“Hoje há menos profetas e piorou a honradez com o real”. Carta de Jon Sobrino a Ellacuría
Jon Sobrino, teólogo, jesuíta, escreve uma “carta” para Ignacio Ellacuría, reitor da Universidade Centro Americana de San Salvador – UCA, assassinado, no dia 16 de novembro de 1989, juntamente com outros cinco companheiros jesuítas e duas mulheres.
O texto foi publicado por Eclesalia, 04-11-2011. A tradução é de Benno Dischinger.
Eis o texto.
Querido Ellacu: É uma ficção escrever-te, porém talvez deste modo nos digamos a nós mesmos coisas que podem ser importantes. E com isso também quisera ambientar um pouco o aniversário de teu martírio. Vou falar-te de três coisas de atualidade, tais como as vejo, as quais têm que ver com o que tu foste e disseste.
1. O “sempre” do povo crucificado. Já não se fala muito de “povos crucificados” como o fizeste tu e Monsenhor Romero, chegando a essa genial formulação, creio que independentemente um do outro e guiados pelo mesmo espírito salvadorenho e cristão. E menos ainda se insiste em que esse povo crucificado é “sempre” o sinal dos tempos como o escreveste no exílio de Madri. A razão para esse silêncio não é que volte a estar em voga o pensamento utópico de Ernst Bloch, filósofo, ou de Teilhard de Chardin, teólogo. Tampouco é que o mundo esteja melhorando, pois continua gravemente enfermo, como disseste em teu último discurso. Creio que a razão é que hoje há menos profetas e que piorou a honradez com o real. Falar do “sempre” não só não é politicamente correto, senão que é loucura impensável. Porém não é preciso dar-lhe voltas. Continuam existindo Haiti e Somália, e entre nós se propagou uma nova epidemia: o homicídio. De 12 a 15 assassinatos diários nos últimos anos. É a enfermidade que produz mais mortes. O “light “avançou muito no modo de pensar e o politicamente correto se apoderou da linguagem: “vulnerabilidade”, “os menos favorecidos”, “países em vias de desenvolvimento”. Nada soa mal.
Por isso, mencionar o “sempre” do povo crucificado parece ser coisa de masoquistas não redimidos. Porém não é assim. No país sempre chove cada ano e sempre há torrentes, destruição e morte. Mas, também são sempre os mesmos que sofrem as consequências, os que vivem em desfiladeiros, em favelas e casas pobres. A pergunta de Gustavo Gutiérrez continua sendo a pergunta fundamental: “onde dormirão os pobres?”. Há povos depredados como o Congo, povos ignorados como Haiti, povos inundados, como os nossos… Continuam sendo o povo crucificado.
E os ricos e poderosos? Sempre sofrem alguns danos, porém quase sempre os superam sem muito custo. E nada digamos das crises financeiras. Investem-se bilhões de dólares ou euros para não se fundir o sistema. O povo crucificado não dá a vida, por suposto, porém os povos ricos sim, e ademais têm a profunda convicção de serem os escolhidos: dão, por suposto, a vida, e estão convencidos de que o bom viver lhes é devido. Se lhes ocorre algo grave elevam a realidade a escândalo metafísico. Porém, se ocorrem coisas muito mais graves na África ou no Bajo Lempa [em El Salvador], não há tal escândalo. Pertence ao existencial histórico de terem nascido pobres. É o “sempre” do pecado.
Porém quero acrescentar, Ellacu, e insistir em que há também outro “sempre”. Há muita gente honrada que trabalha para que “o povo inundado – falamos de El Salvador – não acabe morrendo como “povo deslocado” ou como “povo afogado”, A entrega e a bondade também têm seu “sempre”. É o sempre da graça.
E às vezes surge um Dean Brackley. Quando lhe dizem que muitos rezam por ele, contesta com muita simplicidade: “Rezem pelos que têm câncer e não podem ter a atenção médica que eu tenho. E rezem pelos que nestes dias ficaram sem casa e sem comida”. Retornaremos a Dean.
2. “O que fazer com os bons”. A pergunta pode causar estranheza, porém me foi imposta, devido à agitação que causou a audiência de Madri. Trabalhar para que se julgue os responsáveis últimos de tantos assassinatos neste país, os de vocês e os de duas mulheres inocentes, é coisa muito boa e muito necessária. Pode trazer muitos bens. Pode ser uma grande ajuda, e muito necessária, para que se acabe, ou diminua a impunidade.
Por certo não saiu nos noticiários, porém muito nos alegramos de que os militares argentinos que em 1976 ordenaram o assassinato do bispo Enrique Angelelli, sejam julgados 35 anos depois. É um exemplo, pouco extenso, de que a verdade pode triunfar sobre a mentira e o encobrimento, que têm milhões de dólares e armas sofisticadas a seu serviço: que a justiça pode triunfar sobre a crueldade e a vileza; que a civilização da impunidade, muito afim à civilização da riqueza contra a qual nos advertiste fortemente até o final, se veja um pouco freada. Com o julgamento dos militares argentinos não desaparecem todos os males e o mundo do capital, ainda com alguns avanços e algo de democracia, segue produzindo vítimas impunemente. E conseguiu criar uma civilização do encobrimento, embora sempre haja quem o desmascare de diversas formas: bispos como Casaldáliga, ou “os indignados”… Esperamos que a audiência de Madri tenha êxito e que em El Salvador ocorra o que houve na Argentina, embora, evidentemente, haja forças poderosíssimas que estão contra de que isso ocorra.
Nesta situação, me veio à mente uma pergunta que pode parecer estranha. Dito com simplicidade, parece que sabemos o que fazer “com os maus”, de modo que nosso proceder com eles produza bens, por suposto: instaurar verdade e justiça no país, chegar a oferecer perdão – embora mais difícil que perdoar é deixar-se perdoar. E há gente muito boa que trabalha em favor disso.
Também sabemos, ao menos em princípio, o que fazer com as vítimas: o que Puebla diz que Deus faz com os pobres, “tomar sua defesa e amá-los”. E estas não são, em absoluto, palavras inocentes, pois tomar sua defesa supõe inevitavelmente entrar em graves conflitos com aqueles que os oprimem. Significa entrar “na luta pela justiça”, “a luta crucial de nosso tempo”, como o disse a Congregação Geral XXXII. Não muitos o fazem, porém a idéia é bem clara.
Mas, sabemos o que fazer “com os bons”, com os santos? Certamente, pô-los a produzir, aprender deles, de suas idéias e convicções e seus modos de atuar… E agradecer-lhes. É o que costumamos dizer e procuramos fazer.
Porém nos interrogamos verdadeiramente o que fazer com eles? Topamos nestes dias com a pergunta sobre o que fazer com Dean Brackley. Velamos e acompanhamos seu cadáver. O amor e o agradecimento transbordaram, com lágrimas e gozo, em muitas celebrações, no cemitério.
Porém me permanece o desassossego de saber o que fazer com Dean, com Monsenhor Romero, com pessoas como vocês. Com Jesus de Nazaré. A resposta é simples: ser como eles, segui-los em seu fazer e em seu ser, imitá-los, historizadamente, como tu dizias. Em definitivo, deixar-nos afetar “pelos bons” e os santos em nosso fazer. E mais profundamente ainda em nosso ser.
Entenda-me bem, Ellacu. Bom e necessário é saber reagir ante o que fazem “os maus”, e atuar adequadamente com eles. Bastantes pessoas e instituições o fazem. Porém creio que devemos avançar na forma de reagir como é devido ante “os bons”, tentando ser como eles. Difícil, sim. Porém necessário para humanizar este mundo. E também esta igreja.
3. Dean Brackley. Ellacu, estas palavras terão ressonância para ti. “Com Dean Brackley Deus passou entre nós”. Penso que não haja maior confissão de fé do que afirmar que Deus continua passando por nosso mundo. É a fé que mais me locupleta. E como Deus se faz presente em seres humanos, elas e eles, jovens e velhos, salvadorenhos e norte-americanos, mártires e confessores, como se dizia antes, o mistério se desdobra de muitas formas, convergentes, e assim é um mistério maior. Deus passou com D. Oscar Romero e Deus passou com Dean.
Nos muitos testemunhos desta Carta às Igrejas – Amor e Testemunho o intitulamos – se narra essa passagem de Deus. Escolho apenas um, o da doutora Miny: “Dean, I love you so much… for ever” [Dean, amo-te tanto… para sempre]. É linguagem bela e de eternidade. Linguagem que remete a Mistério. Também Dean, semanas antes de morrer, falou em seu testamento da passagem de Deus, nele, com grande humildade, simplicidade e lucidez. Agora, em outra linguagem, mais conceitual, porém espero que compreensível, quero falar-te de Dean ante Deus e de Dean com Deus.
O primeiro é que Dean morreu empapado de Deus. Assim o vejo, embora nesse mistério só se possa entrar nas pontas dos pés. Em seu último livro conta Dean seus problemas com Deus, suas épocas de agnosticismo, que não foi coisa de pouca monta. Recordou-me algumas palavras tuas de junho de 1969 que citei muitas vezes: “Rahner leva com elegância suas dúvidas de fé”, e pensei que algo semelhante ocorria a ti. Porém ao longo do livro, Dean oferece sua própria fé, profunda e simples, e muito real. E os leitores ficam surpreendidos ao ler o prólogo escrito pela encarregada da editorial para julgar sobre a qualidade do livro. Ela se reconhece agnóstica, sem que o assunto de Deus a preocupe muito. Porém confessa que, lendo o texto, seu interesse profissional se converteu em interesse existencial, pessoal. O texto a levou a Deus, e Dean a batizou um ano depois. Lutando com Deus, como Jacó, o deixando-se seduzir por Deus, como Jeremias, Dean chegou a Deus. E ficou empapado de Deus.
Nesse processo Dean confessa com imensa gratidão que se encontrou com os pobres. Quantas vezes escreveste, Ellacu, que os pobres são o lugar do evangelho e o lugar de Deus. E também recordo as palavras de Porfírio Miranda: “O problema não é buscar Deus, senão buscá-lo lá onde Ele disse que estava. Nos pobres”. É certo que nem sempre se encontra Deus, mesmo estando entre os pobres, pois entre eles e trabalhando por eles, há agnósticos que são esplêndidos seres humanos, e continuam sendo agnósticos. Porém na maior tradição de Jesus, o Deus que se encontra entre os pobres tem um sabor especial. Penso que a misericórdia se pode tornar mais delicada, a justiça mais firme, a verdade mais sem componentes e a fidelidade mais sem medir os custos.
O Dean empapado de Deus foi um exemplo notável de interesse por todas e cada uma das pessoas com as quais conviveu e as quais buscou. Todas e cada uma delas, companheiros jesuítas, familiares, paroquianos de Jayaque e da UCA, amigos e amigas, salvadorenhos, norte-americanos e europeus e, por suposto, os deserdados e pequenos tinham um nome muito concreto para ele. Cada um era intercambiável com outros e isso fez com que seu serviço fosse de grande fineza. E me recorda Jesus que conhecia todas as suas ovelhas por seus nomes.
E seu Deus foi, na verdade, o da criação. Não por moda, algumas das quais são muito boas, Dean pôs grande interesse na mulher e no feminismo, no ecumenismo, e era muito amigo de pessoas de outras igrejas, ou da ecologia e creio que até das causas indígenas. Os argumentos fundamentais não eram categoriais, nem tomados de normas da hierarquia nem da doutrina social. Creio que para Dean o grande argumento era que Deus é um Deus de todos.
Dean me recordou umas palavras de Monsenhor Romero que citei muitas vezes. São de 10 de fevereiro de 1980, em meio da barbárie que reinava no país. Disse Monsenhor: “Quem me dera, queridos irmãos, que o fruto desta pregação fosse que cada um de nós fôssemos encontrar-nos com Deus e que vivêssemos a alegria de sua majestade e de nossa pequenez!” Para Monsenhor Romero Deus não apequenava o homem, porém para o homem era bom apequenar-se ante Deus.
Isto me recorda Dean. Nunca pensou que era grande. Nunca se pôs em primeiro lugar, nem falava de si mesmo quando as coisas saíam bem: – “foi um sucesso” – embora as tivesse feito ele. Simplesmente se alegrava do bem. Recordava-me Paulo em sua carta aos Coríntios: “O amor é paciente, é afável, o amor não tem inveja, não se jacta nem se envaidece, desculpa sempre, confia sempre, espera sempre, agüenta sempre”. Nisto Dean me recordava o grande Padre Arrupe. Creio que sempre pensou nos demais antes do que em si mesmo. Nunca se preocupou em que reconhecessem o bem que fazia. Não é frequente, e por isso surpreende e impacta. E ajuda também a desabsolutizar-nos e a viver com alegria nossa pequenez ante Deus, como dizia Monsenhor.
Uma última reflexão. Ellacu, Dean não morreu mártir como vocês, porém seus últimos meses foram um martírio, de corpo pelos sofrimentos de um câncer de pâncreas muito doloroso, e de alma quando lhe assaltavam medos, de sentir-se só, ou que não se lembrassem dele. Não morreu crucificado, porém viveu até o final participando ativamente das cruzes deste mundo. Trabalhou com poder, isto é, com força e energia, para baixá-los da cruz. E morreu com amor silencioso e indefeso. Como o Deus crucificado.
As últimas palavras de Dean são palavras de gratidão, a fundo perdido, sem poder pôr pé em terra firme. Porém a gratidão vive de outros e para outros, de Deus e para Deus, Os agradecidos podem fazer que a realidade seja graça. Ellacu, se me permitem a expressão – creio que é um neologismo – os agradecidos podem “buenar” (tornar boa) a realidade. É o que fez Deus.
Ellacu, já vês que, em meio de muitos males e apesar de tudo, estamos contentes. Vocês, Julia Elba e Celina, Jon Cortina e o padre Ibisate, e agora nosso querido Dean Brackley, estiveram conosco. E estando com vocês Deus esteve conosco. Não se pode pedir mais.
Fonte: IHU – 7 novembro 2011
Congregação para a Doutrina da Fé
Notificação sobre as obras do P. Jon SOBRINO S.I.:
Jesucristo liberador. Lectura histórico-teológica de Jesús de Nazaret (Madrid, 1991) e
La fe en Jesucristo. Ensayo desde las víctimas (San Salvador, 1999).
(…)
O Sumo Pontífice Bento XVI, na Audiência concedida a 13 de Outubro de 2006 ao abaixo assinado Cardeal Prefeito, aprovou a presente Notificação, decidida na Sessão Ordinária do Dicastério, mandando que seja publicada.
Dado em Roma, na sede da Congregação para a Doutrina da Fé, a 26 de Novembro de 2006, Festa de N. S. Jesus Cristo, Rei do Universo.
William Cardeal Levada
Prefeito
Angelo Amato, sdb
Arcebispo titular de Sila
Secretário
Obras notificadas (original espanhol e tradução em português):
SOBRINO, J. Jesucristo liberador. Lectura histórico-teológica de Jesús. 4. ed. Madrid: Trotta, [1991] 2001, 352 p. ISBN 978-84-87699-20-7
SOBRINO, J. La fe en Jesucristo. Ensayo desde las víctimas. Madrid: Trotta, 1999, 512 p. ISBN 978-84-8164-268-1
SOBRINO, J. Jesus, o Libertador. I – A História de Jesus de Nazaré. Petrópolis: Vozes, 1994, 392 p. ISBN 85-326-0980-5
SOBRINO, J. A Fé em Jesus Cristo: ensaio a partir das vítimas. Petrópolis: Vozes, 2001, 512 p. ISBN 8-5326-2394-8
A ‘Penitência Perpétua’ imposta a Jon Sobrino
Eduardo Hoonaert – Adital: 13/03/2007
No dia 15 de março, a Congregação Vaticana para a Defesa da Fé procede à promulgação de uma ‘penitência’ infligida ao padre jesuíta Jon Sobrino, nascido em 1938 em Bilbao, Espanha, e residente desde 1958 em El Salvador, onde foi teólogo de Dom Oscar Romero. A penitência consistirá no ‘silêncio mais absoluto’ do teólogo, não naquele ‘silêncio de um ano’ imposto a Leonardo Boff, mas num silêncio perpétuo, no apagar ‘per saecula saeculorum’ de uma voz que incomoda. Qual a razão de tão severo procedimento? Onde foi que Sobrino pisou feio? O texto do Vaticano explicita: ‘O teólogo não afirma abertamente a consciência divina de Jesus histórico’, ‘ele oculta a divindade de Jesus’.
Eis aí mais um capítulo de uma história que já cobre diversos séculos e não está prestes a ter um desfecho próximo. Ela começa exatamente num quarto simples da cidade de Haia, na Holanda, em 1670, quando Spinoza contesta pela primeira vez a autoria dos primeiros cinco livros da bíblia (Pentateuco) por Moisés, supostamente inspirado por Deus. Para Spinoza, o Pentateuco é uma coletânea de narrativas populares antigas e prescrições sacerdotais reunidas por Esdras e outros intelectuais após o retorno das elites judaicas do exílio babilônico no século V aC, portanto sete séculos após a morte de Moisés. As palavras de Spinoza caíram como uma bomba, não só sobre a cultura do Ocidente (cristãos e judeus), mas igualmente sobre o mundo islamita. Desde então, os tremores causados por Spinoza (e colegas) se alargaram e não mais deixaram as autoridades religiosas cristãs, judaicas e islamitas em paz. Pois Spinoza foi ganhando adeptos sempre mais numerosos no decorrer dos últimos três séculos. Os exegetas passaram a estudar as línguas bíblicas (hebraico, aramaico e grego), ensaiaram uma leitura da bíblia em consonância com os ditames da ciência moderna e enfrentaram corajosamente obstáculos eclesiásticos. Graças à progressiva introdução da idéia de tolerância no decorrer do século XVIII, tanto na França como na Alemanha, ninguém mais foi queimado vivo por emitir opiniões contrárias às autoridades, como ainda aconteceu com Giordano Bruno, em 1600. As idéias humanitárias triunfaram com a Revolução Francesa de 1789.
O instituto eclesiástico sempre reagiu de forma muito nervosa diante de qualquer tentativa de se mexer com os antigos dogmas e nunca permitiu que se discutisse a maneira com que a extraordinária riqueza de metáforas, símbolos, parábolas e visões da bíblia ficou sendo ‘engarrafada’ em fórmulas dogmáticas. Ninguém podia nem de longe mexer com o símbolo da fé cristã, promulgado pela assembléia episcopal de Nicéia (325). Foi aí que as sugestivas imagens religiosas do evangelho de João (a Palavra de Deus desce do céu à terra, divulga a mensagem de um Deus Pai e volta ao céu, depois de ter deixado na terra o Espírito Santo) foram traduzidas em dogmas.
Mesmo assim, muitos continuaram mexendo com o que era ‘intocável’ e daí surgiu um labirinto tão intricado de explicações, controvérsias, hipóteses e condenações, que é praticamente impossível seguir tudo. Só quero lembrar que os papas católicos sempre quiseram colocar um dique contra a invasão do espírito científico em área que lhes parecia privativa, mas em vão. O embate fez muitas vítimas, entre as quais se destaca o sacerdote francês Alfred Loisy (1857-1940) cujo livro ‘O Evangelho e a Igreja’ (L’Évangile et l’Église), publicado em 1902, defendia a tese (já sustentada por intelectuais do império romano, como Porfírio) de que os evangelhos não correspondem fielmente à história de Jesus. Mas não só no mundo católico os estudos ‘modernos’ causaram problemas, o mundo protestante também foi afetado. Adolfo von Harnack, grande estudioso protestante alemão, encontrou também forte oposição por parte da igreja luterana.
Mas tudo isso não parou o movimento. No século XIX nascem a egiptologia, a assiriologia, a epigrafia semita etc. No século XX entram a filologia e a arqueologia bíblica, provocando sucessivos sustos nos que acreditam nas ‘eternas verdades’ da bíblia. Ao mesmo tempo, avança-se no mapeamento de um universo religioso imaginário comum a todos os povos que mantiveram contato com o povo hebreu, não só a Mesopotâmia, mas também o Egito. Percebe-se que as grandes imagens bíblicas são comuns ao imaginário religioso do Oriente médio: o céu (Deus Criador), a terra (expulsão do paraíso terrestre), o ar (ascensão), o sopro animador (Espírito Santo). Mesmo os utensílios agrícolas de cada dia como a enxada, o arado, a pá, o torno (Deus torneiro), a fornalha (inferno) servem como símbolos religiosos. No inferno vivem demônios, monstros e outras ameaças, no céu atuam os anjos, protetores da vida. Fala-se em ‘filhos de Deus’ (título dado aos faraós do Egito) e em virgens que geram deuses. Estudiosos como Sir James George Frazer abrem campo para um estudo dos imaginários religiosos em escala planetária.
Vai se diluindo sempre mais a idéia de que ‘a bíblia tinha razão’, assim como a referência absoluta à formulação do Concílio de Nicéia (325). Já no século XIX, estudiosos alemães lançam dúvidas sobre o valor histórico do evangelho de João, base do dogma de Nicéia. Em torno de 1900 já é consenso que os evangelhos de Mateus e Lucas assimilam muita coisa do imaginário popular, enquanto se recompõe um evangelho Q (dos anos 50), que não diviniza Jesus. O evangelho de Tomé, grande estrela da descoberta de Nag Hamadi (1945), faz sua entrada no rol dos evangelhos cujo estudo se impõe a quem quiser pesquisar as origens cristãs. Na virada do século vinte e um, a lingüística (Ricoeur, Bakhtin, Wittgenstein, Frege, Habermas, Gadamer) entra por sua vez nos estudos bíblicos e demonstra a necessidade de se estudar a mediação literária para se chegar ao Jesus da história. Assim a perspectiva de Bultmann (1926) (que dizia que não se pode dizer praticamente nada sobre Jesus a partir dos evangelhos) é revertida e os especialistas estão de acordo que podemos conhecer Jesus, mas não da forma com que ele está sendo apresentado pela tradição das igrejas. O problema é Nicéia, não são os evangelhos.
A questão de fundo, que aparece na condenação de Jon Sobrino, está na teimosia que caracteriza grandes instituições. Resistindo a qualquer tentativa de reformulação de suas fórmulas (sempre passageiras), elas se precipitam para a morte. A história já comprovou suficientemente que grandes impérios se destroem a si mesmos, por um processo que o historiador inglês Toynbee chamou de ‘híbris’ (autoconfiança exagerada, falta de percepção da realidade, prepotência). Foi o que aconteceu sucessivamente com o império babilônico, o império persa, o império romano e recentemente o império soviético. A prepotência do Vaticano fica patente nas palavras usadas para afastar Jon Sobrino do ensino eclesiástico. Temos de reconhecer que impérios de forte impregnação no imaginário popular podem demorar séculos antes de entrar num colapso definitivo. Desse modo, é possível que muitas pessoas não cheguem a perceber o problema, nem enxerguem que tudo está desmoronando em seu redor. Os líderes, de sua parte, perdem contacto com a realidade vivida e vão se fechando em sua concha. Eles se agarram a voláteis aclamações populares e mediáticas (o papa em Aparecida), sem conseguir investigar a fundo o que está acontecendo. Enquanto isso, ninguém entende mais o símbolo de Nicéia nem presta atenção ao que está dizendo quando recita formalmente o ‘símbolo da fé’ na liturgia da missa. Essas palavras viram relíquias mortas, mas, mesmo assim, muitos crentes preferem morrer com elas a colaborar na elaboração de um cristianismo renovado. Uma instituição que condena estudiosos como Jon Sobrino precipita a sua própria queda. Pois ele luta pela vida do cristianismo, contrariamente ao que sua condenação pelo Vaticano faz crer. Os que mais parecem defender a igreja são os que a condenam à morte, enquanto os que a criticam querem sua vida. Neste momento, temos de felicitar o teólogo Sobrino por seu compromisso com a vida.
Somos todos pecadores
Marcelo Barros – Adital: 13/03/2007
Desde criança aprendi que a Quaresma é tempo de nos reconhecermos pecadores e exercermos a solidariedade. Este pensamento me vem mais profundamente à mente neste dia em que soube que, à lista dos mais de 450 teólogos condenados pelo Vaticano desde o início do pontificado de João Paulo II, o atual papa acrescentou mais um: Jon Sobrino, teólogo que foi assessor de Dom Oscar Romero até o martírio deste e, em 1989, não morreu junto com Ignácio Ellacuría e os outros martirizados na UCA porque, por acaso, naquela ocasião, tinha viajado à África. Tomara que os executores deste assassinato não interpretem esta atual condenação do Vaticano a Jon Sobrino como uma confirmação de que, no fundo, aqueles jesuítas eram mesmo mais subversivos do que cristãos e não contavam com a solidariedade nem dos seus irmãos católicos. Pior ainda, podem pensar que o padre Jon Sobrino, vivo por acidente, afinal, é condenado até pela hierarquia de sua própria Igreja. Em El Salvador, a condenação ao teólogo que assessorou Romero pode explicitar que o Vaticano assume o fato de pensar de forma totalmente contrária a São Romero das Américas, cujo aniversario do martírio recordaremos nestes dias. Para muitos de nós, latino-americanos, esta condenação tem quase o sentido de um segundo assassinato dos mártires de El Salvador.
Jon Sobrino é culpado de ser um teólogo profundamente espiritual, inserido na caminhada dos pobres da América Latina. Ele nos ensina a seguir Jesus Cristo, pobre e servidor, testemunha do reino de Deus a ser encontrado nos povos que, hoje, no mundo, vivem crucificados, vítimas do Império, como Jesus. Sobrino nos propõe como caminho espiritual o Princípio Misericórdia não como atitude eventual, mas como princípio unificador da vida.
Neste momento, sofro com a injustiça sofrida pelo irmão, mas sofro mais ainda porque puniram um companheiro que, no fundo, não cumpre o seu ministério de forma isolada e como livre atirador. Tudo o que ele faz e ensina é como membro de um grupo latino-americano ao qual tenho a graça imensa de pertencer. Não posso me comparar a ele, nem como teólogo, menos ainda como mestre espiritual. Mas, certamente, sou ao menos culpado dos mesmos pecados. Não me parece justo ficar calado e deixar que o irmão seja condenado sozinho. Ele não é o único que, para pensar e escrever, tenta manter uma liberdade pessoal, sem a qual a teologia se torna mera repetição acadêmica de fórmulas já gastas. Também reflito sobre a pessoa de Jesus Cristo procurando uni-lo mais à humanidade, resgatar seus traços humanos nos Evangelhos e libertá-lo da camisa de força de dogmas formulados pelos concílios presididos pelo imperador romano. Se eu me apresento, quem sabe, outros também criem coragem de seguir Jesus no caminho da entrega de si mesmos e o Vaticano descubra que os hereges são muito mais numerosos? Afinal, somos todos pecadores.
O que está por trás da condenação de Jon Sobrino?
Jung Mo Sung – Adital: 14/03/2007
En los últimos días circuló en algunos diarios y por internet la información, después confirmada por diversas autoridades eclesiásticas, de que el teólogo Jon Sobrino había sido “suspendido” – es decir, se le ha prohibido dar clases en los seminarios, dar conferencias, publicar textos, etc. – en razón de algunas posiciones teológicas presentadas en sus últimos libros de cristología.
Esta noticia tomó a mucha gente por sorpresa, pues estamos casi en la víspera de la V Conferencia del Celam y pocos esperaban que el Vaticano tomase, en este momento, una actitud semejante en contra de uno de los principales y más influyentes teólogos de América Latina. (Esto puede ser una señal de qué característica tendrá el desarrollo de la V Celam).
La Congregación para la Doctrina de la Fe publicó hoy, 14 de marzo de 2007, la “Notificación sobre la obra del Padre Jon Sobrino” con la intención de “llamar la atención hacia ciertas proposiciones que no están de acuerdo con la doctrina de la Iglesia”. Lo que me llamó la atención, a primera vista, en este documento fue lo recurrente de expresiones del tipo: “a pesar de que el Autor afirma que…. no siempre se presta la debida atención…”, “el Autor evidentemente no la niega, pero no la afirma con la debida claridad…”; “Es verdad que el Autor afirma…. [pero] no se explica correctamente…”.
Esto revela que, si hay problemas doctrinarios en los textos de Sobrino, éstos no son tan graves al punto de justificar esta sanción. Si fuesen otros teólogos de todos los continentes también deberían estar en esta lista, pues ninguna obra teológica consigue ser tan completa y tan “ortodoxa” que no se le pueda imputar la crítica de que “falta explicitar más claramente…” o “no afirma con la debida claridad y fuerza…”.
La única forma de no caer en este problema sería reproducir simplemente las conclusiones de los grandes concilios, y también de los menores (para evitar cualquier problema) y los documentos de la Iglesia que tratan sobre las cuestiones dogmáticas y el propio Catecismo de la Iglesia Católica (que fue citado en la Notificación como un argumento de autoridad para criticar a Sobrino). Es decir, no producir teología para no correr estos riesgos.
Este razonamiento, si es llevado al extremo, conduce a una conclusión un poco absurda de prohibir o evitar la publicación de cualquier obra de teología. Lo que demuestra que la cuestión central no es ésta. Yo pienso que la verdadera razón aparece en la Nota Explicativa de la Notificación, que fue publicada junto con la Notificación. La Nota dice, al comienzo, que: “La preocupación por los más simples y más pobres fue, desde el comienzo, uno de los trazos característicos de la misión de la Iglesia”. De esta manera afirma que no hay divergencia fundamental entre la posición de la Congregación para la Doctrina de la Fe y la de Sobrino y la de los sectores de la Iglesia Católica que defienden la opción por los pobres.
Pero, el problema estaría en la comprensión de lo que significa esta “preocupación por los más pobres”. Para la Congregación, “la primera pobreza de los pobres es no conocer a Cristo” y, por ello, la primera y la principal misión de la Iglesia en relación con los pobres es presentarles al verdadero Cristo, aquél que fue la figura principal “en el plan divino de salvación por la entrega a la muerte del ‘Siervo, el Justo’” (Notificación, n. 10).
Para la Congregación, el primer problema del pobre no es el hambre y todas las otras condiciones infrahumanas que devienen de la pobreza en una sociedad capitalista, sino que es el no conocer a Cristo y no saber que Él fue enviado por Dios para sufrir y morir en la cruz para salvarnos de la condena que el propio Dios nos daría. Con esto, no habría diferencia fundamental entre el pobre y el rico que no conocen al verdadero Cristo presentado por la Iglesia Católica. Es por ello que la Nota Explicativa afirma que no se puede expresar la opción por los pobres en términos sociológicos.
El verdadero problema que la obra de Sobrino suscita no es el hecho de que no haya explicitado con el debido énfasis la divinidad de Cristo, sino el haber asumido que el problema primero y principal del pobre es el hambre, la muerte antes de tiempo. Algo que parece ser muy obvio para casi toda la sociedad, ya que después de todo la pobreza es una cuestión económica y social.
Pero… ¿por qué la Congregación de la Doctrina de la Fe y el propio Vaticano tienen tanta dificultad en ver que el sentido de la palabra “pobre” es aquel que pasa hambre y no aquél que todavía no conoció a Cristo? Quiero aquí elaborar una hipótesis. Si asumimos la visión de que la pobreza es una cuestión de vida y muerte en el campo económico y social, la Iglesia Católica, a partir de su fe, se convierte en una entre otras instituciones religiosas o no, que están preocupadas con esa cuestión; por otro lado, si asumimos que el gran problema del pobre es que no conoce al verdadero Cristo, que sólo la Iglesia Católica conoce más plenamente, la Iglesia se convierte en la principal institución en la gran tarea de luchar contra la pobreza.
Lo que hay detrás del castigo de Jon Sobrino y también de una buena parte de las disputas que ocurrirán en la V Celam es la comprensión del papel de la Iglesia Católica en el mundo y de su relación con el Reino de Dios. Si los pobres ante quienes debemos estar al servicio son pobres en el sentido de “tuve hambre y me diste de comer” (Mt 25), la Iglesia debe verse como un instrumento para anunciar y revelar la presencia de Dios en el mundo y de su Reino, luchando por la superación de las injusticias y opresiones para construir una sociedad más humana, digna de ser llamada humana-divina. Si la Iglesia pretende crear un nuevo sentido para la palabra “pobre”, para verse como la institución más importante del mundo, podrá escribir documentos y notificaciones, pero el mundo no la escuchará, pues no conseguirá entender lo que ella quiere decir.
Sombras da Inquisição
Frei Betto – Adital: 16/03/2007
Hoje é um dia triste para mim. Dói no fundo do meu coração, no âmago de minha fé cristã. O papa Bento XVI, às vésperas de sua primeira viagem à América Latina, faz um gesto que imprime um gosto amargo às boas-vindas: condena o teólogo jesuíta Jon Sobrino, de El Salvador.
Conheço Sobrino de longa data. Estivemos assessorando os bispos latino-americanos em Puebla, em 1979, por ocasião da primeira visita do papa João Paulo II ao nosso Continente. Participamos juntos de muitos eventos, empenhados em nutrir a fé das Comunidades Eclesiais de Base que, hoje, fazem da América Latina a região com o maior número de católicos no mundo.
Sobrino é acusado de, em suas obras teológicas, não dar suficiente ênfase à consciência divina do Jesus histórico. Fica, pois, proibido de dar aulas de teologia, e todos os seus futuros escritos devem ser submetidos à censura vaticana.
O parecer condenatório da comissão da Congregação da Doutrina da Fé, ex-Santo Ofício, parte, sem dúvida, de preconceitos. A leitura atenta das obras de Sobrino revela que, em nenhum momento, ele nega a divindade de Jesus. Nega é o docetismo, heresia já condenada pela Igreja nos primeiros séculos da era cristã, baseada na idéia de que Jesus, de humano, só tinha a aparência, em tudo mais era divino. O que faria da encarnação um embuste e daria asas à fantasia de que, ali na Palestina do século I, o homem Jesus, dotado de onisciência, poderia muito bem ter a antevisão do atual conflito entre palestinos e judeus…
Os evangelhos mostram claramente que Jesus tinha consciência de sua filiação divina. Ao contrário de seus contemporâneos, tratava Javé de modo muito íntimo, carinhoso: Abba, ‘meu pai querido’, uma das raras expressões aramaicas – a língua que Jesus falava – a constar do texto bíblico. Contudo, esses mesmos evangelhos mostram que Jesus, como todos nós, sofreu tentações, teve medo da morte, chorou, experimentou a solidão, pediu ao Pai para, se possível, afastá-lo do cálice de sangue. Ou seja, em tudo foi igual a nós, como afirma Paulo na Carta aos Filipenses, exceto no pecado, pois amava assim como só Deus ama.
Roma, sem dúvida, ainda padece do platonismo impregnado na teologia liberal desde Santo Agostinho. Fala da divindade como se fosse contrária à humanidade. A Criação divina é indivisível. Como diz Paulo, “nele (Deus) vivemos, nos movemos e existimos” (Atos dos Apóstolos 17, 28).
Bem diz Leonardo Boff ao referir-se a Jesus: “Humano assim como ele foi, só podia ser Deus mesmo”. A nossa humanidade não é a negação da divindade, assim como não o era a de Jesus. A divindade é a plenitude da humanidade e esta, o prenúncio daquela. “Somos da raça divina”, afirmou Paulo aos atenienses (Atos dos Apóstolos 17, 28).
Roma, que tanto lida com símbolos, parece desprezar a América Latina ao ignorar que Jon Sobrino vive em El Salvador, cujo arcebispo, dom Oscar Romero, foi assassinado pelas forças de direita ao celebrar missa na catedral, em 1980. No próximo dia 24 comemoram-se 27 anos de seu martírio. Sobrino mora en San Salvador, na mesma casa na qual, em 1989, quatro padres jesuítas, mais a cozinheira e sua filha de 15 anos, foram assassinados pelo Esquadrão da Morte.
Como renovar a Igreja Católica se suas melhores cabeças estão sob a guilhotina de quem enxerga heresia onde há fidelidade do Espírito Santo: Hans Kung em 1975 e 1980; Jacques Pohier em 1979; Schillebeeckx em 1980, 1984 e 1986; Leonardo Boff em 1985; Charles Curran em 1986; Tissa Balasuriya, em 1997; Anthony de Mello, em 1998; Reinhard Messner, em 2000; Jacques Dupuis e Marciano Vidal, em 2001; Roger Haight, em 2004. Nenhum deles, porém, foi excomungado como apregoam os fundamentalistas católicos.
O que está por trás da censura a Sobrino é a visão latino-americana de um Jesus que não é branco nem tem olhos azuis. Um Jesus indígena, negro, moreno, migrante; Jesus mulher, marginalizado, excluído. Aquele Jesus descrito no capítulo 25 de Mateus: faminto, sedento, maltrapilho, enfermo, peregrino. Jesus que se identifica com os condenados da Terra e dirá a todos que, frente a tanta miséria, se portam como o bom samaritano: “O que vocês fizeram a um dos menores de meus irmãos, a mim o fizeram” (Mateus 25, 40).
Sobre a condenação do teólogo JON SOBRINO
Roberto Zwetsch – Adital: 16/03/2007
Como candidato ao ministério pastoral, fiz meu primeiro exame de teologia em 1977. Na época, tínhamos provas orais e escritas. Para a prova oral de teologia sistemática, um colega e eu escolhemos estudar o livro “Cristología desde América Latina (Esbozo a partir del seguimiento del Jesús histórico)” (México: CRT, 1976), do teólogo espanhol Jon Sobrino, que por aquela época já vivia há muito em El Salvador, trabalhando junto com o bispo Dom Oscar Romero.
O que nos encantou naquelas leituras foi, se bem me recordo, duas coisas: em primeiro lugar, a ênfase no Jesus histórico, naquele que caminhou junto aos pobres da Palestina anunciando-lhes o reino de Deus e despertando uma nova esperança. Em segundo lugar, a idéia do seguimento ou discipulado como fundamental para compreender a fé de Jesus, a fé que se realizou em sua história humana e divina, ao mesmo tempo. O que diferenciou Jesus em seu tempo é que ele, decididamente, compreendeu a Deus e sua justiça, não de forma abstrata e ahistórica, mas desde e para os pobres reais com quem se encontrava nas vilas e cidades da Palestina.
Agora este teólogo, que desde então tem aprofundado como poucos aquele esboço de cristologia em inúmeros livros de primeira qualidade, é condenado ao silêncio pela Congregação para a Doutrina da Fé, do Vaticano. Lamentável e, desde um ponto de vista protestante, um grande equívoco. Sobretudo, quando estamos às vésperas da V CELAM – a grande Conferência dos Bispos Católico-Romanos da América Latina que irá realizar-se em maio deste ano, na cidade de Aparecida do Norte, SP, Brasil. É bem estranho que esta condenação a um teólogo que estudou em profundidade a vida e obra de Jesus e suas repercussões na vida dos pobres, ocorra no momento em que a conferência irá justamente enfocar o tema “Discípulos e missionários de Jesus Cristo, para que nele nossos povos tenham vida”.
Jung Mo Sung, um dos jovens teólogos brasileiros que conhece bem a obra de Sobrino, afirmou em artigo que a questão central nesse caso não é o que tem sido dito na imprensa. Isto é, que Sobrino não teria deixado suficientemente claro em suas obras a divindade de Jesus para realçar em demasia a humanidade e sua opção pelos pobres.
A hipótese de Mo Sung é outra e se baseia em informes também do Vaticano. Ele escreveu: “O verdadeiro problema que a obra de Sobrino suscita não é o fato de ele não ter explicado com a devida ênfase a divindade de Cristo, mas ter assumido que o problema primeiro e primário do pobre é a fome, a morte antes do tempo. O que parece ser muito óbvio para quase toda a sociedade, afinal a pobreza é uma questão econômica e social”. E a razão estaria no fato de que a cúpula da Igreja Romana não aceita este conceito de pobre. Pois isto exigiria uma conversão da igreja que ela, ao que parece, não está disposta a realizar. O que está por trás dessa punição é, também, o teor do que se estará discutindo na Conferência dos Bispos em Aparecida, isto é, a compreensão do papel da Igreja Católica Romana no mundo e a sua relação com o reino de Deus.
De certa forma, Sobrino passa a ser agora, involuntariamente, o símbolo de um recado do Vaticano aos que ainda guardam boa lembrança do Vaticano II (1962-1965) e dos encontros dos bispos em Medellín (1968) e Puebla (1979). Muitos cristãos de diferentes igrejas desejariam ardentemente voltar a reencontrar-se com uma igreja no caminho da luta pela superação da pobreza, da fome e da violência que massacra os povos e lhes impõe uma forma de vida completamente alheia aos desejos do Deus de Jesus. Pobres sim, diz Roma, mas somente sob a ótica de pessoas que ainda não conhecem a Cristo. A fome, a pobreza, a injustiça não podem se tornar o foco central da mensagem da igreja.
Ora, se a igreja cristã espiritualiza desse jeito o evangelho do Crucificado que se identifica com os crucificados do nosso tempo, é de se perguntar se ela compreendeu o que diz Mateus em seu evangelho, repercutindo as palavras de Jesus: “Tive fome, e me destes de comer, tive sede, e me destes de beber, era forasteiro e me hospedastes; estava nu e me vestistes; enfermo e me visitastes; preso e fostes ver-me” (Mateus 25.35s). Esta palavra de Jesus se tornou critério, na América Latina, para a compreensão do papel da igreja no mundo. Sua missão se define a partir do serviço aos pobres no sentido lato e não metafórico do termo.
É isto que estará em jogo nos bastidores da V CELAM e certamente terá repercussões também no âmbito ecumênico entre as demais igrejas cristãs. Afinal, a palavra de Jesus compromete a todas as pessoas que confessam seu nome. Sobrino merece mais respeito do que sua igreja lhe está dando neste momento, por sua trajetória humana, teológica e social.
Certamente, o princípio misericórdia que deu título a um dos livros de Jon Sobrino deverá ser resgatado nesse momento de dor e incompreensão. Para Sobrino, a misericórdia está na origem do divino e do humano. Deus é misericordioso para com as pessoas e seu desejo mais fundo é erradicar o sofrimento injusto para restabelecer a alegria (evangelho, literalmente, quer dizer, boa notícia!). Por isto, é no exercício da misericórdia que melhor entendemos ao Deus de Jesus. E a misericórdia não deve ser confundida com simples assistencialismo ou benemerência. Pois a misericórdia divina é altamente conflitiva. Quando falamos de um Deus crucificado que resgata o sentido de vida do ser humano, estamos denunciando os poderes que neste mundo crucificam os pobres. Por isso, não cabe ingenuidade ou falsas promessas na mensagem cristã. Hoje, na América Latina, assumir o rosto de uma igreja misericordiosa significa voltar a assumir decididamente a luta dos pobres contra a pobreza e as causas da injustiça e da violência.