Vale a pena ler os profetas hoje?
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ABSTRACT
The article proposes the investigation of some of the more frequent hermeneutic obstacles in the reading of the prophetic texts and recommends a resolute ideological surveillance.
Ainda vale a pena ler os profetas hoje? Que valor têm as suas palavras para nós hoje? O mundo mudou muito, e nós o que temos a ver com os problemas e as propostas de profetas israelitas que viveram há mais de 2500 anos?
O mundo mudou muito, mas as crises vividas pelos profetas ainda acontecem. Em contextos diferentes, é claro. Entretanto, os problemas da opressão, do domínio, do poder despótico, da manipulação da religião, da falsa consciência são mais atuais do que nunca. E é aí que entram os profetas: eles podem, com suas palavras tão antigas e tão atuais, nos ajudar a enfrentar as agudas situações de crise neste terceiro milênio.
Isto depende, porém, de um enfoque correto, de uma abordagem adequada dos textos dos profetas israelitas. O que nem sempre é fácil. Persistem ainda muitos obstáculos. Que, curiosamente, não vêm da antiguidade e da complexidade dos textos dos profetas. Vêm de nossa época e de nosso olhar: são os condicionamentos culturais ocidentais os que mais nos afastam de uma leitura proveitosa dos profetas.
É toda uma mentalidade, uma secular visão de mundo que nos domina, de tal modo que quase sempre a sobrepomos ao texto bíblico, ocultando o seu sentido original e inutilizando-o frente aos problemas reais do mundo atual.
Por isso, o que aqui proponho é a abordagem de alguns dos obstáculos hermenêuticos mais comuns, nos quais constantemente tropeçamos. Obstáculos hermenêuticos são armadilhas do pensamento. Isto servirá de alerta e alarme para nós. Pois só uma constante vigilância ideológica manterá aberta a nossa mente para a experiência do nascimento do sentido que acontece na operação de leitura dos textos proféticos[1].
1. A visão idealista da realidade
Como herdeiros do pensamento grego, somos profundamente marcados pela visão idealista da realidade, em seu sentido filosófico. Na história do pensamento há vários tipos de idealismos, mas seu ponto comum é a prioridade dada à ideia ou ao espírito humano em relação à matéria.
O idealismo metafísico ou ontológico, por exemplo, entende a realidade como constituída ou dependente do espírito ou das ideias. O ser é a própria ideia, segundo tal idealismo. Já o idealismo histórico vê na consciência humana ou nas ideias os agentes fundamentais do processo histórico. Enquanto que o idealismo ético “projeta um estado empiricamente infundado (‘superior’ ou ‘melhor’) como uma maneira de julgar ou racionalizar a ação”[2].
O idealismo moderno tem suas raízes no idealismo grego. Nas suas origens platônicas, o idealismo afirma que o mundo real é o mundo das ideias, segundo o célebre mito da caverna[3]. E no seu dualismo característico, ele garante que é o espírito que conta, sendo a matéria um peso morto do qual os homens devem se livrar para alcançarem a plenitude.
Na origem grega e na persistência ocidental desta visão de mundo está a realidade social da divisão de classes, onde o trabalho intelectual é separado do trabalho material.
Prisioneiros desta visão de mundo, costumamos ler a Bíblia como um catálogo de formulações doutrinais, um elenco de verdades abstratas que explicam e regulam a realidade. Ora, ao serem retirados de seu contexto e usados de maneira absoluta e moralizante, os acontecimentos bíblicos perdem sua referência real. Iahweh e os valores do javismo desaparecem, assim como desaparece o “homem humano”.
É assim que os profetas acabam tornando-se adivinhos, conhecedores que seriam de uma verdade supratemporal e a-histórica que determinaria a natureza e o mundo dos homens. O profeta, segundo a ótica idealista, é aquele que pode prever o futuro, porque ele tem uma iluminação ou revelação divina e sobrenatural. Assim, o profeta conhece e revela a nós, pobres mortais comuns, os acontecimentos e planos futuros, ocultos e misteriosos[4].
De acordo com esta visão, o profeta nada, ou quase nada, tem a dizer aos seus contemporâneos, já que ele está voltado é para o futuro, muito mais importante, ao qual pertencemos. Segundo este raciocínio idealista a verdade é anterior ao acontecimento e está situada no mundo das ideias. No caso dos profetas, no mundo divino.
Acontece que para o profeta a verdade da palavra está contida no próprio acontecimento. Pois o que conta, na mentalidade bíblica, é o mundo real em toda a sua materialidade. Se, segundo os profetas, Israel está condenado à destruição, não é devido a um misterioso e secreto decreto divino. É graças aos seus próprios atos históricos. Foram os descaminhos políticos, sociais, religiosos que arrasaram o país.
Pode-se observar que os profetas jamais falam de Iahweh de maneira abstrata. É sempre um Deus que age e que exige ação, quer seja na proteção ao povo, quer seja na destruição dos inimigos. Iahweh não é uma ideia fora da realidade, mas a manifestação de uma presença dentro da história.
Por isso, de acordo com os profetas, a salvação dos homens concretos de seu tempo é uma tarefa histórica, não uma fuga para outro mundo. E é uma tarefa social, pois o que está em jogo é o povo de Israel, não o indivíduo isolado.
2. O individualismo
O idealismo, obstáculo pai, dá frutos, conduzindo ao individualismo. “Com a desvalorização do concreto e da História, o intelectualismo quebra os laços pelos quais unicamente os homens podem relacionar-se entre si”[5].
Isto porque os homens estão é no mundo concreto. E só no mundo concreto os homens podem relacionar-se entre si. No mundo abstrato por nós criado, eles são apenas “pensados como existentes”… não são reais.
Aliás, o individualismo é uma das mais evidentes características da sociedade capitalista de nossa época.
Ora, a visão individualista da realidade é um poderoso obstáculo para a leitura dos profetas. Quem se dirigir aos textos proféticos com este olhar só vai procurar ali normas para a vida íntima e moral do indivíduo. Jamais enxergará a essencial dimensão social presente em todos os textos.
Um exemplo pode nos ajudar a compreender o que se está afirmando: é a leitura corrente do tema da responsabilidade individual em Jr 31,29-30 e Ez 18,1-32.
Muitos comentaristas concluem por um grande passo no desenvolvimento teológico do Antigo Testamento ao analisarem estas passagens que remodelam o conceito de responsabilidade coletiva, mais primitivo, afirmando, a partir do exílio, a responsabilidade individual.
Não acredito em “grande progresso teológico”. Vejo apenas uma adaptação teológica a realidades novas. O conceito de responsabilidade coletiva – segundo o qual a ação de cada membro influencia no conjunto da sociedade para o bem e para o mal – é superior e não inferior ao da responsabilidade individual – cada homem é responsável por sua conduta e nada tem a ver com as condutas alheias – que inaugura o “cada um por si”, ideologia corrente nas sociedades divididas e estratificadas em classes sociais antagônicas.
O que profetas como Jeremias e Ezequiel fizeram foi reconhecer que a sociedade de sua época não funcionava mais segundo os moldes “democráticos” tribais, onde tudo era comum ou coletivo, onde as ações, más ou boas, influenciavam no conjunto da sociedade e da nação.
A sociedade monárquica estava altamente estratificada em classes sociais. E apoiavam-se os responsáveis pelas desgraças, a que uma política desastrosa levara a nação, em uma noção arcaica e desatualizada, como meio fácil de se eximirem dos crimes praticados. No final das contas, o oprimido é que se sentia culpado pelos crimes do opressor.
Isto servia também à classe dominante para manter as estruturas faustosas e falsas do culto nacional, usado há muito como meio oficial de controle da divindade e como mascaramento piedoso, frente às camadas populares, das espoliações às quais a população estava submetida.
Portanto, ao afirmar a validade da responsabilidade individual, Jeremias e Ezequiel estão “puxando o tapete” ideológico pisado pela classe dominante de sua época. E não afirmando uma ética individualista e intimista e muito menos construindo um suporte ideológico religioso para as falcatruas das atuais classes dominantes.
3. O moralismo, irmão gêmeo do individualismo
Irmão gêmeo do individualismo, o moralismo é também uma consequência de nossa prisão idealista.
Quando as dimensões concretas da sociedade não são levadas em conta, as questões políticas sofrem uma redução de seu conteúdo, perdendo sua autonomia. São consideradas de maneira abstrata, conduzidas ao espaço da ética, restritivamente, e resolvidas no moralismo.
Clodovis Boff afirma: “Deste modo, a teologia tradicional, de um lado, não conseguiu tratar dos problemas políticos a não ser sob a forma de questões vinculadas à ética. De outro lado, a própria perspectiva ética, por causa de sua natureza abstrata, conduzia necessariamente a reflexão teológica ao moralismo”. E ainda: “Por não ter-se dado conta da consistência profana do Político e de sua possível significação teológica, a abordagem da ‘teologia social’ se satisfazia com uma transposição pura e simples da moral privada para o âmbito do Político”[6].
É uma típica solução moralista, por exemplo, afirmar que “a raiz de todos os males é o egoísmo”, deixando intocadas suas causas estruturais. Esta é uma maneira absolutamente incorreta de ler os profetas. Conhecemos demais as suas consequências.
4. Dualismo e espiritualismo
Um dos resultados mais desastrosos do idealismo é a fuga do real e a consequente construção mítica de um mundo totalmente dualista, onde se opõem espírito e matéria, alma e corpo, religioso e secular, sagrado e profano, história da salvação e história humana etc.
Para o idealismo de raiz grega, como dissemos acima, o espírito é superior e prevalece sobre a matéria. Os vínculos materiais devem assim ser quebrados para que o homem se realize.
Ora, como os homens só se relacionam entre si através de laços concretos, que são históricos, sociais, materiais, o espiritualismo nos conduz de volta ao isolamento individualista.
Acontece que a mundivisão profética não funciona segundo esquemas metafísicos, mas históricos: o ser das coisas resulta da história real das próprias coisas e “a consciência é consciência daquilo que acontece na história real”[7].
Os profetas não concebem o homem como uma alma encarnada (que é a nossa maneira de ver as coisas), mas como um corpo vivificado. Daí não admitirem duas histórias, uma sagrada, outra profana. Há uma só história, aquela que se constitui na própria revelação da presença de Iahweh em favor do seu povo. O Deus dos profetas não se dirige à “alma” do homem: dirige-se ao homem todo, com todos os componentes de sua materialidade.
5. A armadilha do romantismo
A leitura dos profetas, por si só, pode não ajudar muito. Apesar de fascinantes em seu engajamento em favor do povo, os profetas têm sérios limites. Atualizar a palavra profética não é tarefa fácil.
Como o discurso dos profetas é teológico – aliás, naquele momento histórico outro discurso seria impossível – eles tendem a ficar na aparência da estrutura social israelita e não conseguem atingir o seu núcleo estrutural, que é econômico.
Se suas projeções são generalizantes e utópicas é porque seu modelo é a passada sociedade tribal sem divisão acentuada de classes, seus instrumentos são as tradições populares da fé javista e sua autoridade é a força da palavra de Iahweh codificada nas relações sociais pré-estatais.
Como os profetas não possuem um instrumental teórico científico nem uma estratégia definida de mudança social, sua leitura precisa ser associada a uma teoria revolucionária moderna que nos sirva de mediação científica para o conhecimento da estrutura social. Porque, do contrário, cairemos noutra armadilha: a armadilha do romantismo.
O pensamento romântico tende a oferecer soluções saudosistas e passadistas para os problemas da atualidade. Se o mundo da monarquia israelita se apresenta como constante conflitividade, arrastando as pessoas num turbilhão de sofrimentos, sonha-se com a paz e harmonia da sociedade tribal pré-monárquica. Se o mundo capitalista urbano espolia e elimina os excluídos, não lhes permitindo ter acesso às imensas riquezas hoje produzidas, sonha-se com a tranquilidade e a solidariedade das sociedades rurais pré-capitalistas.
Historicamente, o pensamento romântico se manifestou fortemente no final do século XVIII e na primeira metade do século XIX, quando as contradições da nova ordem burguesa se aprofundaram. Por um lado, o romantismo foi uma reação à ordem burguesa que se instalou no poder após a Revolução Francesa; por outro lado, foi consequência do próprio processo revolucionário que tomou toda a Europa nesta época.
O romantismo apresenta, porém, sua crítica da racionalidade burguesa como crítica de toda a racionalidade. Toma contradições históricas limitadas e situadas por impossibilidades definitivas. Defende que o homem é mais do que a razão. O homem é sentimento, é imaginação, é interioridade. A fé na tradição deve corrigir os excessos da razão. É preciso reabilitar a Idade Média, pregam alguns românticos.
O romantismo tende a se resolver em termos de religião, por causa de seu enorme impulso em direção à unidade que a ordem burguesa percebia como fragmentada. O romantismo encaminha-se para a formação de uma nova cristandade inspirada na Idade Média[8].
[1]. O filósofo francês da ciência Gaston Bachelard (1884-1962) trabalhou de maneira muito interessante a questão dos obstáculos epistemológicos, noção na qual me inspirei para falar de obstáculos hermenêuticos. Bachelard explica: “Quando se procuram as condições psicológicas do progresso da ciência, logo se chega à convicção de que é em termos de obstáculos que o problema do conhecimento científico deve ser colocado. E não se trata de considerar obstáculos externos, como a complexidade e a fugacidade dos fenômenos, nem de incriminar a fragilidade dos sentidos e do espírito humano: é no âmago do próprio ato de conhecer que aparecem, por uma espécie de imperativo funcional, lentidões e conflitos. É aí que mostraremos causas de estagnação e até de regressão, detectaremos causas de inércia às quais daremos o nome de obstáculos epistemológicos. O conhecimento do real é luz que sempre projeta algumas sombras. Nunca é imediato e pleno. As revelações do real são recorrentes. O real nunca é ‘o que se poderia achar’ mas é sempre o que se deveria ter pensado. O pensamento empírico torna-se claro depois, quando o conjunto de argumentos fica estabelecido. Ao retomar um passado cheio de erros, encontra-se a verdade num autêntico arrependimento intelectual. No fundo, o ato de conhecer dá-se contra um conhecimento anterior, destruindo conhecimentos mal estabelecidos”. Este texto de Bachelard está em sua obra La formation de l’esprit scientifique: contribution à une psychanalyse de la connaissance objective. 15. ed. Paris: Vrin, 2000 [1. ed.: 1938], mas pode ser lido, em português, em BACHELARD, G. A formação do espírito científico: contribuição para uma psicanálise do conhecimento. 3. ed. Rio de Janeiro: Contraponto, 2003, p. 17.
[2]. BOTTOMORE, T. (ed.) Dicionário do pensamento marxista, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1988, verbete Idealismo.
[3]. O mito da caverna está no início do livro sétimo de “A República” de Platão. Cf. PLATÃO, Diálogos, vols. VI-VII: A República. Belém: Editora da Universidade Federal do Pará, 1976 [3. ed. rev.: 2000], p. 285-289.
[4]. Na Bíblia a palavra hebraica original que foi traduzida pelo grego profêtês, dando, em português, profeta, é nâbhî’. E nâbhî’ significa aquele que anuncia ou aquele que proclama a mensagem de outrem. O profeta, no sentido bíblico original, é, portanto, um arauto, um porta-voz de alguém que lhe confia uma mensagem, que autoriza sua comunicação e garante sua veracidade. Assim em Is 6,8-9a;Jr 1,7;Ez 2,3a.4b.7a. Cf. DA SILVA, A. J. A voz necessária: encontro com os profetas do século VIII a.C. São Paulo: Paulus, 1998, p. 11-12. Livro revisado em 2011 e disponível para download.
[5]. GAMELEIRA SOARES, S. A. Reler os profetas. Notas sobre a releitura da profecia bíblica. Estudos Bíblicos, Petrópolis, n. 4, p. 14, 3. ed. 1987.
[6]. BOFF, C. Teologia e Prática: Teologia do Político e suas mediações. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1993, p. 48-49.
[7]. SILVA GOTAY, S. O pensamento cristão revolucionário na América Latina e no Caribe. São Paulo: Paulus, 1985, p. 67.
[8]. Cf. BORNHEIM, G. Filosofia do romantismo. In: GUINSBURG, J. (org.) O Romantismo. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2008, p. 75-112.
Última atualização: 27.04.2019 – 13h22