Gerd Luedemann polemiza sobre o Natal

O conhecido professor luterano Gerd Lüdemann, afastado anos atrás pela cúpula de sua Igreja da cátedra de Novo Testamento da Faculdade de Teologia da Universidade de Göttingen, Alemanha, por suas posturas consideradas hipercríticas em relação ao Novo Testamento, gera intensa polêmica às vésperas do Natal, com um press-release sobre o nascimento de Jesus e seu significado.

Gerd Lüdemann (1946-2021)

O texto foi publicado em sua Home Page e igualmente enviado a lista de discussão Biblical Studies ontem, dia 16 de dezembro de 2005.

São 10 itens, nos quais se mesclam afirmações históricas, exegéticas e teológicas. Algumas de suas afirmações são mais do que pacíficas para o mundo acadêmico, outras são permanente objeto de debate, e umas poucas são epistemologicamente complicadas por transitarem do histórico para o teológico, e vice-versa, sem maiores explicações. O resultado da mesclagem, em tom desafiador, é que aquece a polêmica.

Os interessados podem acompanhar o debate que se estabeleceu lendo alguns biblioblogs.

A melhor análise que vi até agora foi feita por Mark Goodacre, com o título de Lüdemann on Christmas.

Acrescento também o link para um livro publicado em 2002, editado por Jacob Neusner, e que documenta a expulsão de Gerd Lüdemann de sua cátedra.

Convém lembrar que o pesquisador foi, na verdade, transferido para a cadeira de História e Literatura do Cristianismo Primitivo na mesma Universidade, ficando proibido de lecionar Novo Testamento.

Gerd Lüdemann faleceu em 23 de maio de 2021, aos 74 anos de idade.

 

Transcrevo aqui o texto

The Christmas stories are pious fairy-tales

Press Release December 16, 2006

The biblical accounts of the birth of the Jesus, the supposed Son of God, are mere inventions and have little relation to what really happened. Historical research has demonstrated this once and for all. Ten unquestionable facts argue against their historical credibility:

1. Written centuries earlier, the quoted words of Old Testament prophets did not predict the coming of Jesus, but referred to events and persons in their past or immediate future. They would have been shocked by the notion that Jesus’ birth was the fulfillment of their prophecies.
2. The New Testament authors derived most events of the Christmas story from prophecies of the Old Testament and misrepresented their original intent in order to make them seem to point to Jesus.
3. The notion that Mary’s pregnancy did not result from intercourse with a male is a canard. The claim of a virgin birth has two sources: the mistranslation of “young woman” by “virgin” (in a passage that clearly did not refer to Jesus!), and the desire of Christians to place their revered leader on the same level as other ancient “sons of God” who were likewise born without participation of a male.
4. The reported worldwide census ordered by Caesar Augustus did not occur.
5. The reported murder of children in Bethlehem ordered by Herod the Great did not occur.
6. Jesus was born in Nazareth, not in Bethlehem.
7. The angels in the Christmas story derive from primitive mythology.
8. The shepherds who kept watch over their flocks are idealized representatives of the poor and outcast, persons emphasized by Luke. They do not appear in Matthew’s story.
9. The magicians from the East are idealized representatives of the Gentiles and of eternal wisdom. They do not appear in Luke’s story.
10. The story of the star of Bethlehem is a fiction intended to emphasize the importance of Jesus – and, of course, to provide an entrance cue for the magicians from the East.

The logical conclusion is unavoidable: the Christmas stories recounted by the Bible and those Christian churches that present them as actual events have lost all historical credibility. Surely Jesus of Nazareth would not wish Christians to spread lies about him!

Göttingen, December 16, 2005

Prof. Dr. Gerd Lüdemann.

 

A Teologia de Guimarães Rosa em Primeiras Estórias

Uma amiga, que está estudando Literatura Brasileira na Europa, enviou-me, nestes dias, um pedido que não consigo atender direito. Se algum especialista na área quiser dar alguma contribuição, por favor, sirva-se do espaço dos comentários deste post.

Estou estudando Guimarães Rosa e tenho que escrever um trabalho sobre a obra Primeiras Estórias. A obra fala do renascimento transcendental do homem, explica seu processo e tudo mais…. Na verdade o que Guimarães Rosa faz na sua obra é teologia… ele fala de morte e ressurreição através de uma linguagem popular mas mítica… exatamente como a Bíblia. Gostaria de escrever sobre isso. Conheceria você algum autor que já tenha abordado o assunto ou algum indício, uma orientação…?

Bibliografia Bíblica Latino-Americana

A Bibliografia Bíblica Latino-Americana

Um projeto a serviço da interpretação bíblica

Iniciada em 1988 pelo Prof. Milton Schwantes (in memoriam), como parte do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo, a Bibliografia Bíblica Latino-Americana é um projeto que está ligado à área de Literatura e Religião no Mundo Bíblico. Tem como objetivo incentivar a pesquisa bíblica, facilitando o acesso ao material produzido na América Latina e no Caribe.

A Bibliografia Bíblica Latino-Americana surgiu em tempos que a Bíblia estava sendo descoberta, em meio às comunidades cristãs da América Latina e do Caribe, como fonte inspiradora de um novo jeito de ser igreja, como novo modo de formular religião à luz das experiências cotidianas e políticas.

Como bem nos ensinava o Prof. Milton Schwantes, “a Bíblia é de todos” e, embora não seja um livro novo, o uso que dela se faz é sempre inovador. Basta olhar para a grande quantia de edições da Bíblia e para o significativo número de novas traduções e já se percebe quão relevante a Escritura vem se tornando no cristianismo latino-americano e caribenho. Além disso, torna-se cada vez mais crescente a interpretação destes textos sagrados em que o nosso contexto ganha espaço e relevância interpretativa. Começa-se a conectar, com destaque, o sentido de seus textos às experiências da vida latino-americana. E, visando registrar na história este e outros fenômenos religiosos, relacionados à Bíblia, é que foi idealizada a Bibliografia Bíblica Latino-Americana.

Após um período de invernia, o projeto foi retomado em 2013 e é hoje coordenado pelo Prof. José Ademar Kaefer, que ocupa a cadeira do Prof. Milton Schwantes. O trabalho, contudo, é realizado em equipe com os alunos e as alunas de Bíblia do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião (UMESP) e da Faculdade de Teologia (FaTeo). É um trabalho feito em mutirão, no pleno sentido da palavra.

O projeto publicou 8 volumes, que reúnem as publicações bíblicas referentes a 1988 até 1995. Estas publicações também estão alocadas na internet e podem ser facilmente encontradas em nosso acervo bibliográfico. Os dados referentes aos anos de 1996 até 2012 só podem ser encontrados no presente site. As publicações de 2013 em diante estão em vias de catalogação, mas boa parte você também já pode acessar aqui.

Um exemplar de parte do material citado encontra-se disponível na Biblioteca Ecumênica da Universidade Metodista de São Paulo, campus Rudge Ramos.

Você também pode fazer parte desse mutirão enviando-nos suas produções bíblicas ou as da sua comunidade para bbiblicalatinoamericanams@gmail.com, e elas também serão incluídas no acervo da BBLAMS. Se possível, envie-nos também um exemplar no endereço acima, que ficará disponível na Biblioteca Ecumênica. Por favor, alerte-nos para algum site de interpretação bíblica ou alguma publicação que não tenham sido mencionados por nós.

Enfim, fazemos votos que o projeto Bibliografia Bíblica Latino-Americana Milton Schwantes seja de grande auxílio para sua pesquisa e uma contribuição para o movimento bíblico da América Latina e Caribe, na construção da Pátria Grande.

A historiografia no debate dos biblioblogueiros

Por falar em historiografia deuteronomista, ontem, Tyler F. Williams, Professor de Antigo Testamento no Taylor University College, Edmonton, Alberta, Canadá, fez, em seu blog Codex [blog descontinuado], um apanhado do debate atual sobre a historiografia bíblica, no contexto do acirrado confronto entre minimalistas e maximalistas.

Beyond Minimalism & Maximalism: Some Modest Observations on the Historiography Debate

A OHDtr em Estudos Bíblicos

O número 88 da revista Estudos Bíblicos, que será o último de 2005, está sendo finalizado pelos Biblistas Mineiros. O tema abordado: A Obra Histórica Deuteronomista, assunto espinhoso e sobre o qual temos pouca bibliografia publicada no Brasil. O meu artigo trata do Contexto da Obra Histórica Deuteronomista. Espero que este número de Estudos Bíblicos seja um recurso válido para os nossos alunos de Teologia e para os agentes de pastoral que precisarem estudar melhor o tema.

Meu artigo começa assim:

Königsberg, Alemanha, 1943: nesta ocasião, Martin Noth propõe, pela primeira vez, que os livros de Josué, Juízes, Samuel e Reis formam uma coletânea (Sammelwerk) de tradições, que deverá ser chamada de historiografia deuteronomista. Nome que lhe é atribuído por sua grande semelhança com as leis e os discursos exortativos do Deuteronômio. Livro este, que, por sua vez, em seus discursos iniciais, cumpre a função de introdução à coletânea. Para Noth, a OHDtr (= Obra Histórica Deuteronomista) teria sido redigida por um só autor, possivelmente na Palestina do século VI a.C., com o objetivo de explicar o fim do reino de Judá e o exílio babilônico então em curso como fruto da apostasia do povo (1).Hoje, mais de 60 anos após a “invenção” de Noth, dezenas de hipóteses sobre a OHDtr, espalhadas em milhares de estudos, são propostas pelos especialistas, destacando-se, entre elas, duas correntes: a de Cross e a de Smend.

Frank Moore Cross, em um artigo de 1968, reeditado em 1973, propõe duas edições da OHDtr: a primeira, elaborada na época de Josias (640-609 a.C.), é um escrito otimista que dá suporte e celebra a reforma político-religiosa deste rei de Jerusalém; a segunda, escrita durante o exílio, é marcada pela experiência da catástrofe de 586 a.C. e transforma o anterior escrito de propaganda em explicação teológica das causas da desgraça que atingiu Jerusalém e Judá. Seus discípulos R. D. Nelson e R. E. Friedman, além de muitos outros pesquisadores, seguem-no de perto (2).

Saindo de Harvard, nos Estados Unidos, para Göttingen, na Alemanha, encontramos a hipótese de Rudolf Smend, feita em 1971 e retomada em 1978, e de seus discípulos W. Dietrich e T. Veijola. Eles propõem três redações para a OHDtr, todas escritas no tempo do exílio. Para Smend, à semelhança de M. Noth, o objetivo da OHDtr seria o de explicar a catástrofe do exílio. Muitos pesquisadores, sobretudo nos países de língua alemã, aderiram às suas explicações (3).

É evidente que a maior parte das questões sobre a OHDtr ainda não foram satisfatoriamente respondidas. Como, por exemplo: quem escreveu esta obra? Quando? Quantas modificações sofreu? Onde começa? Qual o seu objetivo? E até: existe mesmo uma OHDtr? Também: não estaríamos atribuindo ao “deuteronomista” muitas coisas sobre as quais não conhecemos a origem? Existe, de fato, um “pan-deuteronomismo”? Uma “invasão” de teologia deuteronomista em vários livros bíblicos, como muitos sugerem, é aceitável?

A proposta deste artigo é apontar, apesar de todas estas questões, o contexto em que a OHDtr foi escrita. Esta tentativa talvez suscite mais questões do que ofereça respostas. Entretanto, um bom ponto para começarmos a pensar a situação é o seguinte: do século XII a.C. (época da chegada dos “Povos do Mar”) até 745 a.C. (época do rei assírio Tiglat-Pileser III), quase nenhuma interferência duradoura de grandes impérios pode ser detectada na região de Canaã, permitindo aos povos da região uma relativa estabilidade e a construção de sua independência (4) . Mas a partir de 745 a.C…. Assim começaremos a delinear nosso contexto a partir da metade do século VIII a.C.

NOTAS
(1). O livro de M. Noth chama-se Überlieferungsgeschichtliche Studien [Estudos de história das tradições]. Cf. DE PURY, A.; RÖMER, T.; MACCHI, J.-D. (éds.) Israël construit son histoire: l’historiographie deutéronomiste à la lumière des recherches récentes. Genève: Labor et Fides, 1996, p. 18-39.
(2). O artigo de CROSS, F. M. The Themes of the Book of Kings and the Structure of the Deuteronomistic History pode ser lido em seu livro Canaanite Myth and Hebrew Epic: Essays in the History of the Religion of Israel. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 1973, p. 274-289 (Reprint Edition: 1997).
(3). Cf. SMEND, R. Die Entstehung des Alten Testaments. Stuttgart: Kohlhammer, 1978 [1990].
(4). Autores tão diferentes como John Bright e Mario Liverani concordam neste ponto. Cf. BRIGHT, J. História de Israel. 7. ed. São Paulo: Paulus, 2003, p. 327; LIVERANI, M. Oltre la Bibbia: storia antica di Israele. Roma-Bari: Laterza, 2003 [4. ed.: 2005], p. 159

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Observatório Bíblico acolhido por Biblical Theology e PaleoJudaica.com

Agradeço aos “bibliobloggers” Jim West e James R. Davila pela gentil acolhida de meu blog na blogosfera, em posts escritos ontem, dia 12.

Diz Jim West em Biblical Theology, sob o título Observatório Bíblico:

Airton José da Silva, who runs a very nice web resource page for Biblical Studies which I have mentioned before, has joined the biblioblogging family with his new blog, Observatório Bíblico. Welcome! Expect good things – this is a sharp man.

Por sua vez, James R. Davila, em PaleoJudaica.com, diz que fui ASSIMILATED TO THE BLOGOSPHERE:

Here’s a fairly new Brazilian blog, Observatório Bíblico, run by Professor Airton José da Silva. Welcome!

Curso de hebraico atualizado

O curso Noções de Hebraico Bíblico passou hoje por pequenas atualizações. Confira o curso aqui.

O hebraico é uma língua semítica. As línguas semíticas constituem um ramo da grande família das línguas afro-asiáticas, anteriormente chamada camito-semítica. A família afro-asiática compreende seis ramos: semítico, egípcio, berbere, cuxita, homótico e chádico.

A família das línguas semíticas é bem antiga, documentada desde a metade do terceiro milênio a.C. com o acádico e o eblaíta, até os dias atuais com o árabe, o amárico e o hebraico.

Quando é que se começou a falar de “língua hebraica”?

Para nossa surpresa, o termo “hebraico”, para se referir à língua, aparece pela primeira vez só nos escritos gramaticais de Saadia ben Iossef, conhecido também como Saadia Gaon (882–942 d.C.), tendo, só mais tarde ainda, se tornado comum nos estudos gramaticais da língua. Saadia Gaon, que nasceu no Egito e morreu na Palestina, foi o mais versátil sábio judeu da diáspora árabe, com erudição enciclopédica e vasta cultura. Saadia dirigiu a grande Yeshivá (=academia rabínica) de Sura, na Babilônia.

Antes disso, como os israelitas e judeus chamavam a sua língua?

Continue

Resenha do programa BibleWorks 6.0

BibleWorks 6.0: uma resenha extremamente positiva do programa foi feita por Jan Van Der Watt, da Universidade de Pretória, Pretória, África do Sul, e publicada em 26/11/2005 pela RBL – Review of Biblical Literature. Entre outras coisas, ele diz:

My overall impression of this program within its set limits is very positive. It is a highly refined and technologically advanced program that is a pleasure to use (…) This is a program that will never disappoint any user interested in analyzing the original languages of the Bible. On the contrary, the excellent features of this program, the speed and search capabilities, the quality of the database and fonts, and many other aspects not even touched on in this review make this program a joy to work with. Buy it and try it – you will not be disappointed.

Onde Encontrar: Ayrton’s Biblical Page > Links

Literatura judaica

NICKELSBURG, G. W. Jewish Literature Between the Bible and the Mishnah: A Historical and Literary Introduction. 2. ed. Minneapolis: Augsburg Fortress, 2011, 445 p. – ISBN 9780800699154.

Segunda edição revista e aumentada de importante texto, no qual Nickelsburg, professor emérito de religião da Universidade de Iowa, USA – onde lecionou por mais de 30 anos – nos introduz no mundo da literatura apócrifa, pseudepígrafa, Manuscritos do Mar Morto, obras de Flávio Josefo e Fílon de Alexandria. A primeira edição foi publicada em 1981.

In this fully revised and expanded edition, Nickelsburg introduces the reader to the broad range of Jewish literature that is not part of either the Bible or the standard rabbinic works. This includes especially the Apocrypha (such as 1 Maccabees), the Pseudepigrapha (such as 1 Enoch), the Dead Sea Scrolls, the works of Josephus, and the works of Philo.

Guerra Assimétrica

O sucateamento do Iraque continua. Você já parou para refletir sobre o que significa Guerra Assimétrica? Pare, leia e reflita… você verá que a situação do berço cultural da humanidade, a Mesopotâmia, tão importante para os estudos bíblicos, é mais crítica do que parece, como explica o professor da UFRJ Francisco Carlos Teixeira.

 

A guerra assimétrica no Iraque

Francisco Carlos Teixeira Da Silva – 29 de junho de 2005

Após o fim da Guerra Fria (1991), em assuntos militares, os EUA ainda mantinham a postura assumida durante a longa Administração Clinton: o uso maciço da supremacia aérea – aviação+balística – e limitação das tropas de solo, visando a superação da “Síndrome do Vietnã” (ver artigo anterior) e o custo político da “contagem de corpos”.

Assim, ao longo dos conflitos na ex-Iugoslávia (em especial em Kossovo, em 1999), os americanos evitaram um contato imediato com as tropas adversárias no solo, voltando-se para ações de destruição da infraestrutura logística, militar e econômica dos sérvios. Vigia a chamada Doutrina Powell: “…nós atiramos e eles morrem!” Assim, tinham os americanos descoberto a “guerra ideal” (em comparação com a carnificina do Vietnã).

Por outro lado, muitos críticos acusavam a administração Clinton de paralisia perante os inimigos da América, duvidando mesmo da inteligência e da coragem dos “generais de Clinton” em perseguir, com meios militares, os objetivos políticos do país. Como vimos no artigo anterior, Donald Rumsfeld, na linha de frente dos ideólogos neoconservadores de George Bush, visavam, ao assumir o governo americano em 2001, restaurar a confiança americana e explorar, profundamente, a vitória obtida contra os soviéticos na Guerra Fria. Foi neste contexto que arquitetaram a Guerra no Iraque como o cenário ideal para testar o novo modelo de guerra e seu corolário, a pretensa “Doutrina Rumsfeld”.
O Nascimento da Guerra do Futuro

Em 1993 o Governo Clinton decidiu-se por uma intervenção considerada “humanitária” na Somália, onde um confronto entre diversos partidos e “senhores da guerra” locais ameaçavam a unidade e soberania do país africano. Para os Estados Unidos tratava-se de evitar a transformação da Somália em mais um “país falido”, capaz de abrigar bases e santuários do terrorismo internacional, do narcotráfico e do crime organizado.

Devemos notar que no mesmo ano, em 1993, um comando terrorista islâmico ligado a, então, desconhecida organização Al Qaeda tentara dinamitar o World Trade Center, em Nova York. A tentativa, feita através de um carro-bomba colocado na garagem do prédio, falharia – dessa vez! Contudo, a percepção da inteligência americana acertara em ver na destruição das instituições estatais somalis um grave risco, ampliando as possibilidades de enraizamento do terrorismo que já apontava a América como o principal inimigo.

Foi neste sentido que Clinton despachou para Mogadíscio uma força-tarefa, altamente treinada e formada de comandos especiais (100 Army Rangers), para evitar o controle da cidade pelos senhores da guerra. A reação foi imediata: com armas precárias, tubos de lança-granadas de US$ 200, os combatentes irregulares somalis provaram uma larga eficiência, derrubando os super-helicópteros militares americanos e matando 19 comandos americanos, num dramático episódio da história militar contemporânea.

O drama de Mogadíscio, a capital somali (que dará origem a um livro e um filme de grande sucesso: “Black Hawk Dawn”, 2001, direção de Ridley Scott), provaria que mesmo a hiperpotência americana, que exerceria uma tranquila hegemonia mundial, poderia ser desafiada. A tecnologia superior americana, o excelente treinamento dos soldados e a grande disponibilidade financeira não bastavam para assegurar a vitória do poder superior num cenário adverso.

A bem da verdade, a Guerra do Afeganistão, entre 1979 e 1989, com soviéticos contra a resistência islâmica, já havia mostrado que um poder superior poderia ser paralisado pela multiplicação de meios, mesmo que inferiores, quando utilizados por um grupo, partido ou exército bem preparado, aguerrido e com forte coesão ideológica. Da mesma forma, a evidente superioridade de Israel – inclusive em termos de inteligência, através de um dos melhores serviços secretos do mundo – não conseguiu, até hoje, abalar a capacidade de resistência – e de promover ações violentas altamente dolorosas – da população da Palestina ocupada.

Entretanto, a nova forma de guerra, denominada de “assimétrica” – visto ser a guerra do fraco contra o forte -, não se ressume numa atualização tecnificada da clássica guerrilha, como praticada no Vietnã. Embora a extensão do uso de armas antimecanização – contra carros de assalto; transportes; helicópteros etc. – ao lado da multiplicação de C’2 (Comando & Controle), com novos meios, como laptops e celulares seja uma ferramenta básica da guerra assimétrica, o seu conceito estratégico é bem mais amplo. A estratégia assimétrica, visando a vitória de um poder inferior frente a uma potência superior, implica em um novo elenco tático, na verdade uma ampla base de instruções, que molda a nova modalidade de combate.
A Guerra Assimétrica

O eixo mais visível da guerra assimétrica permanece no âmbito clássico da guerra não-convencional: uma potência militarmente inferior, em posição de auto-defesa, quer dizer, sob ataque ou ocupação, pode recorrer ao que denominamos de “táticas não-convencionais”, como ataques surpresa, seguidos de retiradas; recusa em dar combate em situação de inferioridade; escaramuças; batalhas seletivas, sabotagem etc.

Estaríamos, ainda aí, no domínio clássico da guerra de guerrilhas, tal como nos textos de Mao Zedong, Van Giap e Che Guevara. Porém, a guerrilha é apenas uma das mais velhas formas de combate assimétrico e, de certa forma, já previsto no livro “A Arte da Guerra”, de Sun Tzu, escrito no segundo século antes de Cristo.

Mas, o arsenal de táticas assimétricas não se esgota na atualização tecnológica da guerrilha. Uma outra dimensão da guerra assimétrica é o uso, em larga escala, de meios não-convencionais de combate. Assim, um poder mais fraco, quando atacado em seu território ou em defesa do que considera seus legítimos interesses, poderia considerar tais métodos como necessários para sua autodefesa.

Destruir as bases econômicas do adversário, dentro ou fora do seu território, cortar suas linhas de suprimento, atingir suas instalações sob forma dissimulada – seja no país ocupado, seja na sede do país ocupante -; impor condições de estresse permanente para a tropa ocupante, impedir o descanso e semear o pânico entre os aliados “nativos” dos ocupantes são, todos eles, meios passíveis de uso numa guerra assimétrica.

Claramente a guerra assimétrica visa “quebrar a vontade política” do mais forte. Assim, a associação com o crime organizado, o uso de meios terroristas contra a população civil e alvos não-militares são, infelizmente, uma grande possibilidade. Evidentemente, a maior parte deles pode, claramente, assemelhar-se com atividade criminosa e estar, literalmente, fora das leis de guerra. Por essa razão a máxima “One man‘s terrorist is another man‘s freedom fighter” parece fazer sentido, por exemplo, para os combatentes mujahedins no Iraque.

Existem, ainda, outras dimensões da guerra assimétrica, em especial através do uso maciço de meios eletrônicos, virtuais e da nova economia “de plástico”. Tais métodos podem, ou não, ser utilizados por grupos autônomos – tais como redes terroristas – ou por Estados-Nação (ou seus simpatizantes), conforme aparece no texto teórico que mais avançou no debate da guerra assimétrica. Trata-se de “A Guerra sem Limites”, publicado em 1999, por dois oficiais da China Popular, Qiao Liang e Wang Xiangsui: tratava-se claramente de tirar o máximo de vantagens de um mundo altamente tecnificado, globalizado e mediatizado.

O livro chinês, após 11/09/01, passou a causar certo mal-estar, posto que muitos identificaram em seus ensinamentos as bases de ação da Al Qaeda. Na verdade, tratava-se de uma manualização de práticas já largamente em curso, inclusive praticadas pela CIA no Afeganistão contra os soviéticos.

Algumas destas modalidades da nova guerra assimétrica foram colocadas em prática depois da invasão americana do Iraque em 2003. Forças nacionalistas iraquianas, denominadas de “insurgentes”, ou “resistentes”, dependendo do ponto de vista, procuraram atingir o Estados Unidos visando sua retirada do país. Evidentemente sabiam não ter os meios para vencer a formidável panóplia militar norte-americana. Assim, começaram uma guerra assimétrica como forma de “libertação”nacional.
Pensando a Resistência:

Os objetivos iniciais dos EUA no país – a criação de um Iraque pró-ocidental no coração de um Oriente Médio reformatado à luz dos interesses norte-americanos – foram claramente ultrapassados pelos acontecimentos. De qualquer forma, e sejam quais forem os desdobramentos militares da guerra, do ponto de vista político, os EUA são, hoje, os grande perdedores. Devemos ter em mente que os objetivos de uma guerra são sempre políticos – como já afirmava Clausewitz.

Neste sentido, tal qual no Vietnã entre 1964-1975, os americanos cometeram graves erros, não conseguindo avaliar corretamente o sentimento nacional iraquiano, a força de coesão da religião islâmica e a possibilidade de caos derivado da dissolução do Estado baasista, em especial da polícia e das forças armadas. Neste sentido, faltou aos americanos uma abordagem antropológica e histórica das condições da guerra, imaginando pura e simplesmente a adesão da sociedade iraquiana aos valores considerados supremos pela administração Bush.

Da mesma forma, uma série de erros sucessivos na gestão do país ocupado – do saque de Bagdá até os tremendos abusos da prisão de Abu Graib – foram habilmente utilizados no âmbito mediático da guerra.

Tal erro de apreciação americana derivava de um contato muito intenso da inteligência americana com a elite ocidentalizada iraquiana, no exílio há décadas. Boa parte desta elite não viveu a Guerra Irã-Iraque (1980-1988), a Guerra do Golfo de 1991 e os anos de bloqueio e bombardeios subsequentes, não podendo avaliar o ressentimento antiocidental presente na população local.
A estratégia da violência

O ponto central da estratégia da resistência, como praticada no Iraque enquanto parte de uma guerra assimétrica, reside na questão da segurança – ou melhor, na produção maciça da insegurança. Com o atual grau de violência no país todos os esforços para a reconstrução institucional e econômica do Iraque são praticamente inúteis. A resistência iraquiana – mais de trinta grupos diferentes estão em ação hoje – sabe perfeitamente que é incapaz de derrotar militarmente a coligação encabeçada pelos EUA. Assim, buscam o que Clausewitz chamou de “centro de gravidade” do inimigo: a base de apoio de todo o sistema político-militar que quando tocada desarma o equilíbrio do adversário.

Os resistentes iraquianos, como foi o caso dos vietcongs entre 1964 e 1975, entendem que o centro de gravidade dos EUA é político e não militar. Assim, promovem o maior número de ações possíveis, marcadas por ataques pontuais e retiradas rápidas, evitando uma batalha decisiva onde a superioridade de meios americanos seria arrasadora. Procuram coordenar dois objetivos: provocar o maior número de baixas possíveis e evitar a reconstrução econômica do país, causando grande ônus financeiro aos americanos. Tais objetivos poderiam levar a população americana, a médio prazo, a exigir a retirada das tropas, mesmo sem uma grande derrota militar.

Hoje, quando as baixas americanas atingem mais de 1700 soldados, apenas 37% da população americana considera adequada a condução da guerra pela administração Bush, o que aponta claramente para a adequação da estratégia da resistência iraquiana. É verdade que o país sofre com a falta de luz elétrica, que ocasiona a parada do sistema de abastecimento de água potável e de escoamento de esgotos, além de atingir o funcionamento de escolas e hospitais, em razão da estratégia da resistência adotada.

Além disso, as exportações de petróleo caíram abaixo da época de Saddam Hussein, em pleno funcionamento do bloqueio ocidental imposto ao país, com os constantes ataques ao sistema de extração e transporte de petróleo. Oleodutos, estações de bombeamento e mesmo refinarias são alvos constantes da resistência, causando gravíssimo dano econômico ao país (a infraestrutura petroleira do país sofreu 642 ataques em 2004, com prejuízos na ordem de US$ 10 bilhões). Este é um dos objetivos da resistência: a guerra deve custar caro aos contribuintes americanos. É claro, que custa terríveis sacrifícios ao próprio povo iraquiano.

A idéia inicial da guerra do Iraque como um bom negócio – conforme apregoavam os neoconservadores americanos – deve ser paga com elevadíssimo ônus. Da mesma forma, o ataque a estrangeiros – mesmo civis – em atuação no Iraque é um objetivo estratégico maior da resistência.Trata-se de tornar o Iraque uma terra inóspita para estrangeiros, sejam jornalistas, empresários, médicos ou funcionários da ONU.

É nesse contexto que devemos entender a “indústria dos sequestros”. O sequestro de estrangeiros visa três objetivos simultâneos: i. Estabelecer o pânico entre possíveis candidatos a empregos nas empresas ocupadas com a reconstrução do país; ii. a produção de recursos financeiros para a manutenção da resistência (resgates tem variado, segundo fontes disponíveis, entre US$100 e US$300 mil dólares para funcionários subalternos, principalmente de origem asiática, podendo em casos de grande visibilidade política e de procedência de países membros da coligação atingir valores superiores a US$ 1 milhão); iii. projetar diretamente a guerra no interior da sociedade do adversário, levando a opinião pública a questionar a presença dos seus militares num “país remoto do Oriente Médio”.
O uso generalizado da violência.

A violência não atinge apenas as tropas de ocupação e os estrangeiros no país. A própria população iraquiana sofre duramente a ação de segmentos que formam um misto de criminalidade e insurgência. Assim, por exemplo, centenas e centenas de meninas, entre 10 e 16 anos, são sequestradas diariamente para serem vendidas (por US$ 10 até US$ 30 mil) nos Estados petrolíferos do Golfo Pérsico, visando arrecadar dinheiro para a resistência ou por puro banditismo. Um grande número de cristãos iraquianos – normalmente proprietários de lojas de venda de bebidas alcoólicas ou de diversão – estão sendo diariamente assassinados, além de um número crescente de ex-funcionários públicos do regime de Saddam Hussein.

Assim, antes de qualquer coisa, a segurança é um ponto central e neste setor o governo iraquiano e as tropas de ocupação estão sendo diariamente derrotados. Até muito recentemente a resistência usava como forma básica de organização pequenas células de 3 até 7 membros, tendo como base áreas suburbanas e periféricas de grandes centros urbanos, em especial junto ao chamado Triângulo Sunita, ao centro do país. A partir do ano passado, tais células expandiram para um média de 11 homens, muitas vezes ultrapassando vinte homens, o seu quadro de operações.

Desde 2004 a insurgência adquiriu larga mobilidade, para além da minagem de vias públicas, usando veículos para ações de ataques contra pontos fixos (quartéis, delegacias) ou objetivos móveis (comboios, carros de funcionários). Percebe-se aí a ampla utilização de telefones celulares – mais de 200 mil vendidos nos últimos seis meses, além de um grande número de furtos de carros. Tais ações de logística permitiram ampliar a capilaridade de C’3 (“Comando., Controle e Comunicação”) em ação. A partir das eleições de janeiro de 2005, e muito especialmente depois da formação do novo governo iraquiano, em maio de 2005, a espiral ascendente de mortes no país acelerou-se.

Neste sentido, a guerra assimétrica no país teria avançado para um novo estágio: a retirada dos americanos e seus aliados do país não seria mais o “stated aim” da insurgência e, sim a inviabilização total do sistema, com o “derretimento” das instituições e o “atolamento” dos americanos no país. Teríamos aqui uma estratégia “anti-Vietnã”: no Vietnã a Frente de Libertação Nacional do Vietnã (e o seu aliado do Norte) aceitaram condições de diálogo e reconhecimento do governo de Saigon visando a retirada dos USA (em 1973) e só depois disso lançaram um campanha de aniquilamento do governo da República (Sul) do Vietnã.

Visavam aí separar os americanos de seus aliados em Saigon e em uma guerra “particular”, entre 1973 e 1975, aniquilar o governo pró-ocidental de Saigon. O que vemos agora no Iraque é uma estratégia de inviabilizar a tal ponto a administração de Bagdad, que os americanos ficariam na obrigação de manter a ocupação, expondo-se a perdas constantes e pesadas, visando uma retirada unilateral humilhante ou iniciar negociações imediatas com a insurgência.

O anúncio no último fim de semana (23/06/05) por parte do governo dos Estados Unidos de negociações secretas com a resistência – com quem Bush havia afirmado não haver contemporização, posto serem terroristas, criminosos e cavemen irracionais -, soa como a admissão tardia de que a guerra assimétrica não se vence por meios militares, mesmo que muito superiores.