LIVERANI, M. Para além da Bíblia: História antiga de Israel. São Paulo: Loyola/Paulus, 2008, p. 331-355.
Capítulo 14 – Sobreviventes e estranhos: a invenção da conquista
Mario Liverani faz uma demolição radical da conquista narrada no livro de Josué. Ele desmantela, ponto por ponto, a conquista de Josué.
Ele diz, por exemplo:
:. Sobre a conquista:
A história narrada no livro de Josué não somente não é confiável ao reconstruir uma mítica “conquista” do século XII, mas nem sequer é confiável ao reconstruir os episódios do regresso dos séculos VI-V. É um manifesto utópico que pretende dar força a um projeto de regresso que naqueles termos jamais se verificou (p. 333).
La storia narrata nel libro di Giosuè non solo non è attendibile nel ricostruire una mitica «conquista» del XII secolo, ma non è neppure attendibile nel ricostruire le vicende del rientro del VI-V secolo. È un manifesto utopico che intende dar forza ad un progetto di rientro che in quei termini non si è mai verificato.
:. Sobre os povos vencidos:
Extermina-se quem não existe – e o fato de não existirem demonstra que foram exterminados (p. 339).
Si stermina chi non c’è – e il fatto che non ci sia dimostra che lo si è sterminato.
:. Sobre o propósito do autor:
Legitimação arquetípica da posse da terra de Canaã (p. 339).
Legittimazione archetipica del possesso della terra di Canaan.
Algumas anotações de leitura:
1. As etapas do regresso
Os “pactos” ou “promessas” de Iahweh a Abraão e a Moisés correspondem aos editos dos reis persas no nível jurídico: fornecem a legitimação para o regresso e a posse da terra. As tradições patriarcais podiam ser invocadas como prefigurações de uma primeira presença no país, mas também podiam ser invocadas pelos remanescentes como como modelo de convivência entre grupos diversos e complementares. Assim, as tradições patriarcais fornecem, segundo Liverani, um modelo “fraco” de regresso do exílio, com pequenos grupos que ocupam espaços da terra de Yehud sem maiores conflitos com as populações locais.
Mas este não é o único modelo: a narrativa da conquista, como aparece no livro de Josué, fornece um modelo “forte” de regresso do exílio, permitindo a eliminação das populações estranhas no território de Yehud. Este modelo, defendido por grupos de linha dura, propagandeava um fechamento em relação aos povos “estranhos”.
Mas como ter-se-ia dado o regresso do exílio? Possivelmente nem “fraco” nem “forte” apenas. De modo algum unitário, mas complexo e lento. Agora, um evento militar que teria varrido o território está fora de questão.
A volta não é apenas da Babilônia, como se costuma pensar. A realidade é mais complexa e caótica. Há refugiados também no Egito, nos territórios palestinos antes ocupados pela Assíria e na Transjordânia. Os grupos que voltam do exílio têm motivações e interesses diversos. Voltam aos poucos, é preciso pensar em um regresso escalonado no tempo. Um cenário possível: grupos de pessoas amparadas financeiramente pelos que decidiram ficar na diáspora, mas que apoiam uma reocupação da terra judaíta.
Os textos sinalizam um grupo liderado por Sasabassar; outro liderado por Zorobabel e Josué, que pode ter vindo em 521 a.C., segundo ano de Dario I; outros grupos na época de Artaxerxes, 446 a.C., quando se mencionam Esdras e Neemias; outros mais tarde ainda. Mas, em nenhuma circunstância, aconteceu uma “conquista” do território na volta do exílio.
Por isso, “a história narrada no livro de Josué não somente não é confiável ao reconstruir uma mítica ‘conquista’ do século XII, mas nem sequer é confiável ao reconstruir os episódios do regresso dos séculos VI-V. É um manifesto utópico que pretende dar força a um projeto de regresso que naqueles termos jamais se verificou” (p. 333).
2. A Palestina no período dos aquemênidas
Um quadro dos assentamentos na época dos aquemênidas, especialmente no século V a.C., mostra uma faixa costeira mais densamente habitada e uma população bem ativa no comércio e na política local, em oposição a uma rala população na região montanhosa, que é a do assentamento judaico, o Yehud.
Estimativas arqueológicas sugerem uma pequena população judaíta, na região montanhosa, com cerca de 12 mil pessoas entre 550-450 a.C. e com cerca de 17 mil pessoas entre 450-330 a.C. Na região de Samaria: cerca de 42 mil pessoas.
Por que este quadro? Claramente a administração persa investiu na zona costeira da Palestina e, especialmente, da Fenícia, mais estratégica, construindo fortalezas, centros administrativos, urbanística planejada e instalações portuárias, deixando o interior montanhoso ir em frente com seus próprios recursos.
3. Os povos intrusos
A terra para onde regressam os descendentes dos exilados estava ocupada por vários grupos, como os que, escapando das deportações, nunca saíram de suas terras, os deportados de outras proveniências, os assentados durante o período assírio, as populações limítrofes que se deslocaram ou se expandiram para a terra.
Com a história de uma antiga conquista que elimina os povos residentes tenta-se negar o direito destes vários grupos à terra.
Os povos citados nesta antiga conquista originária são cananeus, heteus , amorreus, ferezeus, heveus e jebuseus.
Esses povos, com exceção dos cananeus, são fictícios, enquanto os povos reais da época do Ferro I [Ferro I=1150-900 a.C.], como fenícios, filisteus, edomitas, moabitas, amonitas, arameus e árabes não são mencionados.
Por que o destaque dado aos cananeus e por que é o único não anacrônico no final do Bronze Recente [Bronze Recente=1550-1150 a.C.]? Por ser um termo genérico, sem característica etnolinguística e unidade política, usado para as populações da região de Canaã, como o fazem os testemunhos egípcios.
Essas listas de supostos povos pré-israelitas, com exceção dos cananeus, não têm ligação alguma com a realidade histórica da Palestina, seja no século XIII (conquista), seja no século V (reocupação da terra pelos sobreviventes do exílio).
Ou seja: “extermina-se quem não existe – e o fato de não existirem demonstra que foram exterminados” (p. 339).
4. A fórmula do êxodo
“Outro elemento fundamental na legitimação arquetípica da posse da terra de Canaã, ao lado da teoria dos povos intrusos, é o da chegada de fora e da conquista armada, em cumprimento da promessa divina. As sagas sobre os ‘Patriarcas’ forneciam uma legitimação insuficiente, já que muito remota e localizada somente em alguns lugares-símbolo (os túmulos, as árvores sagradas). Um protótipo bem mais poderoso da conquista do país é posto em prática com a história do êxodo (ṣē’t, e outras formas de yāṣā’ ‘sair’) do Egito, sob a guia de Moisés, e da conquista armada, sob a guia de Josué” (p. 339).
Saída (êxodo) não implica necessariamente deslocamento físico, mas saída de uma dependência política. Textos do Bronze Recente nas regiões da Síria e da Fenícia, por exemplo, indicam deslocamentos de soberania que não implicam nenhum deslocamento físico das populações envolvidas, mas sim o deslocamento da fronteira política.
Esta linguagem metafórica, porém, fica mais dramática, e passa a significar uma situação concreta, quando os assírios operaram as deportações cruzadas dos dominados no final do século VIII a.C. Liverani calcula que esta prática assíria de “deportação cruzada” de populações, envolveu, ao longo de três séculos, algo como 4 milhões e meio de pessoas no antigo Oriente Médio (cf. p. 193).
A fórmula do êxodo (algo como: Eu [Iahweh] vos fiz sair do Egito para vos fazer habitar nesta terra que vos dei) vai ser ligada a outras fórmulas, como a transumância pastoril patriarcal entre o Sinai e o delta do Nilo e o trabalho forçado dos hapiru nos empreendimentos dos raméssidas no Egito.
Isso faz do êxodo uma história de fundação do povo e do novo êxodo uma saída da diáspora assíria e babilônica. Observe-se que o Israel do êxodo reflete um povo formado, mostrando um quadro muito mais da volta do exílio do que das origens de Israel.
5. Moisés, o deserto e os itinerários
Falando da travessia do deserto, Liverani faz um paralelo entre a narrativa de Êxodo-Números e a volta dos descendentes dos exilados da Babilônia, concluindo que a narrativa do êxodo é apenas uma metáfora da difícil travessia da Babilônia para Yehud. Ao tratar das murmurações do povo contra Moisés e do relato dos exploradores da terra de Canaã, ele diz:
“Em ambos os casos, o povo se pergunta se não terá sido um erro dar ouvidos a Moisés (= aos sacerdotes), abandonar o Egito (= Babilônia), para procurar uma terra mais dura e difícil, habitada por populações hostis e violentas. É claro que os dois motivos, da sedição e dos exploradores, refletem debates que devem ter acontecido entre quem propugnava o retorno e quem manifestava perplexidade ou sem dúvida preferia ficar numa terra de exílio que se mostrara habitável e próspera” (p. 344).
Ele conclui também que a descrição do itinerário do Egito a Canaã seguido por Israel, além de artificial, serve principalmente para criar uma ambiente adequado para a inserção de normas legais que têm outras origens e momentos. Pois observa-se que quase todas as leis são, em sucessivas redações destes textos, inseridas, em algum momento, entre a saída do Egito e a entrada em Canaã.
6. O difícil assentamento
Ao partir do pressuposto de que a narrativa da conquista de Josué foi construída para servir de modelo para a reconquista do território por parte dos sobreviventes do exílio na época persa, a figura de Josué deve ser lida também como um modelo para os chefes que guiaram os sobreviventes da Babilônia para Yehud. Será coincidência chamar-se o líder sacerdotal desta volta também Josué?
Liverani também trata das dificuldades enfrentadas por Neemias para reconstruir as muralhas de Jerusalém. Dizem os livros de Esdras e Neemias que uma coalização de líderes da região tentou de todos os modos impedir a reconstrução das muralhas, alegando que a história de Jerusalém era uma história de rebeldia e isso era prejudicial aos interesses persas na região.
7. Josué e a “guerra santa”
A narrativa das conquistas de Josué, na visão de Liverani, reúne três diferentes sagas – as conquistas do centro, sul e norte de Canaã – para passar a ideia de uma conquista total. Os descendentes dos exilados eram, e não podia ser diferente, apenas de Judá e de Benjamin, apenas duas das doze tribos. Ao passar a ideia de uma conquista ampliada e total do território, os redatores estão defendendo uma solução extremista na reconstrução do território de Yehud.
O maior testemunho disso é a ideia do hérem, “anátema”, ou guerra santa de extermínio, defendida pelos redatores deuteronomistas. Exterminada a população, suas cidades, casas e campos, já prontos, ficam à disposição dos recém-chegados. Liverani vê nisso o reflexo da realidade assíria de deportações cruzadas, aqui utilizada, como modelo utópico na relação do povo “eleito” com os povos “estranhos”. Modelo nunca realizado por Israel nem em suas origens nem em seu regresso do exílio. Que, como já se viu, não era o único modelo existente. Assim, mais uma vez, o texto nos fornece muito mais informações sobre a ideologia de quem o formulou, do que sobre acontecimentos históricos.
8. Paisagem e etiologia
“Além de ocupada por povos-fantasma, destinados à eliminação física para dar lugar aos recém-chegados, a Palestina estava também constelada de cidades em ruína que se prestavam a narrativas ‘etiológicas’ que explicassem esse estado ruinoso, mediante a ação de antigos heróis” (p. 350). Há muitas ocorrências de etiologia: “e (tal está assim) até o dia de hoje” – Js 4,9;5,9;6,25;7,26;8,28-29;9,27;10,27 etc.
Há uma chave litúrgica na apresentação de alguns fatos, como a tomada de Jericó (Js 6), a travessia do Jordão (Js 3-5). Além do que, cidades de Jericó e Ai não podem ter sido conquistadas nesta época, pois Jericó foi destruída no século XIV a.C. e não há indícios de destruição nos séculos XIII-XII a.C., nem de reocupação; Ai (= ruína) também já fora destruída muito tempo antes, no III milênio.
E há compromisso e convivência, pois nem todos os grupos “estranhos” foram eliminados. Há grupos que exigem histórias arquetípicas de assimilação, sendo típico o caso dos gabaonitas (Js 9), podendo ser a citação de um grupo submisso à corveia para o santuário de Jerusalém na época pós-exílica.