Seleção de postagens dos biblioblogs em fevereiro de 2024.
Biblical Studies Carnival #215 – February 2024
Trabalho feito por Ben em seu blog The Amateur Exegete.
Blog sobre estudos acadêmicos da Bíblia
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Biblical Studies Carnival #215 – February 2024
Trabalho feito por Ben em seu blog The Amateur Exegete.
Os sistemas babilônico, palestino, tiberiano-palestino e tiberiano de vocalização do hebraico bíblico
O hebraico bíblico é estudado em todo o mundo por estudantes universitários, seminaristas e pelo público instruído. Também é estudado, quase universalmente, através de um único prisma – o da tradição massorética tiberiana, que é a tradição do hebraico bíblico mais bem atestada e mais amplamente disponível. Graças em grande parte ao seu endosso por Maimônides, tornou-se também a tradição de vocalização de maior prestígio na Idade Média. Para a maioria, o hebraico bíblico é sinônimo do hebraico bíblico tiberiano.
Existem, no entanto, outras tradições de vocalização. A tradição babilônica foi difundida entre os judeus por volta do final do primeiro milênio d.C. O estudioso caraíta do século X, al-Qirqisani, relata que a pronúncia babilônica estava em uso na Babilônia, no Irã, na península arábica e no Iêmen. E apesar do fato de os judeus iemenitas terem continuado a usar manuscritos babilônicos sem interrupção, de geração em geração, os estudiosos europeus só tomaram conhecimento deles em meados do século XIX.
Décadas depois, manuscritos vocalizados com o sistema palestino foram redescobertos na Genizah do Cairo.
Depois disso veio a descoberta de manuscritos escritos de acordo com o sistema tiberiano-palestino e, talvez o mais importante, os textos encontrados em grutas nas proximidades do Mar Morto.
Estas são notas de leitura de capítulos da terceira e quarta partes do volume 1 de GARR, W. R. ; FASSBERG, S. E. (eds.) A Handbook of Biblical Hebrew. Volume 1: Periods, Corpora, and Reading Traditions; Volume II: Selected Texts. Winona Lake, IN: Eisenbrauns, 2016, 370 p. – ISBN 978-1575063713.
A terceira parte está nas páginas 99-185 do primeiro volume e tem os seguintes títulos e autores:
Part III – Ancient and Medieval Reading Traditions
8. Hebrew in Greek and Latin Transcriptions – Alexey Eliyahu Yuditsky
9. Samaritan Tradition – Moshe Florentin
10. Babylonian Tradition – Shai Heijmans
11. Karaite Transcriptions of Biblical Hebrew – Geoffrey Khan
12. Palestinian Tradition – Joseph Yahalom
13. Tiberian-Palestinian Tradition – Holger Gzella
A quarta parte está nas páginas 186-227 do primeiro volume e tem os seguintes títulos e autores:
Part IV – Essays
14. The Tiberian Tradition of Reading the Bible and the Masoretic System – Yosef Ofer
15. The Contribution of Tannaitic Hebrew to Understanding Biblical Hebrew – Moshe Bar-Asher
16. Modern Reading Traditions of Biblical Hebrew – Aharon Maman
A tradição babilônica
É amplamente aceito que a vocalização discutida neste capítulo foi inventada pelos judeus babilônicos durante o período geônico (final do século VI até o século XI d.C.). Não há nenhuma evidência direta, entretanto, de que a vocalização seja de fato babilônica; é uma suposição baseada principalmente em declarações em fontes medievais de que os judeus babilônicos e palestinos tinham diferentes tradições de pronúncia do texto bíblico. O fato de algumas notas massoréticas atribuírem aos “orientais” uma pronúncia conforme à vocalização aqui discutida fortalece esta suposição.
A comunidade judaica na Babilônia tem uma longa história. Os judeus chegaram pela primeira vez à região alguns anos antes da destruição do Templo em 586 a.C. A evidência sugere que estavam bem integrados na vida cultural e econômica que os rodeava. Durante os períodos parta e sassânida, a comunidade estabeleceu-se como a mais influente entre as comunidades judaicas da diáspora. Seus membros se viam como verdadeiros guardiões da tradição judaica.
A colonização judaica na Babilônia talmúdica concentrou-se entre o Tigre e o Eufrates, na região onde os principais canais ligavam os dois rios. No Talmud Babilônico encontramos uma declaração sobre a área de “linhagem judaica pura” (Qidd. 71b): no Tigre, esta área alcançava Moshkani no norte e Apameia no sul (aproximadamente 60 km ao norte de Bagdá e 160 km a seu sudeste, respectivamente).
Durante a antiguidade tardia, os judeus babilônicos gozavam, em geral, de uma autonomia considerável em assuntos internos. À sua frente estava o Exilarca, o Rosh ha-Golah, que derivava sua autoridade tanto de sua linhagem como descendente da casa de Davi quanto do status que lhe foi concedido pelo governo. A vida espiritual e cultural foi dominada pelas academias judaicas, as yeshivot, que funcionaram apenas com pequenas interrupções a partir do século III d.C. Existiam duas academias importantes: uma em Nehardeʿa, que após a destruição da cidade em 259 d.C. mudou-se para Pumbedita; e a outra na Sura. Os ensinamentos dessas academias foram compilados e editados por gerações de estudiosos (Amoraʾim) para formar o corpus literário chamado Talmud Babilônico.
O início do período geônico, assim designado pelo título do chefe da academia, o Gaon, corresponde aproximadamente à conquista da Babilônia pelos árabes.
Sob a lei islâmica, os judeus tinham o direito de culto e de administrar a sua própria lei religiosa. As academias, portanto, continuaram sob o domínio islâmico e alcançaram reconhecimento internacional e autoridade moral na maior parte do mundo judaico. Durante o período geônico, os geonim babilônicos estabeleceram-se como líderes intelectuais de toda a diáspora, alcançando preeminência sobre o centro concorrente na Palestina. Além dos estudos jurídicos, eles também se dedicaram às áreas de exegese bíblica, linguística e poesia.
O fim da era geônica é geralmente associado à morte do rabino Hayya Gaon em 1038. Na realidade, porém, a transição do período geônico para o período rishonim, que se seguiu, foi um processo contínuo de descentralização, à medida que novos centros judaicos no norte da África e Europa substituíram o centro babilônico durante os séculos X e XI.
A tradição de pronúncia babilônica e sua vocalização aparentemente tiveram seu apogeu durante os séculos VIII e IX e se espalharam pelas comunidades judaicas vizinhas na Pérsia e no Iêmen. No final do período geônico, entretanto, a tradição tiberiana substituiu a babilônica, e esta última continuou a ser empregada apenas em alguns lugares, principalmente no Iêmen, onde sobreviveu até o século XV, e, com forte influência tiberiana, continua a ser empregada entre os judeus iemenitas até hoje.
Nosso conhecimento da vocalização babilônica e da tradição de pronúncia que ela representa baseia-se inteiramente em manuscritos medievais. Quase todos os manuscritos são fragmentos de genizah, espalhados em bibliotecas de todo o mundo. Eles representam aproximadamente 500 códices originais, mas muitas vezes não mais do que uma dúzia de páginas sobrevivem de um único codex.
O corpus pode ser dividido em três grupos principais: textos bíblicos, textos rabínicos e piyyuṭim (poemas litúrgicos). Destes, os textos bíblicos formam o maior grupo, com aproximadamente 350 manuscritos. Infelizmente, a maioria dos manuscritos não contém colofões, portanto sua data e procedência só podem ser conjecturadas.
A tradição de pronúncia babilônica representada pela vocalização no corpus de manuscritos não é uniforme, uma vez que a influência tiberiana penetrou na pronúncia babilônica em vários graus.
Israel Yeivin (1985) dividiu os manuscritos em três grupos principais de acordo com a pronúncia que representam: Babilônico Antigo, Babilônico Médio e Babilônico Tardio. O primeiro representa a tradição babilônica sem (quase) nenhuma influência tiberiana. O último representa uma tradição babilônica fortemente tiberianizada.
O sistema de vocalização babilônico, diferentemente do tiberiano, nunca alcançou uniformidade. Praticamente todos os manuscritos importantes são vocalizados de acordo com princípios ligeiramente diferentes. No entanto, podem distinguir-se três subsistemas principais da vocalização babilônica: (1) o sistema “simples”, (2) o sistema “complexo”, (3) e o sistema de pontos.
Os manuscritos raramente são totalmente vocalizados no sistema simples. Os sinais vocálicos são geralmente escritos entre consoantes. Quando, no entanto, as vogais acompanham yod ou vav como matres lectionis, elas geralmente vêm diretamente acima dessas letras.
A tradição palestina
Supõe-se que o sistema de vocalização “palestino” foi usado por judeus em algum lugar da Palestina medieval, exceto Tiberíades.
A evidência baseia-se apenas no relato mais antigo existente sobre uma “vocalização palestina”, que está contido num comentário sobre o tratado ʾAbot da Mishná no Vitry Mahzor, uma coleção medieval da lei judaica. Em seu comentário, o estudioso do século XII, Jacob ben Samson, discute a afirmação “Moisés recebeu a Torá do Sinai” (m. ʾAbot 1,1). Como parte desta discussão, ele cita a opinião de que a cantilena do texto (taʿame ha-miqra) também foi recebida por Moisés no Sinai, “mas os sinais do canto foram estabelecidos pelos escribas. Portanto, a vocalização tiberiana (niqqud) é diferente da nossa vocalização; nem é como a vocalização palestina. Eles os estabeleceram porque acentos e cantos tendem a ser esquecidos”. O exegeta refere-se claramente aqui ao sistema de acentos de cantilena, do qual existem de fato três versões conhecidas: o sistema tiberiano, o sistema palestino e o sistema babilônico. Conclui-se que Moisés não poderia ter recebido os acentos do Sinai, embora tenha recebido a detalhada divisão sintática do texto da Torá, que seria posteriormente marcada por meio de acentos criados expressamente para esse fim.
É um tanto surpreendente que Jacob ben Samson chame um dos sistemas de “tiberiano” e outro de “palestino”, uma vez que Tiberíades fica na Palestina. Evidência indireta adicional da origem palestina desse sistema de vocalização é fornecida pela poesia litúrgica palestina antiga (piyyûṭîm), bem como por um pergaminho vocalizado do targum palestino. Alguns palimpsestos rabínicos revelam um texto original em siríaco ou grego palestino, sobre o qual foi escrito um texto hebraico rabínico com vocalização palestina supralinear. Estes palimpsestos também constituem provas indiretas de uma origem palestina.
Manuscritos palestinos vocalizados são conhecidos apenas no material recuperado na Genizah do Cairo. A maioria dos manuscritos contém piyyûṭîm palestino, mas também são encontrados manuscritos bíblicos e um pergaminho do targum palestino. Existem algumas vocalizações palestinas isoladas em fragmentos da Mishná, do Talmud e dos midrashim, dos quais mais de metade são palimpsestos. Os sinais de vocalização são usados com moderação nesses fragmentos para evitar erros de leitura, principalmente em locais propensos a erros.
Os mais antigos fragmentos dos manuscritos bíblicos com a vocalização palestina foram escritos como pergaminhos. As primeiras cópias mais bem preservadas são de Ezequiel e Salmos. Cópias posteriores dos Salmos foram preservadas em fragmentos de códices e fragmentos de códices semelhantes também existem principalmente para Jeremias e Daniel. Sinais de vocalização isolados podem ser encontrados em um fragmento da Massorá aos Reis, bem como em um manuscrito de Josué no qual os sinais palestinos foram adicionados por duas mãos diferentes.
Todos os manuscritos vocalizados com o sistema palestino utilizam sinais supralineares – isto é, a vogal é colocada acima da letra (como no sistema de vocalização babilônico). Os textos bíblicos vocalizados palestinos seguem a ortografia consonantal do sistema tiberiano. Os textos não-bíblicos tendem a uma grafia mais completa, como é habitual nos Manuscritos do Mar Morto e nos textos pós-bíblicos.
A tradição tiberiano-palestina
A vocalização tiberiano-palestina é um sistema tiberiano de vocalização não padronizado atestado em alguns manuscritos, dos quais o Codex Reuchlin do século XII ocupa o lugar mais proeminente. Como o nome sugere, este sistema combina sete sinais vocálicos da tradição tiberiana com cinco qualidades vocálicas subjacentes aos manuscritos palestinos. Um segundo traço característico apresenta um uso mais extenso de dâghēsh e rafe, especialmente para distinguir os valores consonantais de certos grafemas de sua função como letras vocálicas e para destacar os limites das sílabas. Ambos geralmente refletem práticas ortográficas divergentes das convenções tiberianas, em vez de uma tradição de pronúncia diferente.
Pode-se, portanto, considerar a vocalização tiberiano-palestina uma variante graficamente diferente e não totalmente padronizada da tradição de leitura tiberiana, com tendência à desambiguação. Não está claro por que este sistema surge particularmente em vários manuscritos da Europa Ocidental, incluindo vários manuscritos importantes da Itália, entre os séculos XI e XIV d.C. Da mesma forma, as origens históricas precisas e a extensão da sua combinação de práticas palestinas e tiberianas, juntamente com a presença de alguns representantes de escolas palestinas entre os judeus italianos durante este período e a origem palestina das tradições de pronúncia hebraica na Itália permanecem obscuras.
O sistema tiberiano-palestino ocorre em vários manuscritos bíblicos, mishnaicos e litúrgicos; como mencionado, vários deles vêm claramente da Europa Ocidental, e uma proveniência europeia é pelo menos provável para outros. No entanto, eles apresentam certas diferenças no uso de sinais vocálicos e outros sinais diacríticos que apontam para uma falta geral de padronização.
O Codex Reuchlin, em homenagem ao seu proprietário mais famoso, Johannes Reuchlin (1455-1522, um dos fundadores do hebraísmo cristão), e agora na Badische Landesbibliothek em Karlsruhe, Alemanha, atua como a principal testemunha na discussão. Lindamente escrito em 382 folhas em colunas duplas com 30 a 32 linhas cada, contém o texto dos “Oito Profetas” (Josué, Juízes, 1–2 Samuel, 1–2 Reis, Isaías, Jeremias, Ezequiel e os Profetas Menores ) junto com o targum aramaico após cada versículo. Este último foi publicado separadamente, embora vocalização. De acordo com o cólofon, o Codex pode ser datado de 1105–1106 d.C.
A vocalização tiberiano-palestina emprega os mesmos sinais vocálicos e sinais diacríticos que o hebraico tiberiano, mas sua função e, em casos específicos, sua posição em relação à letra a que um sinal se refere, diferem.
A tradição tiberiana
Várias tradições de leitura da Bíblia evoluíram ao longo do tempo, correspondendo a diferentes dialetos do hebraico. Essas tradições são refletidas em manuscritos e fragmentos de genizah dos séculos IX e X d.C., cujos textos são vocalizados de acordo com diferentes sistemas: babilônico, palestino, tiberiano-palestino e tiberiano. Com o tempo a tradição linguística tiberiana tornou-se o mais prestigiado dos sistemas, deslocou todos os outros, e a sua vocalização passou a ser aceita por todas as comunidades judaicas.
Já no século X há evidências de que o sistema tiberiano foi reconhecido como superior. O sábio caraíta Abū Yūsuf Yaʿqūb al Qirqisāni escreveu em seu Kitāb al-Anwār (937 d.C.): “Nesta geração não há mais ninguém entre aqueles que se ocupam com a ciência da linguagem e da gramática, entre o povo de Isfahan (Pérsia) , Basra (Iraque), Tastur (Tunísia) e outros lugares, que não admitem a superioridade da leitura da terra de Israel, que não a reconhecem como a verdadeira, e que não veem que a verdade da gramática só é explicada por ela”.
Quando Qirqisāni escreveu esta passagem, a vocalização babilônica da Bíblia era de uso comum em toda a Ásia Ocidental, Iraque, Irã, Afeganistão, Arábia e Iêmen. Na época, era provavelmente o mais utilizado, geográfica e quantitativamente, de todos os sistemas de vocalização hebraica. No entanto, Qirqisāni sustentou que os gramáticos reconheciam a superioridade da leitura palestina (ou seja, a tiberiana), na qual baseavam a gramática hebraica.
Saadia Gaon (882–942), um pioneiro da gramática hebraica, é um exemplo disso. Ele nasceu no Egito, viveu algum tempo em Tiberíades e depois se estabeleceu na Babilônia. Embora estivesse familiarizado com a vocalização babilônica e com a tradição de leitura babilônica, ele baseou sua gramática na vocalização tiberiana.
Um exame dos manuscritos com vocalização babilônica revela um claro processo evolutivo: os manuscritos mais antigos preservam uma tradição única do hebraico que difere em muitos detalhes daquela do tiberiano. Com o passar do tempo, porém, as diferenças tenderam a desaparecer: os manuscritos babilônicos ainda usavam os sinais de vocalização supralinear do sistema babilônico, mas a tradição linguística que neles se refletia foi perdendo gradualmente as características que a distinguiam da tradição tiberiana.
Como observado acima a tradição de vocalização tiberiana acabou por triunfar sobre todas as outras e todas as comunidades judaicas adotaram o uso dos sinais tiberianos.
O sistema não permaneceu limitado à Bíblia, mas foi estendido também à Mishná, à poesia litúrgica e outras poesias e, ocasionalmente, também aos escritos em prosa. As tradições de leitura, por outro lado, não se fundiram, e até hoje a Bíblia é lida de forma diferente entre os judeus iemenitas, asquenazes e sefarditas, bem como em algumas outras comunidades judaicas. As tradições destes vários grupos preservaram traços linguísticos antigos.
Os massoretas estavam determinados a produzir um texto bíblico que fosse unificado e uniforme em todos os detalhes: as letras, os sinais vocálicos e os sinais de cantilena. Embora existissem desacordos e diferenças em todos os três domínios – devido à influência de tradições antigas distintas e por causa de erros introduzidos no decurso da cópia e transmissão – onde tais desacordos surgiram, os massoretas tiveram o cuidado de chegar a um acordo sobre uma solução única, que foi então fixada e preservada por meio de um comentário massorético.
Deve-se enfatizar que por uniformidade entendemos a maneira pela qual se deve ler e escrever uma determinada palavra em um determinado versículo. Não queremos dizer uma uniformidade geral na ortografia ou na vocalização entre diferentes ocorrências em um texto. Nem nos referimos à padronização de textos paralelos que aparecem em vários lugares da Bíblia. Pelo contrário, os massoretas esforçaram-se por preservar as diferenças internas no texto. Transmitiam, por exemplo, quantas vezes uma determinada palavra aparecia plena e quantas vezes defectiva, e preparavam listas de diferenças entre textos paralelos da Bíblia [Obs.: a grafia plena usa consoantes vocálicas, ou matres lectionis, e a grafia defectiva usa sinais vocálicos].
Uma comparação dos melhores manuscritos da Bíblia mostra uma notável uniformidade, que também é mantida nas edições impressas atualmente disponíveis. Porém, esta uniformidade não é absoluta, uma vez que existem algumas diferenças entre os vários manuscritos, bem como entre os manuscritos e as edições impressas mais comuns. Quase todas as diferenças são pequenas e não afetam a interpretação do texto.
Isso pode ser demonstrado através de uma comparação de dois códices, o Codex de Aleppo (A) e o Codex de Leningrado (L), os dois manuscritos mais conhecidos da Bíblia.
O texto do Codex de Aleppo foi escrito em Tiberíades no início do século X por Shlomo ben Boyaʿa, e a vocalização e os comentários massoréticos foram acrescentados pelo famoso massoreta Aharon ben Moshe da família Ben Asher. Hoje o manuscrito não está mais completo depois que cerca de um terço de suas páginas foram perdidas durante os conflitos de Damasco em 1947.
O Codex de Leningrado foi escrito no Egito no ano de 1009 por Shmuel ben Yaʿaqov que escreveu o texto e também adicionou as vogais e os comentários massoréticos. O copista observou que baseou seu trabalho “nos livros editados e iluminados feitos pelo sábio Aharon ben Moshe ben Asher”. Muitas edições modernas da Bíblia baseiam sua versão do texto em um ou em ambos desses códices.
Estas são notas de leitura da primeira parte do livro de GARR, W. R. ; FASSBERG, S. E. (eds.) A Handbook of Biblical Hebrew. Volume 1: Periods, Corpora, and Reading Traditions; Volume II: Selected Texts. Winona Lake, IN: Eisenbrauns, 2016, 370 p. – ISBN 978-1575063713.
Esta primeira parte está nas páginas 1-54 e tem os seguintes títulos e autores:
Phases of Biblical Hebrew
1. Standard/Classical Biblical Hebrew – Joseph Lam and Dennis Pardee
2. Archaic Biblical Hebrew – Agustinus Gianto
3. Transitional Biblical Hebrew – Aaron D. Hornkohl
4. Late Biblical Hebrew – Matthew Morgenstern
Quatro estágios do Hebraico Bíblico
A divisão do Hebraico Bíblico em quatro estágios, conforme adotado neste livro – Arcaico/Antigo, Padrão/Clássico, Transicional e Tardio – representa um refinamento da tradicional divisão tripartida do Hebraico Bíblico em arcaico, padrão e tardio (pós-exílico). Como uma língua literária definida por um grupo de textos e não por uma comunidade de fala, o Hebraico Bíblico apresenta certas dificuldades para a tarefa de descrição linguística.
Hebraico Bíblico Padrão
Os estudos histórico-críticos tradicionais da Bíblia Hebraica usam o termo Hebraico Bíblico Padrão ou Hebraico Bíblico Clássico para designar o estágio da língua falada no reino de Judá, na Idade do Ferro, nos séculos VIII a VI a.C.
O termo Hebraico Bíblico Padrão implica uma restrição do corpus nos textos contidos na Bíblia Hebraica. Na maioria das vezes, o termo tem sido aplicado às porções narrativas em prosa da “história primária” de Gênesis até Reis, especialmente porque os livros de Reis e Crônicas, em virtude do suposto intervalo de tempo entre suas respectivas datas de composição e sua sobreposição de conteúdo fornecem um ponto de partida conveniente para comparação diacrônica. Tal definição também tem a vantagem de produzir um corpus relativamente homogêneo para análise linguística.
Coloca-se, contudo, a questão de saber se é metodologicamente justificável excluir a poesia de uma definição do corpus do Hebraico Bíblico Padrão que é ostensivamente diacrônica.
Como é geralmente aceito que o Hebraico Bíblico Arcaico é atestado apenas em um número limitado de textos poéticos contendo características que são especialmente antigas (por exemplo, Gênesis 49, Êxodo 15, Juízes 5), os poemas não arcaicos restantes, incluindo o textos proféticos, da Bíblia Hebraica precisam ser atribuídos a algum lugar no continuum diacrônico.
E uma vez que é claro que os textos poéticos abrangem todo o intervalo cronológico do hebraico bíblico, somos inexoravelmente levados a incluir textos poéticos nos vários estágios do hebraico bíblico, com a poesia do Hebraico Bíblico Padrão abrangendo poemas bíblicos que não são abertamente arcaicos ou comprovadamente tardios.
Hebraico Bíblico Arcaico
O termo Hebraico Bíblico Arcaico caracteriza uma fase do hebraico que difere do Hebraico Bíblico Padrão, mas está mais próximo das antigas línguas semíticas do noroeste, isto é, do ugarítico e do cananeu de Amarna e das línguas cognatas do primeiro milênio, isto é, línguas fenícias, aramaicas antigas e transjordânicas.
Não há consenso se suas características representam uma fase real e falada da linguagem. Os estudos mais antigos tendem a prosseguir com base nesta visão. Por outro lado, estudos mais recentes mostram que vários traços arcaicos também aparecem no Hebraico Bíblico Padrão, especialmente nos textos poéticos. Isto leva à ideia de que o Hebraico Bíblico Arcaico reflete uma fase de transição para a linguagem clássica.
Várias características mais antigas do semítico do noroeste no Hebraico Bíblico Arcaico também foram explicadas como originárias do aramaico, que, neste caso, mantém as formas mais antigas do semítico do noroeste. Algumas características do Hebraico Bíblico Arcaico foram consideradas pertencentes a um dialeto hebraico do norte com afinidades mais próximas com o fenício e o aramaico do que com o hebraico judaico.
Uma data precisa não pode ser atribuída ao Hebraico Bíblico Arcaico Pode-se presumir que a comunidade de fala original seja a sociedade israelita primitiva. As origens desta sociedade estão intimamente ligadas às transformações sociopolíticas na Síria-Palestina durante a segunda metade do segundo milênio a.C. Este período testemunhou o colapso do sistema de cidades-estado na área e a ascensão de variados grupos como os reinos arameu, moabita, edomita, amonita e israelita. Cada um com um governante e um centro administrativo, por exemplo, Jerusalém para os israelitas, Damasco para os arameus, Dibon para os moabitas Uma divindade (Iahweh, Hadad, Kemosh, respectivamente) e uma língua própria.
Este é o cenário para o crescimento do hebraico como a língua “nacional” de Israel, que atingiu o seu auge na forma de Hebraico Bíblico Padrão durante o período do Primeiro Templo.
A comunidade que falava o Hebraico Bíblico Arcaico também foi a que esteve na base da primeira corte genuinamente real – isto é, a de Davi. O Hebraico Bíblico Arcaico representa, portanto, o estágio inicial do desenvolvimento do hebraico.
As primeiras tradições são preservadas em vários poemas da Bíblia Hebraica que formam o corpus do Hebraico Bíblico Arcaico: Ex 15,1–18; Nm 23,7–10; 23,18–24; 24,3–9; 24,16–19; Dt 32,1–43; Hab 3; Sl 68; Gn 49; Dt 33,1-29; Jz 5,1–30; 1 Sm 2,1–10; 2 Sm 22,2–51.
Hebraico Bíblico de Transição
O Hebraico Bíblico de Transição é uma camada histórica heterogênea do registro literário hebraico antigo, refletido em certas obras da Bíblia Hebraica, representando vários gêneros (narrativa, poesia, profecia, retórica exortativa), escritores de diversas vocações (historiador, profeta, poeta) e vários contextos regionais (principalmente Judá e Babilônia).
O rótulo “de transição” deve-se ao fato de que parece ligar os dois estágios históricos mais bem definidos, conhecidos como Hebraico Bíblico Padrão e Hebraico Bíblico Tardio.
Dito de forma simples o Hebraico Bíblico de Transição refere-se ao estrato histórico da Bíblia Hebraica que liga a era pré-exílica à era pós-exílica. O Hebraico Bíblico de Transição é definido como a linguagem do material bíblico escrito ao longo de aproximadamente 150 anos desde o encerramento da era pré-exílica até a reconstrução pós-exílica, isto é, de 600 a 450 a.C.
Acredita-se que o corpus do Hebraico Bíblico de Transição consista em Isaías 40-66, Jeremias, Ezequiel, Ageu, Zacarias, Malaquias e Lamentações. A linguagem de 2 Reis 24–25 também apresenta características do Hebraico Bíblico de Transição.
A evidência mais antiga desses livros consiste em múltiplos manuscritos hebraicos, embora muitas vezes fragmentários, do deserto da Judeia, datados entre o século III a.C. e o século I d.C. Mais tarde, embora indireta, a evidência é oferecida pelas traduções grega, latina, siríaca e aramaica dos séculos seguintes.
Hebraico Bíblico Tardio
Hebraico Bíblico Tardio é um termo acadêmico moderno aplicado ao idioma nos livros da Bíblia Hebraica que são considerados compostos durante o período do Segundo Templo.
A estratificação do hebraico bíblico em pré-exílico e pós-exílico já foi reconhecida no século XII d.C. pelo exegeta e gramático judeu Abraham ibn Ezra, que, em seus comentários sobre Êxodo 12,1, observou que os nomes dos meses apenas aparecem em livros posteriores e foram trazidos para Israel na volta do exílio babilônico.
Embora vários livros bíblicos se relacionem explicitamente com eventos que ocorreram durante o período persa (539–333 a.C.), nenhum menciona pelo nome eventos do período helenístico. No entanto, o filósofo neoplatônico Porfírio de Tiro (século III d.C.) já correlacionava o livro de Daniel com eventos da época de Antíoco Epífanes. Portanto, o livro, pelo menos em parte, não foi composto antes do segundo século a.C.
Os livros bíblicos do final do período helenístico são, portanto, aproximadamente contemporâneos das primeiras composições não-bíblicas encontradas nos manuscritos de Qumran. Na verdade, estes livros e os manuscritos de Qumran partilham muitas características linguísticas.
Com exceção das memórias pessoais de Neemias, que aparecem no livro que leva seu nome e são narradas na primeira pessoa, o texto bíblico não fornece nenhuma informação explícita sobre a identidade dos autores dos livros deste corpus.
As outras partes do corpus – tanto as que mencionam claramente acontecimentos do período persa como as que foram atribuídas ao período do Segundo Templo – são narradas anonimamente na terceira pessoa.
Os livros de Esdras e Neemias (que provavelmente eram originalmente uma única obra) referem-se a eventos que cercaram a fundação do Segundo Templo. Seus dois personagens centrais são exilados judeus de origem nobre servindo na corte persa antes de seu retorno a Jerusalém; ambos eram presumivelmente falantes competentes de persa e aramaico.
O livro de Crônicas reconta a história da monarquia de um ponto de vista teológico polêmico, e seu redator é frequentemente considerado como um levita. O autor do livro de Ester também parece estar familiarizado com a corte persa, embora alguns especialistas tenham lançado dúvidas sobre a exatidão do relato.
Antes da descoberta dos Manuscritos do Mar Morto (tanto de Qumran quanto dos textos posteriores de outros locais no deserto da Judeia), afirmava-se frequentemente que o hebraico nesse período era uma mistura literária de materiais herdados extraídos de fontes anteriores e empréstimos do aramaico.
Neemias já reclamava das crianças que não sabiam falar “judaico” (Ne 13,24). Do período helenístico temos evidências claras de polêmicas linguísticas pró-hebraicas, o que levou alguns estudiosos a acreditar que o hebraico não era mais uma língua falada após o exílio babilônico. Outros estudiosos desafiaram esta suposição e as evidências epigráficas e documentais indicam agora que o hebraico permaneceu uma língua falada pelo menos até o século segundo d.C.
No entanto, existem usos encontrados no Hebraico Bíblico Tardio que parecem ser exclusivos deste período e podem resultar especificamente da influência literária do aramaico, uma vez que não sobrevivem no uso posterior do hebraico. Este fato implica que os autores destes livros eram bem versados na literatura aramaica e nos seus usos linguísticos. A presença do aramaico em Daniel e Esdras e a importância do aramaico no registro epigráfico e literário do período do Segundo Templo apoiam esta suposição.
Por outro lado, não há nenhuma evidência convincente da influência grega no Hebraico Bíblico Tardio.
O corpus do Hebraico Bíblico Tardio geralmente inclui os livros de Esdras, Neemias, Ester, Crônicas, Daniel e Qohelet. Muitos estudiosos também incluem Cântico dos Cânticos, Jonas e alguns salmos, apesar das incertezas de datação.
A descoberta dos Manuscritos do Mar Morto indica até que ponto eram comuns os empréstimos literários e linguísticos de textos religiosos hebraicos anteriores. Como resultado, classicismos e neologismos são frequentemente justapostos nas obras literárias hebraicas do período, incluindo os livros proféticos do período de transição e as obras do hebraico bíblico tardio. O grau em que um texto do Hebraico Bíblico Tardio está em conformidade com as normas do hebraico do período monárquico pode depender do gênero ou da habilidade dos escritores.
Quando uma obra não se relaciona explicitamente com o período pós-exílico, sua atribuição ao Hebraico Bíblico Tardio baseia-se principalmente em considerações linguísticas. Assim, Qohelet e, de acordo com muitos estudiosos, Cântico dos Cânticos estão agora incluídos neste corpus.
Ao datar tais textos, a ênfase é colocada na distribuição de lexemas e formas sintáticas, nos contrastes entre as formas pré-exílicas e posteriores e, sempre que possível, na corroboração externa do uso posterior de outras fontes.
O Codex de Leningrado está na Biblioteca Nacional da Rússia, em São Petersburgo.
Embora a cidade tenha mudado seu nome de Leningrado para São Petersburgo, o livro ainda é chamado de Codex de Leningrado (B 19A). É o manuscrito completo mais antigo da Bíblia Hebraica do mundo.
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O Codex de Leningrado, ou L, para abreviar, pode ser datado por volta de 1008 a 1010 d.C. Como o próprio nome indica, é um livro com páginas, ou folhas, e não um pergaminho. Já no primeiro século d. C. os estudiosos cristãos começaram a transmitir suas obras sagradas em Codex, em vez de pergaminhos, e no século terceiro o Codex era o padrão. No mundo judaico, contudo, o Codex só foi adotado por volta do século sétimo.
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O Codex de Leningrado possui dois colofões. De uma palavra grega κολοφών que significa “cume”, “topo”, “final”, cólofon é uma inscrição que contém o título, o nome do escriba ou impressor e a data e local da composição [ou seja, o cólofon trazia as informações agora fornecidas na página de rosto de uma publicação]. O Codex de Leningrado tem um cólofon no início e outro no final (fólio [ou folha] 1a e fólio 491b).
L também é a mais antiga Bíblia Hebraica completa com sinais indicando vogais. O hebraico geralmente é escrito apenas com consoantes. Infelizmente, isto frequentemente deixa espaço para ambiguidade e incerteza; muitas vezes são possíveis várias vogais diferentes e, portanto, várias leituras alternativas.
Para remediar esta situação, vários sistemas de sinais vocálicos subscritos e sobrescritos foram criados por diferentes escolas na Palestina por volta do século X. O sistema mais conhecido, e o que prevaleceu, foi concebido em Tiberíades pelos massoretas, ou escribas, associados à família Ben Asher. Esses escribas também anotavam seus textos com notas marginais – na parte superior, inferior e nas laterais da página. As notas de L são quase tão importantes quanto o seu texto.
O texto preparado por esses massoretas é conhecido como Texto Massorético. Permanece até hoje o texto padrão da Bíblia Hebraica.
O escriba que escreveu o Codex de Leningrado identificou-se nos dois colofões e no centro de uma estrela em uma das requintadas páginas decoradas do manuscrito (fólio 474a). Ele é Shemu’el ben Ya’aqov, ou Samuel, filho de Jacó.
No primeiro cólofon, o escriba nos conta que o manuscrito foi escrito no Cairo (medinat misrayim, que significa capital do Egito). O homem que encomendou o manuscrito também é identificado — quatro vezes, na verdade — como Mevorak ha-Kohen ben-Netan’el. Mevorak significa o Abençoado. Ele é sacerdote (ou descendente de um – o nome judaico “Kohen” denota uma família sacerdotal), filho de Natanael.
A data do manuscrito é dada de cinco maneiras diferentes: 4.770 anos desde a criação do mundo, 1.444 anos desde o exílio do rei Joaquim (586 a.C.), 1.319 anos desde o “domínio grego” (a era selêucida, começando em 309 a.C.), 940 anos desde a destruição romana do Segundo Templo (70 d.C.) e 399 anos desde a Hégira (a fuga de Maomé de Meca para Medina para escapar da perseguição em 622 d.C.).
Quando convertemos estas datas para o nosso calendário, surgem datas ligeiramente diferentes: de 1008 a 1010.
Uma nota no final do primeiro cólofon nos diz que o manuscrito foi comprado em 1489 pelo chefe de uma yeshiva, ou academia rabínica (não sabemos nada sobre o manuscrito entre 1010 e 1489). São fornecidos o nome do comprador e o nome da yeshiva. Três meses após esta compra, foi doado à sinagoga caraíta de Damasco, como aprendemos em outra nota do primeiro cólofon. Como o nome do comprador é o mesmo do doador – é traduzido tanto em judaico-árabe (Ishaq ibn Musa) quanto em hebraico (Yishaq ben-Moshe ben-Eliyahu ben-Alula) – o Codex provavelmente chegou a Damasco pelo época em que foi comprado em 1489.
Assim como nada sabemos sobre as peregrinações do manuscrito de 1010 a 1489, nada sabemos sobre ele depois disso, até que foi adquirido em meados do século XIX por um dos grandes heróis-bandidos da história dos manuscritos: Abraham Firkovich.
Firkovich era caraíta, e isso é importante para a nossa história. Os caraítas aparentemente se originaram na Babilônia e romperam com o judaísmo rabínico por volta de 760 d.C. A principal diferença doutrinária entre os rabanitas e os caraítas era que estes últimos rejeitavam a chamada Lei Oral incorporada no Talmud, sustentando que somente a Bíblia deveria ser seu guia.
Como tantas vezes acontece com os irmãos, a hostilidade entre os caraítas e os rabanitas era muitas vezes intensa. No entanto, até ao final do século XVIII, ambos se consideravam judeus e consideravam até as suas polêmicas mais destemperadas como assuntos judaicos internos.
Em 1795, porém, a Rússia conquistou a Crimeia, que abrigava uma grande comunidade caraíta. Os russos logo aliviaram os caraítas do duplo imposto cobrado dos judeus. Os caraítas também foram autorizados a adquirir terras, ao contrário dos judeus não-caraítas. Em 1827, os caraítas foram isentos do temido recrutamento militar, novamente ao contrário dos judeus. Para melhorar ainda mais a sua situação política, os caraítas começaram a impressionar o governo com as suas diferenças fundamentais em relação aos judeus, isto é, aos rabanitas.
Finalmente, em 1840, os caraítas foram colocados em pé de igualdade legal com os muçulmanos, um avanço significativo. Nessa época, os caraítas eram ricos proprietários de terras; seus primos de classe baixa, os judeus rabanitas, eram em grande parte vendedores ambulantes e artesãos.
É neste contexto histórico que devemos compreender Abraham Firkovich. Ele nasceu em 1786 em Lutsk (Luck), Polônia, centro das comunidades caraítas na Lituânia. Embora tenha escrito uma autobiografia, sabemos muito pouco sobre seus primeiros anos – principalmente que ele era o hazzan, ou cantor, em uma sinagoga caraíta em Lutsk.
Ele viajou durante vários anos pelas regiões do sudoeste da Rússia, zeloso em seu esforço para descobrir as origens dos caraítas. Ele estava determinado a provar que eles descendiam de um grupo antigo de judaítas que migraram para a Crimeia após o exílio babilônico (século VI a.C.) – e, portanto, muito antes da Era Comum e muito antes do advento do Judaísmo Rabínico. Se isto fosse verdade, teria fornecido a base para melhorias ainda maiores no status dos caraítas.
Em fevereiro de 1839, Firkovich escreveu uma carta ao seu patrono, Simhah Bobowich, o chefe hakham (homem sábio) dos caraítas russos, na qual reconhecia que os caraítas se separaram dos rabanitas por volta de 640 d.C .(esta data é um pouco anterior). “Assim”, escreveu ele, “teríamos sido participantes do assassinato de Jesus, o que não é bom para nós”.
Firkovich esperava provar que os caraítas estavam na Crimeia muito antes dos judeus, mesmo antes da época de Jesus, extraindo evidências de manuscritos antigos, que ele começou a coletar no início de sua vida. (Ironicamente, recentes descobertas arqueológicas indicam que os judeus podem ter vivido na Crimeia pelo menos já no primeiro século d.C.)
Em 1822 ele fez sua primeira viagem a Jerusalém para coletar manuscritos. Em 1830 fez uma segunda viagem à Palestina, desta vez acompanhado por Bobowich. De 1831 a 1832, Firkovich viveu em Istambul, mas logo retornou à Crimeia para servir a comunidade caraíta em Eupatória, que foi a maior comunidade caraíta da Rússia durante o século 19 e a residência do principal hakham caraíta da Rússia.
Então, em 1839, Firkovich viajou em busca de novas aquisições, desta vez encomendadas pelo governador-geral da Crimeia. Ele até realizou algumas escavações arqueológicas nas montanhas do Cáucaso, bem como na Crimeia, em busca dos primeiros caraítas. Ele encontrou algumas lápides caraítas, mas evidentemente falsificou datas para provar seu caso. Na carta a Bobowich citada anteriormente, ele mencionou quão benéfico seria tal descoberta: “Se, no entanto, pudéssemos encontrar uma pedra [túmulo] do ano 4300 [após a criação], então os cristãos nos dariam muita honra e louvor.”
Não há dúvida de que Firkovich era um especialista em reconhecer e avaliar manuscritos antigos e que possuía uma vasta coleção.
Em 1859, ele se ofereceu para vender o que ficou conhecido como a Primeira Coleção de Manuscritos Firkovich à Biblioteca Imperial de São Petersburgo por 25.000 rublos de prata. Esta oferta foi finalmente aceita, com a condição de que a coleção fosse aumentada por alguns manuscritos que Firkovich havia doado anteriormente à Sociedade de História e Antiguidades de Odessa. Em 1862, esta estipulação foi acordada. Aparentemente, o Codex de Leningrado fazia parte da coleção da Sociedade de Odessa.
Firkovich fez outra viagem mais extensa ao Oriente Médio, de 1863 a 1865, onde reuniu uma coleção ainda maior de manuscritos.
Ele passou os últimos anos de sua vida em Chufut-Kale, na Crimeia, e morreu lá aos 87 anos, em 7 de junho de 1874. Durante esses anos, Firkovich viveu em uma casa magnífica e era conhecido como líder caraíta e empresário de sucesso. Ele até mandou fazer seu retrato: um homem próspero e patriarcal, envolto em uma capa cara e ostentando uma barba branca esvoaçante, senta-se severamente ereto; o cajado que ele carrega pode lembrar o bíblico Abraão, homônimo de Firkovich, o pastor-guardião de seu rebanho.
Mas esse grande velho também era um pouco canalha. Vários estudiosos questionaram a autenticidade de alguns itens de sua coleção. Alguns manuscritos são falsificações e outros contêm emendas e interpolações forjadas – parte do esforço de Firkovich para estabelecer o assentamento precoce dos caraítas na Crimeia. Felizmente, as falsificações constituem uma parte pequena e identificável da gigantesca coleção. Aparentemente, ele também mudou as datas de algumas lápides que supostamente provavam a antiguidade dos caraítas na Crimeia; infelizmente, ninguém sabe onde estão essas lápides hoje. Ainda assim, apesar dos seus esforços para estabelecer uma data antiga para os registos – ou, como disse um eminente estudioso, para os “karaizar” – não há qualquer contestação quanto ao fato de ele ter conseguido adquirir a maior coleção de manuscritos hebraicos jamais reunida até esse ponto.
Desde 1988 os estudiosos ocidentais têm tido acesso contínuo e cooperativo à Biblioteca Nacional Russa em São Petersburgo, antiga Biblioteca Pública Estadual Saltykov-Shchedrin e antes disso conhecida simplesmente como Biblioteca Imperial. Uma equipe de Israel, liderada pelo professor Malachi Beit-Arie, professor de codicologia e paleografia na Universidade Hebraica de Jerusalém, está microfilmando praticamente toda a coleção, aparentemente a maior do mundo. Existem mais de 15.000 manuscritos hebraicos somente nas coleções de Firkovich, que são estimados em cerca de 600.000 fólios (1.200.000 páginas). Beit-Arie prevê que serão necessárias gerações para que tal coleção seja avaliada de forma abrangente.
“Na minha opinião”, escreve Beit-Arie, “as coleções de Firkovich contêm muitas centenas de manuscritos ou restos consideráveis de Codex (principalmente bíblicos) produzidos nos séculos X e XI. Para compreender plenamente o extraordinário significado desta quantidade, é preciso compará-la com os provavelmente não mais de 30 manuscritos hebraicos daquele período, mantidos em todas as bibliotecas do mundo!”
Firkovich classificou o Codex de Leningrado como a mais importante de suas aquisições, um elogio nada pequeno considerando a extensão e a qualidade de suas coleções. No entanto, nem na sua autobiografia, Livro das Pedras Memoriais (Sefer Avnei Zikkaron), nem nas suas cartas existentes ele nos diz onde, quando ou sob que circunstâncias adquiriu o Codex de Leningrado; ele nem sequer discute este Codex. Ele o trouxe para a Sociedade de História e Antiguidades de Odessa, entretanto. Talvez tenha sido por isso que a Biblioteca Imperial de São Petersburgo insistiu que as doações de Firkovich à Sociedade de Odessa fossem incluídas na compra da Primeira Coleção de Firkovich.
Uma questão intrigante permanece: como o Codex de Leningrado foi escrito no Cairo? Embora esta parte da história do Codex seja tão incerta quanto o seu paradeiro depois de ter sido copiado em 1010, e novamente depois de ter sido comprado e doado à sinagoga de Damasco em 1489, há indícios intrigantes. Se estivermos certos, poderemos até aprender algo sobre os Manuscritos do Mar Morto.
Por volta de 800 d.C. alguns manuscritos hebraicos foram descobertos perto de Jericó. De acordo com uma carta escrita por Timóteo I (726-819 d.C.), o patriarca nestoriano de Selecia, ao arcebispo de Elam, um cão caçador árabe perseguiu um animal até uma gruta perto do Mar Morto. Quando o caçador foi procurar seu cachorro, encontrou “uma gruta na rocha e nela muitos livros”. O caçador levou então o seu saque para Jerusalém, onde pelo menos alguns dos manuscritos foram identificados como livros da Bíblia escritos em hebraico.
Com toda a probabilidade, estes manuscritos vieram do mesmo conjunto de grutas em que os Manuscritos do Mar Morto foram encontrados em circunstâncias semelhantes em 1947 e durante a década seguinte.
No século IX Jerusalém tornou-se o centro espiritual dos caraítas, e vários estudiosos caraítas se estabeleceram lá. Na verdade, os caraítas daquela época eram muito mais influentes em questões espirituais do que os rabanitas de Jerusalém. Os estudiosos caraítas estavam interessados em olhar além dos ensinamentos orais das autoridades rabínicas codificados na Mishná e desenvolvidos no Talmud; eles esperavam encontrar o próprio texto bíblico original. Assim, estudaram avidamente antigos manuscritos bíblicos e devem ter ficado intensamente entusiasmados com os textos mencionados por Timóteo I.
À medida que o caraísmo se espalhou, os seus adeptos foram encontrados não apenas em Jerusalém e Constantinopla, mas também, em grande número, no Egito. Lá eles rastrearam seus ancestrais até o remanescente de judeus que fugiram para o Egito com o profeta Jeremias após a destruição de Judá pela Babilônia em 586 a.C. ( Jeremias 43, 4-7 ). A maioria dos manuscritos caraítas nas bibliotecas de Paris e São Petersburgo vem do Egito. No Cairo, os caraítas residiam perto do Nilo, perto de Fostat (Antigo Cairo).
Tendo estabelecido uma ligação entre os manuscritos hebraicos bíblicos encontrados em cavernas perto de Jericó por volta de 800 d.C. e os caraítas no Egito (através dos caraítas de Jerusalém que teriam examinado os textos antigos), vamos ver se conseguimos estreitar o vínculo.
Há uma sinagoga no Cairo Antigo, conhecida como Sinagoga Ben Ezra, que é famosa por sua célebre genizah, um depósito para documentos sagrados desgastados. Por alguma razão, na Sinagoga Ben Ezra, todos os tipos de documentos, não apenas documentos sagrados, foram jogados no que ficou conhecido como Genizah do Cairo; estes documentos aí permaneceram durante séculos, até à sua descoberta no final do século XIX. Na verdade, algumas das primeiras compras de Firkovich provavelmente vieram do Genizah do Cairo.
Em 1897, um estudioso da Universidade de Cambridge chamado Solomon Schechter encontrou dois documentos estranhos no Genizah do Cairo que publicou em 1910 sob o título “Fragmentos de uma Obra Sadoquita”. Eles tinham afinidades com documentos caraítas, e muitos sugeriram que os fragmentos de Schechter eram de fato caraítas. Schechter, no entanto, acreditava que eram cópias de uma obra muito mais antiga composta antes da destruição romana de Jerusalém em 70 d.C. Ele observou, por exemplo, que o hebraico dos fragmentos, ao contrário do hebraico usado pelos rabinos depois de 70 d.C., se assemelha muito ao hebraico dos livros mais recentes da Bíblia.
A conjectura de Schechter mostrou-se espantosamente correta quando diversas cópias da mesma obra surgiram entre os Manuscritos do Mar Morto.
Mas como é que esta obra, agora conhecida como Documento de Damasco, foi de Qumran, onde os Manuscritos do Mar Morto estavam escondidos, até a Genizah do Cairo? Provavelmente estava entre os documentos encontrados por volta de 800 d.C. e levados para Jerusalém. Lá teria sido estudado por estudiosos caraítas, que certamente teriam admirado o sacerdócio sadoquita, especialmente sua rejeição ao sacerdócio de Jerusalém, e os regulamentos estritos do Documento de Damasco relativos à comunidade da Nova Aliança, muito semelhantes à rejeição caraíta da doutrina do judaísmo rabínico. O documento foi, sem dúvida, copiado repetidas vezes pelos caraítas, e duas cópias finalmente chegaram à Genizah do Cairo, para serem descobertas em 1897.
Esta suposição é apoiada por outra estranha conexão manuscrita. O interesse de Schechter na Genizah do Cairo foi desencadeado por algumas folhas de uma cópia hebraica do Livro do Eclesiástico (Sirácida) que veio da Genizah do Cairo. Antes dessa época, apenas cópias gregas do Sirácida haviam sido encontradas, e era incerto se o original estava escrito em hebraico ou em grego (resposta: hebraico). Fragmentos hebraicos do Sirácida também foram posteriormente encontrados entre os Manuscritos do Mar Morto. Aparentemente, uma cópia hebraica do Sirácida estava entre as descobertas de cerca de 800 d.C., e cópias delas chegaram à Genizah do Cairo.
Portanto, uma trilha caraíta da Palestina ao Cairo não é tão difícil de imaginar. Como isso nos ajuda a explicar por que o Codex de Leningrado foi encomendado e escrito no Cairo?
Assim como o Documento de Damasco e o Sirácida hebraico chegaram de Jerusalém ao Egito como resultado do interesse acadêmico caraíta, o mesmo aconteceu, muito provavelmente, com cópias da recensão rabínica da Bíblia Hebraica criada no século X em Tiberíades, no sudoeste do país, costa do Mar da Galileia.
Como já observamos, no século X, os escribas conhecidos como massoretas acrescentaram vogais e acentos ao texto consonantal hebraico, padronizando-o e comentando seu trabalho em notas marginais. Obviamente isto foi de grande importância para os caraítas.
Cópias deste novo texto sem dúvida circularam rapidamente e algumas foram levadas para o Cairo para servir às necessidades da comunidade caraíta local. Lá, Shemu’el ben Ya’aqov provavelmente fez uma cópia de um dos manuscritos autorizados preparados pelo próprio Aarão ben Moisés ben Asher em Tiberíades. Eventualmente, como vimos, esta cópia chegou a Damasco. Firkovich o adquiriu em uma de suas viagens mais distantes, talvez até em Damasco.
Existe apenas um outro manuscrito ao qual o Codex de Leningrado pode ser comparado: o Codex de Aleppo. Tanto o Codex de Aleppo como o Codex de Leningrado preservam o texto da escola de massoretas de Ben Asher. O Codex de Aleppo, no entanto, é ainda mais antigo, datando de cerca de 935 d.C. De 1478 a 1947, esteve instalado na Sinagoga Mustaribah, em Aleppo – daí o seu nome. Há uma tradição de que Maimônides, o grande filósofo judeu e estudioso da Bíblia do século XII, viu o Codex de Aleppo, pois se refere a ele como o codex autorizado para o estudo textual.
Em 2 de dezembro de 1947, quatro dias depois de as Nações Unidas aprovarem uma resolução para dividir a Palestina, criando assim o Estado de Israel, multidões árabes em Aleppo (e em outros lugares da Síria) iniciaram um ataque violento contra judeus sírios e suas propriedades. Entre os alvos estava a Sinagoga Mustaribah, um marco desde o século IV. Miraculosamente, porém, 294 das 380 folhas do Codex de Aleppo foram recuperadas. Na sequência elas foram transferidas para Israel e agora são propriedade da Fundação Yitzchak Ben-Zvi em Jerusalém.
Mas mesmo antes do desastre de 1947, o Codex de Aleppo era em grande parte inacessível aos estudiosos.
Na década de 1920 o grande crítico textual alemão Paul Kahle quis usar o Codex de Aleppo como texto base para a terceira edição da Bíblia Hebraica (BH).
BH é a edição crítica da Bíblia Hebraica usada por estudiosos de todo o mundo desde que a primeira edição foi publicada em 1905. É também a base textual a partir da qual foram feitas a maioria das traduções, para qualquer orientação religiosa. As duas primeiras edições usaram o texto tradicional da Bíblia rabínica, impressa na Itália no início do século XVI. Desde então, tornou-se claro que tanto o Codex de Aleppo como o Codex de Leningrado são testemunhas superiores.
Kahle sabia que o Codex de Aleppo era mais antigo e provavelmente ainda mais autêntico que o Codex de Leningrado. Infelizmente, porém, ele não conseguiu persuadir os funcionários da sinagoga em Aleppo nem sequer a permitir-lhe estudá-lo na sinagoga, muito menos emprestá-lo ou fotografá-lo.
Por outro lado, em 1926 Kahle foi autorizado a levar o Codex de Leningrado para Leipzig. Lá, seu aluno, Gottfried Quell, preparou copiosas notas para Rudolf Kittel — o ilustre editor das duas primeiras edições de BH — que então preparava uma terceira edição.
Assim, o Codex de Leningrado tornou-se o texto base da terceira edição de BH (1937), chamada pelos estudiosos de BHK (Biblia Hebraica Kittel).
O Codex de Leningrado é também o texto base da quarta edição da BH (1976/7), conhecida como BHS, Biblia Hebraica Stuttgartensia. Esse é o texto agora usado em todo o mundo para estudo acadêmico e tradução.
A quinta edição da BH, referida como BHQ (Biblia Hebraica Quinta), que está atualmente sendo preparada por uma equipe internacional de estudiosos, também usa como base o Codex de Leningrado. Sua publicação começou em 2004.
Embora o Codex de Leningrado tenha sido fotografado e microfilmado, a maioria das fotografias e filmes originais desapareceram e as cópias restantes são menos que satisfatórias. Até mesmo algumas consoantes hebraicas não são claras nessas cópias, e as minúsculas notas marginais são em sua maioria ilegíveis. Claramente, um novo conjunto de fotografias era necessário.
Após negociações cuidadosas e politicamente sensíveis, a equipe da Ancient Biblical Manuscript Center (ABMC), de Claremont, Califórnia, recebeu permissão para viajar em maio/junho de 1990 para Leningrado (agora São Petersburgo novamente) para fazer o tedioso trabalho de filmar todas as 982 páginas do Codex de Leningrado, incluindo notas finais e páginas com gravuras, em filme colorido e preto e branco. Cópias das novas fotografias foram fornecidas aos estudiosos que preparam a quinta edição da Bíblia Hebraica. Uma edição fac-símile do Codex de Leningrado foi publicada em 1998.
Com as novas fotografias do Codex de Leningrado, a BHQ incluirá, pela primeira vez, todas as notas marginais (masorot) da Bíblia Hebraica completa mais antiga do mundo.
Compreender o valor desses masorot requer um pouco de compreensão de alguma história acadêmica.
As notas massoréticas preservam as primeiras tradições orais sobre como o texto escrito deve ser lido. Até recentemente, estas notas eram consideradas secundárias em relação ao próprio texto consonantal. Este princípio remonta pelo menos até Martinho Lutero. No início do século 16, Lutero foi confrontado com discrepâncias nos vários textos da Bíblia Hebraica que estavam disponíveis para ele. Ele era extremamente cético em relação ao que considerava inovações massoréticas adicionadas às consoantes do texto hebraico. Os estudos modernos do Antigo Testamento têm seguido essa visão desde então – até o período pós-moderno, que começa em meados do século XX.
Agora o paradigma da crítica textual mudou, como pode ser visto claramente na BHQ, Vemos agora a tradição de leitura – isto é, a contribuição dos massoretas – tão autêntica quanto as letras (consoantes).
Assim, as novas fotografias do Codex de Leningrado, tal como publicadas na edição fac-símile e incorporadas na quinta edição da Bíblia Hebraica , estão, pela primeira vez, disponibilizando todas as riquezas da tradição incorporadas neste famoso manuscrito a todos os que se dedicam aos estudos bíblicos.
Fonte: James A. Sanders, Astrid Beck, The Leningrad Codex: Rediscovering the oldest complete Hebrew Bible. Bible Review, Volume 13, Number 4, August 1997.
O texto original do artigo, em inglês, pode ser baixado clicando aqui.
Sobre os autores: James A. Sanders (1927-2020) e Astrid B. Beck (1943-).
O estudo da Bíblia, como de qualquer outro texto antigo, baseia-se em manuscritos que registram várias etapas de sua transmissão textual.
Quando os fundadores da abordagem crítica do texto bíblico hebraico – Benjamin Kennicott (1718-1783) em Oxford e Giovanni Bernardo de Rossi (1742-1831) na Itália – reuniram suas respectivas comparações de manuscritos, as mais antigas testemunhas do texto que eles possuíam eram do século XII d.C.
Desde as publicações deles no final do século XVIII, o estudo da Bíblia Hebraica beneficiou-se felizmente da descoberta de manuscritos importantes até então desconhecidos.
A primeira grande descoberta foi A Genizah do Cairo, termo que abrange cerca de 300 mil fragmentos de uma variedade de escritos literários e documentais, mantidos hoje em setenta e duas coleções diferentes em todo o mundo, que foram recuperados por estudiosos, viajantes e antiquários da genizah da sinagoga Ben Ezra em Fustat, de outras sinagogas e do cemitério judaico de Basâtîn no Cairo Antigo.
A partir de 1947, os altamente fragmentados Manuscritos do Mar Morto foram descobertos em cavernas em wadis e nos penhascos do lado ocidental do Mar Morto e do deserto da Judeia, bem como nas antigas fortalezas de Masada e Hircânia.
Finalmente, nos últimos trinta anos, uma busca sistemática em bibliotecas e arquivos recuperou milhares de manuscritos hebraicos reciclados como matéria-prima nas encadernações de outros livros e arquivos notariais; estas descobertas são referidas como “Genizah Europeia” ou, como diremos neste artigo, como Livros dentro de Livros.
Uma grande proporção de cada corpus contém textos bíblicos e relacionados à Bíblia (traduções, antologias e textos litúrgicos compostos de trechos bíblicos, reescritas, glossários etc.) que mapeiam grandes áreas de sua história: os primeiros manuscritos judeus conhecidos do século IV a.C. ao século II d. C na Judeia / Palestina para os Manuscritos do Mar Morto, os primeiros manuscritos medievais conhecidos, principalmente das comunidades orientais e norte-africanas na Genizah do Cairo, e a variedade de Bíblias medievais posteriores no corpus “Livros dentro de Livros”.
Cada um destes grandes corpora tem as suas características distintivas e coloca desafios científicos específicos: as versões, por vezes muito diferentes, do texto representado nos Manuscritos do Mar Morto, que mudaram radicalmente a nossa avaliação da história redacional versus história de transmissão de alguns livros bíblicos, a história do cânon, a fluidez do texto e as principais famílias de textos medievais (Massorética, LXX, Samaritana); as duas grandes revoluções na produção de livros judaicos que ocorreram no início do período medieval: a adoção do formato de códice para manuscritos bíblicos e a introdução de sinais gráficos para registrar a pronúncia da Bíblia e seu aparato escriba e textual (Massorá).
Os três corpora, no entanto, partilham uma característica comum: são todos compostos por fragmentos e este estado de conservação necessita de um conjunto de métodos de análise diferentes daqueles utilizados para descrever e estudar unidades codicológicas mais completas.
Em particular, os principais desafios em todos os casos são a reconstrução das unidades maiores – sejam pergaminhos ou folhas de códice, cadernos, livros ou partes de livros – a partir de peças dispersas para decifrar a sua escrita (que é muitas vezes ilegível), identificar os seus conteúdos textuais (que quase nunca contêm título ou mesmo cabeçalho ou incipit identificável de seção), identificar os escribas, caracterizar o registro da escrita e possível Sitz im Leben e, por fim, propor uma data e, no caso da Genizah do Cairo e “Livros dentro de livros”, área geográfica onde o manuscrito foi copiado (informação que quase nunca aparece nos próprios fragmentos porque os colofões finais raramente são preservados).
Apesar da semelhança dos desafios, os estudiosos que trabalham em Qumran e os que trabalham em fragmentos medievais raramente se encontram. Essa falta de diálogo é causada pela história das disciplinas, cada uma delas seguindo um caminho independente devido à complexidade e massa de material. Cada lote exigiu seus próprios métodos e conhecimento contextual necessário para compreender os resultados.
O presente encontro visa fortalecer o diálogo entre os dois grupos no que diz respeito aos manuscritos bíblicos. Em vez de discutir questões gerais de história e afinidades religiosas, concentrar-nos-emos nos estudos de manuscritos e nas suas diferentes aplicações em Qumran e na investigação medieval.
Neste artigo introdutório, gostaríamos de propor uma breve visão geral das questões e métodos utilizados no estudo dos respectivos corpora fragmentários, a fim de avaliar o seu possível uso através das fronteiras disciplinares das tradições acadêmicas dos qumranólogos versus as tradições acadêmicas dos medievalistas. Tomaremos como ponto de encontro a metodologia do estudo da materialidade dos manuscritos e não a contribuição dos fragmentos para o estudo do texto.
Alguns dados apresentados pelos autores na p. 377:
1. Número total de fragmentos nos 3 corpora:
Manuscritos de Qumran: entre 15 e 20 mil fragmentos de cerca de 1.000 manuscritos
Manuscritos do Mar Morto além de Qumran: fragmentos de cerca de 1000 manuscritos
Genizah do Cairo: cerca de 300.000 fragmentos pertencentes a 30-40 mil unidades originais
Livros dentro de Livros: cerca de 15.000 fragmentos já identificados na Europa, Israel e EUA
2. Número de manuscritos com textos bíblicos:
Manuscritos de Qumran: de 170 a 200
Manuscritos do Mar Morto além de Qumran: cerca de 30
Genizah do Cairo: cerca de 50 mil
Livros dentro de Livros: cerca de 4 mil
Fonte: OLSZOWY-SCHLANGER, J.; BEN EZRA, D. S. Qumran, the Dead Sea Scrolls, Cairo Genizah, and Books within Books: Towards a Comparative Study of the Manuscript Fragments of the Hebrew Bible. In: ATTIA, E.; PERROT, A. (eds.) The Hebrew Bible Manuscripts: A Millennium. Leiden: Brill, 2022, p. 374-376.
* As 5 notas de rodapé deste início de capítulo foram omitidas.
Judith Olszowy-Schlanger is professor of Hebrew and Judaeo-Arabic Palaeography and Manuscript Studies at the Ecole Pratique des Hautes Etude, PSL, Paris, President of the Oxford Centre for Hebrew and Jewish Studies and Professorial fellow of Corpus Christi College, Oxford University.
Daniel Stökl Ben Ezra is Professor of Ancient Hebrew and Aramaic at the EPHE, PSL-University in Paris. He works on Dead Sea Scrolls, Early Rabbinic literature, Jewish-Christian relations and Computational and Digital Humanities.
The study of the Bible, like any other ancient text, is based on manuscripts recording various stages of its textual transmission.
When the founders of the critical approach to the Hebrew biblical text—Benjamin Kennicott (1718–1783) in Oxford1 and Giovanni Bernardo de Rossi (1742–1831) in Italy—put together their respective collations of manuscripts, the most ancient witnesses of the text they possessed dated from not earlier than the twelfth century ce. Since their work in the late eighteenth century the study of the Hebrew Bible has fortunately benefitted from the discovery of major hitherto unknown manuscript
sources.
The first major discovery was the “Cairo Genizah,” the term which covers some 300,000 fragments of a variety of literary and documentary writings, kept today in seventy-two different collections across the world, which were recovered by scholars, travelers, and antique dealers from the Genizah of the Ben Ezra synagogue in Fustat, from other synagogues, and from the Jewish cemetery of Basâtîn in Old Cairo.
From 1947 the highly fragmentary Dead Sea Scrolls were discovered in caves in wadis and the cliffs on the Western side of the Dead Sea and the Judean Desert, as well as in the former fortresses Masada and Hyrkania.
Finally, in the past thirty years a systematic search in libraries and archives has recovered thousands of Hebrew manuscripts recycled as raw material in the bindings of other books and notarial files; these findings are referred to as the “European Genizah” or, as we will do in this paper, as “Books within Books” (the title of an international project and a website containing a catalogue of the fragments).
A large proportion of each corpus contains Bible and Bible-related texts (translations, anthologies, and liturgical texts composed of biblical excerpts, rewritings, glossaries, etc.) which chart large areas of its history: the earliest known Judean manuscripts from the fourth century bce to the second century ce in Judea/Palestine for the Dead Sea Scrolls, the earliest known medieval manuscripts mostly from the Oriental and North African communities in the Cairo Genizah, and the variety of later medieval Bibles in the “Books within Books” corpus.
Each of these major corpora has its distinctive characteristics and poses specific scientific challenges: the sometimes vastly different versions of the text represented in the Dead Sea Scrolls which have radically changed our evaluation of the redactional versus transmission history of some biblical books, the history of the canon, the fluidity of the text, and the major medieval text families (Masoretic, lxx, Samaritan); the two major revolutions in Jewish book making which occurred in the early medieval period: the adoption of the codex format for biblical manuscripts and the introduction of graphic signs to record the pronunciation of the Bible and its scribal and textual apparatus (Masorah).
The three corpora, however, share one main feature: they are all composed of fragments and this state of conservation necessitates an array of methods of analysis which differ from those used to describe and study more complete codicological units.
In particular, the main challenges in all cases are a reconstruction of the larger units—be it scrolls, sheets or codex leaves, quires, books or parts of books—from scattered pieces to decipher their writing (which is often illegible), identify their textual contents (which almost never contain a title or even an identifiable heading or incipit of a section), identify the scribal hands, characterize the script register and possible Sitz im Leben, and, finally, propose a date and, in the case of the Cairo Genizah and “Books within Books,” a geographical area where the manuscript was copied (information which almost never appears in the fragments themselves because the final colophons are only rarely preserved).
Despite the similarity of challenges, scholars working on Qumran and those working on medieval fragments rarely meet. This lack of dialogue is caused by the history of the disciplines, each of which followed an independent path due to the complexity and mass of material. Each lot required its own methods and contextual knowledge necessary to understand the findings.
The present meeting aims to strengthen the dialogue between the two circles with regard to biblical manuscripts. Rather than discussing general questions of history and religious affinities, we will focus on manuscript studies and their different applications in Qumran and medieval research.
In this introductory paper we would like to propose a brief overview of the issues and methods used in the study of the respective fragmentary corpora in order to assess their possible use across the disciplinary boundaries of Qumranologists’ versus medievalists’ scholarly traditions. We will take as a meeting point the methodology of the study of the manuscripts’ materiality rather than the fragments’ contribution to the study of the text.
O Codex Amiatinus é considerado o manuscrito mais bem preservado da versão latina da Bíblia feita por Jerônimo, conhecida como Vulgata.
Foi produzido por volta de 700 no nordeste da Inglaterra, no mosteiro de Wearmouth-Jarrow, no Reino da Nortúmbria, e levado para a Itália como um presente para o Papa Gregório II em 716.
O Codex Amiatinus é uma das três bíblias em um só volume então feitas em Wearmouth–Jarrow e a única que sobreviveu integralmente.
Tem o nome do local onde foi encontrado nos tempos modernos, monte Amiata, na Toscana, Itália, na Abadia de San Salvatore. Desde 1786 é mantido em Firenze na Biblioteca Medicea Laurenziana.
É considerado como o manuscrito que fornece a representação sobrevivente mais confiável do texto da Vulgata de Jerônimo para os livros do Novo Testamento e a maior parte do Antigo Testamento.
Veja imagens do Codex Amiatinus.
Recomendo algumas leituras para quem quiser conhecer melhor o Codex Amiatinus:
ARREGUI, M. O. El “Codex Amiatinus”: El manuscrito más antiguo de la Vulgata. ArtyHum, 49, 2018, p. 35-51. Disponível, em espanhol, em Academia.edu.
CASTALDI, L. Il Codex Amiatinus. The City and The Book, Florence, 2001. Disponível em italiano e inglês.
DE HAMEL, C. Manuscritos notáveis. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, 680 p. Capítulo 2: O Codex Amiatinus. Leia um resumo do capítulo clicando aqui.
DHWTY El Códice Amiatino: Se utilizaron las pieles de 500 terneros para crear esta Biblia medieval. Post publicado em Ancient Origins, em 29 de dezembro de 2023.
HOUGHTON, H. A. G. The Latin New Testament: A Guide to its Early History, Texts, and Manuscripts. Oxford: Oxford University Press, 2016, 304 p. Disponível para download gratuito em pdf.
HOUGHTON. H. A. G. (ed.) The Oxford Handbook of the Latin Bible. Oxford, Oxford University Press, 2023, 536 p.
MARSDEN, R.; MATTER, E. A. (eds.) The New Cambridge History of the Bible. Vol. 2: From 600 to 1450. Cambridge: Cambridge University Press, 2012, 1068 p. Capítulo 4: The Latin Bible, c. 600 to c. 900.
MEYVAERT, P. Bede, Cassiodorus, and the Codex Amiatinus. Speculum 71, 1996, p. 827-883.
PEARSE, R. Searching for the Vulgate: one genuine text and two “fakes”. Post publicado em Roger Pearse, em 27 de janeiro de 2020.
STOPPACCI, P. La lunga storia del Codex Amiatinus, s/d. Disponível, em italiano, em Academia.edu.
Seleção de postagens dos biblioblogs em janeiro de 2024.
January 2024 Biblical Studies Carnival
Trabalho feito por Jacob J. Prahlow em seu blog Pursuing Veritas.
D’HAMONVILLE, D.-M. O Cântico dos Cânticos. São Paulo: Loyola, 2024, 152 p. – ISBN 9786555043228.
Sobre a coleção ABC da Bíblia:
Trata-se de uma verdadeira “caixa de ferramentas” que ajudará o leitor a fazer uma leitura sistemática e esclarecida dos livros da Bíblia. Cada volume desta coleção identifica o autor, ou autores, de determinado livro bíblico ou de um conjunto de escritos, apresenta seu contexto histórico, cultural e redacional, analisa-o literariamente, mostra sua estrutura, resume-o, aborda seus grandes temas, estuda sua recepção, influência e atualidade, e fornece um léxico de lugares e pessoas, tabelas cronológicas, mapas e bibliografia.
O original foi publicado em francês em 2021.
David-Marc d’Hamonville é monge beneditino da abadia de En-Calcat (Dourgne, França) e autor também de Le livre des proverbes e Jonas desta mesma coleção.
CANTARELA, A. G. Bíblia e linguagem: Contribuições dos estudos literários. São Paulo: Paulinas, 2023, 208 p. – ISBN 9786558082415.
O Projeto Bíblia em Comunidade do SAB/Paulinas oferece uma formação sistemática para lideranças e agentes de pastoral.
As séries de livros que compõem a Coleção Bíblia em Comunidade são:
1. Visão Global da Bíblia: apresenta, em vários livros, o contexto histórico dos diferentes períodos da história do povo da Bíblia nos quais nasceram os escritos bíblicos.
2. Teologias Bíblicas: apresenta as diferentes visões ou intuições que o povo da Bíblia teve sobre Deus ao longo de sua história.
3. A Bíblia como Literatura: busca entender a Bíblia nas suas formas e gêneros literários, bem como os diferentes métodos para o estudo da Bíblia.
4. Recursos Pedagógicos: aprofunda as três séries anteriores. Estes livros têm o objetivo de oferecer ferramentas úteis para as lideranças e agentes de Pastorais, coordenarem o estudo e aprofundamento de cada um dos temas.
O livro Bíblia e linguagem: Contribuições dos estudos literários faz parte do terceiro nível do Projeto Bíblia em Comunidade, A Bíblia como Literatura.
O objetivo deste livro é estabelecer a relação entre a Bíblia e o estudo sobre a linguagem, para, em seguida, adentrar nas investigações sobre o aspecto literário bíblico. Na Bíblia, há um conjunto de textos escritos, nos quais os autores se servem de elementos literários. Nesta obra, é traçado um caminho que parte do estudo da linguagem, passando pela definição de literatura, pelas diferentes visões dos críticos literários e dos biblistas, até abordar a dimensão teológica da Bíblia. O autor proporciona um itinerário seguro para nos aprofundarmos nessa temática – que é bastante desafiadora -, e, diante de um leque de possibilidades, aponta caminhos que indicam por onde trilhar de forma segura.
Antonio Geraldo Cantarela é natural de Cachoeiro de Itapemirim (ES). Tem mestrado e doutorado em Letras (Literatura) e, também, graduação em Filosofia, Teologia e Comunicação Social. Durante muitos anos, foi redator de subsídios para a Pastoral bíblica e professor de Bíblia em vários institutos de Teologia (PUC Minas, ISTA, FAJE, Centro de Orientação Missionária de Caxias do Sul, Seminários de Luz, Diamantina e Mariana). Atualmente, é professor do Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião da PUC Minas e realiza pesquisa de temas relacionados à linguagem da religião e às interfaces entre religião e literatura.
Esse homem de estatura tão pequena, mas de um coração tão grande, tão maravilhoso, deve ser observado, seu exemplo deve ser seguido, porque a sua caminhada é digna, é merecedora de toda atenção e carinho (Dindinho, tio Clóvis, sobre o papai, por ocasião de seus 90 anos em 2014).
José Nicolau, meu pai, nasceu em 16 de janeiro de 1924 e faleceu em 21 de janeiro de 2020, aos 96 anos de idade.
Hoje celebramos o centenário de seu nascimento.