eleitoral, percebe-se, não sem espanto e crescente receio de trágico desfecho, a aliança da mais feroz direita política brasileira com setores ultraconservadores das igrejas, tanto católica como evangélicas.
Ora, as camadas médias da população brasileira vivem, no seu dia-a-dia, contradições enormes e, por isso, tornam-se presas fáceis de invencionices e intrigas propagadas e ampliadas, à exaustão, pela mídia, constituída, no Brasil atual, pelas elites, como partido político.
Os indivíduos destas camadas costumam ser portadores de típicos “desvios” alienantes em sua mundivisão. Tais como perceber o capital sempre transfigurado em valor, os bens de consumo em status, as situações em oportunidades e as pessoas em degraus para a ascensão social.
Tais contradições são sublimadas na fuga do real através do discurso de valoração da existência (a famosa defesa genérica da vida cabe aqui), transformando, através da subjetivização radical da realidade, o ressentimento, que é um sentimento considerado negativo e inaceitável, em indignação moral, vista como atitude positiva e corajosa.
Acrescente-se a isso, vindo de “pastores do povo”, o teologismo, que consiste em considerar a interpretação teológica e/ou religiosa como a única versão verdadeira do real.
Eles esvaziam, com tal atitude, o Político e o Social de seus conteúdos, rejeitando sua autonomia, como se só a leitura teológica e/ou religiosa da realidade fosse a verdadeira. É, na maioria das vezes, um discurso dogmático, ideológico, autoritário e anticientífico.
Pior. Na medida em que as igrejas dão voz e vez ao povo, através da intervenção de uma pretensa consciência crítica hierarquizada e institucionalizada, elas se legitimam em sua prática religiosa pelo processo de identificação do “povo brasileiro” com “povo de Deus”.
Esta atitude é paralela à do populismo político que explora a ideia de unidade nacional para manter o domínio das elites sobre as classes populares. Os dois jogos se completam e se amparam na relação entre o político e o religioso.
Esta atitude soteriológica tem suas regras: cada ato humano, mais ou menos político, pouco importa, é transfigurado pela leitura teológica e/ou religiosa que o insere no plano divino global de salvação do homem.
De certo modo, são as igrejas recriando a sociedade brasileira mediante o filtro teológico e/ou religioso. Neste caso, as tradições religiosas são usadas por líderes eclesiásticos como “chaves sagradas” para entrar na consciência do povo e lhe dar a medida da realidade.
As consequências políticas de tal atitude soteriológica são evidentes: potencializam-se as estruturas eclesiásticas para atingir a estrutura social e “salvar” o povo. Salvando-se o povo, salvam-se as igrejas.
Enfim, neste processo é muito comum situar do lado do profano uma série de conceitos relativos ao mundo e à história, como, por exemplo, a práxis política, em oposição ao sagrado e a seus “valores inegociáveis”.
Este dualismo é capenga, já que assim se opõem como duas grandezas iguais Deus e a Humanidade, revelação e razão, graça e pecado. Ousaria até dizer que a satanização de pessoas e grupos políticos, ora em curso, coloca no mesmo nível Deus e o Diabo. Como duas grandezas iguais…
Quando se insiste nesta visão dualista, a salvação seria o seu conhecimento enunciado num conjunto doutrinal, celebrado em um rito e organizado em uma instituição. Esta visão acabaria opondo Igreja e Mundo, levando a prática dos cristãos ao sectarismo, ao clericalismo e ao apolitismo.
Somando-se a tudo isto uma boa dose de discurso competente, o risco é real. Discurso competente? Falo da manipulação que transforma interesses em realidade, e nesse processo oculta as raízes históricas dos problemas abordados.
Sobre coisas deste tipo já escrevi algumas vezes. Recomendo a leitura de três textos:
. Superando obstáculos nas leituras de Jeremias. Estudos Bíblicos n. 107. Petrópolis: Vozes, 2010, p. 50-62
. Vale a pena ler os profetas hoje? – Artigo online, publicado na Ayrton’s Biblical Page
. No artigo online Ler a Bíblia no Brasil hoje, o item 2.2. A opção pela classe média
Por fim, recomendo também a leitura do artigo de Luís Carlos Lopes, publicado na Carta Maior em 11/10/2010, sob o título Intriga, intrigantes e mentirosos ameaçando a República do Brasil.
Onde se mostra como a manipulação das consciências precisa do medo e da mentira para funcionar. Os intrigantes precisam de uma audiência dócil e pouco informada, capaz de aceitar qualquer bobagem que lhes seja empurrada por alguma autoridade de seu mundo.