Tiglat-Pileser I, rei da Assíria de 1115 a 1076 a.C.

Em 1177 a.C., grupos de invasores, que hoje chamamos de “povos do mar”, chegaram ao Egito. As forças militares egípcias, sob o comando do faraó Ramsés III, conseguiram derrotá-los, mas a vitória enfraqueceu tanto o Egito, que logo o então poderoso reino caiu em declínio, assim como a maioria das civilizações vizinhas.

Depois de séculos de existência de brilhantes civilizações, o mundo da Idade do Bronze chegou a um fim abrupto e cataclísmico. De acordo com as inscrições de RamsésCLINE, E. H. 1177 a.C.: o ano em que a civilização entrou em colapso. Barueri: Avis Rara, 2023 III, nenhum país foi capaz de se opor à pressão dos “povos do mar”.

As grandes potências da época realmente caíram uma a uma: Hatti e Ugarit desapareceram, Babilônia e Assíria encolheram, o Egito saiu enfraquecido.

A prosperidade econômica e cultural do final do segundo milênio a.C., que se estendia da Grécia ao Egito e à Mesopotâmia, deixou repentinamente de existir, juntamente com sistemas de escrita, tecnologia e arquitetura monumental.

Mas os “povos do mar” sozinhos não poderiam ter causado um colapso tão generalizado. Como isso aconteceu?

Em 1177 a.C.: o ano em que a civilização entrou em colapso, Eric H. Cline nos conta a emocionante história de como o colapso foi causado por múltiplos fatores interligados, desde invasão e revolta até terremotos, seca e bloqueio das rotas do comércio internacional.

Agora, dando continuidade à narrativa, Eric H. Cline nos oferece Depois de 1177 a.C.: a sobrevivência das civilizações.

Transcrevo, a seguir, um trecho do livro Depois de 1177 a.C., onde se fala de Tiglat-Pileser I (1115-1076 a.C.), rei da Assíria.

Está no capítulo 2 e o título é: Conquistador de todas as terras, vingador da Assíria. Pois é assim que, em uma inscrição, se apresenta Aššur-reša-iši I, rei da Assíria de 1133 a 1116 a.C. Ele é o pai de Tiglat-Pileser I. Agora, Eric H. Cline.

De modo geral, os assírios e babilônios provaram estar entre as sociedades afetadas mais resilientes e bem sucedidas em sua resistência às consequências do colapso. Eles foram capazes de reter o conhecimento da escrita, realizar grandes projetos de construção e manter seus sistemas de governo em funcionamento.

No entanto, mesmo eles não escaparam ilesos. Por exemplo, evidências arqueológicas obtidas a partir de pesquisas na região da antiga Babilônia sugerem que pode ter havido uma diminuição na população de até 75 por cento durante os trezentos anos entre o colapso no final da Idade do Bronze e o início do ressurgimento da Babilônia. depois de 900 a.C.

CLINE, E. H. After 1177 B.C.: The Survival of Civilizations. Princeton: Princeton University Press, 2024Além disso, de acordo com A. Kirk Grayson, um renomado estudioso da Universidade de Toronto que foi responsável pela publicação de todas as inscrições reais assírias conhecidas, em uma série de volumes que apareceram a partir do final dos anos 80 do século XX, quase não há inscrições reais que datam do período de setenta e cinco anos desde o final do reinado de Tukulti-Ninurta I em 1208 a.C até a época de Aššur-reša-iši I (1133-1116 a.C.) É especialmente surpreendente que não existam tais inscrições reais deixadas para nós por um rei chamado Aššur-dan I, que governou por quase cinquenta anos durante este período, de 1179 a 1133 a.C.

Talvez devêssemos ver esta falta de registros reais durante este período como um sinal de que os assírios foram mais afetados pelo colapso no final da Idade do Bronze do que pensávamos. No entanto, não podemos ter certeza disso, especialmente porque eles poderiam ter escrito em materiais perecíveis, como couro, madeira ou tiras de chumbo, mesmo que, por algum motivo, tivessem parado temporariamente de registrar inscrições reais em pedra. Por outro lado, Eckart Frahm, um assiriologista da Universidade de Yale, salienta que as inscrições reais normalmente teriam sido escritas em pedra ou argila, pelo que a lacuna pode, de fato, ser significativa.

Felizmente, como mencionado, os registros reais assírios começam novamente com o reinado de Aššur-reša-iši I, numa época em que pode ter havido uma trégua de cinquenta anos na seca que vinha afetando todo o Mediterrâneo Oriental e as regiões do Egeu (…) Se assim for, Aššur-reša-iši teria se beneficiado deste alívio climático temporário.

Tiglat-Pileser I

Aššur-reša-iši foi sucedido por seu filho, Tiglat-Pileser I, que subiu ao trono assírio em 1115 a.C. Seu reinado durou quase quarenta anos, até 1076 a.C. Como seu pai, ele se vangloriou, afirmando a certa altura que havia cruzado o Eufrates em um total de vinte e oito vezes, duas vezes por ano durante quatorze anos, em perseguição aos arameus. Ele também, como seu pai, resistiu a um ou dois ataques dos babilônios, inclusive mais uma vez de Nabucodonosor I.

Ele é conhecido por nós em parte por causa das muitas inscrições deixadas por seus escribas que descrevem suas proezas, muitas das quais são provavelmente uma hipérbole:

“Tiglat-Pileser, rei forte, rei do universo, rei da Assíria, rei de todos os quatro quadrantes, sitiador de todos os criminosos, jovem valente, homem poderoso e impiedoso que age com o apoio dos deuses Assur e Ninurta, os grandes deuses, seus senhores, e (assim) derrubou seus inimigos, príncipe atento que, pelo comando do deus Shamash, o guerreiro, conquistou, por meio de força e poder, a Babilônia desde a terra de Akkad até o Mar Superior da terra de Amurru e o mar das terras Nairi e tornou-se senhor de tudo. . . soldado de assalto cujas batalhas ferozes todos os príncipes dos quatro quadrantes temiam, de modo que eles se esconderam como morcegos e fugiram para regiões inacessíveis como o jerboa” [um pequeno roedor saltitante do deserto].

Os escribas também registraram, em numerosos prismas octogonais de argila e com grandes e muitas vezes horríveis detalhes, o que Tiglat-Pileser I fez aos infelizes soldados inimigos que não se esconderam ou fugiram para regiões inacessíveis depois de tê-los derrotado em batalha. Por exemplo, depois de ter supostamente derrotado uma coalizão de cinco reis e seu exército combinado de vinte mil homens em uma batalha travada durante o primeiro ano de seu reinado, ele profanou os cadáveres, saqueou suas propriedades e fez o resto prisioneiro:

“Como um demônio da tempestade, empilhei os cadáveres de seus guerreiros no campo de batalha e fiz seu sangue fluir para as cavidades e planícies das montanhas. Cortei-lhes as cabeças e empilhei-as como se fossem montes de cereais em volta das suas cidades. Eu trouxe seus despojos, propriedades e posses incontáveis. Peguei os 6 mil soldados restantes que fugiram de minhas armas e se submeteram a mim e os considerei como pessoas da minha terra”.

A inscrição continua então numa linha semelhante, descrevendo vitórias sobre numerosos outros grupos, listando cada um pelo nome, abrangendo partes do que hoje é aTiglat-Pileser I. A inscrição, gravada na rocha, foi descoberta dentro de uma caverna natural no local chamado Birkleyn ou "O Túnel do Tigre" em 1862 - British Museum Turquia, o Iraque e as áreas costeiras do Levante.

Além disso, as maldições que Tiglat-Pileser I disse aos escribas para adicionarem no final desta longa inscrição foram suficientes para fazer qualquer um hesitar. Ele as dirigiu a quem

“quebra ou apaga minhas inscrições monumentais ou de argila, as joga na água, queima-as, cobre-as com terra. . . quem apaga meu nome inscrito e escreve seu próprio nome, ou quem concebe algo prejudicial e o põe em prática em detrimento de minhas inscrições monumentais”.

Invocando os deuses Anu e Adad para amaldiçoar o potencial ofensor, que presumia ser um futuro rei ou governante, ele então escreveu:

“Que eles derrubem sua soberania. Que eles destruam os fundamentos do seu trono real. Que eles acabem com sua linhagem nobre. Que eles destruam suas armas, provoquem a derrota de seu exército e o façam sentar-se acorrentado diante de seus inimigos. Que o deus Adad atinja sua terra com relâmpagos terríveis e inflija angústia, fome, necessidade e peste em sua terra. Que ele ordene que não viva mais um dia. Que ele destrua seu nome e sua descendência da terra”.

E, sobre os arameus em particular, uma inscrição antiga observa que Tiglat-Pileser I conquistou seis de suas cidades, incendiando-as e saqueando seus bens. Ele também massacrou muitas de suas tropas, perseguindo-as através do Eufrates em jangadas feitas de peles de cabra infladas.

Embora estivessem entre os oponentes mais perigosos dos assírios nessa época e fossem frequentemente considerados arqui-inimigos do rei assírio, especialmente durante os primeiros anos de Tiglat-Pileser I, os arameus não eram seus únicos oponentes. Tiglat-Pileser afirma na mesma inscrição inicial ter obtido controle sobre uma variedade de outras terras, montanhas, cidades e príncipes que também eram hostis a ele e a Assur.

“Eu lutei contra 60 cabeças coroadas e consegui a vitória sobre eles em batalhas, acrescentando território à Assíria e pessoas à sua população”, vangloriou-se. “Eu estendi a fronteira da minha terra e governei todas as suas terras”.

Em outras inscrições, incluindo uma série de tabuinhas, bem como fragmentos de obeliscos encontrados por arqueólogos em Assur, além do chamado Obelisco Quebrado que foi encontrado em Nínive, Tiglat-Pileser descreve a reconstrução e a restauração de vários palácios e outros edifícios em Assur e outros lugares, bem como a escavação de canais há muito negligenciados. Ele também documentou ainda mais campanhas, inclusive no que hoje é a Síria e o Líbano, a oeste. Ele matou e/ou capturou touros selvagens, elefantes e leões no sopé do Monte Líbano e em outros lugares, bem como panteras, tigres, ursos, javalis e avestruzes, cortou e carregou vigas de cedro para usar em um templo em casa , e então continuou para a terra de Amurru (litoral do norte da Síria) e a conquistou.

Ele também recebeu homenagens das cidades costeiras de Biblos, Sídon e Arwad, onde os fenícios estavam começando a se estabelecer, e lista presentes de animais exóticos (…) Esta é a primeira vez que estas cidades costeiras fenícias são mencionadas numa inscrição estrangeira desde o colapso da Idade do Bronze (…).

Vale notar que o novo mundo do final do século XII a.C. era muito diferente do ápice da Idade do Bronze Recente no século XIV a.C. Naquela época, os reis da Assíria faziam parte das Grandes Potências e trocavam enormes presentes reais com outros reis, do Egito a Hattusa, enquanto os reis menores de Biblos, Sídon, Tiro e outras cidades cananeias próximas praticavam comércio e diplomacia entre si e com as grandes potências.

Agora, com Tiglat-Pileser I no comando, e especialmente mais tarde, a partir do século IX, como ficará evidente, os assírios simplesmente tiravam o que queriam dos fenícios e de outros, seja saqueando as cidades menores derrotadas, e apreendendo o que precisavam, ou cobrando tributo, ou ambos.

 

Overall, the Assyrians and the Babylonians proved to be among the most resilient and successful of the affected socie­ties to weather the aftermath of the Collapse. They were able to retain their knowledge of writing, undertake massive building proj­ects, and keep their systems of government in place. However, even they did not escape unscathed. For instance, archaeological evidence obtained from surveys in the region of ancient Babylonia suggests that ­there may have been a decrease in population of up to 75 ­percent during the three hundred years between the Collapse at the end of the Bronze Age and the beginning of Babylonian resurgence ­after 900 BC

Prisma de argila com inscrição histórica de Tiglat-Pileser I. Encontrado em Assur por Austen Henry Layard - British Museum (BM 91033)In addition, according to A. Kirk Grayson, a renowned scholar at the University of Toronto who was responsible for publishing all the known royal Assyrian inscriptions in a series of volumes that appeared from the late 1980s onward, ­there are almost no royal inscriptions that date to the seventy-­five-­year period from the end of the reign of Tukulti-­Ninurta I in 1208 BC u­ ntil the time of Aššur-­reša-­iši I. It is especially surprising that ­there are no such royal inscriptions left to us by a king named Aššur-­dan I, who ruled for almost fifty years during this period, from 1179 to 1133 BC.

It may be that we should see this lack of royal rec­ords during this period as a sign that the Assyrians ­were more affected by the Collapse at the end of the Bronze Age than we thought. However, we cannot know this for certain, especially since they could conceivably have been writing on perishable materials such as leather, wood, or lead strips, even if they had for some reason temporarily ceased to record royal inscriptions on stone. On the other hand, Eckart Frahm, an Assyriologist at Yale University, points out that royal inscriptions would usually have been written on stone or clay, so the gap may indeed be meaningful.

Fortunately, as mentioned, the royal Assyrian records begin again with the reign of Aššur-­reša-­iši I, at a time when ­there may have been a fifty-­year respite to the drought that had been impacting the entire Eastern Mediterranean and Aegean regions; I ­will discuss this further below.20 If so, Aššur-­reša-­iši I ­will have benefited from this temporary climactic reprieve.

Tiglath-­Pileser I

Aššur-­reša-­iši was eventually succeeded by his son, Tiglath-­Pileser I, who came to the Assyrian throne in 1115 BC. His reign lasted nearly forty years, ­until 1076 BC. He made boasts similar to ­those of his father, stating at one point that he had crossed the Euphrates a total of twenty-­eight times, twice a year for fourteen years, in pursuit of the Aramaeans. He also, like his ­father, withstood an attack or two by the Babylonians, including yet again by Nebuchadnezzar I.

He is known to us in part because of the many inscriptions left behind by his scribes that describe his prowess, much of which is prob­ably hyperbole:

“Tiglath-pileser, strong king, king of the universe, king of Assyria, king of all the four quarters, encircler of all criminals, valiant young man, merciless mighty man who acts with the support of the gods Aššur and Ninurta, the great gods, his lords, and (thereby) has felled his foes, ttentive prince who, by the command of the god Shamash the warrior, has conquered by means of conflict and might from Babylon from the land Akkad to the Upper Sea of the land Amurru and the sea of the lands Nairi and become lord of all. . . ​storm-trooper whose fierce ­battles all princes of the four quarters dreaded so that they took to hiding places like bats and scurried off to inaccessible regions like jerboa” [a small, hopping desert rodent].

The scribes also recorded, on numerous clay octagonal prisms and in great and often gruesome detail, what Tiglath-­Pileser I did to the unfortunate ­enemy soldiers who did not take to hiding places or scurry off to inaccessible regions after he defeated them in b­attle. For example, a­fter having reportedly overwhelmed a co­ali­tion of five kings and their combined army of twenty thousand men in a b­attle fought during the first year of his reign, he proceeded to desecrate the corpses, loot their property, and take the rest prisoner:

“Like a storm demon I piled up the corpses of their warriors on the battlefield and made their blood flow into the hollows and plains of the mountains. I cut off their heads and stacked them like grain piles around their cities. brought out their booty, property, and possessions without number. I took the remaining 6,000 of their troops who had fled from my weapons and submitted to me and regarded them as people of my land”.

The inscription then continues in a similar vein, describing victories over numerous other groups, listing each by name, ranging far and wide over parts of what is now Turkey, Iraq, and coastal areas of the Levant.

In addition, the curses that Tiglath-­Pileser I told the scribes to add at the end of this long inscription were enough to give anyone pause. He addressed ­these to whomever

“breaks or erases my monumental or clay inscriptions, throws them into water, burns them, covers them with earth . . . ​who erases my inscribed name and writes his own name, or who conceives of anything injurious and puts it into effect to the disadvantage of my monumental inscriptions.”

Invoking the gods Anu and Adad to curse the potential offender, whom he assumed would be a ­future king or ruler, he then wrote:

“May they overthrow his sovereignty. May they tear out the foundations of his royal throne. May they terminate his noble line. May they smash his weapons, bring aboutEric H. Cline (nascido em 1 de setembro de 1960) the defeat of his army, and make him sit in bonds before his enemies. May the god Adad strike his land with terrible lightning and inflict his land with distress, famine, want, and plague. May he command that he not live one day longer. May he destroy his name and his seed from the land.”

And, about the Aramaeans in par­tic­u­lar, an early inscription notes that Tiglath-­Pileser I conquered six of their cities, burning them to the ground and looting their possessions. He also massacred many of their troops, pursuing them across the Euphrates on rafts made from inflated goatskins.

Although they w­ ere among the Assyrians’ most dangerous opponents at this time and ­were frequently cast as the archenemy of the Assyrian king, especially during the early years of Tiglath-­Pileser I, the Aramaeans ­were not his only opponents. Tiglath-­Pileser claims in the same early inscription to have gained control over a variety of other lands, mountains, towns, and princes who ­were also hostile to him and to Aššur.

“I vied with 60 crowned heads and achieved victory over them in ­battles, add[ing] territory to Assyria and ­people to its population,” he boasted. “I extended the border of my land and ruled over all their lands.”

In other inscriptions, including a series of clay tablets as well as fragments of obelisks found by archaeologists at the site of Aššur, plus the so-­called Broken Obelisk that was found at Nineveh and has now been redated to his reign, Tiglath-­Pileser describes rebuilding and restoring vari­ous palaces and other buildings in Aššur and elsewhere, as well as digging out long-­neglected moats and canals. He also documented yet more campaigns, including in what is now Syria and Lebanon to the west. He killed and/or captured wild bulls, elephants, and lions at the foot of Mount Lebanon and elsewhere, as well as panthers, tigers, bears, boars, and ostriches, cut down and carried off cedar beams to use in a t­emple back home, and then continued on to the land of Amurru (coastal North Syria) and conquered it.

He also received tribute from the coastal cities of Byblos, Sidon, and Arwad, where the Phoenicians were beginning to establish themselves, and lists gifts of exotic animals, which included a crocodile and a “large female monkey of the seacoast.” He clarifies on the Broken Obelisk and elsewhere that these latter animals were given to him by an Egyptian pha­raoh (prob­ably Ramses XI, the last king of the Twentieth Dynasty), and that they also included a “river-­man,” which was previously identified as a ­water buffalo or perhaps a hippopotamus but has now been recently reidentified as more likely to be a Mediterranean monk seal.

MesopotâmiaTiglath-­Pileser also says that he took a six-­hour boat ­ride while at Arwad and that, while at sea, he killed “a nahiru, which is called a sea-­horse.” In a l­ater inscription, he says specifically that he killed it with a harpoon of his own making. Although ­there has been a fair amount of discussion, scholars have still not de­cided what exactly is a nahiru; some have suggested that it was some kind of small ­whale, seal, or shark, but another text mentions ivory from a nahiru, so that would indicate teeth or a tusk of some sort and, in fact, current opinion may be leaning ­toward an identification as a hippopotamus.

This is the first time that ­these Phoenician coastal cities have been mentioned in an inscription not of their own making since the Collapse of the Bronze Age. I will discuss them at greater length in the next chapter, but for now we can put them into context, for the new world of the late twelfth c­entury BC was very dif­fer­ent from the high point of the Late Bronze Age in the f­ourteenth century BC. Back then, the kings of Assyria ­were part of the Great Powers and exchanged huge royal gifts with other kings, from Egypt to Hattusa, while the smaller, petty kings of Byblos, Sidon, Tyre, and other nearby Canaanite cities practiced trade and diplomacy with both each other and the ­Great Powers. Now, with Tiglath-­Pileser I at the helm, and especially ­later, from the ninth ­century onward, as ­will become apparent, the Assyrians simply took what they wanted from the Phoenicians and o­thers, e­ither by looting the smaller, defeated cities and seizing what they needed or by exacting tribute, or both.

 

Fonte: CLINE, E. H. After 1177 B.C.: The Survival of Civilizations. Princeton: Princeton University Press, 2024, p. 47-52.

As notas de rodapé deste trecho, números 17 a 29, foram aqui omitidas.

Sobre o livro: Depois de 1177 a.C.: a sobrevivência das civilizações. Post publicado no Observatório Bíblico em 13.11.2023

Para os textos assírios: GRAYSON, A. K. Assyrian Rulers of the Early First Millennium BC: I (1114–859 BC). Toronto: University of Toronto Press, 1991 (disponível para download em pdf em Internet Archive)

Uma observação sobre as fontes assírias: Elas precisam ser encaradas com cautela [cum grano salis], pois estão cheias de hipérboles e os números podem muito bem ser exagerados. Apesar de uma fonte, às vezes, divergir de outra, uma coisa é sempre constante e consistente: aparentemente os reis assírios nunca foram derrotados, o que parece um pouco difícil de acreditar. Claramente, os textos eram tanto propaganda quanto registros de eventos históricos.

Os escritores-fantasmas de Deus

MOSS, C. God’s Ghostwriters: Enslaved Christians and the Making of the Bible. New York: Little Brown and Company, 2024, 336 p. – ISBN 9780316564670.

Nos últimos dois mil anos, a tradição cristã, os estudos e a cultura pop atribuíram a autoria do Novo Testamento a um seleto grupo de homens: Mateus, Marcos,MOSS, C. God's Ghostwriters: Enslaved Christians and the Making of the Bible. New York: Little Brown and Company, 2024 Lucas, João e Paulo. Mas escondido por trás desses indivíduos nomeados e santificados está um grupo de coautores e colaboradores escravizados e anônimos. Esses trabalhadores essenciais foram responsáveis pela produção dos primeiros manuscritos do Novo Testamento: fazer o pergaminho em que os textos foram escritos, tomar ditados e refinar as palavras dos apóstolos. E à medida que a mensagem cristã crescia em influência, foram os missionários escravizados que empreenderam a árdua viagem através do Mediterrâneo e ao longo de estradas poeirentas para levar o cristianismo a Roma, Espanha e Norte de África – e para as páginas da história. O impacto destes colaboradores escravizados na difusão do Cristianismo, no desenvolvimento de conceitos cristãos fundamentais e na elaboração da Bíblia foi enorme, mas o seu papel tem sido quase totalmente ignorado até agora.

Repleto de revelações profundas sobre o que significa ser cristão e sobre como lemos os próprios textos individuais, Os escritores-fantasmas de Deus é um livro inovador e rigorosamente pesquisado sobre como as pessoas escravizadas moldaram a Bíblia e, com ela, todo o cristianismo.

Leia uma resenha do livro, escrita por Brent Nongbri e publicada em 28 de abril de 2024.

Ele diz, por exemplo:

“Nos últimos anos, Candida Moss publicou vários artigos muito interessantes sobre diferentes aspectos da escravidão e do cristianismo primitivo (…) Agora Moss sintetizou suas descobertas e produziu o que é provavelmente o livro mais importante nos estudos do Novo Testamento escrito no último meio século. God’s Ghostwriters: Enslaved Christians and the Making of the Bible consegue abordar e reformular quase todas as questões “clássicas” dos estudos críticos do Novo Testamento – questões de autoria e pseudepigrafia, fontes e edição, transmissão e variação textual, leitura e recepção, e até mesmo teologia”.

Candida Moss é professora de História dos Evangelhos e Cristianismo Primitivo na Universidade de Birmingham, no Reino Unido. Possui graduação pela Universidade de Oxford e mestrado e doutorado pela Universidade de Yale. A maior parte de seu trabalho nas áreas de Cristianismo Primitivo e Novo Testamento trata de martírio, perseguição, deficiência, escravização e outras questões relacionadas com grupos marginalizados.

Candida Moss (1978-)

For the past two thousand years, Christian tradition, scholarship, and pop culture have credited the authorship of the New Testament to a select group of men: Matthew, Mark, Luke, John, and Paul. But hidden behind these named and sainted individuals are a cluster of unnamed, enslaved coauthors and collaborators. These essential workers were responsible for producing the earliest manuscripts of the New Testament: making the parchment on which the texts were written, taking dictation, and refining the words of the apostles. And as the Christian message grew in influence, it was enslaved missionaries who undertook the arduous journey across the Mediterranean and along dusty roads to move Christianity to Rome, Spain, and North Africa–and into the pages of history. The impact of these enslaved contributors on the spread of Christianity, the development of foundational Christian concepts, and the making of the Bible was enormous, yet their role has been almost entirely overlooked until now.

Filled with profound revelations both for what it means to be a Christian and for how we read individual texts themselves, God’s Ghostwriters is a groundbreaking and rigorously researched book about how enslaved people shaped the Bible, and with it all of Christianity.

Candida Moss is Edward Cadbury Chair of Theology at the University of Birmingham, prior to which she taught for almost a decade at the University of Notre Dame. She holds an undergraduate degree from the University of Oxford and an MA and PhD from Yale University. The award-winning author or co-author of seven books, she has also served as Papal News Commentator for CBS News and writes a column for The Daily Beast.

Como se formou a literatura profética?

MASTNJAK, N. Before the Scrolls: A Material Approach to Israel’s Prophetic Library. New York: Oxford University Press, 2023, 264 p. – ISBN 9780190911096.

Before the Scrolls traça a história da mídia do corpus profético bíblico para propor uma abordagem material da literatura bíblica. Embora os estudiosos entendam que oMASTNJAK, N. Before the Scrolls: A Material Approach to Israel's Prophetic Library. New York: Oxford University Press, 2023. material de composição foi o pergaminho e não o códice, eles persistem em imaginar a sua forma como um único objeto textual. Essa suposição permeia séculos de estudos e motiva muitas das questões feitas sobre a composição bíblica.

Nathan Mastnjak levanta a questão do formato físico original dos textos bíblicos e argumenta que muitas das obras literárias que eventualmente se tornariam os livros proféticos da Bíblia não foram escritas inicialmente como livros. Isaías, Jeremias e Ezequiel foram originalmente compostos em coleções vagamente organizadas de vários rolos e folhas curtas de papiro.

Embora raramente considerados nos estudos, a realidade da forma, formato, produção e substância material de um texto tem uma influência profunda no significado do texto. Diferentemente das obras comprometidas com pergaminhos de livros únicos, essas coleções não tinham uma  ordem de leitura pré-determinada e eram suscetíveis a múltiplos arranjos. Somente na era helenística essas composições foram editadas, organizadas e copiadas em pergaminhos de volume único, como os conhecidos Manuscritos do Mar Morto.

Ao investigar a relação entre forma e significado e a transição da coleção para o livro, Mastnjak sugere novas soluções para problemas clássicos dos estudos bíblicos, como as relações entre o TM e a LXX de Jeremias e entre o Primeiro e o Segundo Isaías. A falha em levar em conta a materialidade do corpus profético levou os estudiosos a ocasionalmente fazer perguntas erradas sobre essas composições e cegou-os para o papel vital que os editores desempenharam na criação da Bíblia como a conhecemos. Reformular grande parte da literatura judaica num modelo de coleção, em vez de um modelo de livro, tem implicações significativas para a nossa compreensão de como a própria Bíblia foi composta e lida.

Nathan Mastnjak é professor de Sagrada Escritura no Seminário Notre Dame em Nova Orleans, Louisiana e autor de Deuteronomy and the Emergence of Textual Authority in Jeremiah.

Há uma boa resenha publicada por Ethan Schwartz em Ancient Jew Review em 17 de abril de 2024.

Nathan Mastnjak (1983-)Before the Scrolls traces the media history of the biblical prophetic corpus to propose a material approach to biblical literature. Although scholars understand that the material of composition was the scroll rather than the codex, they persist in imagining the form as a single textual object. This assumption pervades centuries of scholarship and drives many of the questions asked about biblical composition. Nathan Mastnjak raises the question of the original physical format of biblical texts and argues that many of the literary works that would eventually become the Bible’s prophetic books were not written initially as books. Isaiah, Jeremiah, and Ezekiel were originally composed on loosely organized collections of multiple short papyrus scrolls and sheets. Though rarely considered in scholarship, the realia of a text’s form, format, production, and material substance have a profound influence on the meaning of the text. Unlike works committed to single book-scrolls, these collections did not have predetermined orders of reading and were susceptible to multiple arrangements. Only in the Hellenistic era were these compositions edited, organized, and copied into single volume book-scrolls such as those known from the Dead Sea.

By investigating the relationship between form and meaning and the transition from the collection to the book, Mastnjak suggests novel solutions to classic problems in biblical scholarship, such as the relationships between the MT and LXX of Jeremiah and that between First and Second Isaiah. The failure to account for the materiality of the prophetic corpus has led scholarship to occasionally ask the wrong questions of these compositions and has blinded it to the vital role that Hellenistic bookmakers played in the creation of the Bible as we know it. Reconceiving much Judean literature on a collection-model rather than book-model has significant implications for our understanding of how the Bible itself was composed and read.

Nathan Mastnjak is Professor of Sacred Scripture at Notre Dame Seminary in New Orleans, Louisiana and author of Deuteronomy and the Emergence of Textual Authority in Jeremiah.

A lei na Bíblia Hebraica

WELLS, B. (ed.) The Cambridge Companion to Law in the Hebrew Bible. Cambridge: Cambridge University Press, 2024, 408 p. – ISBN 9781108725668.

Este livro oferece uma visão abrangente da história, natureza e legado da lei bíblica. Examinando os debates que giram em torno da natureza da lei bíblica, explora o seuWELLS, B. (ed.) The Cambridge Companion to Law in the Hebrew Bible. Cambridge: Cambridge University Press, 2024, 408 p. contexto histórico, o significado das suas regras e a sua influência no judaísmo e no cristianismo primitivos. O volume também questiona questões-chave: As regras pretendiam funcionar como a lei estatutária do antigo Israel? Há evidências que indiquem que eles serviram a um propósito diferente? Qual é a relação entre este material jurídico e outras partes da Bíblia Hebraica? Mais importante ainda, o livro fornece uma visão aprofundada do conteúdo das leis da Torá, com ensaios individuais sobre leis substantivas, processuais e rituais. Com contribuições de uma equipe internacional de especialistas, escrita especialmente para este volume, The Cambridge Companion to Law in the Hebrew Bible fornece uma visão atualizada dos estudos sobre a lei bíblica e descreve temas e tópicos para pesquisas futuras.

 

This Companion offers a comprehensive overview of the history, nature, and legacy of biblical law. Examining the debates that swirl around the nature of biblical law, it explores its historical context, the significance of its rules, and its influence on early Judaism and Christianity. The volume alsoBruce Wells interrogates key questions: Were the rules intended to function as ancient Israel’s statutory law? Is there evidence to indicate that they served a different purpose? What is the relationship between this legal material and other parts of the Hebrew Bible? Most importantly, the book provides an in-depth look at the content of the Torah’s laws, with individual essays on substantive, procedural, and ritual law. With contributions from an international team of experts, written specially for this volume, The Cambridge Companion to Law in the Hebrew Bible provides an up-to-date look at scholarship on biblical law and outlines themes and topics for future research.

Bruce Wells is Associate Professor in the Department of Middle Eastern Studies at the University of Texas, Austin. He is the author of The Law of Testimony in the Pentateuchal Codes (2004), co-author (with Raymond Westbrook) of Everyday Law in Biblical Israel (2009), and co-author (with F. Rachel Magdalene and Cornelia Wunsch) of Fault, Responsibility, and Administrative Law in Late Babylonian Legal Texts (2019).

O livro de Ezequiel na pesquisa atual

CARVALHO, C. (ed.) The Oxford Handbook of Ezekiel. New York: Oxford University Press, 2023, 555 p. – ISBN 9780190490737.

O estado atual dos estudos sobre o livro de Ezequiel é robusto. Ezequiel, ao contrário da maioria das coleções proféticas pré-exílicas,CARVALHO, C. (ed.)The Oxford Handbook of Ezekiel. New York: Oxford University Press, 2023 contém indícios evidentes de que sua circulação primária foi como um texto literário e não como uma coleção de discursos orais. O autor era altamente educado, a teologia do livro é “sombria” e sua visão da humanidade é esmagadoramente negativa. Em The Oxford Handbook of Ezekiel, a editora Corrine Carvalho reúne estudiosos de diversas perspectivas interpretativas para explorar um dos livros mais debatidos da Bíblia.

Composto por vinte e sete ensaios, o livro fornece introduções às principais tendências nos estudos de Ezequiel, abrangendo sua história, estado atual e direções emergentes. Após uma visão geral introdutória dessas tendências, cada ensaio discute um elemento importante no envolvimento acadêmico com o livro. Vários ensaios discutem a história do texto (seu contexto histórico, camadas redacionais, crítica do texto e uso de outras tradições israelitas e do antigo Oriente Médio). Outros se concentram em temas-chave do livro (como templo, sacerdócio, direito e política), enquanto outros ainda analisam a história da recepção do livro e interpretações contextuais (incluindo arte, uso cristão, abordagens de gênero, abordagens pós-coloniais e teoria do trauma) . Tomados em conjunto, estes ensaios demonstram a vitalidade da pesquisa sobre Ezequiel no século XXI.

Corrine Carvalho é Professora de Teologia na Universidade St. Thomas, em St. Paul, MN, USA. Sua principal área de pesquisa é Ezequiel, Jeremias e Lamentações. No capítulo 1 deste livro ela diz: “Tenho trabalhado em Ezequiel há mais de trinta anos. Este é um campo que tem se beneficiado de um grupo muito dedicado de acadêmicos que se reúne regularmente e partilha discussões vibrantes, que tentei representar nos autores e temas deste livro”.

 

The current state of scholarship on the book of Ezekiel, one of the three Major Prophets, is robust. Ezekiel, unlike most pre-exilic prophetic collections, contains overt clues that its primary circulation was as a literary text and not a collection of oral speeches. The author was highly educated, the theology of the book is “dim,” and its view of humanity is overwhelmingly negative. In The Oxford Handbook of Ezekiel, editor Corrine Carvalho brings together scholars from a diverse range of interpretive perspectives to explore one of the Bible’s most debated books.

Consisting of twenty-seven essays, the Handbook provides introductions to the major trends in the scholarship of Ezekiel, covering its history, current state, and emerging directions. After an introductory overview of these trends, each essay discusses an important element in the scholarly engagement with the book. Several essays discuss the history of the text (its historical context, redactional layers, text criticism, and use of other Israelite and near eastern traditions). Others focus on key themes in the book (such as temple, priesthood, law, and politics), while still others look at the book’s reception history and contextual interpretations (including art, Christian use, gender approaches, postcolonial approaches, and trauma theory). Taken together, these essays demonstrate the vibrancy of Ezekiel research in the twenty-first century.

Corrine Carvalho is Professor of Theology at the University of St. Thomas in St. Paul, MN. Her research is primarily on exilic texts (Ezekiel, Jeremiah, and Lamentations) and she is currently working on a commentary on Ezekiel. She is an active member of both the Society of Biblical Literature and the Catholic Biblical Association, and currently serves as General Editor of The Catholic Biblical Quarterly.

Contents

1. Ezekiel Scholarship in the Twenty-​first Century
Corrine Carvalho
2. Ezekiel in Its Historical Context
Marvin A. Sweeney
3. The Mesopotamian Context of Ezekiel
Daniel Bodi
4. Ezekiel and Israel’s Legal Traditions
Michael A. Lyons
5. Ezekiel among the Prophetic Tradition
Anja Klein
6. Ezekiel and Israelite Literary Traditions
Dexter E. Callender
7. Text-​Critical Issues in Ezekiel
Timothy P. Mackie
8. Rhetorical Strategies in the Book of Ezekiel
Dale Launderville
9. Ezekiel as a Written Text: Archiving Visions, Remembering Futures
Ian D. Wilson
10. Ezekiel among the Exiles
Dalit Rom-​Shiloni
11. Ezekiel and Politics
Madhavi Nevader
12. Priests, Levites, and the Nasi: New Roles in Ezekiel’s Future Temple
Tova Ganzel
13. Ezekiel’s Concept of Covenant
John Strong
14. Ezekiel and the Foreign Nations
C. L. Crouch
15. Ezekiel and the Priestly Traditions
Stephen L. Cook
16. Communications of the Book of Ezekiel: From the Iron Wall to the Voice in the Air
Soo J. Kim Sweeney
17. Ezekiel in Christian Interpretation: Gog, Magog, and Apocalyptic Politics
Andrew Mein
18. Pastoral Appropriations of Ezekiel
Steven Tuell
19. Ezekiel in the Jewish Tradition
Yedida Eisenstat
20. Where There’s Fire There’s Smoke: Text and Image in the Ezekiel Painting at Dura-​Europos
Margaret S. Odell
21. Ezekiel and Gender
Amy Kalmanofsky
22. Embodiment in Ezekiel
Rhiannon Graybill
23. Ezekiel as Trauma Literature
Ruth Poser
24. Uncertainties in First Contact? Ezekiel’s Struggle Toward a “Comparative Gaze”
Daniel L. Smith-​Christopher
25. Ezekiel’s Map of Future Past
Carla Sulzbach
26. Ezekiel Imperialized Geographies in the Nation Oracles
Steed Vernyl Davidson
27. Ezekiel’s Tangible Ethics: Physicality in the Moral Rhetoric of Ezekiel
Corrine Carvalho

Ezequiel, um estranho personagem

Quem foi Ezequiel?

Ezequiel foi um estranho personagem. Parece que ele tinha uns comportamentos inusitados, o que levou os estudiosos a terem opiniões divergentes sobre ele, tachando-o de “santo a louco”.

Pode exemplificar?

Claro. Um dia ele pegou um tijolo, gravou nele a cidade de Jerusalém, ao seu redor montou um cerco com trincheiras, aterro, acampamento, aríetes e, em seguida, deitado, imóvel, ao lado do tijolo, passou a racionar, por muitos dias, o próprio alimento e a água que bebia. Isto está em Ez 4, 1-17.

Tem mais?

Ora, se tem. Outro dia, ele pegou uma espada e com ela raspou o cabelo e a barba. Em seguida, repartiu assim os pelos em três partes: um terço foi queimado na cidade, outro terço foi cortado com a espada e o restante foi espalhado ao vento. Somente uns poucos fios foram presos à aba de sua veste. Isto está em Ez 5,1-4.

Parece esquisito mesmo. E então?

E então? Pois ele fez mais coisas estranhas. Noutra ocasião, ele, de dia, arrumou uma bagagem para viagem, e, ao anoitecer, com as mãos, abriu um buraco na parede e saiu com a carga nos ombros cobrindo o próprio rosto para não ver a terra que deixava. Isto está em Ez 12,1-20.

Acabou?

Que nada. Quando a sua mulher morreu, ele não lamentou a perda e nem ficou de luto, embora ela fosse, como ele mesmo diz, o desejo de seus olhos. E, a partir destaEzequiel de Michelangelo - Capela Sistina, Vaticano (1511) data, o profeta ficou mudo, não abrindo mais sua boca. Isto está em Ez 24, 15-27.

Quando e onde atuou Ezequiel?

Muitos textos do livro de Ezequiel são datados. E cerca de uma dúzia destas datas são consideradas seguras, o que nos leva a situar sua atuação de 593 a 571 a.C. entre os exilados judaítas da Babilônia. Filho de um sacerdote, ele seria jovem quando foi enviado para a Babilônia na primeira etapa da deportação, em 597 a.C., tendo se tornado profeta somente alguns anos depois.

Pode-se dizer, a partir destes e de outros textos, que Ezequiel é, para os pesquisadores, um controvertido personagem?

Sacerdote, viúvo, profeta, poeta, teólogo, ele já foi chamado de tudo por aí, desde maluco até uma das maiores figuras espirituais de todos os tempos. Na opinião de alguns especialistas, que tentaram diagnosticar Ezequiel, ele seria portador de alguma doença mental. Nestes estranhos comportamentos de Ezequiel alguns viram, do século XIX para cá, sintomas de catalepsia, catatonia, paranoia, esquizofrenia, psicose, delírios de perseguição e grandeza, fantasias de castração, regressão sexual inconsciente… embora muitos deles concluam que, mesmo sendo um doente mental, Ezequiel foi uma importante voz profética entre os exilados judaítas na Babilônia.

Quais autores chegaram a este tipo de conclusão?

Bem, estas são conclusões de autores como August Klostermann (1877), Edwin C. Broome (1946), Karl Jaspers (1947) e David J. Halperin (1993), para citar alguns entre os mais discutidos.

É possível descrever com mais detalhes o pensamento de algum destes autores?

Claro. Um bom exemplo é o estudo de David J. Halperin. O livro é Seeking Ezekiel: Text and Psychology. University Park, PA: Penn State University Press, 1993, 276 p. – ISBN 9780271009476.

Na Introdução, leio:

Sem dúvida, o livro de Ezequiel é poderoso. No entanto, podemos estar inclinados a ver o seu poder como o da demência e a aplicar a Ezequiel as palavras de outro profeta: “O profeta é tolo, o inspirado é louco” (Os 9,7).

“Louco” é um diagnóstico vago. Em 1946 Edwin C. Broome tentou melhorá-lo. Ele aceitou a afirmação do livro de que era obra do profeta Ezequiel, sacerdote de Jerusalém, mais tarde na Babilônia – e supôs que as estranhezas do livro eram as estranhezas do Ezequiel histórico. Ele abordou essas peculiaridades a partir de uma perspectiva psicanalítica e as unificou com um diagnóstico clínico. Elas eram, argumentou ele, sintomas de esquizofrenia paranoide.

A resposta acadêmica ao artigo de Broome foi menos do que entusiasmada. O biblista Carl Gordon Howie e o psiquiatra Ned H. Cassem prepararam refutações completas das propostas de Broome. A maioria o ignorou totalmente ou deu como certo que Howie e Cassem o haviam demolido. Bernhard Lang, escrevendo em 1981, resumiu o consenso: “O trabalho de Broome não requer mais refutações. Deve ser notado mais como uma curiosidade do que como uma contribuição séria para a compreensão do profeta”.

Este consenso está errado. O artigo de Broome contém de fato muitas coisas que podem ser refutadas e devem ser descartadas. Seu diagnóstico arrogante, mesmo que correto, oferece pouca ajuda na compreensão de Ezequiel ou de seu livro. Mas ele também oferece insights importantes e provocativos que abrem as portas para investigações frutíferas sobre o que está por trás do texto. Rejeitar o artigo de Broome como uma “curiosidade” é bater estas portas, desnecessariamente, na cara dos estudos.

Proponho reabrir as portas de Broome e avançar, em segurança, o mais longe que puder para o que está além. A peça central do meu argumento será um reexame de uma das sugestões de Broome: que o ato de abrir uma fenda na parede, descrito em Ez 8,7-12, é uma representação simbólica da relação sexual. Acredito que esta interpretação está correta e que pode e deve ser desenvolvida consideravelmente mais do que Broome.

Mas antes disso resumo o argumento de Broome e examino as respostas de Howie, Cassem, Stephen Garfinkel, Ellen F. Davis e (brevemente) outros. O objetivo do capítulo 1 é em parte polêmico. Comprometo-me a defender Broome, o que envolverá atacar os seus atacantes. Mas a controvérsia em torno do artigo de Broome também servirá como introdução a questões metodológicas mais amplas. Nem todos admitirão que os métodos psicanalíticos possam ser legitimamente aplicados aos textos bíblicos. O ceticismo neste ponto e a incapacidade de Broome em antecipá-lo e em responder a ele são responsáveis por grande parte do ridículo e da negligência que Broome recebeu. Se espero que uma abordagem psicanalítica da Bíblia seja levada a sério, não posso fugir às questões metodológicas que ela levanta.

Se o contexto literário de Ez 8,7-12 são os capítulos 8-11, seu contexto psíquico se estende a outras partes do livro. No Capítulo 4 examino esse contexto. Sugiro que oculto por trás das imagens de Ez 8,7-12 está o mesmo padrão – violenta aversão à sexualidade feminina – que é expresso abertamente nos capítulos 16 e 23 e mais secretamente no comportamento de Ezequiel por ocasião da morte de sua esposa, em Ez 24,15-24. O exame destas passagens confirmará minha interpretação de Ez 8,7-12, assim como Ez 8,7-12 ajuda a explicar a horrível intensidade dos capítulos 16 e 23.

Este material nos permitirá prosseguir nossa investigação em uma nova direção. Acredito poder detectar algo mais, algo ainda mais primário e importante, por trás do ódio relativamente direto de Ezequiel pela mulher – uma ambivalência profunda e carregada de erotismo em relação a uma figura masculina dominante. Ezequiel, defendo, tendia a deslocar os elementos positivos da sua ambivalência para o seu Deus, e os seus elementos negativos para outros homens reais ou imaginários. No entanto, ele não conseguiu levar a cabo esta divisão com absoluta consistência. A compreensão deste fato nos permitirá explicar alguns dos elementos mais estranhos e teologicamente mais perturbadores do livro de Ezequiel. Meu argumento até este ponto sugerirá uma nova solução para o velho problema da mudez de Ezequiel, o que explicará por que sua mudez cessou com a destruição do Templo. Elaborarei essa solução em meu capítulo final.

Na conclusão do livro de David J. Halperin, leio:

O argumento central deste livro reside na correlação de Ezequiel 8,7-12, capítulos 16 e 23, e 24,15-27. Essas passagens expressam, de três modos distintos, a mesma postura emocional de seu autor; ou seja, pavor e aversão à sexualidade feminina.

Esta posição é expressa quase abertamente, coberta apenas por um fino véu de alegoria histórica, nos capítulos 16 e 23. Em 8,7-12, é transmitida na linguagem simbólica dos sonhos. Ela se manifesta em 24,15-27, no comportamento autodescrito do autor. Estes três modos de expressão reforçam-se mutuamente, e cada uma das passagens relevantes confirma a interpretação que dei das outras. Eles formam, juntos, uma corda tripla que não se rompe facilmente.

Meu argumento pressupõe que o relato de Ezequiel sobre seu próprio comportamento em 24,15-27 é verdadeiro e preciso. Pressupõe, também, que 8,7-12 deve ser lido como um artefato genuíno de uma experiência alucinatória, que transmite os processos inconscientes do autor de forma tão autêntica (e tão enigmática) quanto nossos sonhos transmitem os nossos. Ambas as premissas podem ser e foram questionadas. Nenhum dos dois, entretanto, é de forma alguma implausível. O ganho exegético que vimos resultar deles justifica a nossa adoção deles.

Estamos, consequentemente, justificados em ler psicologicamente o livro de Ezequiel. Ou seja, podemos permitir-nos compreendê-lo como um documento criado por um ser não menos humano que nós, um documento não menos expressivo de sua humanidade individual do que nossos escritos expressam os nossos. Podemos supor que Ezequiel foi governado, não menos que nós, por uma realidade interior obstinadamente mantida. Uma vez que tenhamos levado em conta as diferenças históricas e culturais, podemos corajosamente procurar reconhecer e compreender a sua realidade interior com base no que sabemos da nossa.

Quem é David J. Halperin?

David J. Halperin foi professor de Estudos Religiosos na Universidade da Carolina do Norte, USA, e autor de The Faces of the Chariot: Early Jewish Responses to Ezekiel’s Vision (1988) e The Merkabah in Rabbinic Literature (1980). Ele diz de si mesmo no Prefácio de Seeking Ezekiel: “Não sou psicanalista, nem tenho uma educação formal em psicologia. Minha formação e especialização são em filologia e história, tendo como temas principais a língua hebraica e a história e literatura do judaísmo antigo. Meu conhecimento da psicanálise deriva da leitura das obras de Freud e de seus seguidores, de conversas e correspondência com profissionais de psiquiatria e da experiência pessoal como paciente analítico”.

Mas este tipo de análise ainda é costumeira ou não?

Ezequiel de Aleijadinho - Congonhas do Campo, MG (entre 1794 e 1804)O que se nota é que este tipo de análise sofreu forte retração nos últimos anos. Isto se deve a vários fatores, mas é mais do que evidente de que qualquer estudo psicológico de um homem morto há cerca de dois mil e seiscentos anos enfrenta formidáveis dificuldades metodológicas. Por isso, alguns sugerem que, ao invés de especularmos sobre hipotéticos traumas sofridos por Ezequiel em sua infância, seria bem mais sensato analisar o seu comportamento a partir da categoria de transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), considerando as suas experiências de exílio e destruição de Jerusalém. O fato é que nada se ganha com a análise psicológica de personalidades bíblicas quando o trabalho exegético básico não é feito. E muitos não o fazem. E há, sim, críticos deste tipo de abordagem que chegam a dizer que tais diagnósticos de personalidades bíblicas nos dizem mais sobre seus autores do que sobre os personagens bíblicos.

Você pode citar um autor crítico deste tipo de abordagem?

Vou citar Christopher C. H. Cook, no artigo Psychiatry in scripture: sacred texts and psychopathology, publicado em The Psychiatrist 36, 2012, p. 225-229, que toma como referência de análise psiquiátrica de Ezequiel três artigos de G. Stein, publicados no British Journal of Psychiatry entre 2008 e 2010. Christopher C. H. Cook é Professor Pesquisador no Departamento de Teologia e Religião da Durham University, Reino Unido.

Ele diz, por exemplo:

Faltam evidências robustas de que Ezequiel sofria de esquizofrenia. G. Stein não explora diagnósticos diferenciais ou evidências de que os textos antigos se referem a uma forma de profecia que era entendida como cultural e religiosamente normal, mesmo que extraordinariamente desafiadora e dramática. Ele não examina se os textos foram realmente escritos por Ezequiel ou se fornecem um relato confiável no qual basear uma avaliação da psicopatologia. Ele não explora suas interpretações do texto no contexto histórico, teológico, literário e cultural da sociedade em que se originaram. Muitas das evidências oferecidas em apoio ao diagnóstico baseiam-se em interpretações errôneas dos textos dos quais foram extraídas.

Evidências psiquiátricas críticas para qualquer conclusão específica estão praticamente ausentes. Os estudos no campo dos estudos bíblicos sugeririam que fosse exercida extrema cautela no que diz respeito a interpretações simplistas de textos específicos como prova dos pensamentos, experiências ou comportamentos reais do profeta. Isto é especialmente verdade quando tais evidências são utilizadas para apoiar conclusões estranhas ao propósito teológico original para o qual o texto foi escrito e anacrônicas às suas tradições culturais e literárias.

A psiquiatria está orientada para a interpretação dos pensamentos, experiências e comportamentos humanos com o propósito específico de diagnosticar e tratar transtornos mentais. Só pode fornecer interpretações fiáveis quando o contexto cultural é levado em consideração. Quando os textos históricos fornecem a evidência diagnóstica, é ainda necessário considerar os recursos dos estudos acadêmicos associados ao estudo desses textos. Não fazer isso deixa aberto o perigo de se chegar a conclusões que não resistem ao escrutínio crítico e que podem levar as pessoas religiosas, especialmente os usuários de serviços de saúde mental, a concluir que a psiquiatria é antipática à busca espiritual ou religiosa e que as experiências e os textos associados a esta busca serão interpretados pelos psiquiatras como evidência de patologia (…).

O livro de Ezequiel é um texto considerado revelador da verdade espiritual e religiosa em pelo menos duas das principais tradições religiosas do mundo. Isto não significa que não possa ser examinado criticamente, e a riqueza de estudos associados a este livro fornece testemunho da disposição judaica e cristã de fazer perguntas difíceis sobre o texto e sua tradição. No entanto, usar a psiquiatria para examiná-la acriticamente e para chegar a conclusões de tipo estritamente psiquiátrico é um desserviço à psiquiatria e à religião.

Autores e obras citadas

BROOME, E. C. Ezekiel’s Abnormal Personality. Journal of Biblical Literature vol. 65 n. 3, 1946, p. 277-292.

CASSEM, N. H. Ezekiel’s Psychotic Personality: Reservations on the Use of the Couch for Biblical Personalities. In: CLIFFORD, R. J.; MACRAE, G. W. (eds.)The Word in the World: Essays in Honor of Frederick L. Moriarty, S.J. Cambridge, Mass.: Weston College Press, 1973, p. 59-70.

COOK, C. C. H. Psychiatry in scripture: sacred texts and psychopathology. The Psychiatrist 36, 2012, p. 225-229.

DAVIS, E. F. Swallowing the Scroll: Textuality and the Dynamics of Discourse in Ezekiel’s Prophecy. Sheffield: Almond Press, 1989.

GARFINKEL, S. Another Model for Ezekiel’s Abnormalities. Journal of the Ancient Near Eastern Society 19, 1989, p. 39-50.

HALPERIN, D. J. Seeking Ezekiel: Text and Psychology. University Park, PA: Penn State University Press, 1993.

HOWIE, C. G. The Date and Composition of Ezekiel. Philadelphia: Society of Biblical Literature, 1950.

JASPERS, K. Der Prophet Ezechiel: Eine pathographische Studie. In: VV. AA. Arbeiten zur Psychiatrie, Neurologie und ihrem Grenzgebieten. ​Heidelberg: H. Kranz, Scherer, Willsbach, 1947, p. 77-85.

KLOSTERMANN, A. Ezechiel: Ein Beitrag zu besserer Wiirdigung seiner Person und seiner Schrift. Theologische Studien und Kritiken 50, 1877, p. 391-439.

LANG, B. Ezechiel: Der Prophet und das Buch. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1981.

O que aconteceu com a cruz em que Jesus morreu?

O que aconteceu com a cruz em que Jesus morreu? – Alejandro Millán Valencia: BBC News Mundo

Segundo a história em que os cristãos se baseiam, Jesus de Nazaré morreu crucificado por ordem do então prefeito romano da Judeia, Pôncio Pilatos.

A jornada dele até aquela morte — uma série de episódios conhecida como Paixão de Cristo — é um dos elementos centrais das comemorações da Semana Santa.

A crucificação é tão simbólica para o Cristianismo que a cruz acabou se tornando o símbolo das religiões que professam devoção à figura de Jesus Cristo.

Mas o que aconteceu com a cruz original?

Dezenas de mosteiros e igrejas em todo o mundo afirmam ter pelo menos um pedaço da chamada “verdadeira cruz” nos altares, para louvor dos seus fiéis.

E muitos deles baseiam a veracidade da origem dessas relíquias em textos dos séculos 3 e 4, que narram a descoberta em Jerusalém do pedaço de madeira onde Jesus Cristo foi executado pelos romanos.

“Essa história, que inclui o imperador romano Constantino e a mãe dele, Helena, foi o ponto inicial dessa trajetória da cruz de Cristo, que sobrevive até hoje”, explica Candida Moss, professora de História dos Evangelhos e Cristianismo Primitivo da Universidade de Birmingham, no Reino Unido.

Ela baseia-se nos escritos de historiadores antigos como Gelásio de Cesareia e Tiago de Vorágine. Mas, para muitos historiadores de hoje, eles não determinam a autenticidade dos pedaços de madeira que vemos em vários templos ao redor do mundo — nem podem servir como confirmação da origem dessas relíquias.

“É muito provável que aquele pedaço de madeira não seja a cruz onde Jesus foi crucificado, porque muitas coisas poderiam ter acontecido com esse objeto. Por exemplo, os romanos podem tê-lo reutilizado para outra crucificação, em outro lugar e com outras pessoas”, raciocina Moss.

Mas, então, como surgiu a história da “verdadeira cruz” e por que existem tantas peças que supostamente fazem parte da madeira “original”?

“(Isso se deve ao) desejo de ter uma proximidade física com algo que acreditamos”, responde o historiador Mark Goodacre, especialista em Novo Testamento da Universidade Duke, nos Estados Unidos.

“As relíquias cristãs são mais um desejo do que algo verdadeiro”, diz ele.

Mas, então, como surgiu a história da “verdadeira cruz” e por que existem tantas peças que supostamente fazem parte da madeira “original”?

“(Isso se deve ao) desejo de ter uma proximidade física com algo que acreditamos”, responde o historiador Mark Goodacre, especialista em Novo Testamento da Universidade Duke, nos Estados Unidos.

“As relíquias cristãs são mais um desejo do que algo verdadeiro”, diz ele.

 

A lenda dourada

Na narrativa do Evangelho, após a morte de Jesus na cruz, o corpo dele foi levado para um túmulo onde hoje é a Cidade Velha de Jerusalém.

E, durante quase 300 anos, não houve menção alguma ao pedaço de madeira usado na crucificação.

Foi por volta do século 4 que o bispo e historiador Gelásio de Cesareia publicou um relato em seu livro A História da Igreja sobre a descoberta em Jerusalém da “verdadeira cruz” por Helena, uma santa da Igreja Católica.

Helena também era mãe do imperador romano Constantino, que impôs o Cristianismo como religião oficial do império.

A história, referenciada por outros historiadores e por escritores como Tiago de Voragine no livro Lenda Dourada, do século 13, indica que Helena, enviada pelo filho para encontrar a cruz de Cristo, foi levada para um local próximo do Monte Gólgota, onde Jesus foi supostamente crucificado. Havia ali três cruzes.

Algumas versões indicam que Helena, ao duvidar de qual seria a cruz verdadeira, colocou uma mulher doente próxima de cada uma das cruzes — e aquela que curou a mulher foi considerada a autêntica.

Outros historiadores afirmam que a “cruz verdadeira” foi reconhecida porque era a única das três que apresentava sinais de ter sido usado para uma crucificação com pregos — segundo o Evangelho de João, Jesus foi o único que foi crucificado com esse método naquele dia.

“Toda essa história faz parte do desejo por relíquias que começou a ocorrer no cristianismo durante os séculos 3 e 4”, contextualiza Goodacre.

O acadêmico destaca que os primeiros cristãos não tinham como foco a busca ou a preservação desse tipo de objeto como fonte de devoção.

“Nenhum cristão durante o primeiro século colecionava relíquias de Jesus”, destaca ele.

“À medida que o tempo passou e o cristianismo se expandiu pelo mundo naquela época, os seguidores da religião começaram a criar formas de ter alguma conexão física com a pessoa que consideram o salvador”, acrescenta o acadêmico.

A origem da busca por essas relíquias tem muito a ver com os mártires.

Segundo historiadores, o culto aos santos começou a ser uma tendência dentro da Igreja Católica. Desde cedo, por exemplo, se estabeleceu que os ossos dos mártires eram evidências do “poder de Deus operando no mundo”, pois eles supostamente produziam milagres que “provavam” a eficácia da fé.

E, como Jesus ressuscitou, não foi possível procurar os ossos dele: segundo a Bíblia, depois de três dias no túmulo, o regresso de Cristo à vida e a posterior “ascensão ao céu” foram corporais.

Com isso, só restaram os objetos, como a cruz e a coroa de espinhos, entre outros.

“Esse período de tempo, quase três séculos após a morte de Jesus, é o que torna improvável que os objetos encontrados em Jerusalém, como a cruz onde ele morreu ou a coroa de espinhos, sejam autênticos”, observa Goodacre. .

“Se isso tivesse sido feito pelos primeiros cristãos, que tiveram um contato mais próximo com os acontecimentos, poderíamos falar na possibilidade de que fossem reais, mas não foi assim que aconteceu.”

 

Relíquias para encher um navio

Parte da cruz entregue à missão capitaneada por Helena foi levada para Roma (o outro pedaço permaneceu em Jerusalém). Segundo a tradição, grande parte dos restos de madeira está preservada na Basílica de Santa Cruz, na capital italiana.

Com o “descobrimento” e a expansão do cristianismo pela Europa durante a Idade Média, a cruz se tornou o símbolo universal da religião. Nesse período, iniciou-se também a multiplicação de fragmentos da cruz, que foram parar em outros templos.

Esses pedaços são conhecidos como lignum crucis (“madeira da cruz”, em latim).

Além da Basílica da Santa Cruz, as catedrais de Cosenza, Nápoles e Gênova, na Itália, o mosteiro de Santo Turíbio de Liébana (que tem a peça maior), Santa Maria dels Turers e a Basílica de Vera Cruz, na Espanha, afirmam ter um fragmento do tronco onde Jesus Cristo foi executado.

A Abadia de Heiligenkreuz, na Áustria, também guarda uma peça. Outro segmento muito importante está na Igreja da Santa Cruz, em Jerusalém.

Junto com as evidências físicas, os concílios de Niceia, no século 4, e de Trento, no século 16, deram validade espiritual à devoção destas relíquias.

Um tratado católico de 1674 afirma: “O sentido religioso do povo cristão encontrou, em todos os tempos, uma expressão em formas variadas de piedade em torno da vida sacramental da Igreja com a veneração das relíquias.”

Esses registros também indicam que as próprias relíquias não são “objetos de salvação”, mas meios para alcançar intercessão e “benefícios por meio de Jesus Cristo, seu Filho, nosso Senhor, que é nosso redentor e salvador”.

Da mesma forma, a multiplicidade de fragmentos foi questionada na época por diversos pensadores.

O teólogo francês João Calvino destacou no século 16, em meio a um boom no tráfico de relíquias onde pedaços da chamada “verdadeira cruz” foram espalhados por igrejas e mosteiros, que, “se quiséssemos recolher tudo o que foi encontrado (da cruz), haveria o suficiente para encher um grande navio”.

No entanto, esta afirmação foi posteriormente refutada por vários teólogos e cientistas ao longo da História.

Recentemente, Baima Bollone, professor da Universidade de Turim, na Itália, destacou num estudo que, se todos os fragmentos que afirmam fazer parte da cruz de Cristo fossem reunidos, “só conseguiríamos restaurar 50% do tronco principal”.

 

Veracidade

“É muito provável que Helena tenha encontrado um pedaço de madeira, mas o que também é muito provável é que alguém o tenha colocado naquele local para dar ideia de que aquela era a cruz onde Jesus morreu”, pondera Moss.

O acadêmico indica que há outra dificuldade em comprovar se estas peças realmente pertenceram, pelo menos, a uma crucificação ocorrida no tempo de Cristo.

“Por exemplo, a datação por carbono, que seria uma das primeiras coisas a se fazer num caso desses, é cara. Uma igreja de porte médio não tem fundos para realizar este tipo de trabalho”, diz ele.

Mesmo que fosse possível financiar tal estudo, a investigação pode afetar a integridade da relíquia.

“A datação por carbono é considerada intrusiva e um tanto destrutiva. Mesmo que seja necessária apenas cerca de 10 miligramas de madeira, esse processo ainda envolve o corte de um objeto sagrado”, observa Moss.

Em 2010, o pesquisador americano Joe Kickell, membro do Comitê de Investigação Cética, conduziu um estudo para determinar a origem das lascas que eram consideradas parte da “verdadeira cruz”.

“Não há uma única evidência que apoie que a cruz encontrada por Helena em Jerusalém, ou por qualquer outra pessoa, venha da verdadeira cruz onde Jesus morreu”, escreveu Kickell num artigo.

Tanto para Moss quanto para Goodacre, a possibilidade de encontrar a verdadeira cruz de Cristo é muito remota.

“Teríamos que fazer um trabalho arqueológico, não teológico. E, mesmo assim, seria muito improvável encontrar uma madeira de mais de dois milênios atrás”, especula Goodacre.

Nesse sentido, para Moss as dificuldades vêm até do objeto a ser procurado.

“Tanto em grego como em latim, a palavra cruz se refere a uma árvore ou a uma vara vertical onde se praticava tortura”, explica o historiador.

“Ou seja, possivelmente estamos falando de um único pedaço de madeira ou estaca, — e não do símbolo que conhecemos atualmente”, conclui ele.

Fonte: BBC News Brasil – 30.03.2024

Introdução aos livros históricos

ABADIE, P. Os livros históricos. São Paulo: Loyola, 2024, 150 p. – ISBN 9786555042931.

Sobre a coleção ABC da Bíblia:ABADIE, P. Os livros históricos. São Paulo: Loyola, 2024, 150 p.

Trata-se de uma verdadeira “caixa de ferramentas” que ajudará o leitor a fazer uma leitura sistemática e esclarecida dos livros da Bíblia. Cada volume desta coleção identifica o autor, ou autores, de determinado livro bíblico ou de um conjunto de escritos, apresenta seu contexto histórico, cultural e redacional, analisa-o literariamente, mostra sua estrutura, resume-o, aborda seus grandes temas, estuda sua recepção, influência e atualidade, e fornece um léxico de lugares e pessoas, tabelas cronológicas, mapas e bibliografia.

O original foi publicado em francês em 2020.

Philippe Abadie é doutor em Teologia e em História das Religiões, professor de exegese bíblica na Universidade Católica de Lyon, França.