Libânio analisa a greve de fome de Dom Cappio

Merece leitura atenta a entrevista do teólogo João Batista Libânio à IHU On-Line:

A greve de fome de Dom Cappio: um ato de nítido alcance político

“Ao assumir uma posição política, não a exerceu no estilo de Cristandade, como se escreveu, porque não o fez em nome de nenhum dos poderes do Estado. Tentou influenciar o Estado pelo lado que compete a todas as instituições e pessoas fazê-lo: gerar ideias, valores, contrapor-se a outras diferentes, exprimir posições com gestos radicais”, afirma João Batista Libânio, em entrevista por e-mail à IHU On-Line, refletindo sobre a greve de fome de Dom Cappio e sua luta contra a transposição do Rio São Francisco.

Licenciado em Filosofia pela Faculdade de Filosofia de Nova Friburgo, no Rio de Janeiro, em Letras Neolatinas pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), em Teologia pela Hochschule Sankt Georgen, em Frankfurt, Alemanha, Libânio é também mestre e doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana (PUG) de Roma e leciona Teologia no Instituto Santo Inácio de Belo Horizonte.

É autor de uma imensa produção teológica. Entre outros, citamos os seguintes livros: Teologia da revelação a partir da Modernidade (5. ed. São Paulo: Loyola, 2005); Eu creio – Nós cremos. Tratado da fé (2. ed. São Paulo: Loyola, 2005); Qual o caminho entre o crer e o amar? (2. ed. São Paulo: Paulus, 2005); e Introdução à vida intelectual (3. ed. São Paulo: Loyola, 2006). Dele, também foi publicado o artigo “Contextualização do Concílio Vaticano II e seu desenvolvimento” no livro A Teologia na universidade contemporânea (São Leopoldo: Unisinos, 2005, p. 13-45), organizado por Inácio Neutzling.

João Batista Libânio é assíduo nas páginas da revista IHU On-Line. Publicamos uma entrevista com ele na 103ª edição, de 31-05-2004, um artigo na 136ª edição, de 11-05-2005, outra entrevista na edição número 150, de 08-8-2005, uma entrevista na 214ª edição, de 02-04-2007, e mais uma entrevista na 224ª edição, de 20 de junho de 2007. Confira também um artigo de Libânio, intitulado “Contextualização do Concílio Vaticano II e seu desenvolvimento” e publicado nos Cadernos Teologia Pública, número 16, de 2005.

 

IHU On-Line – Como o senhor vê o papel de Dom Cappio no debate sobre as obras de transposição do Rio São Francisco? O que o senhor pensa sobre a greve de fome e sobre a proposta de revitalização, defendida por Dom Cappio?

João Batista Libânio – A consciência e a interioridade de uma pessoa escapam à nossa análise. O mundo das intenções está entregue a Deus e à consciência pessoal. As ações, desde que se exteriorizam, caem sob o nosso juízo que sempre é parcial e desde ângulos determinados. Uma primeira análise: o aspecto testemunhal de Dom Cappio. Os que convivem com ele, que o conheceram e conhecem atestam a limpidez evangélica de seu agir. Prefiro ficar com tal testemunho do que levantar suspeitas azedas, como certos órgãos de publicidade. Admiro a coragem, a ousadia do gesto. Ultrapassa o comum dos mortais. Ninguém arrisca a vida, se não em casos extremos e heroicos. Ele o fez. E por quê? Pelo que ele escreveu, falou e outros comentaram, ele se pôs ao lado do povo pobre mais ligado ao Rio São Francisco e de que ele tem experiência pessoal. Bom recordar que ele, com pequeno grupo, percorreu o Rio São Francisco das nascentes na Serra da Canastra até a sua foz durante um ano. Adquiriu conhecimento minucioso e bem localizado do mundo diretamente ligado à problemática do rio. Ora bem, a partir desse ângulo analisou o projeto da transposição e o processo como ele foi e vinha sendo conduzido.

Formou-se um duplo juízo: técnico-político e ético. Sob o primeiro aspecto, considerou o projeto do Governo não corresponder aos interesses do povo ribeirinho e visar a outros interesses, especialmente do agronegócio, embora indiretamente também atinja pessoas necessitadas do Nordeste. Não viu proporção entre os benefícios reais para o povo e os custos. Mais: com instituições especializadas pensou em alternativas mais econômicas e mais populares, segundo sua análise. Foi mais longe: emitiu um juízo ético presidente Lula sobre o processo. Considerou que ele desrespeitava o povo, enganava-o, não cumpriu o prometido, foi feito à sorrelfa, não permitindo amplo debate público. Tentou diálogo. E, não sendo acolhido, lançou mão do recurso do jejum público. Neste momento, um ato religioso, por motivação ética e teologal de compromisso com os pobres, assumiu nítido caráter político. A pessoa era figura religiosa de forte simbolismo popular – um bispo -, o conteúdo do ato permitia dupla leitura – jejum ou greve de fome -, a motivação pessoal explicitada fazia parte do universo religioso – opção evangélica pelos pobres -, mas o alcance externo assumia caráter altamente político. Contestava uma decisão política do Governo e exigia atitude política de sua reversão. Portanto, vejo tal ação como um ato de nítido alcance político. Todo cidadão tem direito de protestar, pessoal ou em grupo, contra qualquer decisão do Estado.

O fato de ser bispo não o priva de tal direito. Outra coisa é ver se tal ato político, no conjunto da situação nacional, sendo feito pela figura de um bispo, produz o efeito desejado ou, pelo menos, desperta a nação para realidade importante, ou, pelo contrário, oferece munição fácil para adversários mal intencionados do Governo. Este é o ponto mais difícil da análise. O governo Lula, ao ser enfraquecido, abre espaço, na atual conjuntura, não para alternativas melhores, e sim para possível retrocesso na linha do PSDB, com efeitos ainda muito piores para o povo. A revitalização do Rio São Francisco, as alternativas propostas merecem ser consideradas pelo governo na medida em que elas realmente signifiquem um ganho popular.

IHU On-Line – O senhor acha que o jejum de Dom Cappio pode ser visto como um exemplo da mistura entre fé e política? Como o avalia nesse sentido?

João Batista Libânio – Aprendi, em outros tempos, uma distinção que, se não me engano, remonta a A. Gramsci entre Estado e Sociedade Civil. O Estado exerce o poder na quádrupla forma de executivo, legislativo, judiciário e repressivo. Mas ele necessita para legitimar-se de idéias, símbolos, valores, razões aceitadas pelas pessoas, imaginário simbólico favorável, consenso popular e de grupos/entidades importantes. Numa palavra, existe o mundo da hegemonia que dirige, orienta, legitima o Estado. Porque o poder recorre fortemente a ela, pressiona-a para justificá-lo. Hoje a maior fonte de legitimação vem dos meios de comunicação social. Esses fazem circular idéias e valores de outras instituições. Empresas capitalistas que financiam programas, donos de produtoras e transmissoras televisivas, grupos poderosos que compram tempo de propaganda influenciam pesadamente na orientação das ideias na sociedade. E um conflito radical com o Estado, poderia levá-lo à crise e mesmo à perda de legitimidade e substituição. Na Argentina dos militares, com a derrota na guerra das Malvinas, o poder militar ficou de tal modo deslegitimado, que se foi. No Brasil, o governo militar foi perdendo legitimidade até ser substituído por governo formalmente democrático.

D. Cappio, como bispo, projeta sobre o mundo simbólico e representativo a força da Igreja católica. É verdade que sua força foi diminuída pela intervenção de outros bispos em linha oposta. Em todo caso, sua simbólica vinha do status de bispo. Ao assumir uma posição política, não a exerceu no estilo de Cristandade, como se escreveu, porque não o fez em nome de nenhum dos poderes do Estado. Tentou influenciar o Estado pelo lado que compete a todas as instituições e pessoas fazê-lo: gerar idéias, valores, contrapor-se a outras diferentes, exprimir posições com gestos radicais. Não se mistura fé e política, porque não é a pessoa do bispo, em nome de sua função de bispo, que legisla, que administra o Estado, que julga ou que coíbe militarmente alguma atividade política. Mas alguém, de representatividade religiosa, defende interesses e valores explicitados e sujeitos ao juízo e crítica de qualquer outra instituição ou sujeito. Aliás, foi ao que assistimos. Pessoas e instituições que o defenderam, e pessoas e instituições que divergiram. Até aí, o papel político do bispo cabe dentro de sua função episcopal e dentro da democracia. Em outras palavras, o bispo fez pressão sobre o Estado em determinada direção. Algo absolutamente correto. É discutível técnica e politicamente se a direção e o momento de tal ação atingiram ou não o bem desejado: servir os mais pobres e desprovidos de água (continua).

Fonte: Notícias IHU – 15/1/2008.

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