Meu artigo Leitura socioantropológica do livro de Rute ficou pronto no dia 27 de dezembro. Será publicado na revista Estudos Bíblicos número 98, em junho de 2008. Confira aqui a minha proposta de leitura.
Contudo, ainda não sei se consegui fazer uma leitura socioantropológica – que explica os fatos sociais – ou uma leitura sócio-histórica – que descreve os dados sociais relevantes! Mas o que foi feito, bem ou mal, já foi feito. A partir de março, por favor, as avaliações são bem-vindas.
O que eu gostaria de colocar a seguir, após a bibliografia e as resenhas de obras sobre Rute, são algumas questões difíceis que encontrei ao estudar o texto e ao confrontar posições de diferentes autores. Questões que eu chamaria de abertas, porque podem ter muitas respostas ou mesmo não ter nenhuma resposta mais segura, por enquanto. Como já disse, o livro é pequeno, muito bem escrito, mas tem alguns nós difíceis de desatar.
Observo que neste texto serão colocados apenas os problemas. As soluções que encontrei ou escolhi estarão na revista Estudos Bíblicos.
1. Uma questão metodológica, para começar. Já abordada em meu artigo Leitura socioantropológica da Bíblia Hebraica. Uma típica dificuldade encontrada pelos biblistas no uso da leitura socioantropológica é a diversidade de tendências e a grande extensão do campo das ciências sociais, o que faz com que alguém, mesmo com um conhecimento razoável das obras de Durkheim, Weber e Marx e de eventuais pensadores mais recentes, se sinta bastante perdido quando se fala de perspectivas de conflito, funcionalismo estrutural, idealismo cultural, materialismo cultural… Com freqüência não se sabe que método escolher ou misturam-se na análise várias tendências sociológicas, criando um método eclético que corre o risco de oferecer uma belíssima solução para um problema inexistente ou mal colocado. Ou, como alertam outros autores, nós, biblistas, costumamos utilizar teorias antropológicas e sociológicas que já foram abandonadas pelos especialistas nas respectivas áreas, porque consideradas superadas. Ou, em outras duras palavras: chegamos sempre atrasados, e o resultado é bastante insatisfatório.
2. Por que será que o autor/a de Rute situa os acontecimentos em Belém de Judá e os seus personagens como efrateus? Por causa da genealogia de Davi em 4,17b-22 (Booz gerou Obed, Obed gerou Jessé e Jessé gerou Davi)? Mas seria a genealogia de Davi parte da obra original ou um acréscimo posterior usado para “canonizar” o livro? Ora a genealogia tem uma perspectiva exclusivamente androcêntrica, em contraste com o restante do livro que tem uma perspectiva ginocêntrica. Como conciliar as duas coisas? Buscando outra solução, há quem pense que pode ser uma aplicação da profecia de Mq 5,1-3 (5,1a: “E tu, Belém-Éfrata, pequena entre os clãs de Judá, de ti sairá para mim aquele que governará Israel”)… Porém assim não estamos, mais uma vez, arrumando uma solução “davídica” para o problema? Outros dizem: sim, solução davídica, mas não por causa deste ou daquele texto, mas porque há um “davidismo” forte entre os judaítas que elogiam Belém em contraste com Jerusalém, pois os reis (de Jerusalém) levaram Judá ao exílio, enquanto Davi (de Belém) levou as tribos acuadas e dispersas a grande país… Contudo, pergunta-se ainda: há realmente este “davidismo” no pós-exílio? Como comprová-lo? De qualquer maneira, seria viável a postura que insiste em ler o livro de Rute como uma defesa da restauração da dinastia davídica no pós-exílio?
3. Por que escolher Moab como destino da família de Elimelec e uma moabita, Rute, como a portadora da solução para a crise da família? Moab é a terra de um povo que outras tradições bíblicas vêem com hostilidade, conforme se lê em Dt 23,3-7 e Ne 13,1-3. Lembro ao leitor que em todo o livro apenas os territórios de Judá (restrito a Belém de Judá e aos efrateus) e Moab (restrito a “campos de Moab e às moabitas Orfa e Rute”) são explicitamente citados.
4. A migração da família de Elimelec para Moab e a volta de Noemi e Rute a Belém poderiam estar sugerindo ao leitor uma analogia com a situação de exílio babilônico e volta para Judá e isto poderia ser usado como um argumento razoável para colocar o livro na época persa?
5. Terá mesmo existido em Yehud – nome aramaico do Judá pós-monárquico -, a partir da metade do século V a.C, a chamada comunidade do “Segundo Templo”, também apelidada pelos estudiosos, em alemão, de Bürger-Tempel-Gemeinde? Esta comunidade pode ser sumariamente definida como uma unidade social que surge da união do pessoal do templo com os proprietários de terra, criando um sistema econômico autônomo. Esta Bürger-Tempel-Gemeinde criaria, assim, uma sociedade dentro da sociedade, um restrito grupo privilegiado não co-extensivo com a sociedade mais ampla da província. Seria este o contexto no qual foi escrito o livro de Rute, que defende a tradicional estrutura do clã (mishpâhâ) constituído por um agrupamento de famílias ampliadas (bêth-‘abhôth) que moram na mesma região e se auxiliam tanto no setor social quanto no econômico, constituindo uma comunidade jurídica local?
6. Na época do domínio persa sobre Yehud, há, pelo menos, outras três propostas para dar estabilidade e identidade à comunidade. Há a proposta de Zorobabel e Josué: reconstruir o Templo e o altar, narrada em Ag 1,1-15a; Zc 4,1-6a;10b-14; Esd 3,1-13; já a proposta de Esdras é manter a pureza da raça e observar a Lei, narrada em Esd 9,1-10,44; Ne 8,1-18 e, finalmente, a de Neemias, que é reconstruir Jerusalém, devolver terras alienadas e perdoar dívidas de agricultores empobrecidos, como está em Ne 5,1-19. As três vêm de Jerusalém. Ora, estas três propostas são rejeitadas ou, no mínimo, ignoradas pelo autor/a do livro de Rute. Jerusalém, o Templo, o culto, as autoridades centrais enviadas pela Pérsia nem são mencionadas no livro. Situar a estória na “época dos juízes”, não seria um modo inteligente de camuflagem literária utilizada pelo autor/a do livro de Rute para fazer sua própria proposta tão diferente das outras? E nem tão sutil assim é o desafio à proibição de casamentos com estrangeiras decretado por Esdras: Rute não é apenas uma estrangeira, ela é uma moabita. E assim é insistentemente chamada no livro: “Rute, a moabita”! Uma moabita que jamais é designada na estória como estrangeira residente (ger), merecedora de ajuda, pessoa com direitos (Dt 24,19–21), mas que é uma nokriyyâ, uma estrangeira sem nenhum direito (Rt 2,10). Para aqueles que gostam de pensar que a estória está, de fato, falando dos “dias em que julgavam os juízes”, pergunto: onde estão estes juízes no quarto ato do livro (4,1-12)? Nem mesmo se usa o verbo “julgar” (shâphat), na reunião em que se decide quem vai comprar a propriedade de Noemi e se casar com Rute …
7. Quem lida com o livro de Rute enfrenta o grande problema de decidir se a solução proposta pelo autor/a no capítulo 4 envolve além do resgate da terra, a ge’ulla (Lv 25), também o casamento com o cunhado, o levirato (Dt 25,5-10), e qual seria a relação entre estas duas leis. Esta questão divide os especialistas, pois Rute não é judaíta, Booz não é seu cunhado, não há contrato de casamento (contrariando normas legais documentadas, na época, em papiros da comunidade judaíta de Elefantina), o texto fala o tempo todo apenas de “resgate”, a exigência de casamento com Rute feita por Booz ao parente anônimo que tem direito de resgate da terra parece extraordinária, já que os textos das leis não falam nada disso. Estaríamos lidando com uma lei anterior a Dt 25,5-10, que poderia ser chamada de “casamento redentor”, mais amplo que o levirato em sentido estrito? Ou, em sentido oposto, estaríamos lidando com uma interpretação bem mais recente de Dt 25,5-10, uma espécie de midrash da antiga lei, aplicada aqui de maneira muito mais livre? Enfim, por que as duas leis estariam interligadas, devendo ser executadas em conjunto (4,5)? Ou ainda: o livro de Rute aplica, no capítulo 4, a lei do resgate e do levirato ou apenas a lei do resgate?
8. Uma questão menor, mas que aparece em certos autores é a compra da terra que Booz faz no capítulo 4. De quem é a terra? É de Noemi ou de outra pessoa do clã para quem Noemi já vendera a terra? Há autores que dizem ser de outra pessoa. Mas onde está isto no texto?
9. Onde foi escrito o livro de Rute? Em Jerusalém? Em outro lugar? Esta é uma questão que não abordei…
10. Quem escreveu o livro de Rute? Um homem? Uma mulher? Qualquer um dos dois? O livro tem uma perspectiva ginocêntrica e isto coloca a possibilidade de uma autoria feminina. Mas seria esta autoria feminina necessária para explicar a perspectiva do livro? Sendo as duas genealogias do final – uma curta, 4,17b, e uma longa, 4,18-22 – essencialmente androcêntricas, e considerando como bastante provável que não faziam parte da obra original, quando teriam sido acrescentadas e quem o teria feito?