A era das pandemias: o caso da gripe suína

Dois artigos interessantes sobre a gripe suína:

:: A evolução da nova gripe
“Há ainda muito a apreender com essa pandemia e com o vírus. Todos devemos continuar atentos, informados e vigilantes, mas não permitindo que o alarmismo provocado por poucos nos deixe entrar em pânico”, escreve David Uip, médico infectologista, diretor do hospital estadual Emílio Ribas, em São Paulo, em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, 31.07.2009.

:: A era das pandemias e a desigualdade
“Tratar essa pandemia gripal como espetáculo pontual é um equívoco. As pandemias vieram para ficar e suscitam dois debates estruturais”, escrevem Sueli Dallari, professora titular da Faculdade de Saúde Pública da USP e Deisy Ventura, professora do Instituto de Relações Internacionais da USP, em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, 31.07.2009.

O MUNDO está diante das primeiras “pestes globalizadas”, cuja velocidade de contágio, sem precedentes, é inversamente proporcional à lentidão da política e do direito.

A aceleração do trânsito de pessoas e de mercadorias reduz os intervalos entre os fenômenos patológicos de grande extensão em número de casos graves e de países atingidos, ditos pandemias. Assim, tratar a pandemia gripal em curso como um espetáculo pontual é um grande equívoco.

As pandemias vieram para ficar e suscitam ao menos dois debates estruturais: as disfunções dos sistemas de saúde pública dos países em desenvolvimento e a inoperância da Organização Mundial da Saúde (OMS).

Na ausência de quebra de patentes de medicamentos e de vacinas, perecerá um grande número de doentes que, se tratados, poderiam ser salvos. O mundo desenvolvido terá então, deliberadamente, deixado morrer milhões de pobres.

Sob fortes pressões políticas, a OMS tem divulgado com entusiasmo doações de tratamentos e descontos aos países menos avançados na compra do oseltamivir, o famoso Tamiflu, fabricado pela Roche, até então o único tratamento eficaz contra o vírus A (H1N1). Mas essa pretensa generosidade é absolutamente insignificante diante da possível contaminação de um terço da humanidade.

A apologia do Tamiflu tem levado milhares de pessoas à compra do medicamento pela internet ou a cruzar fronteiras para obtê-lo em países vizinhos. O uso indiscriminado do medicamento deve ser combatido com vigor, tanto pela probabilidade de consumo de produto falso quanto por fazer com que rapidamente o vírus se torne resistente também ao oseltamivir, o que ocorreu em casos recentes. Ainda mais grave: as constantes mutações do vírus tornam o mundo refém da indústria de medicamentos.

A OMS deve operar para que paulatinamente os Estados assumam o leme, com todos os custos que isso implica, do investimento em pesquisa ao serviço de saúde pública.

O direito não pode ser desperdiçado: o Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio, negociado no âmbito da Organização Mundial do Comércio, criou a licença compulsória, dita quebra de patente, para, entre outros casos, os de urgência.

Ora, pode ocorrer algo mais urgente do que uma pandemia?

No entanto, quebrar a patente do Tamiflu, embora imprescindível, é apenas uma ponta do iceberg. É preciso que os Estados desenvolvam as condições para produzi-lo.

O mesmo ocorre em relação à insuficiência de kits para diagnóstico: com a progressão da pandemia, é provável que não sejamos capazes sequer de contar os mortos, ou seja, aqueles que comprovadamente foram vítimas desse vírus.

A prevenção da doença traz um problema adicional, que é a pressa: os mais nefastos efeitos da vacina contra o A (H1N1) ocorrerão nos primeiros países a generalizá-la, que serão, infelizmente, os latino-americanos, até agora os mais atingidos pela doença.

Assim, a deplorável desigualdade econômica mundial distribui também desigualmente o peso das urgências sanitárias. Os pobres portam o fardo mais pesado, eis que a pandemia gripal vem juntar-se a outras doenças endêmicas, como paludismo, tuberculose e dengue, cuja subsistência deve-se às adversas condições de trabalho e de vida, sobretudo em grandes aglomerações urbanas, não raro em condições de habitação promíscuas, numa rotina que favorece largamente a contaminação.

Caso o fenômeno se agrave, novas restrições, além do controle do Tamiflu, podem ser necessárias, a exemplo da limitação de reuniões públicas e aglomerações, que já foi adotada em países próximos, como a Argentina.

A pandemia pode trazer, ainda, a estigmatização de grupos de risco ou de estrangeiros, favorecendo a cultura da insegurança, pois o medo é tão contagioso quanto a doença.

Por tudo isso, urge revisar o papel da OMS no sistema internacional e retomar o debate sobre a criação de um verdadeiro sistema de vigilância epidemiológica no Brasil, apto a regular a eventual necessidade de restrições a direitos humanos e a organizar a gestão das pandemias com a maior transparência possível.

Caso contrário, seguirá atual o que escreveu Albert Camus, em 1947, no grande romance “A Peste”: “Houve no mundo tantas pestes quanto guerras. E, contudo, as pestes, como as guerras, encontram sempre as pessoas igualmente desprevenidas”.

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