Praticar a solidariedade: observações sobre hesedh na Bíblia Hebraica

“Seres humanos são seres coletivos que se identificam com a mesma condição diante de crises agudas que ameaçam nossa existência” (Cris Fernández Andrada, psicóloga, PUC-SP – 10/4/2020).

“Este momento de pandemia mobilizou o surgimento, por todos os cantos do planeta, de movimentos empáticos e de cuidados com o outro (…) Nessas circunstâncias, diante da tristeza, da solidão, da angústia, da depressão, em vez de um maior fechamento e adoecimento, como seria de se esperar, pode ocorrer o contrário, quando a pessoa descobre em si a capacidade de dar uma resposta insubstituível ao chamado que a vida lhe faz. Evidencia-se a responsabilidade com todos aqueles da comunidade humana à qual pertencemos” (Maria Clara Jost de Moraes Vilela, psicóloga da TIP Clínica e Professora da Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais – FCMMG, Belo Horizonte, MG – 26/04/2020).

“O comportamento pró-social [que inclui a disposição em ajudar no caso de crises como a atual] tem muitas facetas e cada pessoa tem seu próprio repertório. Todos somos às vezes muito egoístas. E às vezes somos muito justos, cooperativos e pró-sociais (…) O primeiro pensamento que vem à cabeça quando estamos prontos para ajudar é: queremos reduzir o sofrimento de outra pessoa e deixá-la em uma situação melhor. É o que chamamos de motivação altruísta [intenção de fazer o bem ao próximo] (…) Ajudar e ser generoso também beneficia a própria pessoa que ajuda (…) Quanto mais frequentemente mostramos um comportamento pró-social e percebemos como isso é bom – seja na sociedade, seja no nosso círculo de amigos, seja no nível pessoal –, mais repetiremos esse comportamento” (Anne Böckler-Raettig, psicóloga, Universidade de Würzburg, Alemanha – 1/4/2020).

Despertar a solidariedadeHesedh - solidariedade

Espalhar a solidariedade

Estimular a solidariedade

Multiplicar a solidariedade

Praticar a solidariedade

Promover a solidariedade

Provocar a solidariedade

Reforçar a solidariedade

Resgatar a solidariedade

Despertar, espalhar, estimular, multiplicar, praticar, promover, provocar, reforçar, resgatar a solidariedade.

Estas são algumas das expressões recolhidas em uma busca no Google por “solidariedade na pandemia”, uma referência às ações solidárias desejadas ou executadas durante a pandemia da covid-19 em 2020.

Na fala de uma das psicólogas citadas acima, aparece a expressão “movimentos empáticos”. O Instituto de Psicologia Aplicada (Inpa), de Brasília, DF, explica que há três tipos de empatia:

1. Cognitiva: capacidade de entender como o outro sente e, até mesmo, o que ele está pensando

2. Emocional ou afetiva: capacidade de compartilhar os mesmos sentimentos de outro indivíduo. Há pessoas que sentem de forma tão forte que descrevem que podem, até, “sentir” a dor do outro no coração

3. Compassiva: vai além de compreender e compartilhar sentimentos. Nesse tipo, a pessoa age e ajuda os outros o quanto pode.

 

Pois você sabia que no Antigo Testamento existe, em hebraico, um conceito semelhante a solidariedade?

Em um vocabulário no final de meu livro A Voz Necessária: encontro com os profetas do século VIII a.C., Paulus, 1998, escrevi:

Solidariedade, em hebraico hesedh, é uma relação que se cria entre duas partes que estabelecem um acordo mútuo, uma aliança (berîth).Hesedh - solidariedade

É por isso que hesedh pode ser entendida como amor, benevolência, solidariedade. Pode ser uma relação que acontece entre parentes, amigos, hospedeiros e hóspedes ou entre dois grupos tribais diferentes que fazem um pacto.

Hesedh é também a relação que se estabelece entre Iahweh e Israel a partir da aliança. É a fidelidade do homem ao pacto, mas é também a benevolência de Deus em favor de seu povo.

Hesedh aparece nos profetas, às vezes, ao lado de mishpât (direito) e de tsedhâqâh (justiça), para expressar a vivência do javismo dentro do ideal da aliança. Como em Os 2,21;10,12;12,7 ou Jr 9,23;31,3.

As bíblias em português traduzem hesedh de diferentes maneiras. A Bíblia de Jerusalém, edição de 2002, escolheu traduzi-la como “amor”. Hesedh aparece 250 vezes na Bíblia Hebraica.

KIRST, N. et alii Dicionário Hebraico-Português e Aramaico-Português. 31. ed. São Leopoldo/Petrópolis: Sinodal/Vozes, 2016, traz os seguintes equivalentes para o verbete hesedh: solidariedade, lealdade, amizade, comprometimento; fidelidade, bondade, favor, benevolência; piedade.

Pois é. Nestes dias melhorei um pouco minha compreensão de hesedh ao ler o seguinte artigo:

ZIEGERT, C. What is ‫חסד‬? A frame-semantic approach. Journal for the Study of the Old Testament, vol. 44.4, p. 711-732, 2020.

Um dos principais resultados desta investigação de Carsten Ziegert é a percepção de que hesedh indica uma ação concreta, e não apenas uma intenção, um propósito, uma disposição. Hesedh pode ser descrita como uma ação executada por uma pessoa em benefício de outra para evitar algum perigo ou prejuízo crítico por parte do beneficiário.

Carsten Ziegert – Freie Theologische Hochschule Giessen, Alemanha – começa seu artigo avaliando as definições de hesedh em três conhecidos dicionários de hebraico:

:. The Brown-Driver-Briggs Hebrew and English Lexicon (BDB), por Francis Brown, Samuel Rolles Driver e Charles Augustus Briggs: 1906.
Journal for the Study of the Old Testament, vol. 44.4. June 2020
:. The Hebrew and Aramaic Lexicon of the Old Testament (HALOT), por Koehler & Baumgartner: 2001.

:. The Dictionary of Classical Hebrew (DCH), por David J. A. Clines: 2011.

Segundo o autor, o substantivo hesedh foi submetido a um intenso estudo lexicográfico. Isso pode ser devido ao fato de que as entradas dos dicionários nem sempre são tão convincentes quanto deveriam.

Por exemplo, o BDB fornece uma lista bastante elaborada de potenciais equivalentes, enquanto a entrada no HALOT está estruturada de maneira semelhante, ao passo que a entrada no DCH merece mais consideração [veja as entradas, em inglês, mais abaixo].

Desde a época de Wilhelm Gesenius (1786-1842), a LXX é considerada uma fonte importante para investigar o significado dos lexemas hebraicos. Infelizmente, no caso de חסד, a LXX nos apresenta um equivalente-padrão bastante inesperado, ἔλεος, que lenta mas seguramente se desenvolveu durante a tradução do Pentateuco. Entretanto, segundo o autor, a diferença de significado entre חסד e ἔλεος é óbvia e não ajuda.

Em cada uma das entradas dos três dicionários mencionados, falta uma definição concisa do que realmente hesedh indica. O que os usuários do dicionário estão procurando, ou deveriam procurar, não é apenas uma lista de possíveis equivalentes na sua língua, mas também uma definição, ou seja, um texto breve que explica a denotação do lexema em questão. O restante deste artigo procura preencher essa lacuna. Primeiro, examinarei brevemente a história da pesquisa sobre o lexema em questão (seção 2). Posteriormente, apresentarei uma nova metodologia, que (seção 3) passarei a aplicar (seção 4). Por fim, considerarei as perspectivas de novas pesquisas (seção 5).

Em seguida, o autor apresenta quatro estudos sobre hesedh, dois em alemão e dois em inglês, respectivamente, de 1927, 1950, 1978, 1993. Cobrem, praticamente, todo o século XX. Por que estes quatro? Porque tiveram influência na pesquisa posterior sobre hesedh. São eles:

:. Nelson Glueck, Das Wort »ḥesed« im alttestamentlichen Sprachgebrauche als menschliche und göttliche gemeinschaftsgemäße Verhaltungsweise. Gießen: Töpelmann, 1927.

:. Hans Joachim Stoebe, Gottes hingebende Güte und Treue. häsäd wä’ämät. Teil 1. Bedeutung und Geschichte des Begriffes häsäd. Tese de doutorado não publicada. Münster, 1950.

:. Katharine Doob Sakenfeld, The Meaning of »Hesed« in the Hebrew Bible: A New Inquiry. Missoula: Scholars Press, 1978.

:. Gordon R. Clark, The Word »Hesed« in the Hebrew Bible. Sheffield: Sheffield Acadmic Press, 1993.

Dou como exemplo a apresentação do primeiro estudo, o de Nelson Glueck:

O primeiro pesquisador que dedicou um extenso estudo a hesedh foi Nelson Glueck. Em sua investigação em três partes, ele consistentemente distinguiu entre o significado secular, religioso e teológico do lexema. Esta distinção influenciou claramente a estrutura da entrada no DCH. Segundo Glueck, o significado secular do lexema hesedh denota conduta entre seres humanos, baseada em uma relação mútua de direitos e deveres, por exemplo, entre parentes, amigos, aliados, anfitrião e hóspede, governante e sujeito. Esse significado tem muito em comum com o conceito de uma aliança, uma berîth, e pode ser descrito como “lealdade”. Sem dúvida, essa hipótese influenciou fortemente a entrada no HALOT. O significado religioso de hesedh, que ocorre principalmente na literatura profética, amplia o significado secular na medida em que descreve a interação entre todos os seres humanos. Isso é desejado por Deus, e sua realização pode ser chamada hesedh em relação a Deus. Mais uma vez, hesedh denota conduta no contexto de uma obrigação para com a comunidade. Finalmente, o significado teológico do lexema descreve as ações de Deus em relação aos seres humanos, incluindo perdão e salvação. Estes são motivados por uma obrigação para com a comunidade de acordo com a aliança. A abordagem de Glueck teve um impacto não apenas nos dicionários de hebraico bíblico, mas também em monografias mais recentes sobre o assunto.

No entanto, ele mostra também os limites de cada um dos estudos, para concluir:

Os estudos acima mencionados apresentam uma série de observações exegéticas úteis. No que diz respeito a hesedh, entretanto, nenhum deles dá uma definição clara e concisa do que realmente é o significado do lexema. Investigar um “significado secular” presuntivo, isto é, limitar-se a olhar textos apenas com atores humanos, distinguindo-se assim o uso “religioso” ou “teológico” parece ser um bom ponto de partida. No entanto, as falhas metodológicas mencionadas acima exigem uma abordagem linguística sólida que será apresentada na seção a seguir deste artigo.

 

E ele passa, então, a trabalhar a partir da noção da Semântica de Frames da linguística cognitiva.Mishpât - direito

O que é a Semântica de Frames?

“A Semântica de Frames preconiza que o significado das palavras é ancorado nas experiências e instituições humanas. Assim, considera o contexto e os fatores culturais em que as ações ocorrem para descrição das estruturas cognitivas envolvidas em um evento. De acordo com Moreira e Salomão (2012, p. 491), frames são ‘[…] estruturas conceituais estabelecidas na memória permanente, frutos de nossa interação com o mundo e da consolidação de nossa experiência diária’. Dessa forma, pode-se dizer que se trata de uma teoria que considera as experiências vividas pelos indivíduos e o seu reflexo nos processos de interpretação de um modo geral, razão pela qual o contexto em que um evento ocorre é fundamental para a compreensão do seu sentido correto ou mais adequado. É preciso lembrar que considerar as experiências dos indivíduos implica aceitar que o contexto social e cultural vai interferir em sua interpretação de mundo e na forma como eles compreendem o significado das palavras – dito de outra forma, significa considerar o conhecimento enciclopédico dos falantes em relação às palavras e ao sentido que elas evocam. Por isso, um mesmo evento pode ser interpretado de forma diferente por pessoas de contextos sociais e culturais diferentes”, explicam Krebs, L. M.; Laipelt, R. C. F. Teorias da linguística cognitiva para pensar a categorização no âmbito da ciência da informação. Transinformação, v. 30, n. 1, p. 86, 2018.

Carsten Ziegert explica que nas duas últimas décadas estamos vendo uma influência crescente da linguística cognitiva nos estudos bíblicos. Os estudiosos da Bíblia estão se tornando cada vez mais conscientes de que o paradigma do estruturalismo linguístico, vigorosamente defendido por James Barr na década de 1960, não pode abarcar completamente toda a complexidade que vem à tona quando alguém está tentando entender o significado dos textos bíblicos. Mesmo palavras individuais não podem ser entendidas sem levar em consideração aspectos culturais e sociais do significado. Assim, a Semântica de Frames pode revelar-se uma maneira promissora de investigar os lexemas do hebraico bíblico, exigindo, é claro, que exploremos o mundo por trás dos textos bíblicos.

Depois de aplicar os princípios da Semântica de Frames ao lexema hesedh [processo que não descreverei aqui, por causa de sua complexidade] e exemplificar com alguns textos bíblicos, o autor conclui:

Agora podemos oferecer uma definição concisa do lexema hesedh. O substantivo hesedh fala de uma ação executada por uma pessoa em benefício de outra para evitar algum perigo ou prejuízo crítico por parte do beneficiário. Ao contrário das entradas dos dicionários citados acima, parece muito claro que hesedh designa uma ação concreta e não apenas uma intenção, um propósito, uma disposição.

Em seguida, o autor, aplicando esta definição de hesedh, mostra como vários textos bíblicos são mal interpretados. Ele dá cinco exemplos. Entre eles está Os 6,6, onde o lexema hesedh não deve ser interpretado como uma disposição, mas como uma ação. E nem mesmo deve ser entendido como uma referência a Deus, mas às pessoas concretas necessitadas:

“Porque é solidariedade [= ajuda às pessoas necessitadas] que eu quero e não sacrifício,
conhecimento de Deus [= prática do javismo] mais do que holocaustos” (Os 6,6).

Esta interpretação de Os 6,6 é diferente de muitos comentários que traduzem hesedh com lexemas que denotam atitudes como misericórdia, lealdade, amor inabalável, atitude de aliança ou dedicação. A análise, com o recurso da Semântica de Frames, aponta, primeiro, que hesedh designa uma ação e não uma intenção apenas e, segundo, que essa ação é direcionada aos homens e não a Deus.

E assim conclui Carsten Ziegert seu artigo:

Os dicionários geralmente não fornecem informações suficientes sobre o significado exato do lexema hebraico hesedh. Existem vários estudos sobre esse tópico publicados em livros, no entanto, os resultados não são convincentes e ainda falta uma metodologia linguística sólida. A linguística cognitiva, em particular a Semântica de Frames, fornece uma abordagem promissora para preencher essa lacuna.

Dentro dos limites deste estudo, um quadro cognitivo para hesedh foi reconstruído. Sua plausibilidade foi verificada em várias passagens da Bíblia Hebraica. Assim, o quadro ajudou a elucidar alguns textos complexos. A breve definição proposta para hesedh pretende ser uma hipótese de trabalho que pode servir de base para futuras pesquisas lexicográficas. Um dos principais resultados dessa investigação é que o lexema designa uma ação concreta, em vez de apenas uma intenção, um propósito, uma disposição. Diferente de entradas anteriores de dicionários, não é necessário distinguir entre um agente humano e um agente divino, nem postular um significado especial para a palavra no plural. Geralmente, os dicionários de hebraico bíblico devem fornecer a seus usuários não apenas alguns lexemas equivalentes em outra língua, mas também uma definição verbal do lexema em questão. Equivalentes em outra língua tendem a ser enganosos.

 

The noun hesedh has been subject to intensive lexicographical study. This might be due to the fact that dictionary entries are not always as convincing as they ought to be.

For instance, BDB gives a rather elaborate list of potential equivalents: goodness, kindnessProf. Dr. Carsten Ziegert - Professor für Altes Testament
I. of man:
1. kindness of men towards men, in doing favours and benefits;
2. kindness (especially as extended to the lowly, needy and miserable), mercy;
3. (rarely) affection of Israel to YHWH, love to God, piety;
4. lovely appearance.

II. of God:
kindness, lovingkindness in condescending to the needs of his creatures

The entry in HALOT is similarly structured:
1. obligation to the community in relation to relatives, friends, guests, master & servants, &c.; unity, solidarity, loyalty
2. ḥesed in relation of God to people or individuals, faithfulness, kindness, grace
3. pl. ḥasādîm, ḥasdê &c. individual acts flowing fm. solidarity:
a) (of men) godly deeds Ne 13, v.14;
b) (of God) evidences of grace Is 55, v.3.

The entry in DCH demands consideration:
loyalty, faithfulness, kindness, love, mercy, pl. mercies, (deeds of) kindness,
a. of Y. to humans,
b. of humans to Y.,
c. between humans,
d. of flesh, i.e. its beauty.

Since the time of Wilhelm Gesenius, the Septuagint has been regarded as an important source for investigating the meaning of Hebrew lexemes. Unfortunately, in the case of ‫חסד‬, the Septuagint presents us with quite an unexpected standard equivalent, ἔλεος, which slowly but surely developed during the translation of the Pentateuch. The difference in meaning between ‫חסד‬ and ἔλεος is obvious and has given rise to the theory that after the exile ‫חסד‬ adopted the additional meaning of ‘pity’.

 Tsedhâqâh - justiçaIn each of the dictionary entries just cited, a concise definition of what ‫חסד‬ actually denotes is missing. What dictionary users are looking for (or ought to be looking for) is not only a list of possible translation equivalents but also a definition, that is, a short text explaining the denotation of the lexeme in question. The remainder of this article seeks to fill this gap. First, I will survey briefly the history of research concerning the lexeme in question (section 2). Afterwards, I will present a new methodology, which (section 3) I will proceed to apply (section 4). Finally, I will consider prospects for further research (section 5).

The quest for the meaning of ‫חסד‬ has generated a host of studies. Due to space restrictions and for the sake of clarity, I am concentrating on book-length studies of the 20th century (the earlier two originally written in German) that have had some impact on further research.

Nelson Glueck, Das Wort »ḥesed« im alttestamentlichen Sprachgebrauche als menschliche und göttliche gemeinschaftsgemäße Verhaltungsweise. Gießen: Töpelmann, 1927.

Hans Joachim Stoebe, Gottes hingebende Güte und Treue. häsäd wä’ämät. Teil 1. Bedeutung und Geschichte des Begriffes häsäd. Tese de doutorado não publicada. Münster, 1950.

Katharine Doob Sakenfeld, The Meaning of »Hesed« in the Hebrew Bible: A New Inquiry. Missoula: Scholars Press, 1978.

Gordon R. Clark, The Word »Hesed« in the Hebrew Bible. Sheffield: Sheffield Acadmic Press, 1993.

The first researcher who dedicated an extensive study to ‫חסד‬ was Nelson Glueck. In his three-part investigation, he consistently distinguished between the lexeme’sShâlôm - paz, prosperidade, bem-estar secular, religious, and theological meaning. This distinction clearly influenced the structure of the entry in DCH. According to Glueck, the secular meaning of the lexeme ‫חסד‬ denotes conduct between humans, based on a mutual relationship of rights and duties, for example, between relatives, friends, allies, host and guest, and ruler and subject. This meaning has much in common with the concept of a treaty, a ‫ברית‬, and can thus be described as ‘loyalty’. Without doubt, this hypothesis has strongly influenced the entry in HALOT. The religious meaning of ‫חסד‬, which occurs mainly in the prophetic literature, extends the secular meaning insofar as it describes interaction between all human beings. This is desired by God, and its realisation can be called ‫חסד‬ towards God. Again, ‫חסד‬ denotes conduct in the context of an obligation to the community. Finally, the theological meaning of the lexeme describes God’s actions towards humans including forgiveness and salvation. These are driven by an obligation towards the community according to the Covenant. Glueck’s approach has had an impact not only on dictionaries of Biblical Hebrew but also on more recent shorter studies…

Evaluation: the aforementioned studies present a host of helpful exegetical observations. With regard to ‫חסד‬, however, they all fail to give a clear and concise definition of what the lexeme’s meaning really is. Investigating a presumptive ‘secular meaning’, that is, confining oneself to looking at texts with human actors only, seems to be a good starting point. However, the methodological flaws mentioned above call for a sound linguistic framework which will be presented in the following section of this article.

A cognitive-linguistic approach: frame semantics – The last two decades have seen a growing impact of cognitive linguistics on Biblical studies. Biblical scholars are becoming more and more aware that the paradigm of linguistic structuralism, forcefully advocated by James Barr in the 1960s, cannot fully grasp all the intricacies that come to the fore when one is eliciting the meaning of Biblical texts. Even individual words cannot be understood without taking cultural and social aspects of meaning into account.

Frame semantics may prove to be a promising way to investigate the designation of Biblical Hebrew lexemes. It demands, of course, that we explore the world behind the Biblical texts. So far, frame semantics has sparsely been applied to Biblical studies.

What the ‫חסד‬ frame looks like: In this section, I will first present a hypothetical ‫חסד‬ frame, followed by a description of its syntactic realisation…

Conclusion: we are now in a position to offer a concise definition of the lexeme ‫חסד‬. This definition follows directly from the description of the ‫חסד‬ frame given in section 4.1: ‫חסד‬ (noun) – an action performed by one person for the benefit of another to avert some danger or critical impairment from the beneficiary. As opposed to the dictionary entries quoted in section 1, it seems very clear that ‫חסד‬ designates a concrete action, rather than an attitude or a disposition of character.

The following five examples show that a frame-semantic approach can indeed advance our understanding of Biblical texts…

Hos. 6.6: Hence, what God desires more than—or rather than—sacrifices are actions (provided by some A) to the benefit of some person or group of people (whoever B might be) who are in danger or are experiencing a critical impairment (whatever D might be) and who cannot avert this danger themselves. This interpretation of Hos. 6.6 is contrary to most of the commentaries translating ‫חסד‬ with lexemes denoting attitudes like ‘mercy’, ‘loyalty’, ‘steadfast love’, ‘covenant attitude’, or ‘dedication’. Our frame-semantic analysis points out, first, that ‫חסד‬ designates an action rather than an attitude, and, second, that this action is directed towards men and not towards God. The idea that ‫חסד‬ should be directed towards God since the parallel expression ‫אלהים‬ ‫דעת‬ is directed towards God

Conclusions

Berîth - aliançaDictionaries usually fail to provide sufficient information concerning the exact meaning of the Biblical Hebrew lexeme ‫חסד‬. Several book-length studies on this topic exist; however, the results are not convincing and a sound linguistic methodology is still lacking. Cognitive linguistics, particularly frame semantics, provides a promising approach to fill this gap.

Within the limits of this study, a cognitive frame for ‫חסד‬ has been reconstructed. Its plausibility has been verified by several passages from the Hebrew Bible. Agreeably, the frame helped to elucidate a few puzzling texts. The short definition from section 4.3 is meant as a working hypothesis that can serve as the basis for further lexicographical research on ‫חסד‬. One major result of this investigation is that the lexeme ‫חסד‬ designates a concrete action, rather than an attitude or a disposition of character. As opposed to earlier dictionary entries, it is neither necessary to distinguish between a human and a divine agent nor to postulate a special word meaning for the plural form ‫חסדים‬. Generally, dictionaries of Biblical Hebrew ought to provide their users not only with a couple of translation equivalents but also with a verbal definition of the lexeme in question, as simple translation equivalents tend to be misleading, to say the least.

In order to further advance our understanding of the lexeme’s meaning, it is necessary to delimit it from other lexemes with a similar meaning. It would be promising to investigate the differences between ‫חסד‬ and ‫יׁשועה‬, ‎ ‫חן‬, and ‫רחמים‬, respectively.

Morreu o professor James D. G. Dunn

Morreu no dia 26.06.2020 James D. G. Dunn, pesquisador britânico do Novo Testamento. Professor Emérito da Universidade de Durham, ele se tornou muito conhecido pela Nova Perspectiva sobre Paulo. Tinha 80 anos.James Douglas Grant Dunn (21.10.1939 - 26.06.2020)

Alguns textos para quem quiser saber mais sobre James D. G. Dunn:

:. James Dunn: A nova perspectiva sobre Paulo – Observatório Bíblico: 14.07.2006

:. What is the New Perspective on Paul? – Observatório Bíblico: 09.08.2007

:. RIP Jimmy Dunn (James D. G. Dunn) – Religion Prof: The Blog of James F. McGrath: June 27, 2020

:. Rest in Peace, Jimmy: A short tribute to my professor James D.G. Dunn – Jesus Creed: A blog by Scot McKnight: June 26, 2020

:. James D.G. Dunn – Beyond Evangelical: The blog of Frank Viola

:. Profiles: Emeritus Professor James D.G. Dunn – Durham University

:. A Brief Literary Biography of James D. G. Dunn – Jesus and Paul and the New Testament – Michael Metts and Robert Wiesner: February 9, 2016

:. The Paul Page – An expanding website dedicated to exploring recent trends in Pauline studies like “the new perspective on Paul” and “Paul and Empire.”

Confira as publicações de James D. G. Dunn em WorldCat e Amazon.com.br

O Código Deuteronômico: levantamento de dados

Foi o alemão W. M. L. de Wette quem, em 1805, sugeriu que o “livro da Lei” (sêfer hattôrâh), como se lê em 2Rs 22,8, que impulsionou a reforma de Josias no século VI a.C., deveria corresponder ao Deuteronômio, ou, pelo menos, a uma forma mais primitiva deste livro. Mas, mais importante ainda foi a sua conclusão de que este Deuteronômio original foi composto na época de Josias, guardado no Templo de Jerusalém e, em seguida, utilizado como documento de propaganda para a reforma deste rei.

De lá para cá esta tem sido a opinião dominante sobre a identidade do “livro da Lei”, embora não exista acordo entre os especialistas sobre a data do escrito original, sobre a identidade de seus autores e nem sobre o número de reedições pelas quais o livro do Deuteronômio passou. Alguns defendem sua origem em Israel, antes da queda de Samaria em 722 a.C., nos meios levítico-proféticos, outros sua primeira redação por refugiados (levitas?) do reino do norte vindos para Jerusalém na época de Ezequias (716/15-699/8 a.C.), outros, ainda, sua escrita na época de Josias (640-609 a.C.) por escribas reais… Só existe relativo consenso quanto ao seu conteúdo: o Deuteronômio original compreenderia os capítulos 12,1-26,15 – um código de leis – ornamentados por uma introdução, os atuais capítulos 4,44-11,32, e uma conclusão, os capítulos 26,16-28,68.

O que é importante: Dt 12-26 agrupa o mais significativo conjunto de leis do antigo Israel. Para uma discussão sobre a época e a motivação do código, recomendo:

. O contexto da Obra Histórica Deuteronomista – Ayrton’s Biblical Page – Última atualização: 12.01.2022
. A descoberta do Livro da Lei na época de Josias – Observatório Bíblico: Publicado em 27.01.2007 – Atualizado em 11.02.2020
. O Código Deuteronômico seria pós-josiânico? – Observatório Bíblico: Publicado em 15.09.2009 – Atualizado em 23.03.2020

Costumo fazer com os estudantes de Teologia, em minhas aulas de Literatura Deuteronomista, uma leitura comentada dos principais elementos deste código. Vou transcrevê-los abaixo. Estão agrupados por assunto: economia, política e religião. Mas lembro que isto é apenas um roteiro de leitura, e os dados provavelmente não estão completos, especialmente por falha nas citações.

 

Levantamento de dados do Código Deuteronômico (Dt 12-26)

Economia

1. A terra
. é dada por Iahweh a Israel: 12,1.9.10.20.29;13,13;16,5.18.20;17,14 etc
. não mudar os limites das propriedades: 19,14
. a herança e o direito de primogenitura: 21,15-17

2. A agricultura e a natureza
. a proteção das árvores: 20,19-20
. a semeadura da vinha: 22,9
. a aração: 22,10
. a respiga: 24,19-22
. comer na plantação do próximo: 23,25-26

3. A pecuária e a caça
. a alimentação (de carne): 12,15-16.20-25;14,3-21;15,21-23
. animais extraviados: 22,1-4
. pássaros: 22,6-7

4. O trabalho
. do assalariado: 24,14-15
. de um escravo por dívida: 15,12-18

5. As riquezas
. o rei não deve multiplicá-las excessivamente: 17,17

6. O comércio, as dívidas e os empréstimos
. pesos e medidas: 25,13-16
. empréstimos e penhores: 24,10-13
. empréstimos com/sem juros: 23,20-21
. penhores: 24,6.17
. a remissão das dívidas a cada 7 anos: 15,1-11

7. Os pobres
. a ajuda ao necessitado: 15,1-11
. os levitas vivem das ofertas cultuais: 18,1-8

8. A casa
. as casas devem ter parapeito no terraço: 22,8

9. As vestes
. não misturar linho e lã: 22,11
. fazer borlas nas 4 pontas do manto: 22,12

 

Política

10. O rei
. deve ser israelita, não pode acumular riquezas, cavalos ou mulheres em excesso e deve obedecer estritamente à Lei: 17,14-20

11. Os juízes e a administração da justiça
. a lei do talião: 19,21
. a suspensão de um morto: 21,22-23
. o vingador de sangue: 19,6.12
. o sequestro: 24,7
. as cidades de refúgio e o homicida: 19,1-13
. os juízes levitas: 17,8-13
. juízes e escribas justos em cada cidade: 16,18-20
. a defesa do direito do estrangeiro, do órfão e da viúva: 24,17-22
. as testemunhas: 17,6-7;19,15-21
. o açoite: 25,1-3
. o caso do homicida desconhecido: 21,1-9
. a pena de morte é aplicada nos casos de:
– profeta que prega idolatria: 13,2-6
– parente que prega idolatria: 13,7-12
– qualquer um que pregue idolatria: 13,13-19;17,2-7
– desobediência ao tribunal supremo: 17, 8-13
– profeta que fala em nome próprio: 18,15-22
– homicídio com premeditação: 19,11-13
– filho rebelde: 21,18-21
– jovem que não se casa virgem: 22,20-21
– adultério: 22,22-27
– sequestro: 24,7.

12. Os levitas
. não têm propriedades (terras): 12,12;18,1-8
. não devem ser esquecidos: 12,19;14,27;18,1-8
. têm direito ao dízimo trienal: 14,28-29;18,1-8;26,12-15
. são juízes de causas difíceis: 17,8-13

13. Os profetas
. o profeta idólatra deve ser morto: 13,2-6
. o profeta verdadeiro é porta-voz de Iahweh e sucessor de Moisés: 18,15-22

14. Os povos estrangeiros e a guerra
. as nações conquistadas/destruídas/dominadas: 12,2.29;15,6;18,4;19,1
. seus deuses e suas práticas cultuais devem ser evitadas a todo o custo: 12,2-3.29-31;18,9- 12.14
. a guerra e o anátema: 20,1-20
. a pureza no acampamento: 23,10-15
. o edomita e o egípcio devem ser bem tratados: 23,8-9
. o amonita e o moabita não podem entrar na assembleia cultual: 23,4-7

15. A família
. os antepassados: 12,1;19,14;26,5-9
. os familiares idólatras devem ser mortos: 13,7-12
. o direito de primogenitura: 21,15-17
. virgindade e casamento: 22,13-21
. adultério e relações sexuais: 22,22-23,1
. divórcio: 24,1-4
. o recém-casado: 24,5
. o levirato: 25,5-10
. a culpabilidade de pais e filhos: 24,16

16. O homem
. não pode usar roupas femininas: 22,5
. castrado não pode participar das assembleias cultuais: 23,2
. bastardo não pode participar das assembleias cultuais: 23,3
. o prostituto sagrado israelita: 23,18-19

17. A mulher
. a viúva tem direito ao dízimo trienal: 14,28-29;26,12-15
. a mulher que interfere numa briga do marido: 25,11-12
. a prisioneira de guerra: 21,10-14
. não pode usar roupas masculinas: 22,5
. a prostituta sagrada israelita: 23,18-19

18. A criança
. o órfão tem direito ao dízimo trienal: 14,28-29;26,12-15
. o filho rebelde deve ser morto: 21,18-21

19. O estrangeiro (ger)
. tem direito ao dízimo trienal: 14,28-29;26,12-15

20. O escravo
. por dívida, deve ser libertado no sétimo ano: 15,12-18
. fugitivo: 23,16-17

21. A doença
. a lepra: 24,8-9

 

Religião

22. O culto javista
. somente no local que Iahweh escolheu: 12,4-5.13-14.17-19.21.26-28 etc
. as festas: Páscoa/Ázimos: 16,1-8
. Semanas: 16,9-12
. Tendas: 16,13-15
. as três juntas: 16,16-17
. os sacrifícios: holocaustos, sacrifícios, dízimos, dons etc: 12,6-7.11-12
. o sacrifício dos primogênitos do gado e do rebanho: 15,19-23
. a oferta das primícias: 26,1-11
. os descendentes (de terceira geração) dos edomitas e egípcios podem participar: 23,8-9
. homem castrado não pode participar: 23,2
. bastardo, amonita e moabita não podem participar: 23,2
. animais defeituosos são proibidos: 15,21-22;17,1
. o sacerdócio levítico: 18,1-8

23. Os outros deuses e seus cultos
. são expressamente proibidos:
– a prostituição sagrada: 23,18-19
– os deuses cananeus: 12,2-3.29-31
– qualquer outro deus: 13,2-19;17,2-5
– estelas, postes, árvores: 16,21-22
– outras práticas cultuais: 18,9-14
– incisão por causa de um morto: 14,1-2

24. O dízimo
. o dízimo: 12,6.11
. o dízimo anual: 14,22-27
. o dízimo trienal: 14,28-29

25. Iahweh
. dá a terra a Israel: cf. 1
. escolhe o local do culto: cf. 22
. abençoa o trabalho e o fruto do trabalho: 12,7.15;14,29;15,4.6.10.14–18 etc
. abomina a prática da injustiça: 25,16
. exige o cumprimento de um voto feito: 23,22
. ama Israel: 23,6
. é pai de Israel: 14,1
. escolheu Israel como seu único povo:14,2
. escolhe o rei: 17,15
. multiplica o povo, conforme prometera aos seus pais: 13,18
. protege Israel de todos os inimigos vizinhos da terra: 12,10
. abençoa a destruição dos idólatras: 13,8
. vai com Israel para a guerra e lhe garante a vitória: 20,1.4.13-14;21,10;23,15
. dá a Israel o gado e o rebanho: 12,21
. escolhe os levitas para presidirem o culto e o tribunal: 18,5;21,5
. destrói (e manda destruir) as nações que vivem na terra dada a Israel: 12,29;19,1;20,17
. suscita profetas: 18,15.22
. testa o amor do povo por ele, suscitando falsos profetas (idólatras): 13,4
. libertou Israel da escravidão do Egito (êxodo): 13,6.11;15,15;16,1;20,1;24,18; 26,7-8

 

Observações sobre alguns dados

Comecei a escrever algumas observações sobre os dados do Código Deuteronômico, mas nunca completei a tarefa. Transcrevo abaixo as poucas observações rascunhadas. As demais são feitas oralmente durante as aulas.

A posse da terra é familiar: na herança, deve-se respeitar o norma do privilégio do primogênito, seja ele o preferido ou não do pai, seja sua mãe (em caso de duas mu­lheres) a preferida ou não (21,15-17).

O problema: havia rivalidade, conflito e discriminação nas relações familiares: en­tre pai e filho, entre irmãos, entre marido e mulher, na questão da herança.

Os limites entre as propriedades não devem ser mudados, respeitando-se as normas dos antepassados (19,14). Este problema existia na Mesopotâmia, por exemplo, onde grandes pedras (em acádico Kudurru) que demarcavam os limites de terras tra­ziam gravadas listas de maldições dirigidas contra quem quer que as removesse. Como em Dt 27,17: “Maldito seja aquele que desloca a fronteira do seu vizinho! E todo o povo dirá: Amém”.

O problema: havia roubo de terras dos vizinhos, mudando os marcos… Ora, na visão do Deuteronômio, se a terra é dada por Iahweh, roubar a terra viola norma divina.

Há pessoas sem terra: o estrangeiro residente (ger), o órfão, a viúva, o escravo por dívida, o levita e o assalariado pobre. O estrangeiro, o órfão e a viúva não têm ali­mento e precisam respigar no campo dos que têm propriedades (24,19-22). É possível que em remoto passado se deixasse algo nas plantações para a divindade protetora… daí o costume, aqui apresentado como lei humanitária. O levita também não possui terra e, por isso, deve viver das ofertas cultuais (18,1-8).

O assalariado (24,14-15), seja ele israelita (irmão), seja ele estrangeiro residente (ger), deve receber seu salário no mesmo dia em que trabalha: sendo ele pobre (‘ânî) ou necessitado (‘ebhyôn), depende do ganho diário para sobreviver.

Há o necessitado (‘ebhyôn: 15,7.9.11) que deve receber a ajuda e a solidarie­dade dos que possuem (15,7-11).

Por outro lado, o rei tem possibilidade (e de fato o faz!) de acumular riquezas: prata e ouro (17,17).

O problema: há divisão social e concentração de riquezas (na corte), porque uma terra que deveria ser de todos não mais o é. Há penúria e fome! Há má vontade em re­lação à ajuda ao necessitado (respiga, ofertas ao levita e empréstimo no sexto ano, véspera da remissão…).

O termo ‘ânî é um adjetivo verbal de forma passiva e indica aquele que se curva, que se submete, que cede. Caracteriza a inferioridade social de alguém. Já o termo ‘ebhyôn vem da raiz ‘abhah, “desejar”, implicando a noção de ne­cessidade e pedido. O ‘ebhyon é o pobre mendicante, é o miserável que geme pelos cantos das ruas. O Código afirma também que “nunca deixará de haver pobres na terra” (15,11a). A solidariedade tribal se perdeu de vez e não tem retorno! Também o Código não preconiza uma luta dos pobres pelos seus direitos… Observe-se que as leis se diri­gem, neste caso, aos que têm e não aos que não têm. Por outro lado, Dt 15,4 afirma que: “É verdade que em teu meio não haverá nenhum pobre, porque Iahweh vai aben­çoar-te (…) com a condição de que obedeças”…

Na área agrícola o Código trata de casos apenas marginais, como a proibição de plantar duas espécies diferentes de semente numa vinha ou a proibição de arar com um boi e um asno na mesma junta (22,9-10).

Já no setor da pecuária há várias leis, como sobre o que pode e o que não pode ser consumido dos animais domésticos e selvagens da região (12,15-16.20-25; 14,3-21;15,21-23).

Quanto ao comércio, às dívidas e aos empréstimos, uma lei importante é a da remissão das dívidas a cada 7 anos, o conhecido ano sabático (15,1-11).

O ano sabático em Lv 25,1-7 e em Ex 23,10-11 refere-se ao descanso da terra e não ao cancelamento das dívidas. O Código Deuteronômico é o único a falar disso. Por que?

. Se a terra não podia ser cultivada no sétimo ano, o agricultor que não acumulasse rendas não poderia pagar suas taxas, dívidas e obrigações sem perder a proprieda­de…
. Provavelmente ele se endividava, para pagar os tributos do Estado, com seus vizi­nhos, parentes e amigos.

O problema: há imposto tributário e há endividamento e crise por causa disso (se a interpretação acima for correta…). O Código não critica o tributarismo, mas tenta sustentá-lo de maneira mais humana, pressionando os que têm mais recursos. Não há uma crítica às exigências do Estado, considerado, tacitamente, como necessário e viá­vel! É uma visão e uma solução mais humanitárias do que os outros códigos, mas cla­ramente reformista!

A lei da remissão está estruturada assim:
. no v. 1 vem a lei em forma apodítica
. no v. 2 há uma interpretação (jurídica) da lei
. nos vv. 3-11 há uma ampliação e uma exposição das consequências gerais da aplica­ção da lei.

O “estrangeiro” do v. 3 (segundo a Bíblia de Jerusalém) na verdade é o “estranho” (nokri) e não o ger (estrangeiro residente) que não pode ser explorado!

A ideia de “remissão” (literalmente, “deixar ir”: shemitâh) existe no Código de Hammurabi, que fala em “estabelecer uma remissão geral (andararum shakanum)”, se­manticamente relacionada com “estabelecer justiça social”. Etimologicamente o acádico andararum tem a mesma raiz do hebraico derôr, usado em Lv 2,10; Is 61,1; Jr 34,8.15.17; Ez 46,17 com o sentido de “liberdade” ou “remissão”.

Penhores e empréstimos: Dt 24,6 proíbe que se tome a mó como penhor: nem as duas pedras (a moenda consistia de duas pedras, a superior se movendo sobre a inferior, fixa), nem uma delas ( a superior, que poderia ser retirada). É que o pão é feito todo dia… e sem a mó o pobre não tem como se alimentar.

Esta lei, sobre o penhor, apodítica, recebe uma outra formulação, casuística, e uma ampliação homilética em 24,10-13. É proibido entrar na casa de uma pessoa para retirar objetos penhorados: isto, certamente, visa evitar abusos por parte do credor, que poderia retirar objetos indispensáveis ao uso ou que poderia retirar coisas valiosas de­mais. O espírito humanitário da lei deuteronômica aparece aqui, quando se exige a de­volução do manto do pobre no mesmo dia em que foi penhorado (24,12-13). O final do v. 12 diz, literalmente: “Não irás deitar com seu penhor”. A ampliação homilética no v. 13b lembra que a consideração pelo pobre resultaria em bênção para o credor, cuja ge­nerosidade é justiça (tsedhâqâh) aos olhos de Iahweh. Dt 24,17, no mesmo espírito, proí­be que se penhore a roupa da viúva.

Dt 23,20-21 proíbe a cobrança de juros entre israelitas, permitida, porém, quando se trata de um estranho (nokri), em geral mercador ou comerciante. As taxas de juros no Antigo Oriente Médio eram bastante altas, talvez devido à falta de garantia para o pa­gamento dos empréstimos. O Código de Hammurabi e as Leis de Eshnunna fixam taxas de juros: 20% para empréstimo em dinheiro e 33% para investimentos em cereais. Na Assíria era de 25% para dinheiro e 50% para cereais. Estas taxas frequentemente leva­vam o devedor à escravidão por dívida.

 

Bibliografia

BENJAMIN, D. C. The Social World of Deuteronomy: A New Feminist Commentary. Eugene, OR: Cascade Books, 2015.

CROUCH, C. L. The Making of Israel: Cultural Diversity in the Southern Levant and the Formation of Ethnic Identity in Deuteronomy. Leiden: Brill, 2014.

DAVIES, P. R. The Place of Deuteronomy in the Development of Judean Society and Religion. In LIVERANI, M. (org.) Recenti tendenze nella ricostruzione della storia antica d’Israele. Roma: Accademia Nazionale dei Lincei, 2005, p. 139-155.

DE PURY, A. (org.) O Pentateuco em questão: as origens e a composição dos cinco primeiros livros da Bíblia à luz das pesquisas recentes. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2002.

EDELMAN, D. V. (ed.) Deuteronomy-Kings as Emerging Authoritative Books: A Conversation. Atlanta: SBL, 2014.

FINKELSTEIN, I. ; SILBERMAN, N. A. A Bíblia desenterrada: a nova visão arqueológica do antigo Israel e das origens dos seus textos sagrados. Petrópolis: Vozes, 2018.

KRAMER, P. Origem e legislação do Deuteronômio: Programa de uma sociedade sem empobrecidos e excluídos. São Paulo: Paulinas, 2009.

LEVINSON, B. M. Deuteronomy and the Hermeneutics of Legal Innovation. New York: Oxford University Press, 2002.

LOHFINK, N. Ascolta Israele: Esegesi di testi del Deuteronomio. Brescia: Paideia, 2010.

LOHFINK, N. «Escucha, Israel» Comentarios del Deuteronomio. Estella (Navarra): Verbo Divino, 2008.

LOPEZ, F. G. O Deuteronômio, uma lei pregada. São Paulo: Paulus, 1992.

SKA, J.-L. Introdução à leitura do Pentateuco: Chaves para a interpretação dos cinco primeiros livros da Bíblia. 3. ed. São Paulo: Loyola, 2014.

STORNIOLO, I. Como ler o livro do Deuteronômio: escolher a vida ou a morte. 5. ed. São Paulo: Paulus, 1997.

TSAI, D. Y. Human Rights in Deuteronomy: With Special Focus on Slave Laws. Berlin: Walter de Gruyter, 2014.

Uma leitura do Deuteronômio no Mês da Bíblia 2020

O livro escolhido para estudo no Mês da Bíblia 2020 é o Deuteronômio e o lema é “Abre a tua mão para o teu irmão” (Dt 15,11).

DIETRICH, L. J. ; RODRIGUES DA SILVA, R. Em busca da palavra de Deus: Uma leitura do Deuteronômio entre contradições, ambiguidades, violências e solidariedades. São Paulo: Paulus, 2020, 120 p. – ISBN 9786555620207.

A obra Em busca da Palavra de Deus: Uma leitura do Deuteronômio entre contradições, ambiguidades, violências e solidariedades dos autores Luiz José Dietrich e RafaelDIETRICH, L. J. ; RODRIGUES DA SILVA, R. Em busca da palavra de Deus: Uma leitura do Deuteronômio entre contradições, ambiguidades, violências e solidariedades. São Paulo: Paulus, 2020 Rodrigues da Silva aborda o livro do Deuteronômio, cujos capítulos centrais giram em torno do mandamento: “Abra a mão em favor do seu irmão, do seu pobre e do seu necessitado, na terra onde você está” (Dt 15,7-8.11). Como os autores mencionam na obra, o livro do Deuteronômio não é um simples livro de leis. Além da apresentação de leis e regras, encontra-se, nas entrelinhas algo mais profundo e provocador, ou seja, ele motiva e convence o leitor e ouvinte, que busca o bem comum, a seguir e cumprir as leis em defesa dos pobres e marginalizados da sociedade.

Mês da Bíblia 2020: o Deuteronômio

SERVIÇO DE ANIMAÇÃO BÍBLICA – SAB Mês da Bíblia 2020: Livro do Deuteronômio – Abre a tua mão para teu irmão (Dt 15,11). São Paulo: Paulinas, 2020, 88 p. – ISBN 9788535645958.

Setembro é o mês dedicado, de modo particular, à leitura e aprofundamento de um livro da Bíblia. O Mês da Bíblia iniciou-se no Brasil, em 1971, com o objetivo de SERVIÇO DE ANIMAÇÃO BÍBLICA - SAB Mês da Bíblia 2020: Livro do Deuteronômio - Abre a tua mão para teu irmão (Dt 15,11). São Paulo: Paulinas, 2020aprofundar um livro ou tema bíblico. O tema e o lema do Mês da Bíblia de 2020 foram escolhidos pela Comissão Bíblico-Catequética da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e por outras instituições bíblicas, entre elas o Serviço de Animação Bíblica (SAB/Paulinas). O livro escolhido é o Deuteronômio e o lema é ‘Abre a tua mão para o teu irmão’ (Dt 15,11).

Deuteronômio: pistas para uma leitura libertadora

O livro escolhido para estudo no Mês da Bíblia 2020 é o Deuteronômio e o lema é “Abre a tua mão para o teu irmão” (Dt 15,11).

Livro do Deuteronômio: Pistas para uma leitura libertadora, por Rafael Rodrigues

Livro do Deuteronômio – Mês da Bíblia 2020: Pistas para uma leitura sensata e libertadora, por Rafael Rodrigues, da Direção Nacional do CEBI – Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos

Videorreportagem de frei Gilvander, da CPT, das CEBs e do CEBI, produzido na Casa de Encontros do CEBI, em Ribeirão das Neves, MG, ao final de dois dias de encontro de formação bíblica, a partir do livro do Deuteronômio, livro do Mês da Bíblia 2020.

Ribeirão das Neves, MG – 02/02/2020

Edição de Nádia Oliveira.

Literatura Grega e História Primária

Um artigo:

Greek Literature and the Primary History – By Robert Karl Gnuse – The Bible and Interpretation: June 2020

Os comentaristas observam há anos como os autores bíblicos podem ter usado textos gregos ou refletido o pensamento grego em seus escritos. Geralmente, essas observações foram relacionadas a obras bíblicas criadas após 300 a.C. Pensa-se especialmente no livro da Sabedoria, datado por volta de 50 a.C., que estava vagamente ligado à tradição filosófica platônica e frequentemente comparado aos escritos do autor judeu Fílon de Alexandria, que escreveu em grego. Os dois livros dos Macabeus foram ocasionalmente comparados com a historiografia gerada pelos gregos. Vários romances judeus foram discutidos, às vezes, em conexão com romances gregos. Qohélet foi associado ao estoicismo e epicurismo grego.

Nos últimos anos, no entanto, vários estudiosos dataram os livros bíblicos da História Primária (de Gênesis até 2 Reis) muito mais tarde. Assim, eles levantaram a possibilidade de que os autores desses livros estivessem familiarizados com textos em grego clássico até 300 a.C. e textos em grego helenístico após 300 a.C., e talvez até usassem alguns textos em grego para criar tramas nos livros da História Primária. Eles são frequentemente chamados de minimalistas e eles geralmente acreditam que a maior parte da narrativa bíblica não reflete a história real que aconteceu no período pré-exílico até 586 a.C. Esses minimalistas foram chamados também de Escola de Copenhague, porque os principais autores vêm da Universidade de Copenhague, embora algumas vezes professores da Inglaterra – incluindo a Universidade de Sheffield – estejam incluídos neles. Os minimalistas se dividem, nesta questão, em dois grupos. Alguns sugerem que Gênesis até 2 Reis surgiu principalmente no período persa (540-330 a.C.), enquanto outros apontam a era helenística, depois de 300 a.C., como a data de origem para a maior parte ou toda a História Primária.

A possibilidade de tal interface entre textos gregos e bíblicos no final do período pós-exílico foi levantada por vários autores. Trabalhos significativos foram escritos por autores que sugerem uma data bem mais recente para a literatura bíblica e a probabilidade de os textos serem narrativas ficcionais orientadas por perspectivas teológicas e a influência da literatura grega sobre os textos.

Leia o artigo completo.Robert Karl Gnuse

Sobre Robert Karl Gnuse e sobre esta proposta, leia também:

O Pentateuco e a OHDtr podem ter sido escritos na época helenística – Observatório Bíblico: 18/08/2018

 

Comentators have observed for years how biblical authors might have used Greek texts or reflected Greek thought in their writings. Generally, these observations were connected with biblical works authored after 300 BCE. One thinks especially of the Wisdom of Solomon, dated around 50 BCE, which was loosely connected to the Middle Platonic philosophical tradition and often compared to the writings of the Jewish author Philo, who wrote in Greek. The two books of Maccabees were occasionally compared with historiography generated by the Greeks. Various Jewish novels were sometimes discussed in connection with Greek novels. Koheleth was associated with Greek stoicism and epicureanism.

In recent years, however, a number of scholars have dated the biblical books in the Primary History (Genesis through 2 Kings) very late. Thus, they have raised the possibility that the authors of these books might have been very familiar with Classical Greek texts down to 300 BCE and Hellenistic Greek texts after 300 BCE, and perhaps they even used some Greek texts to craft plot-line and imagery in the books of the Primary History. They are often called “minimalists” for dating the biblical texts so late, and they usually believe that most of the biblical narrative does not reflect the actual history that happened in the pre-exilic period down to 586 BCE. These “minimalists” have been called the “Copenhagen School” because leading authors come from the University of Copenhagen, although sometimes faculty from England (including Sheffield University) are included with them. “Minimalists” also fall into two groups. Some suggest that Genesis through 2 Kings arose primarily in the Persian period (540-330 BCE), while others stress the Hellenistic era, after 300 BCE, as the time of origin for most or all of the Primary History.

The possibility for such an interface between Greek and biblical texts late in the post-exilic period was raised by several authors. Significant works have been written by authors who raise the larger questions of a later date for biblical literature: the likelihood that the texts are fictional narratives driven by theological perspectives and the influence of Greek literature upon the texts.

 

Um livro:

GNUSE, R. K. Hellenism and the Primary History: The Imprint of Greek Sources in Genesis – 2 Kings. Abingdon: Routledge, 2020, 216 p. – ISBN 9780367462468.

Esta coleção de ensaios procura demonstrar que muitos autores bíblicos usaram deliberadamente textos gregos clássicos e helenísticos como inspiração ao elaborar muitas das narrativas na História Primária.

Através de uma análise detalhada do texto, Gnuse sustenta que existem numerosos exemplos de clara influência da literatura clássica e helenística tardia. Colocando as obras bíblica e grega em paralelo, ele argumenta que há muitas semelhanças no tema básico, significado e detalhes, para que elas sejam explicadas por coincidência. Usando essas evidências, ele sugere que, embora grande parte do texto possa ser originária do período persa, grande parte de sua forma final provavelmente data da era helenística.

Com a ajuda de uma introdução original e um capítulo final, Gnuse reúne seus ensaios em uma coleção coerente pela primeira vez. O volume resultante oferece um recurso valioso para qualquer pessoa que trabalhe com a Bíblia Hebraica, bem como para aqueles que trabalham com o processo de helenização da Palestina.

 

This collection of essays seeks to demonstrate that many biblical authors deliberately used Classical and Hellenistic Greek texts for inspiration when crafting many of the GNUSE, R. K. Hellenism and the Primary History: The Imprint of Greek Sources in Genesis - 2 Kings. Abingdon: Routledge, 2020narratives in the Primary History.

Through detailed analysis of the text, Gnuse contends that there are numerous examples of clear influence from late classical and Hellenistic literature. Deconstructing the biblical and Greek works in parallel, he argues that there are too many similarities in basic theme, meaning, and detail, for them to be accounted for by coincidence or shared ancient tropes. Using this evidence, he suggests that although much of the text may originate from the Persian period, large parts of its final form likely date from the Hellenistic era.

With the help of an original introduction and final chapter, Gnuse pulls his essays together into a coherent collection for the first time. The resultant volume offers a valuable resource for anyone working on the dating of the Hebrew Bible, as well as those working on Hellenism in the ancient Levant more broadly.

 

Table of Contents

Introduction: An Intellectual Odyssey
1. A Hellenistic First Testament: The Views of Minimalist Scholars
2. Spilt Water: Tales of David in II Sam 23:13-17 and of Alexander the Great in Arrian, Anabasis of Alexander 6.26.1-3
3. Abducted Wives: A Hellenistic Narrative in the Book of Judges?
4. From Prison to Prestige: The Hero who helps a King in Jewish and Greek Literature
5. Divine Messengers in Genesis 18-19 and Ovid
6. Greek Connections: Genesis 1-11 and the Poetry of Hesiod
7. Genesis 1-11 and the Greek Historiographers Hecataeus of Miletus and Herodotus of Halicarnassus
8. Heed Your Steeds: Achilles’ Horses and Balaam’s Donkey
9. Samson and Heracles Revisited
10. The Sacrificed Maiden: Iphigenia and Jephthah’s Daughter
11. The Maximalist/Minimalist Debate over Historical Memory in the Primary History of the Old Testament

Quem é Baal em Oseias?

Estou estudando nestes dias, com os alunos do Segundo Ano de Teologia do CEARP – desde meados de março através de videoconferência por causa da pandemia do coronavírus -, em Literatura Profética I, o texto do livro de Oseias. Além do capítulo sobre Oseias de meu livro A Voz Necessária: encontro com os profetas do século VIII a.C. – download aqui – vimos um texto sobre a Teoria da metáfora conceptual e estamos olhando o artigo Notas sobre a pesquisa do livro de Oseias no século XX, que recomendo como aprofundamento do que vem a seguir.

E o que vem a seguir é a apresentação de um artigo que li hoje:

HUBLER, C. ‘No longer will you call me ‘my Ba’al’’: Hosea’s polemic and the semantics of ‘Ba’al’ in 8th century B.C.E. Israel. Journal for the Study of the Old Testament 2020, Vol. 44(4), p. 610­–623.

Caitlin Hubler – Emory University, GA, USA – diz nas páginas 610-612:

Em resposta à flagrante idolatria de Israel, o profeta Oseias faz uma série de pesadas acusações contra seus maiores líderes religiosos, equiparando-os a esposas adúlteras. Oseias 2 apresenta um esmagador julgamento de Iahweh (o esposo) contra Israel (a esposa infiel), com o objetivo de despertar Israel e conduzi-lo de volta às suas origens. Aparentemente, Israel está chamando Iahweh pelo nome errado, chamando-o de Baal.Journal for the Study of the Old Testament - Volume 44.4 - June 2020

Diz Os 2,18-19, na tradução da Bíblia de Jerusalém, Paulus, 2002:

Acontecerá naquele dia,
– oráculo de Iahweh-
que me chamarás “Meu marido”,
e não mais me chamarás “Meu Baal”.
Afastarei de seus lábios os nomes dos baais,
para que não sejam mais lembrados por seus nomes.

Ao estudar Oseias, estudiosos da Bíblia tentam reconstruir a situação do Israel Norte do século VIII a.C. que teria motivado uma crítica profética tão veemente. A resposta oferecida até agora tem sido bastante direta: o culto a Baal, uma divindade conhecida no Antigo Oriente Médio, intimamente ligada à fertilidade, à agricultura e à criação de gado. Sugerem muitos estudiosos que os israelitas do norte capitularam às pressões da cultura cananeia circundante e, em vez de Iahweh, seguiram Baal. Variações dessa proposta foram feitas de acordo com a compreensão do estudioso da fluidez divina no Antigo Oriente Médio e sua aplicação a Baal. Indica a depreciação de Baal uma polêmica genérica contra todas as formas de adoração de ídolos? Existe uma divindade chamada ‘Baal’ com manifestações específicas em cada localidade? Seja qual for a formulação, o consenso geral é de que Oseias ficou indignado com o fato de uma grande parcela da população israelita ter deixado de seguir Iahweh e, em vez disso, passar a seguir Baal. Frequentemente essa interpretação rotula Oseias como um profeta que teme todo tipo de influência dos povos estrangeiros, sejam influências culturais ou religiosas. Este Oseias é quase xenófobo: seu maior desejo é manter a pureza ideológica da nação israelita.

Tal entendimento busca sustentação no livro de Oseias. De fato, Oseias deixa bem claro que ele está indignado pelo fato de os israelitas terem, em certo sentido, negligenciado seguir Iahweh corretamente. No entanto, há um questionamento sobre a natureza exata dessa situação. Podem existir muitas outras razões para Oseias duvidar do compromisso de Israel com Iahweh. Os oráculos de Oseias preservam apenas um lado de uma conversa multifacetada no século VIII a.C. sobre teologia e a identidade israelitas. Informações de outras fontes podem ser úteis em nossa tentativa de reconstruir uma imagem precisa das crenças israelitas desta época. Mais especificamente, evidências epigráficas e onomásticas nos ajudam a descobrir possibilidades alternativas para interpretar a situação de Israel no século VIII a.C. Ao longo deste artigo, com o apoio de tais evidências, sustentarei que a polêmica de Oseias contra Baal mira israelitas que sinceramente acreditavam estar seguindo fielmente a Iahweh. Na mente deles, não havia nada de errado em se referir a Iahweh como Baal.

O conflito que aparece em Oseias, portanto, é primariamente interno. Um debate sobre a integridade do próprio javismo. Tão aquecido quanto os debates inter-religiosos podem ser, controvérsias intrarreligiosas podem ser muito mais ferozes. No desacordo inter-religioso, os limites entre uma religião e outra são bastante nítidos. A dinâmica do poder se torna mais complexa quando o debate é interno por natureza. Quando a pergunta não é ‘Como defenderemos a causa dos israelitas contra a do grupo X?’, mas sim ‘O que significa ser um israelita?’, muitas perguntas podem ser feitas:

Qual é a natureza da aliança javista?
Quais são os estatutos e as normas que devemos seguir em nossa sociedade?
Quem tem o poder – político, religioso ou outro – de decidir como seguir Iahweh corretamente?

O estudo das respostas de Oseias a essas perguntas pode nos levar a uma maior compreensão da situação interna da religião israelita no século VIII a.C.

 

Caitlin Hubler defende que Baal em Oseias não é uma referência à divindade que leva esse nome, mas deve ser entendido como um título que se usa com diferentes divindades, portanto, também com Iahweh. Baal significa “senhor” ou “mestre”.

Ela diz na página 615:

Spencer L. Allen (The Splintered Divine: A Study of Istar, Baal, and Yahweh Divine Names and Divine Multiplicity in the Ancient Near East. Berlin: De Gruyter, 2015, p. 94) argumenta que vários nomes de divindades em acádico e nas línguas semíticas do noroeste [o hebraico é uma língua semítica do noroeste] são melhor interpretados não como nomes próprios, mas como títulos que mascaram os nomes reais das divindades. Ele lista Baal (‘mestre’ ou ‘senhor’) e Ishtar (‘deusa’) como exemplos: “Como Baal pode ser interpretado como um substantivo comum que serve como título e não como nome próprio, muitos estudiosos aceitam que havia divindades independentes e distintas de Baal que não deveriam ser identificadas nem com o deus da tempestade da Mesopotâmia, Adad [Baal-Adad], e nem com o deus da tempestade Hadad [Baal-Hadad], cultuado no Levante”. Se Allen estiver correto, e Baal fosse entendido como um título em vez de um nome próprio no Israel do século VIII a.C., então certamente os israelitas não teriam visto nenhuma contradição em chamar Iahweh de ‘meu Baal’. Longe de ser uma atitude idolátrica, isso pode ter sido visto como um elogio a Iahweh como o senhor todo-poderoso. Muitas evidências de fontes bíblicas e extrabíblicas sugerem que Baal nem sempre se referia ao culto de ídolos ao longo da história de Israel. O termo geralmente significa simplesmente “senhor” ou “mestre”.

J. Andrew Dearman (Interpreting the Religious Polemics against Baal and the Baalim in the Book of Hosea. Old Testament Essays 14/1, 2001, p. 9-25) sugere que inscrições extrabíblicas da Idade do Ferro, particularmente textos fenícios e púnicos, devam ter prioridade metodológica ao avaliar a semântica de Baal em Oseias. Ele mostra que “essas inscrições demonstram uma pluralidade de divindades, masculinas e femininas, que são chamadas com o apelativo Baal”.

E assim prossegue Caitlin Hubler citando fontes arqueológicas e literárias, bíblicas e extrabíblicas, e os autores que as interpretam.

Para concluir na página 621:

O que Oseias condenou não foi o culto idolátrico de Baal, mas a vivência incorreta do javismo. Ele não colocou frente a frente baalismo e javismo como duas religiões diferentes que disputavam os corações e as mentes dos israelitas, mas chamou Israel de volta a uma prática coerente da aliança. Viver de tal maneira que prejudicasse o significado da aliança era, para Oseias, perder completamente a identidade israelita. Era agir como uma esposa adúltera.

O que vemos no livro de Oseias é um profeta que pede desesperadamente que Israel viva com coerência sua identidade de povo escolhido de Iahweh.

 

Termino com Os 6,6:

Porque é solidariedade (hesedh) que eu quero e não sacrifício,
conhecimento de Deus [= prática do javismo] mais do que holocaustos.

 

In response to Israel’s flagrant idolatry, the prophet Hosea makes a series of shocking accusations against her greatest religious leaders, equating them to adulterous wives. In one oracle, Hosea delivers a crushing judgment from the mouth of YHWH designed to wake Israel up and call her back to her true roots. Apparently, she has been calling YHWH by the wrong name:

On that day, says the L ord , you will call me, ‘My husband’, and no longer will you call me, ‘My Ba’al’. For I will remove the names of the Ba’als from her mouth, and they shall be mentioned by name no more.

In studying Hosea, biblical scholars have attempted to reconstruct the situation in 8th-century Israel that would have precipitated such vehement prophetic critique. The answer offered thus far has been rather straightforward: worship of Ba’al-Hadad, a well-known deity in the ancient Near East, closely connected with fertility, field, and cattle. As the argument goes, the Israelites in the North had capitulated to the pressures of the surrounding Canaanite culture, and rather than holding to the uniqueness of their one God, YHWH, they worshipped Ba’al instead. Varieties of this response have been offered according to the particular scholar’s understanding of divine fluidity in the Ancient Near East and its application to Ba’al. Does denigration of Ba’al indicate a generic polemic against all forms of idol-worship? Is there one deity named ‘Ba’al’ with many location-specific manifestations? Whatever the formulation, the general consensus is that Hosea was incensed that large swaths of Israelites had ceased worshipping YHWH and had started to worship Ba’al instead. Often, this interpretation casts Hosea as a prophet who fears every sort of influence from foreign peoples: cultural and religious alike. This Hosea is nearly xenophobic: his greatest desire is to maintain the ideological purity of the nation of Israel.

Such an understanding is not without warrant from the text. Indeed, Hosea makes it abundantly clear that he is enraged by the fact that the Israelites have, in some sense, neglected to worship YHWH rightly. Questions remain, however, as to the exact nature of this failure. There could be many reasons for Hosea to doubt Israel’s commitment to YHWH. Hosea’s words preserve one side of a multifaceted conversation in the 8th century regarding Israelite theology and identity. Insights from elsewhere may be useful in our attempt to reconstruct an accurate picture of Israelite worship in this time period. Specifically, epigraphic and onomastic evidence assist us in discovering alternative possibilities for interpreting the situation of 8th-century Israel. Throughout this article, with the support of such evidence, I will maintain that Hosea’s polemics against Ba’al target Israelites who sincerely believed themselves to be faithfully worshipping YHWH. In their minds, there was nothing adulterous about referring to YHWH as Ba’al.

The conflict reflected in Hosea, therefore, is primarily an internal one: a debate about the integrity of YHWHism itself. As heated as interreligious debates can get, intra-religious debates can be far more contentious. In interreligious disagreement, boundaries between one religion and another are drawn fairly rigidly. Power dynamics become more complex when the debate is internal in nature. When the question is not ‘How will we advance the cause of the Israelites against that of group X?’ but is instead ‘What does it mean to be an Israelite?’ all sorts of questions are necessarily on the line: What is the nature of YHWH’s covenant? How will we insist on conformity to societal standards? Who has the power (political, religious, or otherwise) to decide how to worship YHWH rightly? Studying Hosea’s answers to these questions can bring us to a greater understanding of the internal coherence of Israelite religion in the 8th century BCE.

Spencer L. Allen argues that various Akkadian and Northwest Semitic deities’ first names are best interpreted not as proper names, but as categorical labels that mask the deities’ real first names. He lists Ba’al (‘master’ or ‘lord’) and Ishtar (‘goddess’) as examples: ‘Because Ba’al can be interpreted as a common noun that serves as a title rather than a name, many scholars accept that there were independent and distinct Ba’al deities who should not be identified with either the Mesopotamian storm-god Adad or the Levantine storm-god Hadad’. If Allen is correct, and ‘ba’al’ was understood as a categorical label rather than a personal name in 8th-century Israel, then surely the Israelites would have seen no contradiction in calling YHWH ‘my Ba’al’. Far from idolatry, this could have been seen as praise of the uniquely all-powerful YHWH. Plentiful evidence from both biblical and extra-biblical sources suggests that ‘ba’al’ did not always refer to idol worship throughout the history of Israel. The term often simply means ‘lord’ or ‘master’. J. Andrew Dearman suggests that extra-biblical Iron Age inscriptions, particularly Phonecian and Punic texts, should be given methodological priority when assessing the semantics of ‘ba’al’ in Hosea. He finds that ‘These inscriptions demonstrate a plurality of deities, both male and female, who are addressed with the appellative Baal’ (p. 615).

What Hosea condemned was not idolatrous worship of Ba’al Hadad of Ugarit, but incorrect worship of YHWH. He did not pit Baalism against YHWHism as two different religions vying for Israelite loyalty, but called Israel back to a greater appreciation for the covenantal aspect of her own religion. He was no mere social agitator, but a prophet. To worship in such a way that maligned the significance of the covenant for Israelite religion was, for Hosea, to forfeit Israelite identity altogether. It was no better than acting as an adulterous wife. What we see in Hosea 2.16-17 is a prophet desperately pleading for his people to live and worship in congruency with their professed identity as the chosen and covenanted people of God (p. 621).

Uma história de Moab

Moab está situado na Transjordânia, entre os vales do Zered e do Arnon, porém levava frequentemente sua fronteira ao norte do Arnon. Seu território principal está situado em um planalto de 1200 metros de altitude.

As cidades do ano 3000 a.C. foram destruídas e abandonadas. Aí por volta de 1300 a.C. o país foi novamente ocupado por semitas nômades e pastores.Território de Moab. Desenhado por Hilary Hatcher

Sua capital era Kir-hareseth (Kir, Kir-heres), a moderna Kerak. Outras cidades: Aroer, Dibon, Medeba e Heshbon. Cerca de oito km a oeste de Medeba está o monte Nebo ou Pisgah, segundo textos bíblicos.

No século I d.C., a sudoeste do monte Nebo estava a fortaleza de Maqueronte, onde Herodes Antipas mandou matar João Batista, segundo relatos dos evangelhos. Moab e Israel eram rivais. Antes de Israel adotar a monarquia como forma de governo, Moab já o fizera. Seu deus principal era Kemosh. Sua língua se assemelha bastante ao hebraico.

Um artigo

Ancient Moab: from the Ninth to First Centuries BCE – By Burton MacDonald

The Bible and Interpretation – June 2020

Os antigos moabitas eram constituídos por vários grupos. Eles eram provavelmente descendentes, pelo menos em parte, dos Shûtu/Sutu e/ou Shasu. Os mais antigos aparecem nas Cartas de Tell el-Amarna, datadas do século XIV a.C., como “sem lei” e “tramando rebelião”. Às vezes, porém, os egípcios os usavam como mercenários. Os textos os retratam como pastores na região do sul da Jordânia (possivelmente mais ao norte e até mesmo na Cisjordânia) a quem os egípcios permitiram levar seus rebanhos para pastar no leste do delta do Nilo. Os egípcios tentaram sedentarizá-los, mas aparentemente não tiveram sucesso. O termo acádico Shûtu/Sutu pode ser uma contrapartida do termo egípcio Shasu, que significa “andar a pé”, “vagar”. O termo Shasu aparece nos textos egípcios da Décima Nona Dinastia (de 1292 a 1189 a.C.). Refere-se a nômades e seminômades que vivem em tendas e pastoreiam rebanhos na região do sul da Transjordânia. Eles não constituíam um grupo étnico. Em vez disso, são retratados como pastores que os egípcios tinham que manter sob controle para proteger suas distantes fronteiras orientais. Em relação ao Shasu, W. G. Dever, Beyond the Texts: An Archaeological Portrait of Ancient Israel and Judah. Atlanta: SBL, 2017, p. 102, menciona a frase “o Shasu de yah“. Essa poderia ser a mais antiga menção a Iahweh.

A number of groups constituted ancient Moab. They were most likely descendants, at least in part, of the Shûtu/Sutu and/or Shasu. The former appear in the Amarna Letters, dated to the 14th century BCE, as “lawless” and “plotting rebellion.” Sometimes, however, the Egyptians co-opted them as mercenaries. The texts portray them as pastoralists in the region of southern Jordan (possibly farther north and even in Cisjordan) whom the Egyptians allowed to graze their flocks in the eastern Nile Delta. The Egyptians attempted to sedentarize them, but apparently were unsuccessful. The Akkadian term Shûtu/Sutu may be a counterpart of the Egyptian term Shasu, meaning “to move on foot,” “to wander.” The term Shasu appears in Nineteenth Dynasty (lasting from 1292 to 1189 BCE) Egyptian texts. It refers to nomadic and semi-nomadic people, living in tents and herding flocks, in the region of southern Transjordan. They did not constitute an ethnic group. Rather, they are portrayed as pastoralists whom the Egyptians had to keep in check in order to guard their remote eastern borders. Relative to the Shasu, Dever (2017: 102) mentions the phrase “the Shasu of yah.” MACDONALD, B. A History of Ancient Moab from the Ninth to First Centuries BCE. Atlanta: SBL Press, 2020Such could be the earliest mention of Yahweh.

 

Um livro

MACDONALD, B. A History of Ancient Moab from the Ninth to First Centuries BCE. Atlanta: SBL Press, 2020, 304 p. – ISBN 9781628372687

Este livro sobre Moab apresenta dados arqueológicos, epigráficos, bíblicos e pós-bíblicos para construir um panorama da história dos moabitas que habitavam na Transjordânia. A análise das descobertas arqueológicas mostra que, embora seu território não fosse rico em recursos, sua aliança com os assírios os fez prosperar.

A History of Ancient Moab from the Ninth to First Centuries BCE incorporates archaeological, epigraphic, biblical, and postbiblical evidence to construct a picture of Moabite history beginning with their origin in the Transjordan through their emergence on the international stage. Analysis of inscriptional and archaeological discoveries shows that, although their territory was not rich in resources, their service to the Assyrian Empire made them prosperous.