Fundamentalismo: um desafio ecumênico

A revista Concilium, em um fascículo um tanto datado (1992!), mas com um tratamento dado ao tema que me parece ainda atual, aborda a questão do fundamentalismo como um desafio ecumênico. É claro que há questões novas, que devem ser lidas em outras obras, porém, transcrevo aqui pequenos trechos da Concilium, que acredito dignos de reflexão, especialmente quando vejo, nestes dias, as notícias sobre as atitudes fundamentalistas, tanto de um conhecido pregador norte-americano, quanto de radicais judeus que, ancorados no texto bíblico e/ou em suas tradições, vêem a doença de Sharon como castigo divino por ter retirado os colonos judeus da faixa de Gaza e ter entregue aos palestinos terra que, segundo eles, pertencia a Deus… o qual, por sua vez, a dera a Israel!

KÜNG, H.; MOLTMANN, J. Fundamentalismo: um desafio ecumênico. Concilium, Petrópolis, v. 241, n. 3, 1992, 165 p.

Para complementar a Concilium podem se lidos:
MARTY, M. E; APPLEBY, R. S.(eds.) Accounting for Fundamentalisms: The Dynamic Character of Movements. Chicago: University of Chicago Press, 2004, 862 p.
MARTY, M. E; APPLEBY, R. S.(eds.) Fundamentalisms Comprehended. Chicago: University of Chicago Press, 2004, 528 p.
PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA. A Interpretação da Bíblia na Igreja. São Paulo: Paulinas, 1994 (Leitura fundamentalista: p. 82-86).

What is Biblical Fundamentalism All About?

[Uma definição do fundamentalismo pelos fundamentalistas da Fundamental Evangelistic Association:] Biblical fundamentalism is neither a political movement nor an adherence to the culture of a bygone era. Rather, it is a movement of men and ministries who, recognizing God’s Word as completely authoritative in every area of which it speaks, are dedicated to theological orthodoxy and an attitude of disdain for unbelief as well as theological, ecclesial or ministerial compromise. Biblical fundamentalism is a worldview put into action-a worldview that recognizes man’s need to honor and glorify God in every area of life as revealed through His written Word, the Bible. The Biblical fundamentalist lives out his worldview by manifesting his beliefs through action-particularly, through his love for others, his obedience to God’s Word and his loyalty to God Himself. Biblical fundamentalism, then, is all about love, obedience and loyalty!

COLEMAN, J. A. Fundamentalismo global: perspectivas sociológicas. Concilium, o. c., p. 55-56:

Entre muitas definições conflitantes e – às vezes – puramente convencionais, proponho, como base útil para o estudo comparado dos fundamentalismos, a seguinte definição e explicação de fundamentalismo dada pelos sociólogos Anton Shupe e Jeffrey Hadden (Secularization and Fundamentalism Reconsidered, vol. III. New York: Paragon House, 1989, p. 111): “Em termos extremamente simples, definimos o fundamentalismo como um movimento que visa recuperar a autoridade sobre uma tradição sagrada que deve ser reintegrada como antídoto contra uma sociedade que se soltou de suas amarras institucionais. Do ponto de vista sociológico o fundamentalismo implica: 1) repúdio à radical separação entre sagrado e secular, que foi se impondo sempre mais com a modernidade; e 2) um plano para anular esta bifurcação institucional e com isso trazer a religião de volta para o centro do palco, como importante fator ou parte interessada nas decisões relativas ao interesse público”. O fundamentalismo visa recuperar a autoridade sobre uma tradição sagrada. Distingue-se dos apelos utópicos a criar uma ordem social nova, até agora apenas sonhada. Os fundamentalistas conclamam as pessoas a voltar a uma tradição perdida. Exigem a recuperação dos valores de uma época anterior, presumivelmente mais pura e mais íntegra. Buscam, assim, reorientar a sociedade e a cultura para um futuro mais desejável. Essa época anterior reconstruída pode, evidentemente, padecer de uma idealização em alto grau ou depender de uma ênfase exagerada, mas muito criativa, dada a um ou outro traço da época anterior imaginada. Os historiadores que prezam a exatidão científica terão grande dificuldade em descobrir as provas do pretenso passado idealizado, agora recuperado de forma seletiva. Se numa época anterior existiu uma sociedade mais perfeita e mais honesta, devem necessariamente os fundamentalistas explicar como essa ordem social se desencaminhou. As ideologias ou cosmovisões fundamentalistas apontam, então, símbolos do mal. Apontam e condenam várias ideologias, movimentos sociais e forças ou indivíduos que desencaminharam a sociedade do antigo estado moral idealizado. Conceitos relacionados com ‘colapso moral’ e corrupção dos valores abundam no discurso fundamentalista. Às vezes esses conceitos vêm ligados a supostas conspirações de inimigos tachados de ‘modernistas’ ou ‘humanistas seculares’. Os fundamentalistas procuram apresentar elos de continuidade entre seu movimento fundamentalista e a tradição de fé que este afirma desejar recuperar. Os símbolos centrais evocados pelas reações fundamentalistas ocupam geralmente também um lugar central na ortodoxia da religião. Assim, por exemplo, a sola scriptura transformada em Escritura inerrante ou o primado papal transformado em fundamentalismo papal unem os fundamentalistas à corrente ortodoxa do Protestantismo ou do Catolicismo onde possuem aliados potenciais. Evidentemente, os integristas católicos e os fundamentalistas protestantes tendem a manipular desproporcionalmente os símbolos ortodoxos e a apresentar uma caricatura dos mesmos. Ainda assim, muitas vezes os fundamentalismos retroalimentam a corrente ortodoxa e são, por sua vez, alimentados por aliados na corrente ortodoxa. Às vezes é difícil traçar limites nítidos entre os fundamentalistas e os tradicionalistas ou conservadores mais nuançados. Esta ambigüidade confere ao fundamentalismo uma força que ultrapassa os grupos marginais radicais que o adotam integralmente.

VOLF, M. O desafio do fundamentalismo protestante. Concilium, o. c., p. 127;129-130:

Historicamente, o fundamentalismo protestante foi uma tardia reação religiosa à modernidade. Mais precisamente: foi uma reação à reação do cristianismo liberal à modernidade. O livro de um estudioso do Novo Testamento, J. Gresham Machen, de Princeton, que é provavelmente a melhor expressão do programa teológico fundamentalista, sugere isto através de seu título: Christianity and Liberalism (1923). Na seção histórica do presente artigo, tratarei de Machen como sendo o ‘fundamentalista padrão’ (…) A obra de Machen, Christianity and Liberalism, consiste principalmente de contraposições entre doutrinas bíblicas e as pretensões teológicas do liberalismo. A Bíblia exalta a ‘terrível transcendência de Deus’; o liberalismo aplica o nome de Deus ao ‘processo do mundo’. A Bíblia ensina que ‘o homem é um pecador sob a justa condenação de Deus’; o liberalismo acredita que ‘sob as grosseiras feições exteriores do homem… é possível descobrir a abnegação suficiente para servir de fundamento à esperança da sociedade’. A Bíblia proclama Jesus Cristo como objeto divino e humano da fé; o liberalismo vê nele um exemplo humano de fé. A mensagem central da Bíblia é a salvação da culpa do pecado pelo sacrifício expiatório de Cristo, o Filho de Deus; o liberalismo ensina que a salvação vem pelos próprios seres humanos, vencendo sua preguiça para fazer o bem (…) O ímpeto mais forte que está por trás do fundamentalismo americano se compara à força propulsora da neo-ortodoxia européia: é a crítica da adaptação da teologia liberal à modernidade, partindo da posição vantajosa de redescobrir a ‘terrível transcendência’ de Deus e a ação salvífica de Deus em favor da humanidade pecadora. O acento na Bíblia como Palavra de Deus em ambos os movimentos é parte e parcela desta descoberta.

MOLTMANN, J. Fundamentalismo e modernidade. Concilium, o.c., p.142-143:

Os fundamentalistas não reagem às crises do mundo moderno, mas às crises que o mundo moderno provoca em sua comunidade de fé e em suas convicções básicas. A convicção de fé se baseia na segurança da autoridade divina. Nas assim chamadas Religiões do Livro, é a autoridade divina do documento da revelação: a palavra de Deus é, como o próprio Deus, sem erro e infalível (…) As ciências históricas e empíricas do mundo moderno são reconhecidas enquanto concordarem com [o documento divino da revelação], mas são rejeitadas se questionarem esta autoridade intemporal (…) O documento divino da revelação não pode estar sujeito à interpretação humana mas, ao contrário, a interpretação humana deve estar sujeita ao documento divino da revelação. O fundamentalismo exclui todo juízo racional sobre a condicionalidade histórica de sua origem e sobre a diferença hermenêutica em relação às condições mudadas do presente. O conteúdo de verdade do documento da revelação é intemporal e não precisa ser constantemente explicado ou atualizado, mas apenas conservado intocável. O fundamentalismo baseado na revelação não argumenta, apenas afirma. Não pede compreensão, mas sujeição. Não se trata absolutamente de um problema hermenêutico mas de uma luta pelo poder: ou a palavra de Deus ou o ‘espírito da época’. O fundamentalismo também não é um fenômeno de retirada ou de defesa, mas de avanço sobre o mundo moderno para dominá-lo. Faz parte das várias estratégias teopolíticas atuais…

HEBBLETHWAITE, P. O fundamentalismo romano-católico… Concilium, o. c., p. 114:

Se considerarmos o fundamentalismo não como um corpo doutrinal mas como uma atitude em face da crença religiosa, atitude caracterizada pela canonização de um texto antigo, pelo apego ao seu sentido literal e pela convicção de que só um pequeno resto há de salvar o mundo pela fidelidade à inspiração original, então sem dúvida, existem fundamentalismos romano-católicos. Mas eles tendem a rejeitar essa qualificação, por causa de suas conotações protestantes. Os fundamentalistas católicos diferenciam-se de seus irmãos (e irmãs) protestantes pelo fato de substituir a Bíblia, que não apreciam tanto e nem lêem, pelos Concílios da Igreja, especialmente o Tridentino (Concílio anti-protestante) ou pelo Vaticano I (Concílio antimoderno). Ou então combinam os dois. Esses Concílios representam a ‘idade de ouro’, quando ‘a Igreja sabia para onde ia’.

NEUSNER, J. O desafio do fundamentalismo judaico contemporâneo. Concilium, o. c. p. 67-68:

O ‘fundamentalismo’, categoria teológica cristã protestante, não se aplica a nenhum dos judaísmos contemporâneos. Para nenhum judaísmo hoje – seja Reformista, Reconstrucionista, Conservador, Ortodoxo em qualquer uma das numerosas formas de Judaísmo Ortodoxo atualmente florescentes – a proposição da veracidade literal e inerrante da Escritura, lida segundo suas próprias condições e em seus próprios parâmetros, constitui uma opção. Isso porque todos os Judaísmos abordam as Escrituras hebraicas, conhecidas no Judaísmo como Torá escrita, pelo método estabelecido pela Torá oral, hoje conservada em forma escrita nos dois Talmudes e em várias compilações de Midrashes; e na leitura da Torá oral, embora a Torá escrita seja sempre verdadeira, ela nunca é lida de modo literal, como a hermenêutica fundamentalista protestante sustenta que deve ser. Por conseguinte, em sentido estrito não podemos falar de fundamentalismo no contexto de nenhum Judaísmo ou, portanto, do Judaísmo em geral. Mas, enquanto o fundamentalismo designa um fenômeno mais amplo do que dá a entender o fundamentalismo hermenêutico, podemos apontar pontos de concordância em recentes desdobramentos entre os Judaísmos e correlativos em vários Cristianismos e Islamismos. Pois entre os Judaísmos de hoje levantaram-se de forma intensa questões que, em geral, as pessoas supunham não estarem mais sujeitas a debate. E descobrimos que questões consideradas encerradas suscitam discussões intensas e violentas. Na medida em que podemos identificar como ‘fundamentalismo’ uma renovação do debate sobre as questões fundamentais de organização social da fé – a ordem social judaica – podemos afirmar que existe um fundamentalismo florescendo entre os Judaísmos contemporâneos, e que constitui um importante desafio à ordem social judaica, por um lado, e ao lugar ocupado pelo complexo religioso judaico entre os outros complexos religiosos, por outro.

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3 comentários em “Fundamentalismo: um desafio ecumênico”

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